domingo, 29 de junho de 2014

"Brasil forjado na ditadura representa Estado de exceção permanente"

Bia Barbosa
Bia Barbosa
SÃO PAULO - Qual a idéia de "Estado de exceção"? Na interpretação tradicional do termo, trata-se de um momento de suspensão temporária de direitos e garantias constitucionais, decretado pelas autoridades em situações de emergência nacional, ou mediante a instituição de regimes autoritários. Seu oposto seria o Estado de Direito, conduzido por um regime democrático. Na avaliação de professores, filósofos e defensores de direitos humanos, no entanto, a existência de um Estado de exceção dentro do Estado de Direito seria exatamente a característica do Brasil atual, forjada no período da ditadura militar e que, mesmo após a redemocratização do país, não se alterou. Esta foi uma das conclusões do seminário sobre a herança da ditadura brasileira nos dias de hoje, organizado pela Kiwi Companhia de Teatro esta semana, em São Paulo.

Para o filósofo Paulo Arantes, professor aposentado do Departamento de Filosofia da USP, há um país que morreu e renasceu de outra maneira depois da ditadura, e que hoje é indiferente ao abismo que se abriu depois do golpe militar e que nunca mais se fechou.

"Que tipo de Estado e sociedade temos depois do corte feito em 64, do limiar sistêmico construído por coisas que parecem normais numa sociedade de classes, mas que não são? O fato da classe dominante brasileira poder se permitir tudo a partir da ditadura militar é algo análogo à explosão de Hiroshima. Depois que a guerra nuclear começa ela não pode mais ser desinventada. Quando, a partir de 64, a elite brasileira branca se permite molhar a mão de sangue, frequentar e financiar uma câmara de tortura, por mais bárbara que tenha sido a história do Brasil, há uma mudança de qualidade neste momento", avalia Arantes. 

Para o filósofo, o país foi forjado pela ditadura a ponto de hoje nossa sociedade negligenciar tudo aquilo que foi consenso durante o autoritarismo dos militares. "A ditadura não foi imposta. Ela foi desejada. Leiam os jornais publicados logo após 31 de março de 1964. Todos lançaram manifestos de apoio ao golpe, era algo arrebatador. CNBB, ABI, OAB, todo mundo que hoje é advogado do Estado de Direito apoiou. Se criou um mito de que a sociedade foi vítima de um ato de violência, mas a imensa maioria apoiou o golpe", disse Arantes. "E a ditadura se retirou não porque foi derrotada, mas porque conquistou seus objetivos. A abertura de Geisel foi planejada, já tinha dado certo com o milagre econômico. Tanto que seus ideólogos estão aí, como principais conselheiros econômicos da era Lula-Dilma, e que a ordem militar está toda consolidada na Constituição de 88", criticou. 

Na avaliação de Edson Teles, membro da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos do Brasil e professor de filosofia da Unifesp, a Constituição de 1988 foi apenas uma das formas de lançar o Brasil num Estado de exceção permanente, definido por ele quando a própria norma é usada para suspender a ordem; ou quando aquilo que deveria ser a exceção acaba se tornando ou reafirmando a própria norma. 

Para Teles, além de manter a estrutura autoritária militar, o novo ordenamento democrático foi construído sobre o silenciamento dos familiares de vítimas e de movimentos de defesa dos direitos humanos, que queriam justiça para os crimes da ditadura. O problema, no entanto, vinha de antes.

"Em um Congresso controlado pela ditadura, a Lei de Anistia adotou a suspensão da possibilidade de punição de qualquer crime. Um momento ilícito foi tornado lícito, com o silenciamento dos movimentos sociais e pela anistia, que exigiam esclarecimentos sobre os crimes. O que o Estado montou foi algo que manteve a ideia de impunidade. Depois veio o Colégio Eleitoral, que fez uma opção por uma saída negociada entre as oligarquias que saíam e as novas que chegavam, decidindo manter a anista ao crimes da ditadura. Foi o grande acordo do não-esclarecimento", relatou. 

O julgamento no Supremo Tribunal Federal em 2010 sobre a interpretação da Lei de Anistia foi, segundo Teles, o coroamento desse silêncio e a instauração de um Estado de exceçãono país. "Baseada em ideias fantasmagóricas de que novos golpes que poderiam ser dados, nossa transição foi a criação de um discurso hegemônico de legitimação deste Estado de exceção. Faz-se este discurso como forma de legitimar essa memória do consenso, mas se mantem o Estado de exceção permanente, reconhecendo as vítimas sem nomear os crimes", acrescentou. 

Exceção e consenso hoje
O consenso acerca daquilo que deveria ser visto como exceção não se restringe hoje, no entanto, àquilo que pode ser considerado a herança mais direta da ditadura militar. Foi construído também em torno de uma série de acontecimentos e práticas que deveriam mas não mais despertam reações da população brasileira. 

"A exceção se torna perigosíssima quando deixamos de reconhecê-la como tal e ela se torna consenso", alertou o escritor e professor de jornalismo da PUC-SP, José Arbex Jr. "Ninguém achou um escândalo, por exemplo, no lançamento da Comissão da Verdade, ver os últimos Presidentes do país juntos, sendo que um deles foi presidente da Arena, o partido da ditadura, responsável pela tortura da própria Dilma; e o outros era Collor! Da mesma forma, está em curso em Osasco uma operação chamada Comboio da Morte, que matou nas últimas horas 16 pessoas. Isso não causa um escândalo nacional, é normal, natural, porque estamos "na democracia". Os jornais falam da Síria, mas a média de mortes diária no auge do conflito da Síria não chega ao que temos aqui cotidianamente. Lá é 60 aqui é 120! Então não estamos discutindo algo que aconteceu em 64 e que hoje se apresenta de forma mitigada, atenuada", disse Arbex.

Para o jornalista, o país vive um estado de letargia hipnótica coletiva, fabricado de maneira competente e eficiente pelo aparato midiático, que produz um consenso em torno de uma imagem de país na qual todos acabamos acreditando. "É muito grave quando olhamos para o Brasil e não percebemos essa realidade de consenso: de nenhuma garantia de direito para quem esteja fora da Casa Grande, e uma situação de guerra permanente", acrescentou. 

É o que Paulo Arantes chamou de Estado oligárquico de Direito, um Estado dual, com uma face garantista patrimonial, que funciona para o topo da pirâmide, e uma face punitivista para a base. "Esse Estado bifurcado é uma das "n" consequências da remodelagem do país a partir dos 21 anos de ditadura. Basta pensar no que acontece todos os dias no país. Trata-se de um outro consenso, também sinistro e indiferente, senão hostil, a tudo que nos reúne aqui. Um Estado de exceção que não é o velho golpe de Estado, mas um novo modo de governo do capital na presente conjuntura mundial, que já dura 30 anos", afirmou Arantes.

