sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

As veias abertas da América Latina

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Eduardo Galeano, autor de As veias abertas da América Latina, propôs um inventário dos 500 anos da história do continente retratando as suas principais bases: a economia agrícola e mineradora dominada pelo mercado internacional, com o objetivo de gerar lucros para a potência dominadora; a pobreza social como resultado de um sistema econômico externo e excludente, que privilegia uma minoria financeiramente capaz de integrar-se aos padrões de consumo; a opressão de governos centralizadores contra as minorias, produzindo genocídios e o caos social; a exploração do trabalho e as péssimas condições de sobrevivência para a grande maioria de sua população.
Num relato informal, cujo objetivo é "mostrar uma opinião", para entender a história e a atual situação da América Latina Galeano narra os fatos fora de uma seqüência cronológica, fazendo com que passado e presente conversem entre si na mesma obra, determinando o ponto de vista do autor: o continente foi e é peça importante no enriquecimento de poucas nações, e o preço que paga por isso é o seu subdesenvolvimento crônico, suas eternas crises sociais e seu status de colônia. "A riqueza das potências é a pobreza da América Latina", diz Galeano em certa passagem do livro.
O autor dividiu o livro em três partes. Na primeira, mostra como os espanhóis e portugueses chegaram àquelas terras virgens no século XV e se aproveitaram das riquezas que o continente possuía. Os primeiros, fixados desde o planalto mexicano até os Andes, tiveram sorte e encontraram ouro e prata nas primeiras andanças. Os lusitanos, ocupando a faixa litorânea do Oceano Atlântico, tiveram de construir um império colonial à base da cana-de-açúcar enquanto não encontravam os metais. Embora em áreas diferentes, a tônica da exploração foi a mesma: trabalho forçado, agressão física, enriquecimento, opressão colonial.
Os espanhóis encontraram dois exércitos de mão-de-obra disponíveis: os índios astecas no México e os incas no Peru. Estas civilizações, para Galeano, retratam o caráter do domínio colonial: socialmente e militarmente evoluídas, foram destruídas nas minas e com o trabalho forçado nas mitas e encomiendas. Já os portugueses, depois de tentar a exploração dos índios nos engenhos de açúcar e não obter sucesso, transformaram-se no maior traficante de negros mundial. Vindos da África, os negros deixavam à força seus reinos para, em terras brasileiras, ser escravos e motor da produção açucareira.
Após narrar a glória desses centros produtivos de riqueza colonial (que, como faz questão de ressaltar, não ficava na Espanha e Portugal: destinava-se a pagar as dívidas que estes países tinham com a potência que lhes roubaria o domínio econômico da América: a Inglaterra), Galeano traz a exploração para o presente e fala da decadência dessas regiões. São claros exemplos da tese de que a região rica do passado é marcada pela pobreza no presente as minas de Potosí, na Bolívia (região dava todo o ouro e prata que os espanhóis necessitavam e onde se formou uma elite local que enriquecia à base da escravidão indígena.
No século XVII, quando os metais escassearam, o sonho de riqueza acabou e a pobreza se enraizou. Hoje, Potosí é o distrito mais pobre da Bolívia, habitado somente por descendentes de índios, e de seu passado glorioso guarda apenas a lembrança); o Nordeste brasileiro, que viveu seu auge com a produção de açúcar nos século XVI e XVII, mas não escapou da decadência quando seu produto passou a sofrer concorrência das Antilhas Holandesas, no século XVIII; e a região de Ouro Preto, quando a efêmera exploração aurífera acabou na entrada do século XIX.
Os três casos refletem a formação colonial da América Latina: o continente nasceu para fornecer as riquezas que a Europa necessitava. Na medida em que as terras já não atendiam a essa demanda, foram abandonadas, ficando como marca do passado as gerações seguintes da população historicamente explorada, pobre e sem perspectivas. Citando a teoria marxista da divisão do trabalho entre operário e patrão, Galeano afirma que "enquanto a Europa era o cavaleiro que levava as glórias, a América era o cavalo que fazia todo o serviço".
Dos metais, seguiu-se a exploração agrícola e pecuária a partir principalmente dos séculos XVIII e XIX, por meio da qual cada país, numa engrenagem perfeita com o sistema econômico internacional, se identificou e ainda se identifica com um determinado produto na escala comercial. A América Central se especializou no fornecimento de frutas tropicais; o Equador, bananas; Brasil e Colômbia, café; Cuba e Caribe, açúcar; Venezuela, cacau; Argentina e Uruguai, carne e lã; a Bolívia tornou-se país fornecedor de estanho e o Peru de peixe. Embora com produções diferentes, o sistema permanece com mecanismos idênticos em todos os casos: por se tratar de mercadorias primárias, com baixos preços, os países pouco lucram como a venda agrícola.
