quinta-feira, 3 de julho de 2014

“Não está faltando cadeias. Está faltando é tronco em praça pública!”


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Meu irmão Marcelo Pereira “Dilá” compartilhou uma história linda que não conhecia e cuja fonte não consegui identificar. Ao consultar a querida amiga Maria Silvia, ela me disse que os Griôs – contadores de histórias, protetores e celebradores da tradição oral africana, podem ter fortalecido essa história aqui no Brasil.
Fato é que ela nos ensina muito sobre punição, prisão e humanidade. Aliás, temos muito, mas muito mesmo a aprender com a África:
“Há uma ‘tribo’ africana que tem um costume muito bonito.
Quando alguém faz algo prejudicial e errado, eles levam a pessoa para o centro da aldeia, e toda a tribo vem e o rodeia. Durante dois dias, eles vão dizer ao homem todas as coisas boas que ele já fez.
A tribo acredita que cada ser humano vem ao mundo como um ser bom. Cada um de nós desejando segurança, amor, paz, felicidade. Mas às vezes, na busca dessas coisas, as pessoas cometem erros.
A comunidade enxerga aqueles erros como um grito de socorro.
Eles se unem então para erguê-lo, para reconectá-lo com sua verdadeira natureza, para lembrá-lo quem ele realmente é, até que ele se lembre totalmente da verdade da qual ele tinha se desconectado temporariamente: “Eu sou bom”.
Sawabona Shikoba!
Sawabona é um cumprimento usado na África do Sul e quer dizer: “Eu te respeito, eu te valorizo. Você é importante pra mim”.
Em resposta as pessoas dizem Shikoba, que é: “Então, eu existo pra você”. 

Já no Brasil, quando não se prende, se mata!
Quase 600 mil pessoas estão presas no Brasil. Temos aqui a quarta maior população carcerária do planeta, atrás apenas dos Estados Unidos (2,2 milhões), da China (1,6 milhão) e Rússia (740 mil). Vivemos a cultura do medo. Alimentamos estereótipos e o perigo quase sempre está acompanhado por determinada cor da pele, origem, tipo de vestimenta, prática cultural ou religiosa.
A violência é endêmica. A opressão por parte do Estado, que em tese deveria garantir segurança e bem estar à população, endossa a violência civil, tão cotidiana quanto cruel. Nosso país mantém 16 municípios no grupo das 50 cidades mais violentas do planeta. E o caráter racial da violência é explicito: enquanto a taxa de homicídios de negros é de 36,5 por 100 mil habitantes, no caso de brancos, a relação é de 15,5 por 100 mil habitantes e justamente por isso, enquanto o homem negro perde 20 meses e meio de expectativa de vida ao nascer, a perda do branco é de oito meses e meio. Pelas projeções, 36.735 brasileiros de entre 12 e 18 anos serão assassinados até 2016.
Assassinatos em série, pessoas desaparecidas, corpos arrastados. Tudo isso ao vivo e em tempo real. É possível negar o conflito em que vivemos? É possível negar a ineficácia das políticas de segurança pública ? É possível não perceber que encarceramento e força militar não resolvem os problemas e sequer tocam suas raízes?
Não há país civilizado. Não há país harmônico ou democrático. Somos violentos. Somos desumanos. Somos cruéis. É preciso assumir para tratar. É preciso enfrentar e desconstruir no imaginário da população, valores simbolizados pelo comentário de um dos leitores deste Blog: “Não está faltando cadeias. Está faltando é tronco em praça pública!”
NÃO ESTÁ!
‘Amarildos’, ‘Ricardos’, ‘Douglas‘, ‘Cláudias‘ e tantos outros barradosdesaparecidostorturados, arrastados eexecutados de nossos dias, são a prova de que infelizmente não está.
África… quanto temos a aprender com você…

Denunciados pela linguagem

Fabiane era inocente. Nós, ao exaltarmos a sua inocência como principal razão para que ela não fosse assassinada, somos culpados.


