domingo, 23 de outubro de 2016

Reforma do Ensino Médio

O texto da Medida Provisória que trata da reforma do Ensino Médio foi publicado nesta sexta (23), em edição extra do Diário Oficial. 
O documento tem até 120 dias para ser aprovado pela Câmara e pelo Senado Federal, caso contrário, perde seu efeito. 
Para explicar o que muda com a MP, Heródoto Barbeiro conversou com o coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara. Acompanhe.


 
Texto da Medida Provisória
 http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/126992

O nacionalismo de direita e a era da desglobalização

Em uma época de crescimento estagnado, o populismo reacionário torna-se tentador e perigos.
Mike Nelson/ AFP

O "não" da direita à globalização na Europa de 2016 (Londres) é o avesso..

As repetições do clichê “a globalização é irreversível”, mantra dos anos 1990, podem ser encontradas aos milhares com uma rápida pesquisa pelo Google. Mesmo seus críticos reunidos no Fórum Social Mundial recusavam ser tachados de “antiglobalização” e disseram buscar uma “mundialização alternativa”. Hoje, porém, o termo “desglobalização” ganha cada vez mais espaço, não como consequência temporária de um acidente de percurso como a crise de 2008, mas como uma força assertiva e talvez de longo prazo.
O Brexit de junho fez soar o sinal de alarme, mas a tendência é geral, como mostra a rejeição de ambos os principais candidatos presidenciais dos Estados Unidos ao Tratado Transpacífico, a ascensão da xenofobia e dos populismos reacionários na União Europeia e do nacionalismo na Rússia, Japão, Turquia e Filipinas.
A própria China, cuja abertura estimulou o crescimento mundial por muito tempo, entrou em novo ciclo, começa a voltar-se de novo para dentro, prioriza o consumo e o investimento interno e valoriza o legado do maoísmo. 
O volume do comércio internacional foi equivalente a 25% do produto mundial bruto nos anos 1960, 32% nos anos 1970, 38% nos anos 1980, 43% nos anos 1990, 55% nos anos 2000 e 60% na primeira década de 2010. Mas em 2016, o comércio internacional deve crescer menos que a economia mundial (1,7% ante 2,2%) sem nenhum evento catastrófico que o justifique.
Nas últimas décadas, isso só havia acontecido duas vezes, em 1982 como consequência do choque dos juros de Paul Volcker, e em 2001 com o estouro da bolha especulativa das pontocom e os atentados do 11 de Setembro.  
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... da luta por uma mundialização alternativa dos anos 1990 (Seattle)
Segundo a Organização Mundial do Comércio, a desaceleração deve-se em 75% à queda do investimento internacional (por exemplo, menos capital ocidental em indústrias chinesas) e no restante ao crescimento do protecionismo. As tarifas sobre o comércio internacional haviam caído continuamente de 1985 a 2008, mas após a crise financeira se estabilizaram e nos últimos dois anos, sobretaxas e outras barreiras comerciais voltaram a aumentar. O fenômeno é anterior aos eventos políticos deste ano, que, provavelmente, o reforçarão.
A questão de fundo é a percepção de que, apesar dos smartphones, robôs e veículos autônomos, do Uber e do Airbnb, a produtividade das economias mais avançadas cresce muito pouco ou nada, o desemprego aumenta, a população envelhece e uma estagnação secular se consolida.
Se os países pobres ainda têm espaço para aumentar sua produtividade pela absorção de tecnologias industriais existentes, são percebidos como uma concorrência desleal. Se vivem a guerra ou o caos e expelem migrantes, são vistos como uma ameaça ainda maior.
Para que tenha plausibilidade, a fé inabalável dos economistas liberais na teoria das vantagens comparativas e o amor dos gurus da administração e da autoajuda pela ideologia do “jogo do ganha-ganha” dependem de uma percepção, se não de abundância concreta, ao menos de expectativas de crescimento a longo prazo.
Se esta falta, a economia é percebida como um jogo de soma zero e cada um tenta salvar o seu padrão de vida à custa dos demais. Como até os analistas de mercado financeiro descobrem depois de sobreviverem a um ou dois ciclos, com o mercado em alta, todo mundo é gênio, mas quando cai, vale a lei da selva. 
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Não dá para falar de crescimento ilimitado com a biosfera no limite (Ria Novost/ AFP)
O próprio capitalismo depende de uma perspectiva de crescimento. Na Idade Média, a estagnação secular era a norma e os juros eram mera usura. Como explicava Tomás de Aquino, ao contrário de um rebanho ou de uma terra arrendada, o dinheiro não dava frutos.
Isso mudou um tanto de figura quando o capitalismo deixou de ser um fenômeno marginal mais ou menos tolerado para moldar a economia, a política e o pensamento. Teoria crítica à parte, do ponto de vista do capitalista o dinheiro parece frutificar e a perspectiva de crescimento justifica todo o sistema, a começar pelas taxas de juro. 
Dos séculos XVII ao XIX, não se divisavam limites ao crescimento, pois a nova sociedade se expandia pela conquista de um mundo ainda na maior parte pré-capitalista. Só no fim do século XX, quando eram completadas a partilha da África e a submissão da China, a questão começou a ser posta. “Penso nas estrelas que vemos à noite, esses vastos mundos que jamais poderemos atingir. Eu anexaria os planetas se pudesse. Entristece-me vê-los tão claramente e ao mesmo tempo tão distantes”, lamentava o colonialista Cecil Rhodes em 1895.
Teóricos marxistas radicais, como Rosa Luxemburgo e Vladimir Lenin, viram no fim das conquistas coloniais o prenúncio da estagnação do crescimento e do fim do capitalismo, depois do qual seria “socialismo ou barbárie”. Precipitaram-se, mas à sombra da Primeira Guerra Mundial e das crises dos anos 1920 e 1930, tais teses soavam plausíveis. 
Foi preciso o choque da Segunda Guerra Mundial e o desafio soviético para lançar um novo ciclo de crescimento, baseado menos no crescimento físico do capital industrial e mais no aumento intensivo de produtividade e consumo, graças à aplicação sistemática da ciência à produção, ao crescimento demográfico e à inclusão dos trabalhadores no consumo de lazer e bens duráveis, transformando-os em “classe média” do ponto de vista do marketing. A miragem do crescimento ilimitado tornou-se um dogma tão sólido quanto o do Juízo Final na Idade Média e com as missões Apollo, até a aspiração de anexar os planetas pareceu menos absurda. 
