sábado, 19 de setembro de 2015

Žižek: não podemos abordar a crise dos refugiados sem enfrentar o capitalismo global


“Nós não podemos abordar a crise dos refugiados sem enfrentar o capitalismo global. Os refugiados não chegarão à Noruega. Mas a Noruega que eles procuram sequer existe.”
Em seu estudo clássico On Death and Dying, Elisabeth Kübler-Ross propôs o famoso esquema de cinco estágios de como reagimos ao saber que temos uma doença terminal: negação (a pessoa simplesmente se recusa a aceitar o fato: “Isso não pode estar acontecendo, não comigo.”); raiva (que explode quando já não podemos negar o fato: “Como isso pode acontecer comigo.”); negociação (a esperança de que podemos de alguma forma adiar ou diminuir o fato: “Apenas deixe-me viver para ver meu filho graduado.”); depressão (desinvestimento libidinal: “Eu vou morrer, então por que se preocupar com alguma coisa?”); aceitação (“Eu não posso lutar contra isso, mas eu bem posso me preparar para isso.”). Mais tarde, Kübler-Ross aplicou esses estágios a qualquer forma de perda catastrófica pessoal (desemprego, morte de um ente querido, divórcio, vício em drogas) e enfatizou que eles não acontecem necessariamente na mesma ordem, nem que os cinco estágios são vivenciados por todos os pacientes.
A reação da opinião pública e das autoridades na Europa Ocidental ao fluxo de refugiados da África e do Oriente Médio não teve uma combinação semelhante de reações disparatadas? Houve a negação, agora diminuindo: “Não é tão sério, vamos simplesmente ignorar.” Existe uma raiva: “Os refugiados são uma ameaça ao nosso modo de vida, entre eles escondem-se fundamentalistas muçulmanos, eles precisam ser barrados a qualquer preço”. Há negociação: “Ok, vamos estabelecer quotas e apoiar os campos de refugiados nos seus próprios países!” Há depressão: “Estamos perdidos, a Europa está se transformando em uma Europa-stan.” O que está faltando é a aceitação, o que, neste caso, significaria um consistente plano pan-europeu para lidar com os refugiados.
Então, o que fazer com centenas de milhares de pessoas desesperadas, que esperam no Norte da África, fugindo da guerra e da fome, tentando atravessar o mar e encontrar refúgio na Europa?
Existem duas principais respostas. Liberais de esquerda expressam sua indignação com a forma como a Europa está permitindo que milhares de pessoas se afoguem no Mediterrâneo. O argumento deles é que a Europa deve mostrar solidariedade abrindo as portas amplamente. Os populistas anti-imigrantes reivindicam que devemos proteger nosso modo de vida e deixar que os africanos resolvam seus próprios problemas.
Qual é a melhor solução? Parafraseando Stalin, as duas são piores. Aqueles que defendem a abertura das fronteiras são grandes hipócritas: Secretamente, eles sabem muito bem que isso nunca vai acontecer, uma vez que provocaria uma imediata revolta populista na Europa. Eles jogam com a bela alma que os fazem se sentir superiores diante de um mundo corrompido enquanto secretamente participam dele.
O populista anti-imigrante também sabe muito bem que, deixados por si mesmos, os africanos não terão sucesso na mudança de suas sociedades. Por que não? Porque nós, norte-americanos e europeus ocidentais, estamos impedindo-os. Foi a intervenção europeia na Líbia que jogou o país no caos. Foi o ataque dos Estados Unidos ao Iraque que criou as condições para o surgimento do ISIS [Estado Islâmico do Iraque e do Levante]. A guerra civil em curso na República Centro-Africana não é apenas uma explosão do ódio étnico; França e China estão lutando pelo controle dos recursos petrolíferos através de seus procuradores.
Mas o caso mais claro de nossa responsabilidade é o Congo de hoje, que está novamente emergindo como o “coração das trevas” africano. Em 2001, uma investigação da ONU, sobre a exploração ilegal de recursos naturais no Congo, descobriu que os conflitos internos acontecem para se ter o acesso, o controle e o comércio de cinco minerais fundamentais: coltan, diamante, cobre, cobalto e ouro. Sob a fachada de guerra étnica, nós podemos identificar o funcionamento do capitalismo global. O Congo não existe mais como um estado unificado; é uma multiplicidade de territórios governados por senhores da guerra locais, que controlam o seu pedaço de terra com um exército, que como regra, inclui crianças drogadas. Cada um desses senhores da guerra estão ligados pelos negócios com empresas ou corporações estrangeiras que exploram as riquezas minerais da região. A ironia é que muitos destes minerais são usados em produtos de alta tecnologia, tais como laptops e telefones celulares.
Retire as empresas estrangeiras de alta tecnologia da equação e toda a narrativa de guerra étnica alimentada por velhas paixões desmorona. Este é o lugar onde devemos começar se realmente queremos ajudar os africanos e parar com o fluxo de refugiados. A primeira coisa é lembrar que a maioria dos refugiados vem de Estados falidos – onde a autoridade pública é inoperante, pelo menos em grandes regiões – Síria, Líbano, Iraque, Líbia, Somália, Congo, etc. Essa desintegração do poder do Estado não é um fenômeno local, mas o resultado da economia e da política internacional, em alguns casos, como a Líbia e o Iraque, um resultado direto da intervenção ocidental. É claro que o aumento destes “Estados falidos” não é um inesperado infortúnio, mas sim uma das formas que as grandes potências exercem seu colonialismo econômico. Deve-se notar também que as sementes dos “Estados falidos” do Oriente Médio devem ser procuradas nas fronteiras arbitrárias desenhadas após a Primeira Guerra Mundial pelo Reino Unido e a França, que criaram uma série de Estados “artificiais”. Com o propósito de unir os sunitas na Síria e no Iraque, o ISIS está, em última análise, juntando o que foi dilacerado pelos mestres coloniais.  
Não se pode deixar de notar o fato de que alguns países não muito ricos do Oriente Médio (Turquia, Egito, Iraque) são muito mais abertos aos refugiados do que os realmente ricos (Arábia Saudita, Kuwait, Emirados Árabes, Qatar). Arábia e Emirados não receberam refugiados, embora façam fronteira com países em crise e são culturalmente muito mais próximos aos refugiados (que são na maioria muçulmanos) do que a Europa. Arábia Saudita tem até mesmo devolvido alguns refugiados muçulmanos da Somália. Isto porque a Arábia é uma teocracia fundamentalista que não pode tolerar estrangeiros intrusos? Sim, mas deve-se também ter em mente que esta mesma Arábia Saudita é totalmente integrada à economia do Ocidente. Do ponto de vista econômico, Arábia Saudita e Emirados, que afirmam depender totalmente das suas receitas petrolíferas, não são puros postos avançados do capital ocidental? A comunidade internacional deveria colocar toda pressão em países como Arábia Saudita, Kuwait e Qatar para fazer seus deveres de aceitarem um grande contingente de refugiados. Além disso, por estar apoiando os rebeldes anti-Assad, a Arábia Saudita é o grande responsável pela situação na Síria. E, em diferentes graus, o mesmo se aplica para muitos outros países – nós estamos todos nisso.