O linchamento de Fabiane Maria de Jesus nos denuncia pela palavra. Há um horror, o linchamento. E há o horror por trás do horror, que é a exacerbação da inocência da vítima. É preciso que este também nos espante, porque ainda mais entranhado, suas unhas cravadas fundo numa forma de pensar como indivíduos e de funcionar como sociedade. Nem todos são capazes de pegar um pedaço de pau para bater na cabeça de uma mulher até a morte por considerá-la culpada de um crime, mas é grande o número daqueles que, ao contarem o caso na última semana, enfatizaram: “Ela era inocente”. Não como uma informação a mais no horror, mas como a mais importante. Essa também foi a frase escolhida para ilustrar as camisetas dos que protestavam contra a sua morte: “A dor da inocência”. Mas talvez seja na exaltação da inocência que nossa violência se revele em sua face mais odiosa. O que pensamos ser luz, prova de nossa boa índole, é feito da matéria de nossas trevas mais íntimas. É a exacerbação da inocência que mostra o quanto nós – mesmo os que não lincham pessoas na rua – somos perigosos.
E se ela fosse culpada?, como provoca o título da matéria de Marina Rossi, aqui no El País Brasil. E se ela fosse uma mulher que praticasse magia negra com crianças? Seu assassinato por um bando de pessoas na rua estaria justificado? Então alguém poderia agarrá-la, outro arrastá-la e um terceiro passar com a roda da bicicleta sobre a sua cabeça? É isso o que estamos dizendo quando nos espantamos mais com a inocência de Fabiane do que com o seu assassinato?
O linchamento de Fabiane produziu uma narrativa fragmentada, que revela mais sobre os autores do discurso do que sobre a vítima. O suspeito V. B., eletricista, 48 anos, justificou-se, ao ser preso: teria golpeado Fabiane com um pedaço de madeira porque achou que o boato era “verdade”. O suspeito L.L., ajudante de pedreiro, 19 anos, que teria passado com a bicicleta sobre a cabeça de Fabiane, explicou: “Diante da gritaria das pessoas que tinham reconhecido a mulher, não tive dúvidas de participar do tumulto”. O suspeito C.J., pintor de paredes, 22 anos, teria puxado Fabiane pelos cabelos para se certificar de que era ela mesma, antes de ajudar a matá-la.
A exaltação da inocência de Fabiane revela a não inocência da sociedade brasileira na série de linchamentos que vem atravessando
o país
Em nenhum momento apareceu o choque por ter espancado uma pessoa com um pedaço de pau, passado sobre a cabeça de alguém com a bicicleta, agarrado uma mulher pelos cabelos. Passada a explosão da hora, a questão que motivou até um pedido de desculpas à família, por parte de um dos suspeitos, era o erro. Mas o erro não seria assassinar – e sim assassinar a pessoa errada. Se havia razões para o arrependimento era a inocência de Fabiane – não o ato de matar. “Não é ela, não é ela”, teria avisado alguém em um dos vídeos de sua morte. Não arrebente porque não é ela. E se fosse?
Se a exaltação da inocência estivesse restrita aos assassinos – e a quem assistiu ao assassinato sem nada fazer para impedi-lo – seria mais fácil. Mas foi a inocência de Fabiane que motivou, nos mais variados espaços, perguntas retóricas como: “onde estamos?” ou “que país é este?”. Entre os tantos comentários sobre o caso, lamentando a morte de Fabiane, talvez o do governador do estado de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), seja o mais revelador.
Fabiane foi linchada no sábado (3/5), no bairro de Morrinhos, na periferia do Guarujá, no litoral paulista, e morreu, no hospital, na segunda-feira (5/5). Tinha 33 anos. Na quarta-feira (7/5), o governador, que pretende tentar a reeleição, foi ao Guarujá para, entre outros compromissos, reinaugurar a maternidade do Hospital Santo Amaro – o mesmo onde, segundo o jornal O Estado de S. Paulo, Fabiane teve de esperar um dia para conseguir vaga na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Durante a cerimônia, Alckmin manifestou-se sobre a morte de Fabiane, nos seguintes termos: “É inadmissível um ato de barbaridade como esse, tirando a vida de uma pessoa que não tinha nada a ver com a desconfiança da população, até porque tudo não passou de um boato”.