O colapso da União Soviética, a conversão parcial da China à economia de mercado e as privatizações dos anos 1990 reforçaram a ilusão e reabriram ao capital os poucos espaços que lhe haviam sido negados e encorajou as elites a rasgar os pactos sociais dos anos dourados.
As inovações da informática inspiraram a fé em um crescimento não só infinito, como cada vez mais rápido. Seus apóstolos mais fervorosos profetizaram um crescimento de dez vezes no valor das ações até 2020 (“Dow 100.000”), a quarta revolução industrial e a “singularidade”, um salto inconcebível no desenvolvimento, a partir dos anos 2030 ou 2040.
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Nos anos 1940, o cenário do pós-Guerra permitiu um novo ciclo e o sonho da prosperidade sem fim. O quadro agora é outro (DPA/ Fotoarena)
Em vez disso, a virada do milênio trouxe a austeridade e a asfixia do consumo e do investimento. Com expansão, o aumento do lucro e da concentração de renda que resulta da globalização não implicaria empobrecimento absoluto dos trabalhadores, mas com crescimento baixo, significa desemprego e salários mais baixos. O “populismo”, o que em liberalês é sinônimo de qualquer tese alternativa ao liberalismo, torna-se inescapável.  E na falta de uma esquerda radical consistente, só resta o populismo de direita.
Com a crise financeira, as nações ricas atolaram-se no mesmo pântano de estagnação crônica no qual o Japão está preso desde fins dos anos 1980. Ainda mais importante, a deterioração ambiental, a mudança climática e a extinção em massa atingiram patamares nos quais não podem mais ser ignorados.
Mesmo que os entraves sociais e financeiros sejam superados, haverá o limite da biosfera. Sonhos como a substituição total dos combustíveis fósseis por fontes renováveis de energia e a reciclagem total de matérias-primas são necessários não para o crescimento, mas para a construção de um caminho para a sobrevivência para além de mais uma ou duas gerações. É preciso correr para ficar no mesmo lugar. 
O mundo econômico não é plano, mas é finito e a beirada não está longe. Pode (ou deveria) haver espaço para países pobres alcançar a qualidade de vida das nações mais afortunadas, mas não para o crescimento ilimitado. Nessas condições, as expectativas que sustentam a lógica do capitalismo liberal perdem a credibilidade.
Como justificar a própria existência dos juros e os cálculos de valor presente sem expectativa de crescimento? Hoje, o fato de a maioria dos países ricos ter juro básico real (e até nominal) nulo ou negativo com inflação baixa é visto como uma anomalia temporária, mas talvez seja apenas o novo normal. Anormal é esperar que, nessas condições, a economia e a política continuem a funcionar como antes. 
Um mundo sem crescimento é um mundo no qual se torna senso comum que só é possível progredir (se não apenas sobreviver) à custa de outros. Podem-se esperar pressões crescentes pela proteção de produtos, empregos e empresas locais e para bloquear o movimento de imigrantes.
Sem a contribuição desses, torna-se ainda mais difícil sustentar o que resta de Estado social, principalmente em nações em vias de envelhecimento. Conflitos internacionais se tornarão cada vez mais intensos e difíceis de moderar. A luta de classes torna-se mais explícita e, eventualmente, servirá de pretexto a regimes mais autoritários.
Os EUA, que nos anos 1940 tinham interesse em liquidar o fascismo e desbloquear o crescimento mundial para enfrentar o comunismo, agora são apenas uma potência a mais a tentar garantir o seu pirão primeiro. E mesmo que não fosse, também não tem resposta à questão ecológica. 
Já vimos este filme antes, mas desta vez a cavalaria está do outro lado e não adianta pedir socorro aos índios, pois nem eles sabem como sobreviver em um mundo como este que estamos criando. A tirada de Slavoj Zizek em 2011, “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”, deixa de se referir à ficção e ganha conotações cada vez mais sinistras. 
*Reportagem publicada originalmente na edição 924 de CartaCapital, com o título "A era da desglobalização"..

Reforma do ensino médio: uma estratégia empresarial

Mudanças propostas pela MP seguem diretrizes e práticas que já vêm sendo formuladas e testadas há tempo por grandes empresas. Por Passa Palavra

Parte I

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No dia 23 de setembro, o presidente Michel Temer lançou a Medida Provisória 746/2016 com a chamada “reforma do ensino médio”. Ainda que passe a valer a partir de sua publicação, a MP precisa ser aprovada pelo Congresso Nacional em até 120 dias, e remete à definição de questões importantes, como as discussões sobre as mudanças no currículo e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que devem se encerrar só em meados de 2017.
Embora as propostas da reforma estejam sendo atribuídas ao governo de Michel Temer, é bom lembrar que no geral o texto da MP pouco difere do Projeto de Lei 6.840/2013 que tramitava no Congresso desde 2013, sob o comando do deputado petista Reginaldo Lopes (PT-MG). E que, desde sua campanha à reeleição, a própria ex-presidente Dilma Roussef nunca escondeu que esse projeto estava entre os objetivos do seu governo interrompido.
O foco nas disputas partidárias acaba encobrindo os interesses que se movem à despeito do teatro político: os interesses de grandes grupos empresariais. Os princípios que estruturam tanto a MP de Temer quanto o PL petista estão em perfeita sintonia com a costura política que o alto empresariado vem consensuando, nos bastidores, para mudanças necessárias no âmbito educacional. Seus pontos principais, assim como diversas iniciativas estaduais e municipais que se difundem pelo país desde o início da década de 1990, na verdade, vêm sendo arquitetados através de fóruns, seminários, comissões especiais em câmaras legislativas e outros artifícios, junto a autoridades de governo, tecnocratas do assunto, capitalistas do ramo educacional e entidades do terceiro setor.
Reclamar que o maior problema da reforma foi sua aplicação “antidemocrática” e “sem diálogo” – via MP – ainda que possa ser um instrumento tático, foge à questão central, pois oculta o interesse em acelerar as condições para o aumento da produtividade dos trabalhadores no Brasil, com uma maior qualificação técnica. E reinveste de ilusões instâncias participativas que de fato nunca funcionaram, a não ser para endossar decisões tomadas a portas fechadas ou construídas pela ação discreta de institutos e consultorias privadas – muitas vezes com a colaboração das burocracias dos movimentos sociais.
A atuação paralela das empresas
As mudanças propostas pela MP não surgiram do nada. Na verdade, elas seguem diretrizes e práticas que já vêm sendo formuladas e testadas há certo tempo pelas grandes empresas. Vejamos alguns exemplos.
sombraA MP institui a “flexibilização” do ensino médio, estabelecendo que o currículo passe a ser composto pela BNCC e por áreas diversificadas, chamadas de “itinerários formativos específicos” (divididas em cinco campos: linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas, formação técnica profissional).