Por isso, têm de produzir cada vez mais e com métodos baratos para fazer mais divisas e atender à necessidades dos países compradores para não perder mercados. Com isso, aumenta-se a exploração do trabalho e a formação dos latifúndios, impedindo o acesso das classes populares à terra. Este processo de dominação personificou-se principalmente na América Central. Neste território, a indústria nacional não existe ou é primária: os grandes conglomerados pertencem a países estrangeiros, atuando exatamente na industrialização de alimentos. Os países vendiam, no século XIX, sua produção agrícola aos ingleses, substituídos um século depois pelos EUA, potência que domina a área e dita os rumos da política local de acordo com seus interesses.
A antiga empresa norte-americana United Fruit Company era o "verdadeiro" poder na América Central, comandando a área a despeito das vontades e anseios de sua população, e inclusive promovendo golpes militares e instalando governantes de confiança para garantir seus direitos (como na Guatemala, em 1954: numa intervenção militar, os EUA derrubaram Jacobo Arbenz, socialista eleito democraticamente). As lutas de guerrilha que caracterizam até hoje a região são decorrentes dessa dominação: grupos paramilitares lutam contra governos corruptos que defendem os interesses norte-americanos para chegar ao poder. Mais uma vez, a vítima é sempre a população, que se não morre explorada nos latifúndios, tem sua vida encurtada nas batalhas da guerra civil.
Sociedades nascidas para fora, isto é, para fornecer produtos e condições econômicas de desenvolvimento às potências mundiais, as nações latino-americanas nunca se esqueceram de sua trágica condição. E nem os movimentos de independências nacionais das duas primeiras décadas do século XIX libertaram os novos países da dominação colonial, pois a estrutura permaneceu idêntica: a economia agrário-exportadora dominada por elites locais ligadas aos mercados compradores – principalmente a Inglaterra. A fragmentação que o território latino-americano sofreu após o movimento libertador de Simón Bolívar representa a impossibilidade de formar uma unidade nacional: cada elite identificou-se com um pedaço do território e nela formou seu país, de acordo com seu papel no comércio internacional. Como diz Galeano, "cada novo país identificou-se com seu porto exportador, acima de qualquer idealismo". O imperialismo britânico substituiu o domínio ibérico no século XIX, fomentando seu próprio desenvolvimento às custas da produção dos novos países e exterminando toda e qualquer tentativa de desenvolvimento autônomo.
A Guerra do Paraguai, de 1865 a 1870, é o exemplo mais claro desse argumento: capitaneados pelos interesses comerciais britânicos, Brasil e Argentina promoveram um conflito bélico contra a nação guarani, à época a mais industrializada e comercialmente independente do continente. O resultado foi o maior genocídio da história latino-americana (1,3 milhão de mortos numa população de 1,8 milhão) e o enfraquecimento do Paraguai, que até hoje não deixou de ser um protetorado sob a ingerência do imperialismo brasileiro e argentino. No século XX, com a decadência inglesa, surge no cenário os EUA como nova potência gestora da América Latina. Não é à toa que, já em 1823, os norte-americanos promulgaram a famosa Doutrina Monroe: "A América para os americanos".
O que significava dizer: os EUA estenderiam seus interesses sobre seu continente irmão e continuariam a exploração iniciada quatro séculos antes, por meio do controle econômico e político. O início da longa e duradoura intervenção norte-americana no continente data de 1898, quando os EUA derrotaram a Espanha na batalha de independência de Cuba, e se apossaram dos direitos políticos e econômicos sobre a ilha – os quais mantiveram até 1959, quando Fidel Castro e seus guerrilheiros derrubaram o governo de Fulgencio Batista e tomaram o poder. No entanto, mesmo longe de Cuba, é sabido que os interesses norte-americanos criaram ramificações em outros países do continente, com destaque para a já citada América Central e o México. Mesmo os países com certo desenvolvimento industrial – Brasil, Argentina e México – não escapam dessa dominação econômica imposta pelas potências internacionais. Basta uma análise mais detalhada nos índices econômicos dessas nações para se comprovar o argumento. Grande parte das receitas comerciais dessas nações ainda vêm da exportação de matérias agrícolas, pecuárias (destacadamente o caso argentino) ou minerais.
O campo, a agricultura e as indústrias primárias ainda são marcos dos tempos coloniais. Na verdade, as indústrias desses países têm força local, ou seja, encontram mercado apenas em países subdesenvolvidos que não produzem tais mercadorias. Perante as potências, não passam de apêndice das multinacionais com o objetivo de fornecer lucros à matriz, e não em desenvolver um forte mercado interno. A industrialização latino-americana não nasceu dos anseios de desenvolvimento sócio-produtivo, mas da impossibilidade de importar produtos manufaturados durante a recessão econômica mundial dos anos 30. Formou-se uma indústria baseada na "substituição de importações", reforçada durante os anos 50 e 60 com o advento das multinacionais e políticas internas de crescimento. No entanto, a industrialização latino-americana nunca deixou de estar ligada aos interesses estrangeiros, ao fornecer produtos que tais mercados necessitavam e importar tecnologias que, em vez de incrementar o desenvolvimento, só aumentavam a dependência.