Uma boa questão de interpretação para a prova de língua portuguesa do próximo vestibular. O que, exatamente, o governador está dizendo ao povo do estado que governa? Qual é, para ele, a questão central no linchamento? O que é inadmissível, segundo Alckmin? Linchar uma pessoa, qualquer pessoa, ou linchar uma pessoa inocente?
A exaltação da inocência de Fabiane revela a não inocência da sociedade brasileira na série de linchamentos que vem atravessando o país. As palavras revelam o que também alimenta o espancamento e a morte de pessoas por cidadãos nas ruas. É no discurso, às vezes subliminar, às vezes explícito, que é reeditado cotidianamente o pacto histórico de que há uma categoria de brasileiros que podem ser mortos – ou que ao menos seu assassinato seria justificável. É esta mesma lógica que tolera – quando não deseja – a tortura e a morte de presos nas delegacias e nos presídios do Brasil. Encarar os linchamentos como algo que só pertence ao bárbaro, que é sempre o outro, é ocultar a nossa responsabilidade, a de cada um, com uma máscara de inocência. Fabiane era inocente. Nós, ao exaltarmos a sua inocência como principal razão para que ela não fosse assassinada, somos culpados.
Encarar os linchamentos como algo que só pertence ao bárbaro, que é sempre o outro, é ocultar a nossa
responsabilidade
A barbárie não deveria nos surpreender, como se fosse nova entre nós. A sociedade brasileira historicamente a tolera, quando não a estimula. Como já foi dito mais de uma vez, também aqui, ela está nas raízes da formação do Brasil. A barbárie chegou junto com os que se anunciavam como civilizados diante dos povos indígenas que aqui estavam – os bárbaros. E foram também os chamados civilizados que promoveram uma força de trabalho escravo, alimentada por negros trazidos da África (e também por índios). Nem a escravidão nem o extermínio indígena foram superados no Brasil – e as marcas de uma e a reedição do outro fazem parte do cotidiano do país, hoje.
Fingir que a barbárie é surpreendente não vai nos ajudar a combatê-la. No Brasil atual, indígenas, ribeirinhos e quilombolas têm sido expulsos de suas terras por atos do próprio governo federal – e muitos deles têm sido mortos por pistoleiros, a mando de fazendeiros. É assustador o número de moradores de rua assassinados no Brasil nos últimos tempos, assim como o de crimes por homofobia. A retirada de pessoas de suas casas para a construção de estádios da Copa do Mundo é conhecida – ou deveria ser – por todos. A violência nos presídios e as execuções nas favelas e periferias tornaram-se uma banalidade só interrompida por espasmos. Mesmo os linchamentos estão longe de nos ser estranhos, o que em nada diminui o seu horror e a necessidade de combatê-los.
Se há algo de novo é talvez a forma como as palavras encarnaram para tornar Fabiane uma pessoa para o linchamento. A internet não criou – nem piorou – o humano. Ela apenas o revelou como nunca antes. Ela deu-nos a conhecer. Antes não sabíamos o que pensava o vizinho ou o caixa do banco ou o sujeito que nos cumprimentava na padaria. Agora, ele grita na internet – e, mais do que grita, exibe todo o seu inferno. Passeia o time completo, com titulares e reservas, de seus ódios e preconceitos. Na internet, o humano perdeu o pudor de suas vísceras. Ao contrário, em vez de ocultá-las, passou a exibi-las como um troféu de autenticidade.
É nesse contexto que o dono do perfil no Facebook “Guarujá Alerta” postou, em 25 de abril, a seguinte “notícia” – que jamais poderia ser chamada de notícia porque sequer foi apurada antes de ser publicada: “Boatos rolam na região da praia do Pernambuco, Maré Mansa, Vila Rã e Areião, que uma mulher está raptando crianças para realizar magia negra... Se é boato ou não devemos ficar alertas”. Nenhum pudor de postar um boato. Zero pudor. Ao contrário, a internet nos mostra que há um orgulho no despudor, no “assumir” a falta de princípios, confundindo-a com o que é apresentado como “coragem de denunciar”.