Ninguém cavalga a história 
O que permitiria dizer da possibilidade de se encontrar uma saída deste Estado de exceção permanente é o caráter imprevisível e incontrolável da história. Arbex lembrou que, em setembro de 1989, quando estava em Berlim, ninguém dizia que o Muro cairia menos de dois meses depois. "O fato é que, felizmente, ninguém cavalga a história. Ainda não encontraram uma maneira de domesticá-la. Há um processo latente de explosão social no Brasil, que se combina com processos semelhantes na América Latina, e que pode produzir uma situação totalmente nova. Ninguém previu a Primavera Árabe. Quando um jovem na Tunísia atirou fogo no próprio corpo, ninguém imaginava que, um mês depois, cairia Mubarak no Egito. Estão, não estamos condenamos para sempre a esta situação. Só posso dizer que estamos vivendo numa época que, em alguns aspectos, é mais trágica, mais cruel e mortífera que a ditadura militar", acredita. 

"Este Estado de exceção só terminará quando a ditadura terminar, quando o último algoz for processado e julgado. Se a Comissão da Verdade encontrar dois ou três bons casos e levantar material para ações cíveis, pode haver uma transmutação disso tudo. E o regime, a sociedade e a economia não vão cair se os perpetradores da ditadura forem processados, como não caíram na Argentina ou no Chile", acredita Paulo Arantes. "Mas devemos pensar no que significaria essa última reparação. Se o último torturador e os últimos desaparecidos forem localizados, em que estágio histórico vamos poder entrar?", questionou. Uma pergunta ainda sem resposta.

Fonte: http://www.cartamaior.com.br/

Entre Reparações, Meias Verdades e Impunidade: o Difícil Rompimento com o Legado da Ditadura no Brasil*

Entre Reparações, Meias Verdades e Impunidade: o Difícil Rompimento com o Legado da Ditadura no Brasil*