Uma nova escravidão
Outra característica partilhada por esses países é o surgimento de uma nova escravidão. Enquanto o capitalismo se legitima como o sistema econômico que sugere e promove a liberdade individual (como uma condição do mercado cambial), ele gerou por conta própria a escravidão, como parte de sua dinâmica: embora a escravidão estivesse quase extinta no final da Idade Média, explodiu cedo na modernidade e durou até a Guerra Civil Americana. E hoje, numa nova época do capitalismo global, pode-se arriscar a hipótese de que uma nova era da escravidão também está surgindo. Embora não exista um estatuto jurídico legal para escravizar as pessoas de forma direta, a escravidão adquire uma multiplicidade de novas formas: na península da Arábia (Emirados, Qatar, etc.), milhões de trabalhadores imigrantes são de fato privados de direitos civis elementares e liberdades; o controle total sobre milhões de trabalhadores em fábricas asiáticas, muitas vezes organizados diretamente como campos de concentração; o uso massivo de trabalho forçado na exploração de recursos naturais em muitos estados africanos centrais (Congo etc.). Mas nós não temos que olhar tão longe. Em 01 de dezembro de 2013, pelo menos sete pessoas morreram quando uma fábrica de roupas de propriedade chinesa em uma zona industrial na cidade italiana de Prato, a 19 km do centro de Florença, incendiou, matando trabalhadores presos em um dormitório de papelão improvisado, construído no local.  O acidente ocorreu em Macrolotto, distrito industrial da cidade conhecido por suas fábricas de vestuário. Milhares de imigrantes chineses estariam vivendo ilegalmente na cidade, trabalhando até 16 horas por dia para uma rede de oficinas atacadista que confeccionava roupa barata.
Nós, portanto, não temos que olhar para a vida miserável dos novos escravos nos longínquos subúrbios de Xangai (ou em Dubai e Qatar) e hipocritamente criticar a China – a escravidão pode estar aqui mesmo, dentro de nossa casa, nós apenas não vemos (ou melhor, fingimos não ver). Este novo apartheid de facto, esta explosão sistemática do número de diferentes formas de escravidão de facto, não é um acidente lamentável, mas uma necessidade estrutural do capitalismo global de hoje.
Mas estão os refugiados entrando na Europa apenas oferecendo-se para se tornar força de trabalho precário, em muitos casos, à custa dos trabalhadores locais, que reagem a essa ameaça unindo-se a partidos político anti-imigrantes? Para a maioria dos refugiados, esta será a realidade de seu sonho realizado.
Os refugiados não estão somente fugindo de suas terras devastadas pela guerra; eles também estão possuídos por um sonho. Podemos ver repedidas vezes em nossas telas. Refugiados no Sul da Itália deixam claro que eles não querem ficar lá, eles querem majoritariamente viver nos países escandinavos. E o que dizer dos milhares de acampados em Calais que não estão contentes com a França, mas estão dispostos a arriscar suas vidas para entrar no Reino Unido? E o que dizer de dezenas de milhares de refugiados dos países Bálcãs que querem ao menos chegar à Alemanha? Eles declaram esse sonho como um direito incondicional, e exigem das autoridades europeias não só alimentação adequada e cuidados médicos, mas também o transporte para o local de sua escolha.
Há algo enigmaticamente utópico nesta demanda impossível: como poderia a Europa realizar o sonho deles, um sonho que, aliás, está fora do alcance para a maioria dos europeus. Quantos europeus do Sul e do Leste não prefeririam viver na Noruega? Pode-se observar aqui o paradoxo da utopia: precisamente quando as pessoas se encontram em situação de pobreza, aflição e perigo, e seria de se esperar que eles estivessem satisfeitos com o mínimo de segurança e bem-estar, a utopia absoluta explode. A dura lição para os refugiados é que “não há Noruega”, mesmo na Noruega. Eles terão que aprender a censurar seus sonhos: Em vez de persegui-los, em realidade, eles devem se concentrar em mudar a realidade.
Um tabu da esquerda
Um dos grandes tabus da esquerda terá que ser quebrado aqui: a noção de que uma maneira de proteger um modo de vida [way of life] é em si mesma protofascista ou racista. Se não abandonarmos essa noção, abrimos o caminho para a onda anti-imigrante que prospera em toda a Europa. (Mesmo na Dinamarca, o Partido Democrático, anti-imigrante, pela primeira vez ultrapassou os sociais-democratas e tornou-se o partido mais forte do país.) Responder às preocupações das pessoas comuns sobre as ameaças ao seu especifico estilo de vida também pode ser feito a partir da esquerda. Bernie Sanders é uma prova viva disso! A verdadeira ameaça para nossos estilos de vida comunitários não são os estrangeiros, mas a dinâmica do capitalismo global: Só nos Estados Unidos, as mudanças econômicas das ultimas décadas fez mais para destruir a convivência comunitária das cidades pequenas do que todos os imigrantes juntos.
A reação padrão da esquerda liberal é, naturalmente, uma explosão de arrogante moralismo: No momento em que damos alguma credibilidade a “proteção do nosso modo de vida”, nós já comprometemos a nossa posição, uma vez que propomos uma versão mais modesta do que os populistas anti-imigrantes defendem abertamente. Esta não é a história das últimas décadas? Partidos centristas rejeitam o racismo aberto dos populistas anti-imigrantes, mas afirmam simultaneamente “compreender as preocupações das pessoas comuns” e promulgam uma versão mais “racional” da mesma política.
Mas, embora exista um núcleo de verdade, as queixas moralistas – “A Europa perdeu a empatia, é indiferente para o sofrimento dos outros,” etc. – são apenas o reverso da brutalidade anti-imigrante. Ambas as posições compartilham o pressuposto, o que não é de forma alguma evidente, que a defesa do próprio modo de vida exclui o universalismo ético.  Assim, deve-se evitar ser pego pelo jogo liberal de “quanto de tolerância podemos oferecer.” Devemos tolerar eles impedirem suas crianças de irem para as escolas estaduais, eles arrumarem casamentos para seus filhos, eles brutalizarem gays nos seus espaços? A este nível, é claro, nós nunca somos suficientemente tolerantes, ou somos sempre tolerantes demais, negligenciando os direitos das mulheres, etc. A única maneira de sair deste impasse é movendo-se para além da mera tolerância ou respeito em direção a uma luta comum.