Ora, essa mesma proposta já vinha sendo sugerida por grandes grupos empresariais, com base na tese de que o currículo atual seria “pouco atrativo” aos estudantes, aumentando os índices de evasão e prejudicando a qualidade do ensino – medida pelas avaliações gerais e rankings elaborados a partir das notas alcançadas nessas provas. Em 2015, “a Fundação Carlos Chagas, a pedido da Fundação Victor Civita, apoiada pelo Instituto Unibanco, Fundação Itaú Social, Itaú BBA e Instituto Península” analisou as “políticas curriculares de Ensino Médio dos 27 estados brasileiros”, apontando como solução sua reformulação, para “permitir que os jovens escolham, a partir de um leque de opções, o percurso que mais se adeque às suas características pessoais, vocações e projetos de vida”. Este ano, uma pesquisa semelhante foi feita pelo Instituto Unibanco, Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e o Movimento pela Base (grupo de empresários que formula a BNCC) a respeito da “distribuição dos tempos por áreas e componentes curriculares”. Propunha-se a criação de uma “hierarquia entre as disciplinas, preservando ao máximo o tempo de Língua Portuguesa e Matemática, exigindo uma maior integração entre as disciplinas”, tendo “um núcleo comum, enquanto outras seriam eletivas, permitindo a flexibilização do currículo e contemplando a possibilidade de escolha pelos estudantes” [1]. E foi o Consed, em constante diálogo com esse setor empresarial, quem propôs ao MEC a flexibilização do currículo.
gedc2189Outro ponto que a MP implementa são as escolas de tempo integral, que aumenta a carga horária escolar para 7 horas por dia. Esse modelo já vem sendo posto em prática em várias regiões do país há algum tempo, encabeçado por empresas. É o caso, novamente, da Fundação Itaú Social e o Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária), que trabalham, entre outras áreas, com “assessoria e apoio técnico para a implantação de políticas públicas de educação integral, com foco na formação de profissionais”. Os dois grupos também assessoram a articulação de “redes de educação integral” entre as secretarias e as organizações da sociedade civil, para que atuem de forma conjunta na implementação dessas escolas. O projeto já conta com a participação de 7 secretarias de educação; 155 escolas municipais e redes integradas em São Luís do Maranhão e Várzea Grande, no Mato Grosso [2]. Essa frente também é explorada pela parceria entre o Instituto de Co-Responsabilidade pela Educação (ICE) e o Instituto Natura, que implementou o modelo em Sobral, no Ceará, e Bezerros, em Pernambuco. Desde 2012, o Instituto Natura “é parceiro no Programa de Ensino Integral de São Paulo, presente em 69 escolas de ensino fundamental e médio”, além de apoiar o Centro de Referência em Educação Integral, “que tem o objetivo de colaborar gratuitamente com gestores públicos, escolas e agentes comunitários que pretendem ou já estão desenvolvendo programas nessa área”. Já o presidente do ICE, o engenheiro Marcos Magalhães, adaptou a Tecnologia Empresarial da Odebrecht (TEO) para a educação: a Tecnologia Empresarial Socioeducacional (TESE) [3] e implementou seu projeto pioneiro na escola Ginásio Pernambuco, que serviu de modelo para mais de 300 escolas nesse e em outros estados, como o Maranhão.
“Em todos os países onde foi necessário realizar uma transformação educacional e ela foi feita com sucesso, essa tarefa foi consequência de uma junção entre os poderes público e privado. O empresário tem que perceber o que ele pode fazer para ajudar. É o que chamo de fazer para influir, (…) Nosso papel é chamar o governo para avançar com um mesmo programa.” (Marcos Magalhães, presidente do ICE)
Outra mudança prevista pela MP é a contratação de profissionais com “notório saber” – isto é, sem o diploma da licenciatura – para lecionarem na formação técnica profissional. Por um lado, abre caminho para que profissionais de outras áreas – bacharéis de diversas áreas, sem licenciatura, e profissionais com experiência de trabalho em determinadas áreas – deem aulas para garantir os “itinerários formativos”. Isso asseguraria tanto uma maior interação com o mercado, quanto supriria a demanda de professores em áreas em que há poucos profissionais. Por outro lado, pode tratar-se de regulamentar o que já acontece nas escolas que utilizam professores que ainda não concluíram a faculdade, ou que são licenciados em áreas diferentes das que dão aulas. Não se trata aqui de defender uma reserva de mercado dos atuais professores, mas de compreender as novas dinâmicas estabelecidas, sendo possível vislumbrar a ampla gama de empresas (que já existem e certamente surgirão) especializadas em formação rápida e prática para atuar em sala de aula, como é o caso da recém criada rede “Ensina Brasil”, parceria entre a Fundação Lemann, Instituto Península, Itaú Social, Fundação EstudarBain & Company. Essa perspectiva de uma formação mais prática é o que também move as possíveis mudanças futuras nos cursos de licenciatura, que já haviam sido anunciadas pelo ex-ministro da Educação Aloizio Mercadante.
Diante deste cercamento tático feito pelas empresas, que antecipam proposições e experiências práticas, a crítica centrada na forma de encaminhamento da reforma é limitada e, não por acaso, vai ao encontro da posição tomada por parte de personalidades e entidades representativas do próprio empresariado. O já citado Movimento Todos Pela Educação – maior think tank de organizações privadas da área no Brasil, financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), e que conglomera grupos como a Samsung, Instituto Natura, Itaú BBA e Fundação Telefônica, entre muitos outros –, em nota, foi categórico ao repudiar a maneira pela qual a reforma, que ele mesmo concebeu, foi iniciada com a publicação da MP, para em seguida reafirmar seu alinhamento com o conteúdo. No mesmo sentido foi a declaração de Neca Setúbal, presidente do conselho do Cenpec e herdeira do Banco Itaú.
É, então, para o horizonte estratégico dos capitalistas com essa Reforma Empresarial, muito mais ampla que os termos da MP, que devemos olhar.
Notas [1] Ver aqui. [2] O documento que fundamenta a proposta do Itaú Social sobre as escolas integrais, formulado em parceria com o Movimento Todos Pela Educação, pode ser visto aqui. [3] Veja detalhes sobre a TEO nas escolas no zine sobre a privatização do ensino.