GLENDA MEZAROBBA
Glenda Mezarobba é cientista política especialista em justiça de transição, atualmente trabalha com políticas públicas de Direitos Humanos em seu pós-doutorado na UNICAMP. No INEU, é coordenadora executiva de grupo de pesquisa sobre a guerra contra o terror e a agenda de ONGs internacionais de promoção dos direitos humanos, nos governos Bush e Obama.
Email: gmez@uol.com.br
Assim como outros países da região, na segunda metade do século passado o Brasil também foi governado por militares que usurparam o poder e operavam dentro de uma estrutura ideológica compartilhada, da doutrina de “Segurança Nacional”, no cenário internacional da Guerra Fria. Constituída para eliminar a subversão interna de esquerda, restabelecer a “ordem” em seu território, e estruturada de forma a disseminar o medo e desmobilizar a sociedade, a ditadura brasileira classificava de inimigos do Estado todos aqueles que se opunham às suas idéias. Com o objetivo declarado de livrar o país da ameaça comunista e da corrupção, no Brasil a ditadura passou por pelo menos três fases distintas e valeu-se, entre outros expedientes, dos chamados Atos Institucionais (AI) para exercer o poder. Também fez uso dos mais diversos métodos para punir e perseguir aqueles que considerava seus opositores , e de instrumentos excepcionais que reduziram ou suprimiram o direito de defesa dos acusados de crimes cometidos contra a segurança nacional. Entre as penas adotadas com mais freqüência estavam o exílio, a suspensão de direitos políticos, a perda de mandato político ou de cargo público, a demissão ou perda de mandato sindical, a perda de vaga em escola pública ou a expulsão em escola particular e a prisão. Assim como a prática de detenções arbitrárias, também eram constantes o uso da tortura, os seqüestros, estupros e assassinatos. E embora formalmente não pudesse ser considerada punição, na prática a inclusão dos nomes de opositores do regime, nos arquivos dos órgãos da repressão, funcionava como tal ( DALLARI, 197? ). Havia também a pena de morte. Estabelecida pelo AI-14, oficialmente ela nunca foi utilizada. Para eliminar seus adversários, o governo optou por execuções sumárias ou no decorrer de sessões de torturas, sempre às escuras ( FAUSTO, p. 481 ).
1 As fases da ditadura
A primeira fase da ditadura brasileira pode ser situada entre o golpe de Estado, quando, em abril de 1964, o autodenominado Comando Supremo da Revolução editou o AI-1 estabelecendo o estado de exceção no país, e a consolidação do regime imposto pelos militares. Baixado pelos comandantes das três Armas, tal ato formalmente manteve, depois de várias modificações, a Constituição de 1946, mas ampliou substantivamente os poderes do Executivo. Ao contrário de outros países da região, o Congresso Nacional seguiu funcionando, ainda que de forma cerceada – o Parlamento tinha, por exemplo, prazos bastante estritos para apreciar os projetos de lei encaminhados pelo presidente da República, que precisava de apenas um mês para aprová-los, em qualquer uma das Casas. O AI-1 suspendeu por seis meses as garantias constitucionais de vitaliciedade e estabilidade, permitindo, assim, “mediante investigação sumária”, que fossem demitidos ou dispensados servidores civis ou militares. Estima-se que inicialmente 10 mil funcionários públicos foram afastados e 5 mil investigações, envolvendo mais de 40 mil pessoas, abertas. Em seu art. 10º, o ato também autorizava a suspensão dos direitos políticos e a cassação de mandato eletivo. No primeiro ciclo punitivo, cuja lista inicial continha uma centena de nomes, entre eles os do ex-presidente João Goulart, e de políticos como Leonel Brizola, Miguel Arraes e Celso Furtado, foram cassados 2.985 cidadãos brasileiros. Além disso, logo após o golpe, navios foram transformados em presídios, vinte generais e 102 oficiais foram rapidamente transferidos para a reserva, o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) foi fechado, todas as demais entidades de coordenação sindical e centenas de sindicatos, colocados sob intervenção, e as Ligas Camponesas foram extintas. Também deixaram de funcionar a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES). Só nos primeiros meses de arbítrio estima-se que 50 mil pessoas tenham sido detidas. Com o AI-2 as eleições presidenciais passaram a ser indiretas, extinguiram-se os partidos políticos e foram punidas outras 305 pessoas. Na terceira onda repressiva, 1.583 cidadãos perderam seus direitos políticos ( ARNS, 1985, p. 61-68; MARTINS, 1978, p. 119-122, 127; GRECO, 2003, p. 266; BRASIL, 2007a, p. 30. UNIÃO ESTADUAL DOS ESTUDANTES, 1979, p. 3). O AI-3, em fevereiro de 1966, ampliou os poderes das Assembléias Legislativas que, além de nomear os governadores de Estado, também passaram a indicar os prefeitos das capitais e de outras cidades classificadas como de “segurança nacional” ( GREEN, 2009, p. 97).
A segunda fase da ditadura teve início em dezembro de 1968, com o AI-5, que concedeu ao Presidente da República poderes para fechar provisoriamente o Congresso Nacional, intervir nos estados e suspender direitos individuais e a garantia ao habeas corpus . No chamado “golpe dentro do golpe”, o ex-presidente Juscelino Kubitschek e o ex-governador Carlos Lacerda chegaram a ser detidos e foram cassados os direitos políticos não apenas de integrantes do MDB, o partido de oposição ao governo, como da Arena, agremiação que dava sustentação aos militares. Foi o período onde a repressão atingiu seu grau mais elevado, com forte censura à imprensa e ações punitivas em universidades. Enquanto governaram o país, e ao contrário de ditaduras como a chilena, por exemplo, no Brasil os generais se revezaram no cargo de presidente, simulando uma espécie de alternância de poder, em processos sucessórios dos quais participavam apenas seus próprios pares.
Em 1974, com a posse do general Ernesto Geisel, na presidência, começou a terceira fase, que ficaria marcada pela lenta abertura política que se estenderia até o fim do regime de arbítrio ( GREEN, 2009, p. 98, 142, 184 ). A partir de 1978, os banimentos políticos começaram a ser revogados e o Ministério das Relações Exteriores passou a facilitar a concessão de passaportes e títulos de nacionalidade a brasileiros que viviam fora do país por motivos políticos ( SOARES; D’ARAUJO; CASTRO, 1995, p. 308 ). A censura arrefeceu e a comunidade de segurança e informações teve suas atividades limitadas. Depois de dez anos, o AI-5 deixou de vigorar no país.
Marcada pela inexistência de Estado de Direito e, portanto, pelo constante desrespeito a princípios jurídicos fundamentais e pela ampla margem de arbítrio de que dispunham as autoridades policiais, a realidade imposta pela doutrina de “Segurança Nacional” contava com a ajuda da Justiça Militar para manter-se. Como “fundamento legal” para os abusos praticados havia o Código Penal Militar, o Código de Processo Penal Militar e a Lei de Organização Judiciária Militar. Decretados em 1969, “regularizavam” os chamados órgãos de segurança, convertendo-os em autoridade competente para ordenar e executar a prisão de qualquer pessoa, redefiniam os crimes contra a segurança nacional e atribuíam à Justiça Militar o julgamento de crimes a ela relacionados como, por exemplo, o de assalto a bancos ( BRASIL, 1982, v. 2, p. 524; D’ARAUJO; SOARES; CASTRO, 1994, p. 19 ). Promulgado no mesmo ano, outro instrumento do arbítrio era a Lei de Segurança Nacional (LSN), a aplicação prática dos postulados da doutrina homônima ( INSTITUTO INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS, 1991, p. 44 ). Para controlar e/ou reprimir a sociedade, o governo valia-se do aparato formado pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), dos Centros de Informação do Exército (CIEX), Marinha (CENIMAR) e Aeronáutica (CISA) e dos Destacamentos de Operações e Informações e Centros de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI). Em São Paulo, vinculada ao II Exército, para atuar na repressão havia ainda a Operação Bandeirantes (OBAN). Para enfrentar o jugo militar, com o recrudescimento da ditadura algumas organizações de esquerda optaram pela luta armada ( BRASIL, 2007a, p. 24 ).