Nesse sentido, é preciso ampliar a perspectiva: Os refugiados são o preço da economia global. Em nosso mundo global, mercadorias circulam livremente, mas as pessoas não: novas formas de apartheid estão surgindo. O tema de parede oca, da ameaça de sermos inundado por estrangeiros, é estritamente imamente ao capitalismo global, é o índex do que é falso sobre a globalização capitalista. Enquanto as grandes migrações são uma característica constante da historia da humana, a sua principal causa na historia moderna são as expansões coloniais: Antes da colonização, o Sul Global consistia, principalmente, de comunidades locais autossuficientes e relativamente isoladas. Foi a ocupação colonial e o comércio de escravos que lançou este modo de vida para fora dos trilhos e renovou as migrações em larga escala.
A Europa não é o único lugar que está experimentando uma onda de imigração. Na África do Sul, existem mais de um milhão de refugiados do Zimbabwe, que estão expostos a ataques de pobres locais por roubarem empregos. E haverá mais, não apenas por causa de conflitos armados, mas por conta dos novos “Estados párias”, crise econômica, desastres naturais (agravados pela mudança climática), desastres criados pelo homem, etc. Sabe-se que, após o desastre nuclear de Fukushima, por um momento, as autoridades japonesas imaginaram que toda área de Tóquio – 20 milhões de pessoas – deveria ser evacuada. Para onde essas pessoas iriam? Em que condições? Eles deveriam receber um pedaço de terras ou dispersar ao redor do mundo? E se o Norte da Sibéria tornar-se mais habitável e arável, enquanto várias áreas subsaarianas tornam-se demasiadamente secos para que uma grande população suporte viver lá? Como será organizado o intercambio de populações? No passado, quando coisas similares aconteceram, as mudanças sociais ocorreram de uma forma espontaneamente selvagem, com violência e destruição (recorde as grandes migrações no final do Império Romano) – Nos dias de hoje, tal perspectiva é catastrófica, com armas de destruição em massa disponíveis para muitas nações.
Portanto, a principal lição a ser aprendida é que a humanidade deve estar preparada para viver de forma mais “plástica” e nômade: Rápidas mudanças climáticas, locais e globais, podem exigir, de forma inédita, transformações sociais em larga escala. Uma coisa é clara: a soberania nacional terá que ser radicalmente redefinida e novos níveis de cooperação global inventados. E o que dizer das enormes mudanças na economia e padrões de conservação do clima devido a escassez de água e energia? Através de quais mecanismos de decisão tais mudanças serão decididas e executadas? Aqui uma série de tabus deverá ser quebrado e um conjunto de medidas complexas realizadas.
Em primeiro lugar, a Europa terá de reafirmar seu total empenho em proporcionar condições dignas para a sobrevivência dos refugiados. Não deve existir compromisso aqui: grandes migrações são o nosso futuro, e a única alternativa a esse empenho é a barbárie renovada (que alguns chamam de “choque de civilização”).
Em segundo lugar, como consequência necessária deste empenho, a Europa deve organizar-se e impor regras e regulamentos claros. O controle do Estado ao fluxo de refugiados deve ser implantado através de uma vasta rede administrativa abrangendo toda a União Europeia (para evitar as barbáries locais como as da Hungria ou Eslováquia). Os refugiados devem ser tranquilizados de sua segurança, mas também devem acatar as áreas de convivência atribuídas pelas autoridades europeias, além disso, precisam respeitar as leis e as normas sociais dos Estados europeus: nenhuma tolerância a violência religiosa, sexista ou étnica de qualquer dos lados, nenhum direito de impor sobre os outros o próprio modo de vida ou religião, o respeito da liberdade de cada individuo de abandonar seus costumes comunais, etc. Se uma mulher decide cobrir seu rosto, sua decisão deve ser respeitada, mas se ele escolhe não cobri-lo, sua liberdade deve ser garantida. Sim, um conjunto privilegiado de regras do modo de vida europeu. Estas regras devem ser claramente estabelecidas e aplicadas, por medidas repressivas (contra os estrangeiros fundamentalistas, bem como contra os nossos próprios racistas anti-imigrantes), se necessário.
Em terceiro lugar, um novo tipo de intervenção internacional terá de ser inventada: intervenções militares e econômicas que evitem as armadilhas neocoloniais. E sobre as forças da ONU que garantem a paz na Líbia e no Congo? Uma vez que tais intervenções estão intimamente associadas com o neocolonialismo, serão necessárias extremas salvaguardas. Os casos de Iraque, Síria e Líbia demonstram como o tipo de intervenção errada (no Iraque e Líbia), bem como a não intervenção (na Síria, onde, sob a aparência de não intervenção, os poderes externos da Rússia, Arábia Saudita e os EUA estão totalmente engajados) acabam no mesmo impasse.
Em quarto lugar, a tarefa mais difícil e importante é uma mudança econômica radical que deve abolir as condições sociais que criam refugiados. A última causa dos refugiados é o próprio capitalismo global de hoje e seus jogos geopolíticos, e se nós não transformarmos isso radicalmente, os imigrantes da Grécia e de outros países europeus em breve se juntarão aos refugiados africanos. Quando eu era jovem, uma tentativa organizada de regulamentar o bem comum [commons] foi chamada de comunismo. Talvez devêssemos reinventar isso. Talvez, no longo prazo, isso seja a única solução.
Tudo isso é uma utopia? Talvez, mas se não fizermos isso, então, estamos realmente perdidos, e nós merecemos estar.
* Publicado originalmente em inglês no In these times em 9 de setembro de 2015. A tradução é de Danilo Chaves Nakamura para o Blog da Boitempo.
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Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas perdidasPrimeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011), Vivendo no fim dos tempos (2012), O ano em que sonhamos perigosamente (2012), Menos que nada (2013) e o mais recente Violência (2014). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.