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Parte II

Para além da eficácia econômica, um dos horizontes estratégicos da Reforma do Ensino consiste na construção de um mecanismo de estabilização política que seja inerente à própria dinâmica dos mercados. Por Passa Palavra
Os três eixos da Reforma Empresarial do Ensino Médio
Um olhar sobre os documentos e as discussões que cercam o tema da educação no Brasil indica que a Reforma Empresarial, de forma esquemática, caminha estruturando-se em 3 eixos essenciais:
1) Estreitar o controle das empresas sobre os espaços formativos da força de trabalho, ajustando as aptidões desenvolvidas no período escolar às demandas contemporâneas do mundo produtivo;
2) Desbravar e estabelecer as regras de novos segmentos de mercado, fazendo adequações legais para formalizar a atuação de empresas de pequeno, médio ou grande porte nos diferentes tipos de negócios que se abrirão em torno de serviços e infraestruturas para os sistemas públicos de educação;
3) Avançar técnicas organizacionais e disciplinares para dentro dos processos educativos, tanto no que toca aos alunos quanto os trabalhadores do setor, tomando a própria dinâmica concorrencial dos mercados como instrumento e finalidade de uma nova construção política.
1. O estreitamento da relação do ensino com o “mundo produtivo”
Dias antes de publicar a MP, o Ministro da Educação enviou à Temer um documento apresentando a necessidade de alterar a estrutura curricular do Ensino Médio, de forma a torná-la mais compatível com as necessidades do “setor produtivo” e com as “demandas do século XXI”.
alunosO argumento é que os altos índices de evasão e os péssimos resultados obtidos pelo ensino médio estão ligados ao descompasso entre aquilo que o currículo atual (“extenso, superficial e fragmentado”) oferece e os anseios da juventude. Verificando que o número de jovens que concluem a fase escolar mas não ingressam no mundo do trabalho aumentou de 13,6% para 20% entre 2011 e 2016, o documento propõe um novo modelo de ensino médio, capaz de oferecer “opções de aprofundamento nas áreas do conhecimento, cursos de qualificação, estágio e ensino técnico profissional de acordo com as disponibilidade de cada sistema de ensino, o que alinha as premissas da presente proposta às recomendações do Banco Mundial e do Fundo das Nações Unidas para Infância (Unicef)”.
Que recomendações são essas? Em junho deste ano, o Banco Mundial (BM) lançou um relatório com diretrizes para a retomada do crescimento no Brasil, no qual avalia que o déficit de capacitação da força de trabalho no país seria um dos principais entraves econômicos a ser superado, apesar de considerar progressos recentes no acesso à educação. Conforme explica uma notícia sobre o documento: “Essa deficiência está refletida no declínio gradual da capacidade industrial, na pequena participação dos produtos de alta tecnologia em suas exportações, na tendência de criação de empregos em serviços de baixa produtividade, como bufês e trabalho doméstico”.
Segundo o estudo do BM, “com a queda no preço das commodities, ficou claro que os fatores para a redução da pobreza e o compartilhamento da prosperidade ligados ao mercado de trabalho não podem ser sustentados sem aumento na produtividade e nos investimentos”. Entretanto, as desigualdades nos resultados da educação entre estados com condições socioeconômicas similares sugerem a existência de bastante espaço para que “políticas públicas e boa gestão façam uma diferença e para que os governos subnacionais aprendam com os demais”. Nesse sentido, o órgão recomenda que uma boa saída seria:
“Desenvolver instituições e processos com foco na qualidade da prestação dos serviços públicos, bem como estimular a prestação de serviços pelo setor privado (por exemplo, por meio de PPPs [Parcerias Público-Privadas] e investimentos diretos locais e estrangeiros), acompanhados pela implementação mais sistemática de uma gestão baseada em resultados e uma formulação de políticas baseada em evidências. Por meio do aumento da eficiência e da redução da desigualdade no acesso à educação e à saúde, atraindo recursos privados no âmbito de um arcabouço robusto de garantia de qualidade.”
Tal como diagnosticado em artigo publicado neste site em 2011, numa era de transnacionalização do capital, a economia brasileira seria incapaz de absorver e se beneficiar dos avanços tecnológicos razoavelmente vigorosos obtidos nos últimos anos se não encontrasse soluções para a precariedade do ensino básico no país e para a consequente falta de pessoal qualificado para lidar com as inovações, “confinando o desenvolvimento da produtividade a um pequeno número de estabelecimentos e deixando o resto da economia em estagnação”. A longo prazo, avaliou o autor, as falhas de infraestruturas conjugadas ao déficit escolar poderiam causar estrangulamentos na produtividade, o que iria exigir grandes intervenções coordenadas, para além de ações pontuais realizadas por iniciativas de cada empresa.
Ao estender a carga horária dos alunos, a proposta de ensino integral busca responder a esta questão fazendo com que o adolescente passe mais tempo nos estabelecimentos escolares do que na rua ou com a família. O objetivo é diminuir a defasagem formativa e o grau de incerteza nesta etapa de produção da força de trabalho, já que uma boa parte do tempo deste processo irá passar a ocorrer no interior de instituições especializadas e permeadas por rigorosos sistemas de monitoramento e gerenciamento de resultados, como veremos adiante.
Nessa linha, as pesquisas em que se apoiam os atores empresariais entusiastas da reforma apontam, de maneira geral, que seu objetivo está voltado não apenas para a promoção de um salto quantitativo, mas de uma completa adequação a qualidades requeridas pelos “novos tempos”. As habilidades e competências reclamadas pelos empregadores dizem respeito a raciocínios lógicos, matemáticos e comunicativos dos mais elementares, como: interpretação e redação de textos simples (e-mail, por exemplo); cálculo de trocos no caixa, porcentagem de descontos e comissões; tratativas com clientes etc. Mas o que se enfatiza bastante é a necessidade de o aluno formado estar apto a esquematizar problemas e propor alternativas, isto é, não apenas dominar tecnicamente diferentes habilidades, mas, estando diante de situações-problema reais, saber conjugá-las e engajar-se na busca por soluções.
colando-na-provaNas palavras de Neca Setúbal, as “atitudes contemporâneas” esperadas de um jovem em formação podem ser resumidas nos seguintes quesitos: “Ser criativo, buscar a solução de problemas e aprender a aprender; Garantir a alfabetização digital para que mais pessoas possam usar as novas ferramentas; Exercer cidadania e ser socialmente responsável; Aprimorar a colaboração e a comunicação no trabalho”. Isso implica que o professor esteja engajado em buscar atualizações constantes, tenha domínio das novas tecnologias e empenhe-se no desenvolvimento de técnicas pedagógicas para aplicá-las no dia-a-dia.