A demanda interna e o crescimento do mercado consumidor não foi atendida. Assim, entende-se que o movimento industrial do continente foi mais uma etapa do colonialismo perante as potências mundiais: fornece-se produtos baratos, baseados no baixo valor da mão-de-obra e na exploração do assalariado, para se encaixar no mercado internacional e obter técnicas que a indústria local é incapaz de produzir. Mudam os tempos e os métodos, mantém-se a exploração, o subdesenvolvimento e a inviabilidade de um crescimento autônomo e principalmente voltado às classes mais injustiçadas do sistema. A iniciativa de um mercado de cooperação econômica que visa reduzir essa dominação, como o Mercosul, tem efetividade apenas em nível local, ou seja, perante os demais países do continente, que não dispõem das mesmas tecnologias e condições para produzir as mercadorias que o bloco comercializa.
O Mercosul não tem forças para competir ou fazer afrontas à futura Alca, por exemplo, ou à União Européia: estes blocos, além de poderosos economicamente, produzem mercadorias mais baratas e de melhor qualidade que o bloco latino-americano, o que lhes abrem as portas para conquistar os mercados onde o Mercosul atua hoje. A tentativa norte-americana de enfraquecer o bloco reflete que as condições mudam, mas a essência é a mesma: a potência mundial dita as regras e exige o cumprimento das colônias.
Embora diga que ainda é muito cedo para se pensar na Alca, o Mercosul vive sob o temor da formação desse novo bloco, que lhe faria concorrência direta ao englobar todos os mercados americanos restantes e limitar sua área de atuação. Tratar-se-ia de um pacto colonial moderno: as colônias seguem a orientação superior, mesmo com contestação, por saber que, se não o fizerem, as conseqüências e retaliações serão muito piores. Mas não é apenas isso. O Mercosul é enfraquecido em função das diferenças sociais e econômicas entre seus membros que, reforçadas ao longo dos séculos, fazem com que o bloco tenha atritos internos.
É inegável que o Brasil é o grande motor econômico do acordo, ao possuir economia e produção diversificados e que gozam de certa estabilidade financeira. Quem lhe poderia fazer concorrência, a Argentina, vive uma crise econômica de grave intensidade que estagnou seu sistema produtivo; o Uruguai oscila seu apoio aos dois países, pois necessita muito dos produtos que eles produzem, já que sua economia é basicamente pecuária; na mesma situação se encontra o Paraguai, país mais pobre e dependente do bloco. Nenhuma decisão pode ser tomada sem a participação das quatro nações, e os desníveis de desenvolvimento de cada uma delas, bem como tradicionais rixas políticas, atrapalham a tomada de políticas conjuntas.
Tome-se como exemplo o recente acordo automotivo entre Brasil e Argentina para a construção conjunta de carros. Os argentinos vetaram as primeiras versões do acordo, acusando o Brasil de querer manipular o Mercosul para favorecer a sua produção de peças para carros em detrimento dos outros membros. O que estava implícito na reclamação argentina era a crise da economia local e o inflacionamento da produção: as peças locais saiam mais caras que as brasileiras, o que encareceria o produto final. No final, um acordo definitivo foi assinado, dividindo a produção das peças e os custos de montagem dos carros. Para compensar a crise argentina, quem perdeu foi o Brasil, que arcará com os preços mais caros do parceiro e, conseqüentemente, encarecerá a mercadoria.
Esta, na concorrência com outros mercados, sairá em desvantagem. A América Latina nasceu para poucos desfrutarem da riqueza da terra e do trabalho de muitos. O sangue das "veias abertas" do continente é um manjar que alimenta o crescimento das potências e das elites locais, mas também faz-se veneno que mata a população de sua terra. No entanto, como veremos no próximo tópico, esse continente, mesmo protagonizando uma história trágica e permeada da exploração, elites de interesses limitados e governos repressores, nunca deixou de ter esperanças de mudar. Afinal, a América Latina também protagonizou acontecimentos que tentaram desviar o rumo da história e soam até hoje como esperanças de transformação. São casos como a Revolução Cubana, ocorrida há 40 anos, e a atual guerrilha zapatista no México que ainda permitem o sonho em uma terra melhor.
Como disse Marx, a respeito do processo histórico, são os homens que fazem a história, na sua luta diária pela sobrevivência e pelo bem-estar. Assim, somente a luta do povo latino-americano, após séculos de exploração e pobreza, poderá libertar o continente das amarras que o oprimem, desenvolvê-lo em suas potencialidades e, principalmente, dar-lhe uma cara latino-americana, ou seja, voltada às necessidades de seu povo." ( Texto de: Luiz Fernando B. Belatto )
Fonte: http://www.consciencia.org/forum/index.php?topic=768.0

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