Durante todo o regime, calcula-se que dez mil cidadãos brasileiros deixaram o país para viver no exílio – pelo menos 130 foram banidos. Até o ano de 1979, dados do projeto Brasil: nunca maisindicam que 7.367 pessoas foram acusadas judicialmente e 10.034 atingidas na fase de inquérito, 6.592 militares foram punidos e pelo menos 245 estudantes foram expulsos das universidades em que estudavam ( ARNS, 1985, p. 61-68; MARTINS, 1978, p. 119-122, 127; GRECO, 2003, p. 266; BRASIL, 2007a, p. 30 ). Os sucessivos atos institucionais e as disseminadas perseguições levaram a União dos Estudantes do Estado de São Paulo a estimar, no final dos anos 70, em mais de meio milhão o número de pessoas presas, banidas, exiladas, cassadas, aposentadas, processadas ou indiciadas pelo arbítrio ( UNIÃO ESTADUAL DOS ESTUDANTES, 1979, p. 3 ). No livro Liberdade para os brasileiros: anistia ontem e hoje , publicado em 1978, Roberto Ribeiro Martins foi mais longe. Calculou em mais de um milhão o número de brasileiros que necessitavam diretamente de anistia. “O que vale dizer, em cada cem brasileiros pelo menos um precisa de anistia”, escreveu, na época ( MARTINS, 1978, p. 152 ).
2 A luta por anistia
Diferentemente do observado em outros países da região, no Brasil a anistia aos perseguidos políticos não foi apenas bastante desejada, como constantemente reivindicada, desde o início da ditadura. Na realidade, uma verdadeira luta por anistia começou a ser travada quinze anos antes da promulgação da lei, por uns poucos expoentes do meio político e intelectual, e teve uma trajetória ascendente dentro da sociedade, ao final envolvendo boa parte dos brasileiros. No final da década de 70, nas ruas e nos campos de futebol, por exemplo, era possível ver cartazes e faixas defendendo a adoção do expediente. Carros também exibiam adesivos plásticos nos vidros, panfletos eram distribuídos nas esquinas e comícios buscavam sensibilizar a opinião pública a respeito do assunto. Reclamada em um contexto de retomada da democracia, da volta do Estado de Direito e de reconhecimento e defesa dos direitos humanos, a luta por anistia contou com o apoio de personalidades e grupos internacionais, mas essa pressão externa, exercida junto ao governo, não repercutiu da forma esperada, embora tenha conseguido resultados expressivos na divulgação internacional dos horrores do arbítrio.
Assim, foi em um contexto de abertura política, quando já pesava sobre o Estado brasileiro a responsabilização pela morte, sob tortura, do jornalista Vladimir Herzog, e o pluripartidarismo interessava ao regime militar, que o governo começou efetivamente a pensar em anistia. Em junho de 1979 um projeto de lei, nesse sentido, foi enviado ao Congresso pelo então presidente da República, general João Baptista Figueiredo. Durante sua tramitação no Parlamento praticamente não houve troca de idéias com a sociedade, tampouco com os potenciais beneficiários da legislação, embora os Comitês Brasileiros de Anistia estivessem mobilizados pelo fim das torturas e a elucidação dos casos de desaparecimento e não admitissem a hipótese de que a lei pudesse beneficiar os “algozes” das vítimas do regime.
Aprovada em agosto de 1979, a Lei n. 6.683, ou Lei da Anistia1, ficou longe de associar-se aos objetivos que envolviam seu movimento reivindicatório e sequer atendeu as principais reclamações dos perseguidos políticos. Foram excluídas do escopo da legislação determinadas manifestações de oposição ao regime, classificadas como terrorismo e práticas enquadradas em atos de exceção, como os crimes de sangue, e contemplados apenas aqueles indivíduos que não haviam sido condenados previamente pela ditadura, que ainda duraria mais quase seis anos. Ou seja,
embora de grande significado no processo de democratização do país, a lei 6.683 se deu basicamente nos termos que o governo queria, mostrou-se mais eficaz aos integrantes do aparato de repressão do que aos perseguidos políticos e não foi capaz de encerrar a escalada de atrocidades iniciada com o golpe de 1964. Em outras palavras, a Lei da Anistia ficou restrita aos limites estabelecidos pelo regime militar e às circunstâncias de sua época. [...]. Dessa forma, naquele primeiro momento, em 1979, pode-se dizer que a anistia significou uma tentativa de restabelecimento das relações entre militares e opositores do regime que haviam sido cassados, banidos, estavam presos ou exilados. A legislação continha a idéia de apaziguamento, de harmonização de divergências e, ao permitir a superação de um impasse, acabou por adquirir um significado de conciliação pragmática, capaz de contribuir com a transição para o regime democrático(MEZAROBBA, 2006, p. 146-147).
3 O início do processo de acerto de contas
A despeito da intenção dos militares, de encerrar a questão em torno das violações de direitos humanos do período, começava, assim, de maneira bastante peculiar, o processo de acerto de contas do Estado brasileiro com as vítimas da ditadura e a sociedade. Como a Lei da Anistia não foi capaz de atender as principais reivindicações dos perseguidos políticos e dos familiares das vítimas fatais do regime (o art. 6 da lei, por exemplo, permitia apenas que o cônjuge, um parente ou o Ministério Público requeressem uma declaração de ausência da pessoa que, envolvida em atividades políticas, estivesse desaparecida de seu domicílio, sem dar notícias há mais de um ano, considerando-se a data de vigência da própria lei), o tema naturalmente continuou em aberto durante todo o período de distensão.
No Brasil, como se sabe, a transição democrática levou anos, foi negociada desde o início e definida em uma espécie de “acordo” entre as elites, que
[...] pode ser resumido como um compromisso dos militares de se retirarem gradualmente da política, retraindo-se até o ponto de seu papel político do início da República: a de garantidores, em última instância, da ordem pública, ou seja, da estabilidade das instituições políticas republicanas. Por sua vez, as elites civis aceitariam os termos da avaliação feita pelos militares a respeito do período pós-64: tratou-se de um período excepcional, em que os militares intervieram na política para “salvar” as instituições republicanas, no qual houve ações “excessivas” cometidas de parte a parte (leia-se dos militares e dos militantes de esquerda). Para o encerramento desse período, deveria haver o “perdão recíproco”, sem a apuração das violações, nem mesmo com o objetivo humanitário de fornecer às vítimas e seus familiares relatos para que pudessem conhecer e elaborar a memória daqueles acontecimentos ou para recuperar os corpos das pessoas mortas ou desaparecidas. Esse limite tinha o evidente objetivo de evitar que fossem levantadas informações sobre os agentes das violações [...] (IBCCRIM; SABADELL; ESPINOZA MAVILLA, 2003, p. 108-109).
Além disso, os militares deixaram o poder sem a realização de eleições diretas para presidente, o que não contribuiu para o debate em torno do tratamento a ser dado ao legado de violações em massa de direitos humanos, acumulado ao longo dos 21 anos de duração da ditadura. Como se isso não bastasse, Tancredo Neves, o civil que deveria suceder ao general Figueiredo, escolhido indiretamente pelo Colégio Eleitoral, morreu antes de tomar posse no cargo de presidente da República. Coube a seu vice, o senador José Sarney, da Arena, partido de sustentação da ditadura militar, assumir o poder, em 1985.
De acordo com Sarney, a questão das vítimas da ditadura preocupava Tancredo Neves: “[...] mas, com certeza (ele) não teria como se comprometer com posições mais radicais quanto ao tema. Ele temia muito um retrocesso.” Segundo o ex-presidente, que ficou no cargo entre 1985 e 1990, apesar de ser “um homem de entendimento, de conciliação”, Tancredo Neves sabia da “delicadeza da situação e de suas responsabilidades” e conhecia as resistências da chamada “linha dura” do regime:
Sabia que deveria fazer a transição com os militares e não contra eles. Se fizesse “compromissos” mais enfáticos quanto ao tema das vítimas do regime, poderia comprometer todo o processo. Para ilustrar esse sentimento, é bom não se esquecer que ele temia até mesmo a convocação da Constituinte e a legalização dos partidos clandestinos. Não estava nos planos dele. Como eu não estava amarrado às complexas negociações e aos compromissos que Tancredo teve que fazer com a área militar, ao assumir a Presidência eu pude legalizar o PC do B e convocar a Constituinte. Pude concluir a anistia, libertando os últimos presos políticos, medida que beneficiou, por exemplo, os penalizados da Petrobras. É claro que houve resistência dos militares. 2