A MP considera a possibilidade da formação técnica ou profissional ser feita a partir de “experiência prática de trabalho” ou em “ambientes de simulação”, para os quais prevê o estabelecimento de parcerias com a iniciativa privada. Porém, a possibilidade de o aluno cursar outro itinerário formativo é bem evasiva no documento, e fica condicionada à “disponibilidade de vagas na rede”.
Nesse esforço de aproximação com o mundo produtivo, o documento considera até casos de concessão de certificados intermediários de qualificação, já prevendo situações em que o estudante não conclua o ciclo, mas ingresse no mercado de trabalho mesmo que com alguma habilidade apenas parcial. Pesquisas como a da Fundação Lemman (na qual se fundamenta, por exemplo, o Movimento Todos Pela Educação) nos mostram que os esforços dos grupos empresariais apontam para a elaboração de currículos mais adequados às situações práticas e geralmente instáveis do mercado de trabalho, ao invés do modelo atual dos currículos, tido como “enciclopédico” e generalista demais. É esta a linha de ação de uma das principais consultorias especializadas atuantes no setor, a McKinsey:
“Muitos dos trabalhadores de hoje, depois de terem experimentado a dor da recessão econômica e de demissões em grande escala, já não sentem tanta lealdade e compromisso com as suas organizações, como fizeram até uma década atrás. A inconstância de emprego [job hopping] tem sido descrita como o ‘novo normal’, e é esperado que a geração do milênio realize de 15 a 20 posições ao longo de sua vida profissional. (…) Para combater estes problemas, é mais importante do que nunca, para as empresas em transição, investir tempo e esforço na mudança de mentalidades e comportamentos da força de trabalho.”
No caso, parece estarmos diante da exigência de um jovem-trabalhador que, embora comporte capacidades cognitivas mais estritamente antenadas com práticas concretas do mercado, seja também socialmente receptivo à constante instabilidade do trabalho flexível. E, assim, a grande margem de autonomia repassada às redes e sistemas locais de ensino entra em sintonia com o objetivo de tornar os processos educativos mais reativos a estes sinais. Então é de se questionar se o novo modelo será mesmo capaz de atenuar as disparidades regionais e sócio-econômicas, como alega, ou apenas aprofundá-las, já que o socorro financeiro fica dependente do interesse de entidades do entorno firmarem as tais parcerias e definirem os “itinerários” a oferecer. Não nos parece fora da realidade, portanto, as estimativas de que a Reforma reitere a estrutura estratificada de ensino, que vai desde alguns centros de excelência mais integrados aos pólos produtivos avançados até espaços preparados para a contenção da mão-de-obra de menor qualificação cujo lugar reservado é o da precariedade.
Em qualquer um dos casos, não podemos perder de vista que “qualificação” aqui está sendo entendida de um ponto de vista capitalista, isto é, como capacidade da força de trabalho sujeitar-se física e subjetivamente às tarefas do capital.
2. A expansão de mercados da educação
De diversas maneiras, o pacote de intervenções anunciado com a MP dá incentivos e a armadura legal para que a atividade escolar seja segmentada em diversos nichos de mercado. Nesse aspecto, formaliza práticas que já ocorrem em muitas experiências localizadas.
meninos-na-escola-3A MP institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral e, para tanto, prevê o repasse de recursos do Ministério da Educação para os estados. Esse repasse de recursos, no entanto, é provisório (prazo máximo de 4 anos) e se presta a dar apenas o impulso inicial às escolas que optem por implementar o regime integral, o que inclui: formação de pessoal; aquisição, manutenção e construção de instalações e equipamentos; contratação de empresas terceirizadas para serviços operacionais; aquisição de material didático e elaboração de sistemas de avaliação por entidades externas. A transferência deve ser feita com base no número de alunos por unidade escolar, mas o documento não dá garantias nem especifica a quantia a ser destinada, simplesmente condicionando-a à “disponibilidade orçamentária para atendimento”.
De forma extra-oficial, Temer prometeu destinar às redes estaduais uma verba suplementar de 2 mil reais por aluno em tempo integral. De todo modo, segundo informações da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação, ainda que esse repasse estivesse garantido, ele seria menor do que hoje é praticado pelo Fundeb [4] no investimento per capita (por aluno), que no ano de 2016 foi pouco acima de 3,5 mil reais.
De acordo com Fred Amancio, secretário de Educação de Pernambuco, estado que desde 2001 adota o modelo das escolas charters, tendo alcançado já 50% das unidades, “o custo do programa é fortemente impactado por merenda e pelo gasto com gratificação, para garantir dedicação exclusiva do professor na escola’, diz ele.” Por esse motivo, o montante do orçamento estadual destinado à pasta de educação precisou passar de 25% para 27%.
Mas não parece ser esse o caso no âmbito nacional. Tendo em mente a recente aprovação em 1º turno da PEC 241/2016, que diminui progressivamente os gastos governamentais com saúde e educação em relação ao PIB, é legítimo perguntar de onde virão os investimentos à altura do aumento das metas e resultados requeridos da educação. Afinal, como lembrou Dirce Zan, Diretora da Escola de Educação da Unicamp:
“A educação de tempo integral pressupõe professores que possam estar lá pra desenvolver atividades outras que a sala de aula, como oficinas, laboratórios, pesquisas. Precisa ter diversificação das atividades. Não dá para fazer tudo em sala de aula. Aí não é educação de tempo integral, é massacre”.
Portanto, é uma premissa do projeto que, após o período de 4 anos de aporte financeiro do MEC, as parcerias público-privadas apareçam como saída evidente para cobrir o aumento de despesas, podendo assumir diferentes feições em cada rede de ensino (charters, OS, ensino médio integrado com o técnico, parcerias com grandes institutos etc.). Da mesma forma, a articulação da escola com equipamentos e serviços do entorno vai virar imprescindível para suprir o baixo investimento, intensificando a integração entre escolas e empresas na formação dos novos trabalhadores.
Assim, aliado à aproximação do ensino médio com as demandas do mercado de trabalho, a MP opera adequações legais e confere impulso financeiro inicial para que se expandam novos segmentos de mercado em torno de diversos serviços ligados à atividade escolar. Segundo o documento, os sistemas de ensino poderão reconhecer como cumprimento de exigências curriculares experiências de trabalho supervisionado, atividades de educação técnica realizadas em outras instituições; cursos e estudos oferecidos por centros e institutos parceiros, incluindo ensino à distância. Já aqui, temos um amparo legal para que se multipliquem negócios em torno da comprovação de carga horária, por exemplo, abrindo espaço para a proliferação de “fábricas de certificados”, algo muito parecido com o que já ocorre no ensino superior e a lógica de pontuação do Curriculum Lattes.
downloadJosé Renato Nalini, secretário da Educação de São Paulo, é bastante claro ao afirmar que irá adotar o modelo do Programa de Ensino Integral, que teve como laboratório a Escola Alves Cruz, da Zona Oeste da capital, em parceria com a Fundação Itaú Social. Já sobre a infraestrutura para subsidiar a expansão, o secretário diz que poderá usar espaços de escolas privadas, do Sistema S [5] ou, como ele mesmo diz: “vamos aproveitar tudo”.