Céu claro e úmido

Cientistas conseguem analisar a atmosfera de pequeno planeta fora do Sistema Solar

Bem longe de nós, a 120 anos-luz da Terra, você imaginaria que existe água? Pois foi o que cientistas encontraram em forma de vapor num exoplaneta batizado de HAT-P-11b. No futuro, a  técnica usada pelos pesquisadores para fazer essa descoberta pode permitir que sejam encontrados fora do Sistema Solar planetas com condições parecidas com as da Terra.
Apesar de ter um raio quatro vezes maior que o do nosso planeta, o HAT-P-11b, é considerado pequeno. A maioria dos planetas desse tamanho é coberta por muitas nuvens escuras e, durante décadas, estudá-los era um desafio para os cientistas. Tanto é que essa foi a primeira vez que astrônomos conseguiram observar a composição da atmosfera de um exoplaneta desse porte.

No exoplaneta HAT-P-11b, representado na ilustração, cientistas encontraram pela primeira vez água fora do Sistema Solar. (foto: NASA / JPL-Caltech)
Cientistas conseguem pela primeira vez observar a composição da atmosfera de um exoplaneta muito pequeno. (foto: NASA / JPL-Caltech)

No caso do HAT-P-11b, os pesquisadores tiveram uma grata surpresa: sua atmosfera é bem clara e sem nuvens e, assim, foi possível estudá-lo e detectar a presença das moléculas de vapor de água nele.
Como você deve ter imaginado, nenhum cientista viajou até esse planeta tão longínquo para verificar se havia água nele. Para você ter uma ideia, levaria 240 anos para ir e voltar de lá se conseguíssemos viajar na velocidade da luz — coisa que não estamos nem um pouco perto de conseguir fazer.
Para saber do que era feita a atmosfera do exoplaneta, os cientistas usaram dois telescópios chamados Hubble e Spitzer, que ficam lá no espaço, na órbita da Terra. Os telescópios detectam a luz refletida pelo planeta e com esse dado os pesquisadores conseguem saber os elementos químicos que o compõem.

Por meio do telescópio Hubble, que fica lá no espaço na órbita da Terra, os cientistas identificaram do que é feita a atmosfera do HAT-P-11b. (foto: Nasa)
Por meio do telescópio Hubble, que fica lá no espaço na órbita da Terra, os cientistas identificaram do que é feita a atmosfera do HAT-P-11b. (foto: Nasa)

Foi com base nisso que o astrônomo Jonathan Fraine, da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, e seus colegas perceberam que a luz do HAT-P-11b brilhava de um modo específico que indicava a presença de vapor de água em sua atmosfera.
Água e vida
Quando encontram água no espaço, muita gente logo se anima achando que isso é um sinal de vida extraterrestre. Infelizmente, esse não foi o caso. “A água foi importante para a formação de vida na Terra, mas não é necessariamente um sinal de vida”, afirma Jonathan. “Achar água no HAT-P-11b não diz nada sobre a possibilidade de ter vida nesse planeta. O vapor encontrado lá está a uma temperatura muito alta”.
No entanto, o astrônomo afirma que a descoberta futura de vapor d‘água em um planeta mais parecido com a Terra pode ser um sinal mais forte da possibilidade de vida extraterrestre. “Nosso estudo mostra que podemos encontrar vapor d‘água em outros planetas pequenos como a Terra e que essa descoberta seria o primeiro passo (de muitos!) para encontrar vida no universo”, imagina Fraine.
Agora, Jonathan e sua equipe irão estudar outros exoplanetas e ver se eles também têm água. “O próximo passo é estudar uma coleção maior de pequenos exoplanetas, uns 20 ou 30, e ver o que descobrimos”. Será que vem mais água por aí?
Fonte: http://chc.cienciahoje.uol.com.br/agua-espacial/

Desvendando os Fósseis

Fotografia de Jennifer Kriske
Fósseis são o registro dos restos de animais, plantas e outros seres vivos que são preservados em rochas. Vestígios ou marcas deixadas por estes organismos enquanto vivos, como rastros e pegadas, também são considerados fósseis. A ciência que faz o seu estudo é a Paleontologia. Este artigo busca apresentar em caráter introdutório, de forma simples e didática, a vasta e fascinante temática desta área do conhecimento, abordando a formação dos fósseis e a sua interpretação.

Antes de tudo, vamos esclarecer e evitar cair nesse erro: existe uma confusão comum nas conversas da vida entre a Paleontologia e a Arqueologia, porém estas são ciências muito distintas entre si. Enquanto a Paleontologia estuda os restos preservados das formas de vida desde o início da vida no planeta, há cerca de 3,8 bilhões de anos, a Arqueologia estuda os restos, marcas e objetos preservados em período posterior a humanidade, envolvendo também o ambiente nela presente. Portanto, estamos falando de uma escala de tempo bastante distinta, algo na ordem de dezenas de milhares de anos dos nossos dias atuais.
Dessa forma ao estudarmos os organismos do passado, que estão preservados na forma de fósseis, podemos compreender com detalhes a história da evolução dos seres vivos e também do nosso planeta.
Para isso, a Paleontologia tem como base duas ciências: a Biologia e a Geologia. Na primeira temos o estudo detalhado com enfoque nas características biológicas dos fósseis, que servem para a comparação dos organismos do passado com as formas de vida do presente, auxiliando na compreensão da evolução das espécies e na determinação de antigos ecossistemas. Por sua vez, a Geologia utiliza os fósseis para datação e ordenação de formações rochosas. Para os geólogos, a análise de fósseis é uma importante ferramenta para a interpretação de antigos ambientes e mudanças geológicas do passado.
Além da sua importância na compreensão da história da Terra, a Paleontologia possui grande destaque na sociedade atual, sendo uma ferramenta indispensável na localização e exploração de combustíveis fósseis, como petróleo e gás, possibilitando identificar qual idade geológica é correspondente aos depósitos de interesse.