Sarney diz que a questão envolvendo a localização dos corpos das vítimas fatais da ditadura não avançou em seu governo porque aquele “não era um assunto da agenda política”. “Por outro lado, seria muito imprudente naquele momento. A Lei de Anistia, como foi negociada e aprovada, foi a possível naquele contexto. Sem ela, poderíamos ter tomado outros rumos mais conflituosos.” 3 Tem-se claro, portanto, que a transição brasileira foi promovida de modo a evitar que o que hoje se convencionou designar de mecanismos de justiça de transição pudessem ser adotados no início da gestão civil.
4 O reconhecimento da responsabilidade do Estado
Não foram poucos os esforços no sentido de ampliar a Lei da Anistia, inclusive durante o regime militar, mas os primeiros avanços no processo de acerto de contas só começaram a acontecer à medida que os militares foram perdendo poder e simultaneamente ao fortalecimento da democracia e a incorporação da temática dos direitos humanos na agenda nacional. Foi dessa forma que, em dezembro 1995, o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), ele próprio um anistiado político, sancionou a Lei n. 9.140 ou Lei dos Desaparecidos 4, reconhecendo como mortos 136 desaparecidos políticos cujos nomes estavam relacionados em seu anexo I. No Brasil, havia registro de casos de desaparecimento desde 1964, mas a prática só se tornaria emblemática do período de terror cinco anos depois, em setembro de 1969, com a prisão de Virgílio Gomes da Silva, um militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) que sumiu depois de ter sido levado, algemado e encapuzado, à sede da Operação Bandeirantes (OBAN), em São Paulo ( MIRANDA; TIBÚRCIO, 1999, p. 38-39 ). Com a aprovação da Lei n. 9.140 foi a primeira vez, no Brasil, que se admitiu, independentemente de sentença judicial, a responsabilidade objetiva do Estado pela atuação ilícita de seus agentes de segurança. Embora a Lei dos Desaparecidos enuncie que a aplicação de suas disposições e todos os seus efeitos serão orientados pelo princípio de reconciliação e pacificação nacional expressos na Lei da Anistia, com esse ato legal, como observam Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio, o Estado brasileiro assumiu a responsabilidade geral pelas violações de direitos humanos cometidas durante o regime militar, como seqüestros, prisões, torturas, desaparecimentos forçados e assassinatos, inclusive contra estrangeiros que residiam no país (da lista, constam os nomes de quatro desaparecidos políticos que não são brasileiros). A partir daí, os familiares passaram a ter o direito de requerer os atestados de óbito dos desaparecidos e a receber indenizações. Com a entrada em vigor da lei, uma comissão também foi criada para analisar as denúncias de outras mortes, ocorridas por motivação política e envolvendo causas não naturais, “em dependências policiais ou assemelhadas”.
Apesar de reconhecer a importância da iniciativa do governo, em elaborar um projeto de lei para tratar da questão dos mortos e desaparecidos políticos, os familiares das vítimas fatais do regime militar não conseguiram validá-la na íntegra, entre outros motivos, pelo fato de a iniciativa desobrigar o Estado de identificar e responsabilizar os que estiveram diretamente envolvidos na prática de tortura, com as mortes e desaparecimentos, e pelo ônus da prova ter sido deixado aos próprios parentes. Os familiares também não concordaram com a argumentação do governo, de atribuir aos limites impostos pela Lei da Anistia, a impossibilidade de se examinar as circunstâncias das mortes. E questionavam a exigência de apresentação do requerimento de reconhecimento da responsabilidade do Estado exclusivamente por eles mesmos, limitando a questão à esfera doméstica, e não como um direito da sociedade. Durante toda a ditadura, e depois, na redemocratização, familiares de mortos e desaparecidos políticos seguiram lutando para que houvesse justiça, mas suas demandas pautavam-se principalmente pelo conhecimento da verdade (a revelação das condições em torno dos crimes), a apuração das responsabilidades dos envolvidos e a localização e identificação dos despojos das vítimas. O pagamento de reparações jamais figurou entre as prioridades reivindicadas. Mesmo assim, ao término de onze anos de atividades, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) havia desembolsado cerca de 40 milhões de reais aos familiares de mais de três centenas de vítimas fatais do regime militar – 475 casos passaram pela comissão; o valor médio de cada indenização foi de 120 mil reais (cerca de 120 mil dólares em valores da época da aprovação da lei).
Além do pagamento de indenizações, com a finalidade de constituir um banco de dados de perfis genéticos, capaz de assegurar a certeza científica na identificação de ossadas já separadas para exames e em despojos que eventualmente venham a ser localizados, em setembro de 2006 a CEMDP iniciou a coleta de amostras de sangue de familiares de mais de uma centena de vítimas fatais do período. Ainda são mais de 140 os desaparecidos políticos da ditadura brasileira. A comissão também segue trabalhando na sistematização de informações sobre a possível localização de covas clandestinas em grandes cidades e em áreas prováveis de sepultamento de militantes, na zona rural, sobretudo na região do rio Araguaia.
5 O pagamento de reparação aos perseguidos políticos
Ao contrário dos familiares das vítimas fatais do regime militar, os perseguidos políticos sempre estiveram às voltas com o aspecto financeiro da questão. Embora a Lei da Anistia previsse, em seu art. 2, que “os servidores civis e militares demitidos, postos em disponibilidade, aposentados, transferidos para a reserva ou reformados” poderiam requerer o retorno ou reversão ao serviço antigo, na prática não foi exatamente isso que aconteceu, com a entrada em vigor da legislação. Depois de solicitar a anistia, os perseguidos tinham de pedir reversão ao serviço ativo e submeter-se a análise médica (que precisava ser compatível com o último exame da época anterior à punição). Para que fossem eventualmente reconduzidos aos seus cargos, não bastava existir vaga. Era preciso que houvesse interesse público na reintegração do perseguido político anistiado. Provavelmente vislumbrando as dificuldades que se avizinhavam, antes mesmo da aprovação da lei já era possível observar certa preocupação com os direitos usurpados dessas vítimas, especialmente nas propostas enviadas ao Congresso Nacional, sobretudo aquelas que tratavam de casos envolvendo servidores civis e militares que haviam perdido seus postos de trabalho. Enquanto esteve tramitando, o próprio projeto de anistia do governo recebeu inúmeras propostas de emendas concedendo algum tipo de indenização aos perseguidos políticos. Nenhum delas prosperou. Ao ser sancionada em 1979, a Lei da Anistia vetou qualquer possibilidade de reparação. Em seu art. 11, talvez o formulado com mais clareza entre todos aqueles que integram a Lei n. 6.683, a proibição é explícita: “Esta Lei, além dos direitos nela expressos, não gera quaisquer outros, inclusive aqueles relativos a vencimentos, saldos, salários, proventos, restituições, atrasados, indenizações, promoções ou ressarcimentos.”
Depois de anos envolvidos com portarias e circulares que, de forma pouco sistematizada, regulavam seus vencimentos, foi só com a entrada em vigor da Lei n. 8.213, em julho de 1991, que os anistiados passaram a ter direito a uma aposentadoria excepcional. Na ocasião, não eram poucos os processos que aguardavam, nos tribunais, a concessão da anistia negada pela administração pública. A situação ainda iria piorar antes de o terceiro momento do processo de acerto de contas, entre o Estado e as vítimas do regime militar, começar a ser definido. Foi só em 1996, um ano depois de promulgada a Lei dos Desaparecidos, que ex-perseguidos políticos, reunidos em distintas entidades, de todas as regiões do país, decidiram unificar o discurso. Passados cinco anos de trabalho ordenado, em 2001 eles conseguiram que o governo Fernando Henrique Cardoso enviasse ao Congresso Nacional medida provisória para reduzir as perdas dos que foram impedidos de exercer suas atividades por causa da perseguição política sofrida durante o arbítrio. A entrada em vigor da Lei n. 10.559 5 e a instalação da Comissão de Anistia, no Ministério da Justiça, conseguiram, mais uma vez, ampliar o processo de acerto de contas – com a capacidade de o Estado em reparar economicamente ex-perseguidos políticos que a Lei n. 6.683 não havia conseguido reabilitar, compensando os danos causados a milhares de pessoas pelo uso discricionário do poder, embora isso não tenha necessariamente relação com o sofrimento vivido pela vítima.