Alguns dos comentários de homens e mulheres, postados na sequência, mostra a disseminação do ódio, travestida como defesa do bem: “Mata essa filha da puta. Quem achar, sem dó”/ “Se vir pro Morrinhos vai tomar só rajada essa cachorra”/ “Vamos fazer uma magia de revolta com ela, ‘botando fogo nela’”. Logo surgiu um retrato falado, que seria descrito pela imprensa como o de uma mulher “negra e gorda”, em seguida a foto de uma loira.
Dias depois da publicação do boato, Fabiane, com pouca ou nenhuma semelhança com qualquer uma das imagens, foi linchada. Inclusive crianças participaram do seu espancamento. O retrato falado tinha sido feito em 2012 pela polícia carioca e referia-se a uma suspeita de ter sequestrado uma criança na zona norte do Rio. Nenhum menino ou menina desaparecera na região do Guarujá nos últimos tempos, o crime não existia. Mas as “bruxas” começaram a ser vistas em toda parte – e também em outras regiões do país, na qual o boato foi reproduzido. Fabiane foi a única morta, mas várias mulheres podem ter corrido o risco de ser assassinadas. De novo, as mulheres e a bruxaria, como nas fogueiras da Inquisição.
Se há algo de novo é talvez a forma como as palavras encarnaram
para tornar Fabiane uma pessoa para o linchamento
(Só um parêntese. Vale pensar sobre o peso da palavra escrita nessa tragédia. Sobre o quanto a palavra escrita, agora na internet, é decodificada ainda por muitos, em especial por aqueles que ao longo da história tão pouco tiveram acesso a ela, como “verdade”. A frase “está no jornal” ou “li no jornal”, usada para assegurar a veracidade de algo diante de outros, é agora também “está (ou li) na internet”. É o que mostra a quantidade de spams com boatos os mais estapafúrdios que atravancam todos os dias as caixas de e-mail e também as redes sociais, porque muitos os replicam, sem apurar a fonte ou sequer duvidar, para alertar seu circuito de conhecidos, familiares e amigos sobre ameaças terríveis. Falta muito para que a leitura crítica, tanto da imprensa tradicional quanto da mídia alternativa, como de qualquer outra produção narrativa, se estabeleça para a maioria, tão carente de educação no país.)
Quando Fabiane foi agarrada naquele sábado, carregava um livro de capa preta. Quem passava por ela, viu nele uma obra de magia negra. Quando ela ofereceu uma fruta a uma criança na rua, o gesto foi interpretado como uma tentativa de sedução. Foi só alguém gritar “é ela, é ela”, para o linchamento começar. É importante compreender como Fabiane tornou-se bruxa. Mas também é fundamental entender como ela deixou de ser bruxa.
Na internet, o humano perdeu o pudor de suas vísceras. Em vez de ocultá-las, passou a exibi-las como um troféu de autenticidade
O feitiço ao contrário é revelador. O livro de magia negra era uma Bíblia. A fruta oferecida era um gesto de generosidade. Fabiane era branca, era religiosa, era mãe de duas filhas, era dona de casa e gostava de crianças. Sua única “mácula”, para o senso comum, seria um diagnóstico de “transtorno bipolar”, relacionado nos relatos “ao parto da primeira filha”. Mas, mesmo neste caso, ela foi poupada do preconceito costumeiro, associado às doenças mentais, por depoimentos como este, de uma amiga: “(Nas crises) ela saía abraçando as pessoas, falando que amava todo mundo, nunca fez mal a ninguém”.
Fabiane, portanto, não só era inocente, como era a imagem da inocência. Era o retrato idealizado do feminino ligado à maternidade. Não tenho como aferir o quanto essa imagem, desfeito o feitiço, colaborou para a comoção do país. Mas suspeito que bastante. E isso também revela o quanto nós não somos inocentes.
E se Fabiane fosse “negra e gorda”, como descrita no retrato falado? E se Fabiane exibisse piercings e tatuagens pelo corpo? E se Fabiane fosse lésbica? E se Fabiane fosse agressiva? E se Fabiane fosse do candomblé ou do batuque ou de outra religião afro-brasileira, as quais os pastores evangélicos neopentecostais tanto relacionam nos templos e nos programas da TV com satanismo, uma atitude criminosa pouco ou nada combatida? E se Fabiane fosse bruxa? E se Fabiane fosse o oposto da idealização feminina? Será que tantos hoje chorariam por ela?