Como os fósseis são formados?
Quando um organismo morre, ele deposita-se sobre uma superfície qualquer e sofre ação de um conjunto de processos físicos, biológicos e químicos, sua decomposição. Para que ocorra a preservação do organismo na forma de fóssil, deve ocorrer um soterramento rápido dos seus restos, compactando tanto a sua matéria orgânica quanto os fragmentos de rocha e solo depositados sobre ele e evitando a ação intensa dos mecanismos de decomposição. A preservação final dos restos do organismo na rocha ocorre na presença de um cimento que une todos estes restos juntamente com os fragmentos de minerais a sua volta, originando uma rocha com conteúdo fossilífero.
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Se o soterramento for lento, os restos permanecem durante muito tempo vulneráveis à ação do ambiente, podendo ocorrer a separação das partes do seu corpo. Vale ressaltar, a seguir, algumas variáveis que influenciam no processo de preservação.
Decomposição por bactérias: as bactérias atuam na decomposição de órgãos, músculos e articulações; a ausência desse tipo de decomposição possibilita uma boa preservação do organismo.
Composição química do esqueleto: se o esqueleto do animal for composto por elementos químicos que deem a ele a característica de alta resistência, a chance dos seus restos serem preservados são muito maiores.
Composição química do ambiente: a presença de diferentes tipos de elementos químicos em um ambiente, como elementos ácidos, oxigênio e mesmo a quantidade de água, irá influenciar diretamente na formação do fóssil.

A fossilização pode preservar de diferentes formas os organismos, podendo ser dividida em dois grandes grupos: restos e vestígios. Os restos são as partes preservadas dos seres vivos, podendo ser partes duras (esqueleto e conchas) ou órgãos e partes moles (músculos, articulações e nervos). Por sua vez, os vestígios são marcas da atividade destes seres enquanto vivos, não havendo a preservação dos restos destes organismos.
A preservação de órgãos e partes moles é mais rara que as demais, já que dependendo do ambiente de deposição, os processos de decomposição por bactérias ocorrem de maneira muito rápida e intensa; um exemplo está nas regiões de florestas tropicais úmidas, onde a presença elevada de oxigênio e água contribui para a decomposição dos organismos. Entretanto mesmo nestas regiões pode ocorrer a preservação de órgãos e partes moles, devido a um soterramento rápido, por exemplo, que ao envolver os restos do organismo acaba preservando seu interior. Outro modo de ocorrência é vista em nódulos de âmbar (resina fóssil secretada por plantas) que engloba animais de pequeno porte, como anfíbios e insetos. O congelamento de um organismo após a sua morte e a desidratação ocorrida em locais extremamente secos (como um processo natural de mumificação) também podem ser maneiras de se preservar de forma excelente os seus restos.
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A preservação de partes duras é um processo comum de fossilização, no qual as partes mais resistentes do corpo de animais são preservadas, comumente partes do esqueleto e conchas. Esta preservação pode ocorrer de vários modos diferentes, citados abaixo.
  • Incrustação: acontece o revestimento por completo do organismo por minerais trazidos pela água.
  • Permineralização: ocorre quando um mineral preenche os poros ou cavidades existentes no organismo, dando uma característica de “inchaço” ao fóssil.
  • Carbonificação: é caracterizado pela perda dos elementos orgânicos voláteis presentes no organismo, restando apenas o carbono das partes duras.
  • Concreção: agregação de partículas de minerais de calcita ou pirita ao redor da carcaça do organismo.
  • Recristalização: consiste em uma modificação na estrutura cristalina do mineral que constitui as partes duras, porém sem modificação na composição química.
  • Substituição: consiste na substituição do mineral original formador do organismo por um outro provindo do ambiente de fossilização.
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Tanto a recristalização quanto a substituição são processos que alteram a composição mineralógica do material, por este motivo a sua diferenciação é dificilmente observada a olho nu.

Na preservação de vestígios, denominados como icnofósseis, marcas da atividade dos organismos, como pegadas e rastros, são preservados, entretanto os animais e vegetais que as deixaram não. Podem ser impressos nas rochas como moldes externos, internos ou contramoldes destes seres vivos. O grupo também inclui produtos de atividade biológica de animais, como gastrólitos (fragmentos de rocha utilizados na digestão), coprólitos (fezes fossilizadas) e também ovos.
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O que podem nos dizer?
A Tafonomia é um amplo ramo da Paleontologia que estuda todo o processo de fossilização de um organismo, ou seja, o ocorrido desde o momento da sua morte até a formação da rocha que apresenta o fóssil. Logo, através dos aspectos adquiridos por esse fóssil durante a sua formação é possível determinar as características das espécies do passado e do ambiente de formação da rocha.
Para um melhor entendimento de como é realizado este trabalho, vamos analisar dois exemplos:
Os trilobitas eram artrópodes exclusivamente marinhos que viveram entre 560 e 250 milhões de anos atrás, portanto já extintos, e que são atualmente um importante registro fóssil em escala global.
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Se, ao observarmos um fóssil de trilobita e este apresentar-se totalmente fragmentado, com as partes do seu corpo separadas e com marcas intensas de atrito, podemos desenvolver uma linha de raciocínio lógico e delimitar as seguintes hipóteses:
1) O animal morreu em ambiente marinho, já que todos os trilobitas são marinhos.
2) Houve um grande intervalo de tempo entre a morte do animal e seu soterramento (soterramento lento). Este fato pode ser observado pelo fato do fóssil estar fragmentado (quebrado), desarticulado e com marcas geradas por atrito, sendo todas essas características causadas por intenso transporte do animal após a sua morte e antes de se consolidar a fossilização. O intenso transporte acaba destruindo o animal e dificultando a sua visualização.
3) A rocha em que o fóssil está contido apresenta estruturas que demonstram que esta, no passado, formou-se em águas agitadas, com forte influência de ondas e correntes marinhas, fato que explica o intenso transporte sofrido pelo animal após a sua morte.
Por sua vez, se observarmos um segundo fóssil de trilobita, desta vez sem marcas evidentes de atrito, totalmente articulado e com poucas porções quebradas, pode-se propor que:
1) O animal morreu em ambiente marinho, já que todos os trilobitas são marinhos.
2) Houve um pequeno intervalo de tempo entre a morte do animal e seu soterramento (soterramento rápido). Essa afirmação pode ser facilmente compreendida observando as características do fóssil que está totalmente articulado e com poucas marcas de atrito, indicando que o animal após a sua morte foi pouco transportado. Assim, concluímos que o animal foi soterrado logo após a sua morte e por este motivo está bem preservado.
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Além das características já observadas nos fósseis acima, existem muitas outras que também irão nos auxiliar no entendimento dos ambientes de fossilização, vamos ver algumas abaixo.
  • Vários fósseis preservados em uma mesma amostra, todos orientados em um sentido preferencial: evidência de correntes marinhas no passado, em uma determinada direção.
  • Vários fósseis preservados em uma mesma amostra, orientados metade para um lado e metade para o outro: evidência de movimento de ondas em um ambiente de fossilização litorâneo.
Além de auxiliar na designação de antigos ambientes, alguns fósseis são importantes ferramentas na compreensão da evolução dos organismos do planeta. Fósseis-vivos são organismos que sofreram pequenas modificações evolutivas durante toda a sua história na Terra, sendo muito parecidos com seus ancestrais do passado. Exemplos são os escorpiões, alguns peixes como o Celacanto e a planta Ginkgo biloba.
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Contrariamente, fósseis-guia são o registro de organismos que tiveram evolução rápida, de aspecto muito distinto em relação aos seus ancestrais, tendo importância na datação de rochas e na sua correlação com rochas de outras partes do mundo. Isto ocorre pelo fato destes organismos só terem ocorrido no planeta em um determinado intervalo de tempo geológico e normalmente estando registrados em escala mundial. O seu estudo é de grande importância na localização e exploração de depósitos de carvão e petróleo, por exemplo, servindo de comparativo entre a idade dos fósseis presentes na rocha com a idade da formação dos combustíveis fósseis. Um exemplo de fóssil-guia é o Mesosaurus que habitaram apenas a África do Sul e as regiões Sul e Sudeste do Brasil durante o Permiano Superior.
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E assim concluímos nossa introdução ao estudo dos fósseis. Mesmo com uma abordagem simples, logo notamos como a Paleontologia é essencial para compreendermos o passado do nosso planeta e de suas formas de vida, possibilitando o entendimento a respeito da evolução da Terra e da vida. Desta forma, a Paleontologia torna-se uma importante ferramenta na gestão dos recursos naturais, sempre com o ideal de causar o mínimo possível de interferência na dinâmica natural do planeta que ela nos ajuda a compreender. Afinal, compreendendo o passado temos maiores condições de prever o futuro.