Organizada em cinco capítulos, na lei (que foi considerada bastante satisfatória pelos perseguidos políticos) estão assegurados os seguintes direitos do anistiado: à declaração da condição de anistiado político; à reparação econômica; a contagem, para todos os efeitos, do tempo em que foi obrigado a afastar-se de suas atividades profissionais, devido a punição ou ameaça de punição; à conclusão de curso interrompido por punição ou ao registro de diploma obtido em instituição de ensino fora do país e o direito à reintegração dos servidores públicos civis e dos empregados públicos punidos. Em seu parágrafo único, a legislação garante aos que foram afastados em processos administrativos, instalados com base na legislação de exceção, sem direito ao contraditório e à própria defesa, e impedidos de conhecer os motivos e fundamentos da decisão, a reintegração aos seus cargos (devido à idade dos requerentes, na prática essa reintegração tem ocorrido na inatividade). A lei também explicita de forma minuciosa todos os tipos de punição que permitem às vítimas o reconhecimento da condição de anistiado político e diz que a reparação econômica, prevista em seu capítulo III, pode se dar de duas formas distintas: em prestação única, que consiste no pagamento de trinta salários mínimos por ano de punição aos que não têm como provar vínculos com a atividade laboral e cujo valor, em nenhuma hipótese pode exceder cem mil reais; e em prestação mensal, permanente e continuada, garantida a aqueles que conseguirem demonstrar seus vínculos de trabalho. De acordo com a lei, todo perseguido político tem direito a receber os valores atrasados até cinco anos antes da data em que ingressou com o requerimento solicitando a anistia.
Desde que começou a funcionar, em Brasília, a Comissão de Anistia, destinada a analisar os pedidos de anistia política e de indenização, formulados por aqueles que foram impedidos de exercer atividades econômicas por motivação exclusivamente política, recebeu mais de 80 mil requerimentos. Dados de janeiro de 2011 indicam que a comissão já julgou 66.400 processos. Dentro desse universo, deferiu mais de 35 mil e indeferiu o restante. Entre os pedidos deferidos, mais da metade foram concedidos sem nenhum tipo de reparação econômica ( BRASIL, 2009a ). Balanço realizado no primeiro semestre de 2010, indicava que o governo desembolsou R$ 2,4 bilhões no pagamento de reparações a essas vítimas – em alguns casos, a reparação de um único perseguido político ultrapassa a casa de um milhão de reais ( LUIZ, 2011 ). Em todos os casos despachados favoravelmente, o reconhecimento da condição de “anistiado político” é formalizado da mesma maneira que ocorria durante a ditadura, ou seja, com a publicação do nome de cada “anistiado político” no Diário Oficial da União.
6 O desinteresse da sociedade e a mudança de significado político
Se a luta por anistia envolveu grande parte da sociedade, não se pode dizer o mesmo das reivindicações em torno das obrigações do Estado democrático e dos direitos das vítimas do regime militar, que não conseguiram mobilizar – e sequer parecem interessar – a maior parte dos brasileiros. Em relação ao principal objetivo almejado pela anistia em 1979, o de esquecimento dos “excessos” cometidos durante o regime militar, a realidade indica que, por motivos distintos, os desdobramentos se deram de forma muito parecida entre aqueles que estiveram diretamente envolvidos na questão:
Permanentemente assombrados pela possibilidade de reconstituição do passado, os militares continuam se mostrando os mais interessados em não lembrar os abusos ocorridos a partir de 1964, evidenciando que ainda hoje não lhes foi possível esquecer. Da mesma forma, a duradoura necessidade de recordar, movida por reivindicações nunca atendidas, verdades desconhecidas e pelo desejo de que aquele sofrimento não mais se repita, tem oposto as vítimas do arbítrio e seus familiares à possibilidade de olvidar. Desprendida do debate segue, alheia, a sociedade. Parece ser a única que, de fato, conseguiu construir o esquecimento (MEZAROBBA, 2006, p. 150-151).
Assim, mantido o caráter inicial de conciliação, explícito na Lei da Anistia e reiterado nas duas leis subseqüentes, novos significados políticos foram conferidos ao processo de acerto de contas. Isso fica evidente na observação dos três momentos principais desse processo, orientado basicamente por legislação federal (a Lei da Anistia, de 1979; a Lei dos Desaparecidos, de 1995; e a Lei n. 10.559, de 2002): “De seu caráter inicial de conciliação pragmática, observa-se que anistia viu seu significado evolver para o reconhecimento da responsabilidade do Estado em graves violações de direitos humanos e depois para a reparação econômica das perdas sofridas por ex-perseguidos políticos” ( MEZAROBBA, 2006, p. 150 ). Pelo que foi sintetizado até aqui, tem-se claro, portanto, que o caminho percorrido pelo Estado brasileiro evidencia que o investimento principal foi feito em justiça na esfera administrativa, a partir da criação das duas comissões, e voltado, sobretudo, à compensação financeira. E que as iniciativas tiveram origem no Poder Executivo e se desenvolveram com o apoio do Legislativo. Em relação ao dever de identificar, processar e punir violadores de direitos humanos, muito pouco foi feito até agora, explicitando a quase completa ausência do Judiciário no processo nacional de acerto de contas.
7 A ausência de punição
O primeiro caso de que se tem notícia, de aplicação da Lei da Anistia para impedir a punição de um desses criminosos da ditadura, ocorreu em abril de 1980, quando tramitava no Superior Tribunal Militar (STM) um pedido de punição a três torturadores que haviam deixado cego um preso político, quatro anos antes. O pedido foi julgado improcedente, apesar da violência praticada contra o preso ter sido comprovada nos autos e reconhecida na sentença da auditoria militar e do próprio tribunal. Ainda que nenhum perpetrador tenha sido, até hoje, condenado pelos crimes cometidos durante a ditadura, em diversas oportunidades o Estado brasileiro já foi responsabilizado judicialmente pela prisão, tortura, morte ou desaparecimento de perseguidos políticos. A primeira vez foi em 1978, no caso envolvendo a prisão ilegal do jornalista Herzog. Por não zelar por sua integridade física e moral, a União foi condenada a indenizar sua viúva e filhos, pelos danos materiais e morais decorrentes de sua morte. Outras sentenças na mesma linha foram ditadas posteriormente pelo Judiciário. Todas reconhecendo a responsabilidade civil do Estado. Nunca a responsabilidade criminal de seus agentes. Na verdade, os tribunais brasileiros tiveram pouco trabalho envolvendo responsabilidade criminal. Até onde se tem conhecimento, foram raríssimas as ações testando os limites da anistia, encaminhadas ao Judiciário, evidenciando não apenas a pouca crença das vítimas e seus familiares no sistema legal, mas como a noção de esquecimento e impunidade, articulada pelos militares, conseguiu aprisionar os atingidos pela violência do período. Sem dúvida alguma, contribuíram para essa realidade algumas peculiaridades institucionais como o fato de, no Brasil, tortura e homicídio serem considerados crimes de iniciativa pública, cabendo ao Ministério Público a prerrogativa de iniciar tais ações penais.