E Fabiane seria, por isso, menos inocente?
A palavra escrita, agora na internet, ainda é decodificada por muitos, em especial por quem historicamente não teve
acesso a ela, como verdade
Talvez, se sua imagem não correspondesse ao estereótipo da mãe de família, ouviríamos coisas como: “Também, com aquela aparência, era fácil confundi-la”. Ou: “Essa história está mal contada, boa coisa ela não era”. Talvez então o feitiço jamais fosse desfeito e Fabiane continuasse na lista não escrita das pessoas “lincháveis”. É possível? Ou estou exagerando? Gostaria de estar exagerando, mas me arrisco a suspeitar que não.
Vale a pena prestar atenção ao comentário de L., ao ser preso e pedir desculpas à família de Fabiane. “Peço desculpas à família, estou muito arrependido. Desculpa mesmo. A gente vê a nossa mãe em casa, nossa tia, e imagina que poderia ter sido com elas”. De repente, o algoz percebe que sua vítima não é mais uma “bruxa”, uma diferente, uma outra, mas sim semelhante às mulheres da sua família que ocupam um lugar materno. E, como filho, sobrinho, dessas mulheres, semelhante a ele mesmo. Pela lógica imediata, se a conversão em bruxa pela turba enlouquecida, da qual ele fez parte, aconteceu com Fabiane, por que não aconteceria com sua mãe, com sua tia? Com ele, com cada um de nós? Será também um medo novo que faz aumentar a comoção por Fabiane? E agora, que a barreira dos “lincháveis” foi rompida e uma mãe de família, uma devota, morreu a pauladas?
Um dos suspeitos disse à polícia que dois outros autores do linchamento de Fabiane foram executados pelo tráfico. A informação foi publicada na imprensa. Se queremos de fato enfrentar a barbárie, precisamos saber se essa afirmação é verídica. E, se for verídica, precisamos exigir que os assassinos dos assassinos sejam investigados, julgados e punidos, no rito da lei. Do contrário, somos só bárbaros que acreditam que linchadores devem ser mortos, no olho por olho, dente por dente. Como aqueles bárbaros que salivam em suas casas quando assistem à notícia de que estupradores foram violados na cadeia, onde estão sob proteção do Estado.
Chorar pelos inocentes é fácil. O que nos define como indivíduos e como sociedade é a nossa capacidade de exigir
dignidade e legalidade no tratamento dos culpados
Chorar pelos inocentes é fácil. O que nos define como indivíduos e como sociedade é a nossa capacidade de exigir dignidade e legalidade no tratamento dos culpados. O compromisso com o processo civilizatório é árduo e exige o melhor de nós: respeitar a vida dos assassinos. Fora isso, é só demagogia.
Há vários apelos circulando na internet sobre as palavras “justiceiro” e “justiçamento”. Quero trazer a reflexão para cá, porque já descobrimos há muito – e também agora – que as palavras são poderosas. E andam. E encarnam. E revelam. E autorizam. Linchamento não é “justiçamento”. É crime. Linchador não é “justiceiro”. É criminoso. Seja uma pessoa ou uma turba, quem mata é assassino. Quem lincha e mata não quer justiça, quer vingança – às vezes sem nem mesmo saber do quê. Se queremos superar a barbárie, talvez seja necessário jamais confundir “justiça” e “vingança” – também nas palavras.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficçãoColuna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da RuaA Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Email:elianebrum.coluna@gmail.com. Twitter: @brumelianebrum

A sentença de André Ribeiro: Praticar cooper na mesma hora de um roubo

por  Leonardo Dallacqua de Carvalho
Como um ritual, ao sentar no sofá em volta da televisão com alguns familiares, eu observava e absorvia o show do senso comum que projetavam ao sintonizarem programas de televisão que vendem entretenimento/informação a preço de sangue. Frases como: “se foi preso é porque alguma coisa fez”, “ninguém apanha à toa”, “onde há fumaça há fogo”, faziam parte do vocabulário diário dos telespectadores que me rodeavam. Isto é claro, quando não se entreolhavam ao ver a foto do sujeito e era possível decifrar a expressão “olha a cara do sujeito”.