Quer saber mais? Então tente uma destas três publicações:
Carvalho, I.S. (ed.) 2004. Paleontologia. Vol. 1 e 2. Rio de Janeiro: Interciência. 861p. + 258p. Trata de conceitos gerais de paleontologia, além da descrição de diversos fósseis – microfósseis, animais e vegetais. Cita exemplos de fósseis brasileiros. No segundo volume, são apresentadas técnicas de curadoria e preparo de fósseis, além de uma lista de jazigos fossilíferos brasileiros.
Holz, M. & Simões, M. G. 2002. Elementos fundamentais de tafonomia. Porto Alegre: UFRGS. 232p. Trata de aspectos tafonômicos, ou seja, todos os processos pelo qual passam os organismos, desde que este morreu até ser encontrado por paleontólogos.
Lima, M. R. 1989. Fósseis do Brasil. São Paulo: USP. 118p. Catálogo ilustrado de diversos fósseis encontrados no Brasil.

Nota do autor: o artigo em questão reproduz parcialmente o livreto Desvendando os Fósseis (2008, distribuição interna) que tem por objetivo apresentar conceitos básicos de Paleontologia para o grande público, elaborado com apoio da UFPR, pelo projeto Sala da Terra do PET-Geologia. O download do livreto na íntegra (formato .pdf) está disponível AQUI.

domingo, 13 de setembro de 2015

Estudioso reconstrói Capitanias Hereditárias e afirma que livros escolares estão errados

Membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, Jorge Cintra propõe mudanças significativas no desenho das divisas

RIO - Membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, o engenheiro Jorge Cintra fez uma descoberta que pode mudar os livros escolares. Em um artigo recente, ele contesta o mapa das Capitanias Hereditárias eternizado por Francisco Adolfo de Varnhagen, considerado o pai da historiografia nacional, e propõe mudanças significativas no seu desenho. A partir de documentos da época, Cintra, que leciona na Escola Politécnica da USP, conseguiu reconstruir com maior exatidão os limites das porções de terra doadas, entre 1534 e 1536, pela Coroa Portuguesa a comerciantes e nobres lusitanos.
- A técnica evoluiu muito, os instrumentos de medição também. Para a cartografia, isso proporciona maior rigor na obtenção de resultados. E, sobretudo, acho que o professor Cintra, por ser engenheiro, teve uma exatidão que talvez um historiador não tivesse. O grande mérito dele foi ter verificado um erro de base, um erro de interpretação - elogia o geógrafo Jurandyr Ross, responsável por romper um paradigma semelhante ao propor uma nova classificação para o relevo brasileiro.
O sistema de Capitanias Hereditárias, que já havia sido utilizado com relativo sucesso na África, dividiu o território em 15 partes e pretendia viabilizar a exploração das riquezas do “Novo Mundo”. As terras tinham como limites o Oceano Atlântico, a Leste, e o Tratado de Tordesilhas, a Oeste. Após recuperar, analisar minuciosamente as cartas de doação e de notar detalhes que passaram despercebidos por Varnhagen em mapas da época, Cintra assegura que, no Norte, a divisão das fronteiras não foi feita de acordo com paralelos, e sim através de meridianos.
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- Coloquei tudo em dúvida. Descobri um erro ao Sul e resolvi conferir todo o resto. Logo percebi que, de fato, o Norte não estava bem resolvido. Havia capitanias finas demais, era uma incógnita - explica. De fato, as fronteiras que constam no mapa do Atlas Histórico Escolar do MEC, desenhado por Manoel Maurício de Albuquerque sob forte influência das definições de Varnhagen, mostram territórios extremamente estreitos no Norte. Para Cintra, frases contidas nos documentos de doação são as chaves para a solução do problema. Por exemplo, o documento destinado a Antonio de Cardoso de Barros diz: “As quais quarenta léguas se estenderão e serão de largo ao longo da costa e entrarão na mesma largura pelo sertão e terra firme adentro”.

- Se as divisas fossem para Oeste, o rei estaria doando um pedaço de mar. Isso é pouco lógico. Ora, o único jeito de se entrar sertão adentro é em direção ao Sul - sustenta.
Na mesma carta, há também uma cláusula de conflito. Ela previne a possibilidade de altercação sobre as limitações das divisas com os capitães vizinhos.
- Essa cláusula de compatibilidade não existe em nenhuma outra carta de doação. Como poderia haver conflito se as linhas fossem todas paralelas? - sentencia.
Finalmente, Cintra se valeu de uma observação sagaz do mapa de Bartolomeu Velho, de 1561. Nele, apesar de não haver divisas desenhadas, os nomes das capitanias ao Norte estão escritos em blocos separados de acordo com linhas imaginárias verticais.