Com a MP, também passam a ser considerados aptos ao exercício docente nos cursos de formação técnica, não apenas professores em algum nível habilitados ou portadores de diplomas, mas profissionais com “notório saber”, para dar aulas com conteúdos afins à sua formação original. A noção vaga sobre o que vem a ser “notório saber” desperta uma larga discussão por parte da esquerda, mas, infelizmente, as críticas têm sido feitas de um ponto de vista romântico ou meramente corporativo. De um lado, argumenta-se que a não obrigatoriedade do diploma deverá comprometer a “qualidade” do ensino porque será realizado por profissionais sem licenciatura; de outro, que ela viola a exclusividade de contratação dos profissionais devidamente representados pelas entidades corporativas. É no mínimo curioso ver boa parte da esquerda que exalta os “saberes alternativos” e questiona o cientificismo sair agora em defesa do diploma acadêmico, além de se esquecer que esta crítica talvez não tenha apelo para a enorme massa de estagiários, auxiliares e professores eventuais ou substitutos sem licenciatura que já atuam efetivamente como profissionais nas redes de ensino e outros que certamente verão nessa abertura a possibilidade de complementar a sua renda com serviços eventualmente prestados às escolas.
Mas é certo que as medidas em curso não se destinam a superar estas questões, senão fragilizar a autonomia e quebrar os marcos de proteção da carreira docente, adensando o ambiente de rivalidade e ameaças recíprocas em que já se encontra. A lei de estabilidade do funcionalismo público, segundo Marconi Perillo, governador de Goiás, um dos estados mais avançados no processo de terceirização da educação, é a “coisa mais imbecil e mais burra que existe, (…) na minha opinião não pode haver estabilidade no emprego e as OSs impedem isso”.
A oficialização para que parcerias deste tipo contratem professores segundo critérios próprios tende a aumentar consideravelmente o volume da oferta de profissionais em relação à demanda e, assim, empurrar para baixo a base salarial da categoria. Além de firmar o terreno para alavancar as “coopergatos” de professores e o “mercado das certificações”, que já contam com iniciativas empresariais ávidas e à espreita, já que também fica a cargo das redes estaduais e municipais definirem e regulamentarem o que é que vai ser reconhecido como “notório saber”. Essas cooperativas tendem a ser reforçadas pela proposta dos itinerários formativos. Uma vez que se oferecerão cursos mais especializados, é provável que as escolas não tenham profissionais aptos a ministrar essas aulas diferenciadas, com isso as cooperativas podem se especializar em um ou outro itinerário, e oferecer esse serviço para diversas escolas. Esta atividade estará amparada pela MP e também pelo PL/4330, que permitirá a terceirização da atividade-fim, ou seja, as escolas poderão terceirizar as aulas. Estes trabalhadores não serão considerados professores e por isso não estarão inclusos nos acordos coletivos, o que significa que o cooperativado não terá trabalho durante dois meses por ano, relativos às férias escolares, e consequentemente não terá salário.
As instituições de ensino, portanto, se tornam verdadeiras unidades econômicas articuladoras de mercados de bens ou serviços diretamente ligados ou conexos à atividade escolar: uma teia que pode mobilizar interesses não apenas de gigantes capitalistas do setor (grandes sistemas de ensino, de formação de professores, de oferecimento de materiais didáticos, equipamentos tecnológicos etc.) mas mesmo pequenos e médios comerciantes da comunidade em que estiverem localizadas. Sobre isso, é instrutivo o relato de Danilo de Melo Souza, que em 2010 ocupava o cargo de secretário de Educação da rede municipal de Palmas, capital do Tocantins, sobre a ampliação das escolas de tempo integral naquele município:
“A merenda escolar é um exemplo disso (…) Quando você descentraliza esse tipo de gasto nas escolas, todos os açougues perto da escola, por exemplo, que estiverem em plenas condições sanitárias de fornecer produtos, vão querer vendê-los, e o preço tende a baixar significativamente. Temos percebido isso com relação a vários tipos de produtos e serviços”.
Como se pode prever, a articulação de mercados no entorno de uma unidade escolar caminha para dificultar as possibilidades de uma mobilização ou paralisação contestatória nesse espaço, pois passa a envolver uma miríade, mais densa e complicada, de interesses contrários a qualquer subversão da ordem estabelecida. Para além da eficácia econômica, é possível vislumbrar, portanto, que um dos horizontes estratégicos da Reforma do Ensino consiste na construção de um mecanismo de estabilização política que seja inerente à própria dinâmica dos mercados.
3. O adensamento dos mercados como reforço do controle capitalista
e1faf30c123b706d3c3765956bcaf3adO crescimento dos mercados na educação não significa a diminuição do Estado, mas o reforço de um outro. Afinal, ao lado do tradicional poder estatal, as empresas capitalistas são também aparelhos de dominação capazes de impactar todo o tecido social, tendo em vista que demarcam as condições de vida dos trabalhadores dentro e fora do espaço laboral. Tratam-se, assim, de aparelhos de poder complementares, que subordinam, desorganizam e fragmentam os trabalhadores.
O objetivo das modificações previstas pela Reforma não é apenas ajustar as instituições escolares às demandas econômicas do mercado de trabalho ou remontar as práticas de ensino sob a forma de mercados variados. A nosso ver, ela atende também a uma necessidade de caráter político, inseparável de seus objetivos mais acentuadamente econômicos.
A propagação de um sem-número de técnicas de acompanhamento contínuo, avaliação e gestão padronizadas dos resultados, efetivados pela atuação de experts e consultorias especializadas como a McKinsey, se converteu no principal instrumento por meio do qual os organismos empresariais puderam incutir nos processos de trabalho as regras formais de concorrência, de modo a agravar o problema da fragmentação. Pois o sistema organizacional que se pretende instalar atinge seus objetivos quando consegue individualizar as responsabilidades nos ambientes laborais, solicitando de cada trabalhador muito mais do que a mera disponibilidade temporária do uso de suas energias, mas o engajamento integral, que abarca todas as dimensões de sua vida.