Fora da vida real, no acolchoado sofá, essas frases parecem uma matemática. Afinal, como imaginar quem cumpre seu dever de cidadão de bem, paga as contas e é trabalhador pode passar por este tipo de situação? Ainda mais quando estas frases são reforçadas por “autoridades” televisivas – que como vampiros vivendo de sangue dos outros -, assumem que o perfil da bandidagem ou malandragem corresponde a certos estereótipos, fenótipos que de alguma forma justificariam qualquer forma de agressão.
André Ribeiro é um desses “marginais” arquitetados por um discurso de ódio, que por um golpe de “sorte” terá a possibilidade de ler este texto em vida. Na última semana, em São Paulo, foi confundido com um suposto ladrão, foi perseguido, linchado por populares e preso. Mas “ninguém apanha à toa” não é mesmo? O que André fez? Eu o conheci na Universidade, em períodos diferentes fizemos o mesmo curso de História. Diferente de muitos, ele precisou trabalhar enquanto estudava para conseguir cumprir os quatro anos que o autorizavam a lecionar a disciplina nas escolas. Apesar de não ser seu amigo, estávamos no mesmo ano e o conhecia. Sabia das suas dificuldades e nunca soube de um único incidente.
O jovem professor de história tinha como passatempo a prática esportiva denominada Cooper. André é pardo, tem algumas tatuagens, usa alargadores, ou seja, possui todas as evidências que constituem um crime no Brasil: o julgamento ignorante por estereótipos. Quando foi “identificado” pelo proprietário que teve seu comércio roubado, populares não tiveram a menor dúvida em “dar-lhe uma lição”. Por ironia, para provar sua inocência aos “justiceiros populares” chegou ao ponto de ter que falar sobre “Revolução Francesa” para de alguma forma comprovar que era um professor e não um “bandido”. Difícil acreditar. Como um pardo, tatuado, correndo por aí seria um professor?
Não! Nem sempre há fogo onde há fumaça. Às vezes o maior incêndio que possa existir é a ignorância de pessoas que são seduzidas por discursos que crime está associado a noções antropométricas. O italiano Cesare Lombroso, um conhecido antropólogo criminalista do século XIX, na ciência do seu tempo, chegou a cogitar tatuagens atreladas à cor. Ou mesmo a cor representando um estado primitivo do homem, que o impossibilitaria de se ajustar às condutas das leis dos “brancos”. O século XIX ficou para trás a muito tempo na história, mas não na mentalidade de algumas pessoas.
A antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, em seu livro Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na sociabilidade brasileira (1ª. ed, 2012), nos lembra de uma chacina ocorrida no Bar Bodega, nos anos de 1996:
“Os culpados logo foram encontrados – em mais um ato de ‘extrema competência da polícia brasileira’ e (por acaso) eram todos pretos. Mais estranheza do que o fato em si causaram seus desenlaces. Cerca de dez dias depois a polícia libertou os (agora) ex-suspeitos e apresentou os novos: todos brancos. No entanto, se o evento chocou pouco dentro do cotidiano violento do país, mais impressionante foi a pouca repercussão: a imprensa a princípio mal comentou o caso e raros órgãos reclamaram. Afinal é esse tipo de postura que explica os dados de criminalidade que apontam que, sujeitos às mesmas penalidades, os negros têm 80% de chance a mais do que os brancos de serem incriminados. É como se persistisse certo pacto histórico: não s nomeiam publicamente as diferenças, e assim os constrangimentos são sempre privados” (p.117).
Ademais, estes episódios e texto devem ser resumidos na voz de Malcom X (1925 -1964): “Não lutamos por integração ou por separação. Lutamos para sermos reconhecidos como seres humanos”.

*L. D. CARVALHO, professor de História. Membro do NUPE (Núcleo Negro de Pesquisa e Extensão).