- Se a divisão fosse horizontal como se pensava, o autor não precisaria “quebrar o texto” em duas ou três linhas e nem valer-se de abreviações. Ele poderia escrevê-los por extenso na mesma linha - pontua.
Além disso, no novo desenho proposto por Cintra, existem terras não distribuídas no Norte. Segundo o pesquisador, elas ficaram de fora das doações realizadas pela Coroa. Três capitanias — Maranhão, Rio Grande do Norte e São Vicente — também foram divididas em lotes. Por fim, o primeiro lote de São Vicente também teve divisas modificadas.
Para Cintra, o mapa de Varnhagen tem incorreções, pois o estudioso, em “História Geral do Brasil” (1854), recorreu a um desenho de Luis Teixeira onde as capitanias são representadas em 1586, mais de 50 anos após o início da divisão. Nele, a situação já não era mais a mesma. Por isso, o professor ressalta a importância de se duvidar de concepções tidas como definitivas:
- O artigo mostra uma coisa importante: até um entendimento que já vem de 160 anos pode ser derrubado. Ele deixa essa mensagem. Devemos colocar em dúvida outras coisas. Precisamos olhar novamente para os documentos cartográficos, voltar às fontes. Podemos ir mais fundo nos problemas.
Para Jurandyr Ross, que participou da banca de admissão de Cintra na Escola Politécnica, a descoberta é importante para o ensino de História no Brasil.
- O artigo me surpreendeu muito e causará um impacto significante para os livros escolares, que precisão corrigir esses mapas logo. Vamos ensinar uma História cada vez melhor - empolga-se.
Renato Franco, professor da disciplina Brasil Colonial no Departamento de História da UFF, elogia o artigo, mas não vê grandes mudanças na maneira com que o período pode ser enxergado pelos estudiosos do assunto.
- O texto é muito interessante. No entanto, não traz grandes impactos para a História do Brasil Colonial. Embora tenha sido completamente extinto apenas no século XVIII, o sistema de Capitanias Hereditárias rapidamente perdeu a força diante do desinteresse de boa parte dos donatários e do assédio de outras potências. Em 1549, a Coroa portuguesa mudou de estratégia e, progressivamente, as Capitanias Hereditárias foram perdendo força como forma de organização político-administrativa. O grande mérito do artigo é propor uma discussão sobre as eventuais imprecisões cartográficas, mas muda pouco no que diz respeito à nossa forma de enxergar a História do Brasil Colonial como um todo - opina.
Cintra concorda com Franco. Para ele, o período já “foi muito bem estudado” pelos profissionais brasileiros. Sobre a alteração dos livros escolares, diz não ter muita pressa. O cartógrafo explica que no meio científico, assim como na própria História, as coisas costumam levar tempo para serem completamente aceitas e solidificadas.
- A comunidade científica tem que ter calma. O primeiro reconhecimento foi ter sido publicado por uma revista de qualidade (“Anais do Museu Paulista”, da USP). Significa que revisores e editores de lá puseram a mão no fogo pelo meu trabalho. A partir daí, cada autor de livro didático tem que tomar conhecimento do artigo e se convencer dele. Então, vai começar a fase de transição - finaliza.

Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/estudioso-reconstroi-capitanias-hereditarias-afirma-que-livros-escolares-estao-errados-13170302#ixzz3leHl4XtQ
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10 CONSELHOS PARA OS MILITANTES DE ESQUERDA