Consequentemente, a ação continuada dos métodos usados pelos novos programas empresariais de gestão não se limita à imposição de ordens e procedimentos vindos de cima para baixo, mas incita processos de internalização da lógica concorrencial por parte dos próprios trabalhadores. No caso escolar, gratificações individualizadas e rigorosa cobrança por resultados moldam um “perfil diferenciado de professores”, garantindo que eles participem ativamente dos projetos pedagógicos.
O princípio básico desse engajamento fica patente na fala do político ligado ao PCdoB, Ney Campello: corrosão da estabilidade e de formas de ação coletiva no espaço de trabalho. No mesmo evento em que o governador de Goiás discursava para líderes empresariais em novembro do ano passado, o ex-superintendente de educação do governo Dilma afirmou:
“Não consigo ver a educação avançando com sindicatos agressivos e essa coisa de professor pedir licença para tudo a qualquer hora. Vou conseguir chegar a uma melhoria na medida em que o mau professor ou professor relapso, ou professor que não cumpre suas metas, possam ser desligados. Só no fato de a gente quebrar a espinha da contratação, de definir metas claras, será uma outra coisa. Mas não pode haver aumento de gastos em relação ao modelo antigo, senão não vale a pena.”
Com a dissolução das bases de solidariedade, a colaboração com os novos métodos organizacionais se prolonga para a própria conduta do professor, confrontado com a necessidade de apresentar resultados individuais. Relatos de experimentos em escolas de período integral, administradas por parcerias público-privadas e com critérios próprios de contratação, dão conta de que os professores admitidos “comprometem-se a fazer ‘o que for necessário’ para que o aluno aprenda”. Qualquer modalidade de proteção social passa a ser condenada como empecilho a que os trabalhadores empenhem-se mais e assumam suas responsabilidades, assim como formas de ação coletiva são repelidas por oporem obstáculos a maior eficiência do sistema. Nas palavras de uma professora da experiência pernambucana que passou pelas etapas de seleção e “conseguiu se adaptar ao ritmo de trabalho”: “Aqui não fazemos greve. O professor só falta se realmente for caso de extrema necessidade”.
imagesA abertura para a contratação de professores com “notório saber” caminha neste exato sentido, pois aposta na ideia de que o profissional com bagagens práticas no mercado de trabalho carrega melhores competências e disposição ao intenso ritmo de trabalho que se pretende implementar. Acredita-se que assim se consiga “atrair quadros docentes” com o perfil mais ajustado e selecionado pela implacável provação do mercado. Mas como uma boa carta na manga, talvez nem precise ser implementada para funcionar como instrumento de coação. A simples ameaça de efetivá-la conduz o atual quadro de docentes a se envolver ativamente no novo regime de trabalho, sob o receio de que sua área de atuação seja inundada por novos profissionais dispostos a tudo.
O acirramento das relações competitivas entre professores, e mesmo entre gestores das unidades, é consagrado pelas formas personalizadas de gratificação, que distribuem seletivamente os recursos em função do desempenho de cada um. Somadas, estas bonificações chegam a compôr uma proporção muito elevada em relação ao salário-base da categoria – isso, é claro, entre as escolas e os docentes que conseguem bater as metas estipuladas. A corrida cega pela pontuação não visa outra coisa senão fazer os interesses individuais esmagarem os antigos laços de solidariedade e minarem toda possibilidade de atuação coletiva. Para isso, as novas tecnologias gerenciais envolvem gestores das unidades, a comunidade e os próprios alunos na execução do monitoramento e na prestação de contas do professor, ao ponto de implicar a todos no acompanhamento e na delação do que é ou não ministrado em sala de aula.
Conforme relata a professora do caso modelo de Pernambuco: “Nós temos definido os conteúdos e o tempo em que devem ser ensinados. Temos um contrato didático com estudantes, que cobram mesmo, na medida em que também são muito cobrados”. Essas são ferramentas já bastante aplicadas em quase todas as redes de ensino e têm produzido efeitos devastadores na capacidade de mobilização da categoria – que em São Paulo, em março deste ano, numa enquete interna que a Secretaria Estadual de Educação realizou por sistema eletrônico, optou por imensa maioria (92%) pelo pagamento do bônus por mérito para alguns, ao invés do reajuste salarial que beneficiaria o conjunto do professorado.
A gestão a partir de resultados tende a fazer com que todo professor, com algum instinto de autopreservação, foque boa parte de sua atenção no aumento de suas taxas de rendimento nas avaliações padronizadas. E, assim, o controle sobre sua atividade dispensa a utilização de artifícios diretos de coerção ideológica, já que, perante a sensação de isolamento e a internalização da responsabilidade, o comportamento dele esperado pode ser mobilizado por sua própria iniciativa.
Notas [4] O Fundeb é o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação. [5]Sistema S” é o nome dado ao conjunto de órgãos das entidades patronais voltados à formação profissional e assistência social, como SESI, SENAI, SESC etc.
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Parte III

Como encetar movimentos contrários a uma proposta que se apresenta enquanto reforma de um cenário onde nada parece possível de ficar pior do que já é? Por Passa Palavra
É também movido por esse discurso sobre a possibilidade de fazer escolhas que o ideário empresarial chega aos estudantes. Ao contrário do tom uniformizante e indiferente às particularidades concretas do aluno, típico das escolas tradicionais, o palavreado da reforma empresarial se fundamenta na liberdade do jovem para traçar seus “projetos de vida”. O slogan, abundantemente repetido, “tornar a escola mais atrativa e significativa para o aluno” põe a tônica na diferenciação e não na homogenização, concebendo o jovem como alguém portador de personalidade e interesses próprios, dono de seus próprios estilos, vontades e juízos morais. Isso permite aos reformadores empresariais aproveitarem-se da própria energia de contestação dos estudantes como impulso para alavancar suas propostas.
image_largeQuando questionado sobre a possibilidade de haver resistência dos estudantes na implementação do novo modelo, o secretário da Educação de São Paulo afirmou: “Acredito que é alguma coisa em benefício do jovem, que é aquele que queria ser ouvido. Não há motivo (para ocupação) porque essa medida é justamente uma resposta ao que eles queriam”.
A apologia do jovem com poder de escolha e no centro do processo constitui uma ideia-motriz da nova gestão. É no estímulo a gestos de vontade, participação e afirmação de preferências culturais, que se inicia cada vez mais precocemente o adolescente como agente econômico. Ao transferir para o jovem a responsabilidade de traçar metas que deverão marcá-lo por toda a vida, tem-se em vista antecipar a sua inserção como parte da população economicamente ativa, dotando-o de ímpeto criativo e competidor, ao expô-lo a situações sociais que envolvem riscos e escolhas em função de suas próprias aspirações.