Em junho de 2008, uma tentativa de punição de crimes da ditadura começou a ser desenvolvida pelo Ministério Público Federal quando um procurador da República da cidade de Uruguaiana, no sul do país, requisitou à Polícia Federal a abertura de inquérito para apurar o seqüestro e desaparecimento de um militante de esquerda ítalo-argentino e de um padre argentino, em 1980, na fronteira do Brasil com a Argentina, e o suposto envolvimento de agentes, civis e militares, da ditadura. Os crimes teriam sido cometidos dentro da Operação Condor e há anos vêm sendo investigados pela Justiça italiana, que já indiciou mais de uma dezena de integrantes do aparato repressivo brasileiro e cobra o julgamento dos acusados. O caso segue em andamento. Logo depois, no mês de outubro, o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra foi considerado responsável pela prática de seqüestro e tortura durante o regime militar, em uma ação movida por cinco integrantes da família Telles. Foi o primeiro reconhecimento oficial, do Estado brasileiro, de que um militar de alta patente teve participação efetiva em ações de suplício contra civis. Tramitando na esfera cível, a ação, de caráter meramente declaratório, buscava o reconhecimento da ocorrência de tortura e, portanto, da existência de danos morais e à integridade física das vítimas, mas não implica em pena ou indenização pecuniária. A decisão foi dada em primeira instância, e ainda cabem recursos.
Praticamente não questionada, ao longo de todos esses anos, em tribunais de primeira instância, a Lei da Anistia terminou os anos 2000 sendo colocada à prova não apenas em uma, mas em duas (altas) Cortes jurídicas: o Supremo Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Na esfera nacional tudo começou no segundo semestre de 2008, quando a Ordem dos Advogados do Brasil protocolou um pedido formal, ao Supremo Tribunal Federal, questionando a validade da anistia para os agentes do Estado que, durante a ditadura, violaram direitos humanos. No documento, a entidade pedia ao Supremo uma interpretação mais clara do art. 1º da lei, de forma que a anistia concedida aos autores dos chamados crimes políticos e conexos não se estendesse a agentes públicos acusados de crimes comuns como estupro, desaparecimento forçado e homicídio. Valendo-se de argumentos supostamente históricos, o relator do processo, ministro Eros Grau, alegou que não caberia ao Poder Judiciário rever o acordo político que resultou na anistia. Seis ministros acompanharam seu voto; outros dois se posicionaram contra tal interpretação. A decisão foi duramente criticada por organizações de direitos humanos, dentro e fora do país.
Em março de 2009, foi a vez da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos, apresentar demanda contra o Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso referente à Guerrilha do Araguaia. Desde a ditadura, parentes das vítimas reclamavam acesso aos registros da repressão contra o movimento. Em 1982, vários familiares ingressaram na Justiça com uma ação de responsabilidade contra o Estado brasileiro, para que fossem esclarecidas as circunstâncias em que se deram as mortes desses opositores do regime e localizados seus restos mortais. Esgotados os recursos internos disponíveis, em 2001 familiares decidiram recorrer à CIDH, para onde encaminharam petição. Na demanda, a comissão solicitava à corte que determinasse a responsabilidade internacional do Estado brasileiro, pelo descumprimento de diversas obrigações, dentre elas o direito à integridade pessoal e o direito à vida. Na introdução à demanda, a comissão observava a possibilidade da corte afirmar a incompatibilidade da Lei de Anistia com a Convenção Americana de Direitos Humanos, no que se refere a graves violações de direitos humanos. No dia 14 de dezembro de 2010 a Corte tornou pública a sentença sobre o caso, declarando o país responsável pelo desaparecimento forçado de 62 pessoas, ocorrido entre 1972 e 1974, na região do rio Araguaia. Com base no direito internacional e em sua própria jurisprudência, a Corte concluiu que as disposições da Lei da Anistia que impediriam a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana e carecem de efeitos jurídicos, não podendo continuar representando um obstáculo para a investigação dos fatos, nem para a identificação e punição dos responsáveis. Apesar de reconhecer e avaliar positivamente iniciativas e medidas de reparação adotadas pelo Brasil, a Corte determinou, entre outras coisas, que o Estado não apenas revele a verdade acerca dos crimes, mas também investigue penalmente os fatos. 6
8 O dever de revelar a verdade
Além de não atender a seu dever de justiça, a incompletude do processo de acerto de contas do Estado brasileiro, com as vítimas da ditadura militar, também diz respeito ao dever de revelar a verdade, só recentemente contemplado de maneira mais substantiva, ainda que não plenamente. Como se sabe, no Brasil nunca foi instalada uma comissão de verdade, para tratar das violações de direitos humanos do período. Durante mais de duas décadas, o principal esforço nesse sentido esteve limitado ao desenvolvimento de uma única iniciativa não oficial: o projeto Brasil: nunca mais , levado a termo por um grupo de defensores de direitos humanos, sob a liderança do então cardeal arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, e do reverendo Jaime Wright e os auspícios do Conselho Mundial de Igrejas. O projeto começou a ser executado logo após a aprovação da Lei n. 6.683, em 1979, quando advogados de presos e exilados políticos puderam ter acesso aos arquivos do STM, para preparar petições de anistia em nome de seus clientes. Para garantir um registro duradouro do terror praticado pelo Estado, tais defensores colocaram em prática a idéia de fotocopiar o maior número possível de processos do tribunal. Três anos depois de iniciados os trabalhos, praticamente o arquivo inteiro havia sido reproduzido. Foram catalogadas mais de um milhão de páginas, cópias da quase totalidade dos processos políticos (707 completos e dezenas de outros incompletos) que transitaram pela Justiça Militar entre abril de 1964 e março de 1979 ( ARNS, 1985, p. 22 ). Lançado em julho de 1985, pela Arquidiocese de São Paulo, o livro Brasil: nunca mais , que rapidamente chegou a 20 edições e entrou para a lista dos mais vendidos em toda a história do país, trata do sistema repressivo, da subversão do Direito e das diferentes formas de tortura a que os presos políticos foram submetidos durante a ditadura.
A primeira iniciativa oficial de se efetivamente revelar as arbitrariedades do período só adquiriu contornos delineados em 2007, durante o segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ele também um anistiado político, com o lançamento do livro-relatório Direito à memória e à verdade , resultado de onze anos de atividades da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Primeiro documento oficial do Estado brasileiro a atribuir a integrantes das forças de segurança crimes como tortura, estupro, esquartejamento, decapitação, ocultação de cadáveres e assassinato de opositores do regime militar que já estavam presos e, portanto, impossibilitados de reagir, a obra de aproximadamente 500 páginas reconstitui a trajetória da comissão e vinha sendo aguardada desde pelo menos 2004. Só foi realizada com a chegada de Paulo Vannuchi à Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Jornalista, ex-preso político e um dos autores de Brasil: nunca mais , o próprio Vannuchi responde, juntamente com outras duas redatoras, pelo texto final do livro-relatório. “A partir de agora temos um livro oficial com carimbo do governo federal, que incorpora a versão das vítimas”, declarou o então ministro à época de seu lançamento ( DANTAS, 2004, p.10; BRASIL, 2007a, p. 17, 2007b; MERLINO, 2007 ).
Concebida como reportagem e com críticas ao próprio governo Lula, consta da obra que ao término dos trabalhos da comissão foram derrubadas as versões oficiais indicando que as vítimas haviam sido mortas durante tentativas de fuga, tiroteios, ou que teriam cometido suicídio. As investigações realizadas conseguiram demonstrar que a maioria absoluta dos opositores foi presa, torturada e executada. Bastante crítico em relação à interpretação dada à anistia, o livro-relatório também fala em “terror de Estado”, sustenta que as vítimas “morreram lutando como opositores políticos de um regime que havia nascido violando a constitucionalidade democrática” e explicita a necessidade de os militares, especialmente aqueles que participaram diretamente das operações, revelarem a verdade há anos ocultada. “Sua oitiva formal pelos comandos superiores seguramente decifrará mistérios e contradições, permitindo um trabalho eficaz de localização dos restos mortais.” ( BRASIL, 2007a, p. 27, 30 ) . Do projeto Direito à memória e à verdade também faz parte uma exposição fotográfica itinerante, denominada “A ditadura no Brasil 1964-1985”. Nos últimos anos têm sido inaugurados memoriais intitulados “Pessoas Imprescindíveis” – painéis e esculturas que recuperam um pouco da história de mortos e desaparecidos políticos.