10 CONSELHOS PARA OS MILITANTES DE ESQUERDA
Por Frei Betto*
1) MANTENHA VIVA A INDIGNAÇÃO
Cuidado: você pode estar contaminado pelo vírus social-democrata, cujos principais sintomas são usar métodos de direita para obter conquistas de esquerda e, em caso de conflito, desagradar aos pequenos para não ficar mal com os grandes.
Criamos vícios de direita, perdemos o entusiasmo de ser criativos na luta. Mantenhamos viva a indignação: um militante não pode nunca perder seu senso crítico. Muitas vezes, por interesses pessoais, não se critica o outro.
Será que estamos perdendo o poder de criticar de maneira construtiva? O poder não redime ninguém, o poder revela. Me lembro de uma vez ter ouvido um ditado que nunca mais esqueci: “Se queres saber quem é Juanito, dê-lhe um carguito”. Então eu pergunto: Será que estamos repetindo nos nossos Movimentos o sistema burguês, de lideranças burras, que fazem críticas pelas costas? A crítica é importante para rever os passos da caminhada.
2) A CABEÇA PENSA ONDE OS PÉS PISAM
Não dá para ser de esquerda sem “sujar” os sapatos lá onde o povo vive, luta, sofre, alegra-se e celebra suas crenças e vitórias. Teoria sem prática é o jogo da direita. Os nossos políticos se descolaram da base. Penso que se há um problema com os partidos de esquerda no Brasil, é ter eleitores e não ter militantes. Não se pode deixar de caminhar nas bases populares, mesmo que se vire presidente do país. É mantendo o vínculo com movimentos sociais que encontramos o gás que nos alimenta nessa luta.
3) NÃO SE ENVERGONHE DE ACREDITAR NO SOCIALISMO
O escândalo da Inquisição não faz os cristãos abandonarem os valores e as propostas do Evangelho. Do mesmo modo, o fracasso do socialismo no Leste europeu não deve induzi-lo a descartar o socialismo do horizonte da história humana. Sempre me questionaram o seguinte: Você que é frade e se mete em política? Eu como cristão, sou discípulo de um preso político, Jesus foi preso, torturado e condenado por dois pesos do Estado, assim como Vladimir Herzog. Não podemos confundir os princípios com as experiências negativas, o modelo stalinista de socialismo fracassou, mas não o socialismo. A humanidade não tem futuro fora da partilha dos bens da terra. Todo mundo está de acordo que o Brasil precisa fazer ajustes fiscais, mas esses ajustes não podem ficar só no colo do trabalhador.
4) SEJA CRÍTICO SEM PERDER A AUTOCRÍTICA
Seja crítico, sem perder a autocrítica. Temos facilidade a dirigir críticas ao governo. Como ninguém é juiz de si mesmo, é preciso que outro fale aonde estamos vacilando.
Muitos militantes de esquerda mudam de lado quando começam a catar piolho em cabeça de alfinete. Preteridos do poder, tornam-se amargos e acusam os seus companheiros (as) de erros e vacilações. Como diz Jesus, vêem o cisco do olho do outro, mas não o camelo no próprio olho. Nem se engajam para melhorar as coisas. Ficam como meros espectadores e juízes e, aos poucos, são cooptados pelo sistema.
Autocrítica não é só admitir os próprios erros. É admitir ser criticado pelos (as) companheiros (as).
5) SAIBA A DIFERENÇA ENTRE MILITANTE E "MILITONTO"
"Militonto" é aquele que se gaba de estar em tudo, participar de todos os eventos e movimentos, atuar em todas as frentes. Sua linguagem é repleta de chavões e os efeitos de sua ação são superficiais.
O militante aprofunda seus vínculos com o povo, estuda, reflete, medita; qualifica-se numa determinada forma e área de atuação ou atividade, valoriza os vínculos orgânicos e os projetos comunitários.
É preciso que saibamos a diferença entre militante e "militonto". Cada um de nós devemos saber onde está nossa trincheira. Entramos na luta por alguma porta. Vivemos numa sociedade burguesa, com a cabeça feita pela grande mídia. Exemplo disso é a nossa mídia que enfia na cabeça do brasileiro que alimento envenenado, cheio de agrotóxico e de elementos cancerígenos é bom.
6) SEJA RIGOROSO NA ÉTICA DA MILITÂNCIA
A esquerda age por princípios. A direita, por interesses. Um militante de esquerda pode perder tudo: a liberdade, o emprego, a vida. Menos a moral. Ao desmoralizar-se, desmoraliza a causa que defende e encarna. Presta um inestimável serviço à direita.
Há pelegos disfarçados de militante de esquerda. É o sujeito que se engaja visando, em primeiro lugar, sua ascensão ao poder. Em nome de uma causa coletiva, busca primeiro seu interesse pessoal.
O verdadeiro militante, como Jesus, Gandhi, Che Guevara, é um servidor, disposto a dar a própria vida para que outros tenham vida. Não se sente humilhado por não estar no poder, ou orgulhoso ao estar. Ele não se confunde com a função que ocupa.
Certa vez ouvi de Fidel, “Frei Betto, um revolucionário pode perder tudo, menos a moral. O patrimônio ético do militante é o que ele tem de mais importante”. A direita não posa de ética, mas nós, a esquerda sim. Por isso, quando pisamos na bola, a cobrança é tão pesada.
7) ALIMENTE-SE NA TRADIÇÃO DA ESQUERDA
É preciso oração para cultivar a fé, carinho para nutrir o amor do casal, "voltar às fontes" para manter acesa a mística da militância. Conheça a história da esquerda, leia (auto) biografias, como o "Diário do Che na Bolívia", e romances como "A Mãe", de Gorki, ou "As Vinhas de Ira", de Steinbeck.
Ande sempre com um livro ainda que você tenha certeza de que não tenha tempo de abrí-lo. Precisamos de elementos para debater a atual esquerda, assim, não cometermos hoje os mesmos erros do passado.
8) PREFIRA O RISCO DE ERRAR COM OS POBRES A TER A PRETENSÃO DE ACERTAR SEM ELES
Conviver com os pobres não é fácil. Primeiro, há a tendência de idealizá-los. Depois, descobre-se que entre eles há os mesmos vícios encontrados nas demais classes sociais. Eles não são melhores nem piores que os demais seres humanos. A diferença é que são pobres, ou seja, pessoas privadas injusta e involuntariamente dos bens essenciais à vida digna. Por isso, estamos ao lado deles. Por uma questão de justiça.
Um militante de esquerda jamais negocia os direitos dos pobres e sabe aprender com eles.
Os pobres agem por princípio de necessidade, a elite age por interesse. É importante que saibamos que não existe pessoa mais culta que a outra, existem culturas distintas e socialmente complementares. O nosso povo é culto, só não sabe que é.
9) DEFENDA SEMPRE O OPRIMIDO, AINDA QUE, APARENTEMENTE, ELE NÃO TENHA RAZÃO
Quando criticam as ocupações do MST, dizendo que são agressivas ou coisa parecida, sempre respondo lembrando a quem perguntou que agressivo é o colonialismo, a escravatura, a política para os imigrantes. O exagero que o pequeno faz não é nada diante das enormes atrocidades organizadas pelos grandes para dominar o mundo.
São tantos os sofrimentos dos pobres do mundo que não se pode esperar deles atitudes que nem sempre aparecem na vida daqueles que tiveram uma educação refinada.
Em todos os setores da sociedade há corruptos e bandidos. A diferença é que, na elite, a corrupção se faz com a proteção da lei e os bandidos são defendidos por mecanismos econômicos sofisticados, que permitem que um especulador leve uma nação inteira à penúria.
A vida é o dom maior de Deus. A existência da pobreza clama aos céus. Não espere jamais ser compreendido por quem favorece a opressão dos pobres.
10) FAÇA DA ESPIRITUALIDADE UM ANTÍDOTO CONTRA A ALIENAÇÃO
Orar é deixar-se questionar pelo Espírito de Deus. Muitas vezes, deixamos de rezar para não ouvir o apelo divino que exige a nossa conversão, isto é, a mudança de rumo na vida. Falamos como militantes e vivemos como burgueses, acomodados ou na cômoda posição de juízes de quem luta.
Orar é permitir que Deus subverta a nossa existência, ensinando-nos a amar, assim como Jesus amava, libertadoramente.
Não falo de fé. A espiritualidade pode ser religiosa ou não. É importante que cultivemos a nossa subjetividade. Falamos como militantes e vivemos como burgueses, acomodados ou na cômoda posição de juízes de quem luta. Os dons da vida são um mistério, a vida é toda centrada na experiência do amor, e o amor é um mistério. Não importa se uma pessoa é atéia ou à toa, tem é que ser revolucionária. E se tem uma coisa da qual nós podermos ter certeza é a de que o amor é revolucionário.
* Frei Betto é escritor, autor do romance "Entre todos los hombres" (Editorial Caminos, La Habana), entre outros livros.
Observação: Texto adaptado com as falas de Frei Betto em duas ocasiões diferentes, de acordo com as fontes abaixo.
14ª Jornada de Agroecologia: "Com conselhos Frei Betto provoca a militância de esquerda", publicado em 24/07/2015 -> http://www.jornadaagroecologia.com.br/?p=3103
ADITAL: "Dez conselhos para os militantes de esquerda (Frei Betto)", publicado em 24/01/2002 -> http://www.adital.com.br/site/noticia2.asp?lang=PT&cod=2116.