Esse tipo de estímulo, junto com a flexibilização dos conteúdos, é a forma utilizada pelos capitalistas para tentar recuperar as lutas das ocupações de escolas que ocorreram e estão ocorrendo em diversos estados do país, nas quais os alunos demonstraram capacidade de gestão escolar e de reformulação das grades e conteúdos disciplinares. É esse engajamento que os gestores esperam desenvolver com os alunos, claro que sem a radicalidade praticada nas ocupações. Esvazia-se o caráter coletivo e ativo da luta, mantendo-se apenas as capacidades de tomadas de decisão individual sobre seus itinerários formativos, apropriando-se de uma característica que se mostrou transformadora para torná-la mais adequada aos interesses de formação de uma força de trabalho mais produtiva.
Por isso o ideário da escolha vem acompanhado dos conceitos de capital humano e de empreendedorismo, e já são quase uma banalidade casos em que projetos turbinados pelo empresariado difundem explicitamente essas mistificações no espaço escolar (atente-se principalmente para as iniciativas da Fundação Telefônica Vivo e da Impact Hub, presentes em pelo menos 5 ETECs paulistas e mais 8 estados brasileiros). O aluno aparece, o quanto antes, como portador de seu próprio capital, e seu desenvolvimento se torna objeto de análises e medições de todo tipo de observatórios, na mesma medida em que toda sua experiência de vida se converte em recurso econômico investido na constituição de seu próprio capital. As fronteiras entre a etapa formativa e a vida produtiva tendem a se confundir, o que é oficializado pelos pontos da MP que estimulam a “experiência de trabalho” ou os “ambientes de simulação” como ingredientes do currículo.
competicaoAssim como é feito com os professores, programas de estímulo individual para alunos que se destacam são pilares nas experiências avançadas, e inclui desde ofertas a maiores possibilidade de estágios, nomeação para cargos de monitoria, até premiações com passeios e viagens. O que aparece como “valorização” no palavreado empresarial é, antes de tudo, uma técnica política que acena com esquemas de premiação para incitar a rivalidade e o rankeamento entre os estudantes. A própria forma organizacional instituída pelo processo educativo acaba por ensinar que a concorrência com seus pares é a única forma de relacionamento possível com o resto da sociedade, o que é posto em prática não somente através dos conteúdos, mas principalmente pela exposição precoce aos ambientes competitivos, considerados cada vez mais como espaços geradores de valor.
Que sentido dar a construção dessa luta?
Quando alertamos que os princípios da concorrência se instalam em cada minúcia do cotidiano escolar, não o fazemos por lamentar o suposto declínio do poder estatal perante a arbitrariedade dos mercados, mas para denunciar o fortalecimento de uma outra estrutura de governo, um inimigo que cresce às sombras e que agora reivindica a seu poder de interferência sobre toda extensão dos processos formativos da força de trabalho. Trata-se de contribuir com as iniciativas de luta chamando a atenção para este dado estratégico trazido pela Reforma: o centro de decisão sobre os assuntos educacionais está sendo definitivamente transferido do aparelho de Estado tradicional para o comando direto dos grandes grupos econômicos.
Mas como encetar movimentos contrários a uma proposta que se apresenta enquanto reforma de um cenário onde nada parece possível de ficar pior do que já é?
reforma-nao-ensino-medioNa luta do ano passado contra o projeto de reorganização do ensino em São Paulo, estávamos diante de uma etapa que afetava visivelmente o cotidiano de grande parte de alunos e professores que teriam suas escolas fechadas ou seriam obrigados a mudar o seu local de estudo e trabalho por conta da nova divisão de ciclos que o governo insistia em promover. Diante de uma mudança concreta, a mobilização foi grande e conseguiu impor o recuo temporário ao governador. Obviamente que a flexibilização do ensino médio e os vários outros pontos que a MP institui também afetarão e modificarão completamente a dinâmica escolar. O ponto é que essa é uma medida com avanços de metas bem graduais, que para incidir concretamente na realidade das pessoas poderão passar ainda por um período arrastado de implementação. Se a MP for sancionada, ainda será preciso esperar a discussão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), por exemplo, que deve se encerrar no meio do ano que vem e só depois disso, talvez para o início de 2018, é que a transformação do novo currículo será sentida diretamente por alunos, pais e professores.
Se fôssemos perguntar para os estudantes do ensino médio se eles preferem escolher quais disciplinas cursar e enfatizar suas áreas de interesse, é possível que a grande maioria respondesse positivamente à essa flexibilização do currículo. Ou seja, a reforma põe já de saída uma cisão, colocando em campos opostos os que optam pela mudança e os que… preferem continuar tal como está? Será? Então, qual sentido daremos a construção dessa luta? Como ampliar nossa mobilização?
Tentando contribuir com essas questões, sugerimos pensar a reforma empresarial da educação como a realização de dois movimentos combinados. Ela busca elevar o nível geral de produtividade tanto dos professores quanto da jovem força de trabalho que procurará se inserir no mercado nos próximos anos, mas o faz num contexto de reestruturação dos gastos públicos com as chamadas áreas sociais. Diante disso, é possível conceber que serão as parcerias público-privadas a oferecer os aportes necessários para as adequações estruturais e organizacionais que permitam realizar esse salto qualitativo prometido, já que o Programa de Implementação anunciado pelo governo é visível e propositalmente aquém do que pede a realidade.
Mas as experiências-piloto, bem como os processos similares da nova gestão que hoje já se difundiram por quase todo o mundo do trabalho, dão fortes sinais de que a busca pelo aumento dos índices educacionais não deverá acontecer baseando-se em métodos “civilizatórios” de reorganização dos trabalhos, mas principalmente através da introdução de rigorosos mecanismos disciplinares, que abarcam estudantes e professores. É por meio do adensamento do ambiente competitivo entre todos os agentes envolvidos no processo que se pretende atingir maiores índices e resultados, o que implica o desmanche dos velhos marcos de proteção trabalhista, a introdução de ferramentas de avaliação/responsabilização individual e o agravamento das condições de instabilidade. Assim, os esforços adicionais (econômicos e sociais) requeridos pela nova estratégia empresarial são, em sua maior parte, repassados aos músculos, cérebros e nervos de trabalhadores e alunos. Como o próprio Ministro da Educação não fez questão de esconder: “vai doer”!