Em relação aos arquivos da ditadura, que começaram a ser abertos depois da posse do primeiro presidente democraticamente eleito, no início dos anos 90, avanços importantes vem sendo registrados gradativamente. Em maio de 2009, reconhecendo sua obrigação de revelar a verdade à sociedade brasileira, o governo federal lançou o portal Memórias Reveladas, denominação do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil (1964-1985), implantado com o objetivo de tornar disponíveis informações sobre a história política recente do país, agrupadas em uma rede nacional sob a administração do Arquivo Nacional, instituição subordinada à Casa Civil, da Presidência da República. Há alguns anos já fazem parte do acervo da instituição a documentação produzida pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), pelo Conselho de Segurança Nacional (CSN) e pela Comissão Geral de Investigações (CGI), que estavam sob controle da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). Milhares de documentos secretos, elaborados entre 1964 e 1975, pelo Ministério das Relações Exteriores e pela Polícia Federal, também estão sob a guarda do Arquivo Nacional. Permanecem desconhecidos, no entanto, a existência e o paradeiro dos arquivos envolvendo as ações dos principais protagonistas da violência do período: as Forças Armadas.
9 A reforma das instituições
Se ainda há muito que fazer para o cumprimento efetivo especialmente dos deveres de verdade e justiça, também permanece em aberto o dever do Estado brasileiro de reformar importantes instituições, tornando-as democráticas e accountable. Ainda que não restem dúvidas acerca de importantes avanços, sobretudo nas áreas social e econômica, registrados a partir da redemocratização, segue precário, por exemplo, o respeito aos direitos civis, como atestam os não apenas altos, mas em alguns casos crescentes, índices de violência registrados. Evidência trágica disso é que continua em uso, contra presos comuns, em delegacias e presídios de todo o país, o suplício da tortura. Anterior ao regime militar e constituinte da própria história brasileira, sua prática aprimorou-se nos porões do arbítrio e se mantém até hoje, mesmo após a sanção da Lei n. 9.455, que desde 1997 tipifica o crime de tortura, o que apenas confirma a noção de que a transição para a democracia não constitui condição suficiente para que se coloque um fim definitivo em um passado repressivo. Além da impunidade e da ameaça que ela representa em relação a abusos futuros, no caso brasileiro também está claro que até o presente momento o país não conseguiu se desfazer de todo legado autoritário construído ou mantido ao longo do arbítrio. Embora em 1996 tenha sido sancionada a Lei n. 9.299, que transferiu da Justiça militar para a Justiça comum a competência para julgar policiais militares acusados da prática de crimes dolosos contra a vida, há dispositivos, como a Lei de Segurança Nacional, que ainda persistem. Incompatível com a Constituição de 1988 e de caráter extremamente autoritário, tal legislação permanece em vigor, em total conflito com a prática democrática.
E ainda que a criação do ministério da Defesa, em 1999, tenha propiciado algum tipo de controle civil sobre as Forças Armadas, nenhuma reforma significativa foi feita no sistema de segurança nacional, que também não foi submetido a qualquer tipo de expurgo, ao término da ditadura. Assim, não são raros os casos, divulgados pela imprensa, em geral a partir de denúncias de grupos de direitos humanos, de notórios torturadores do período que seguem atuando em delegacias, em repartições públicas ou que estejam planejando disputar eleições. Até hoje, e ao contrário do que aconteceu na Argentina e no Chile, por exemplo, também nenhum pedido oficial de perdão foi feito pelos militares brasileiros. Conquanto a prática da tortura naquele período venha sendo admitida progressivamente por oficiais das diferentes Armas, ainda que de forma enviesada, como ação isolada de uns poucos descontrolados e não uma política de Estado, os mais de 25 anos de democracia não constituíram tempo suficiente para que as Forças Armadas brasileiras se penitenciassem publicamente dos crimes cometidos a partir de 1964. De modo geral, os militares permanecem unidos, não expressam arrependimento e muitas vezes seguem colocando obstáculos ao avanço do processo de acerto de contas. O exemplo mais recente das dificuldades desse grupo em lidar com os crimes do passado foi dado no segundo semestre de 2009, durante debate em torno da possibilidade de criação de uma comissão da verdade. O ensino dos direitos humanos nas academias militares também segue sendo um tema delicado.
De qualquer maneira, e num âmbito mais geral, é possível perceber que não apenas importantes iniciativas foram desenvolvidas desde o retorno à democracia como a questão dos direitos humanos parece gradativamente estar se tornando uma política de Estado, a despeito das distintas posições ideológicas dos governantes que se sucederam no comando do país. O processo de atualização do Brasil em relação à temática de proteção internacional dos direitos humanos começou no governo de José Sarney que assinou, em setembro de 1985, a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis e Degradantes. Seu sucessor, Fernando Collor de Mello (PRN), tornou-se o primeiro presidente brasileiro a destacar o papel da comunidade internacional no monitoramento dos direitos humanos, durante discurso na abertura anual da Assembléia das Nações Unidas, em 1990, e também o primeiro a receber oficialmente no país uma delegação da Anistia Internacional ( ALMEIDA, 2002, p. 16 ). Ao contrário de Sarney, cujo mandato foi marcado pela defesa incondicional da soberania do Estado brasileiro, Collor recusou seu uso para encobrir violações de direitos humanos ( ALMEIDA, 2002, p. 62 ). Com isso, e a partir da carta circular de n. 9.867, datada de 8 de novembro de 1990, o Ministério das Relações Exteriores passou a orientar seus quadros sobre a nova posição do governo, não mais de negação dos fatos, mas, sempre que fosse o caso, de reconhecimento de violações de direitos humanos e de mostrar que o governo estava empenhado em apurá-las ( ALMEIDA, 2002, p. 87, 122 ).
Atendendo a uma recomendação da Declaração e Programa de Ação da III Conferência Mundial de Direitos Humanos das Nações Unidas (cujo comitê de redação foi presidido pelo Brasil), realizada em Viena, em 1996 foi elaborado o primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) do país, com ênfase na garantia dos direitos civis e políticos. Entre os seus inúmeros objetivos, colocados em prática a partir de sua implementação, destacam-se a criação do Sistema Nacional de Proteção à Testemunha e a implosão do presídio do Carandiru, em São Paulo, notabilizado na primeira metade dos anos 1990 pelo massacre que culminou na morte de mais de uma centena de presos e tornou o prédio símbolo de desrespeito aos direitos humanos. Em seguida foi criada, no âmbito do Ministério da Justiça, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos. O primeiro PNDH foi revisado e atualizado em 2002, em função das demandas dos movimentos sociais que propuseram sua ampliação. O PNDH II incorporou direitos econômicos, sociais e culturais ( BRASIL, 2008, 2009b ).
No início do primeiro mandato do governo Lula, em 2003, a pasta passou a se chamar Secretaria Especial dos Direitos Humanos e, junto com a Secretaria Especial de Políticas de Promoção de Igualdade Racial e a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, adquiriu status de ministério. Cinco anos depois, a partir da 11ª Conferência Nacional dos Direitos Humanos, iniciou-se um processo de atualização e revisão dos dois PNDHs anteriores, com 137 encontros prévios às etapas estadual e distrital e que envolveram cerca de 14 mil participantes, entre representantes da sociedade civil organizada e do poder público. Estruturado em seis eixos orientadores (um deles dedicado ao direito à memória e à verdade; outro à educação e cultura em direitos humanos), subdividido em 25 diretrizes e mais de 80 objetivos estratégicos, o PNDH III baseia-se nas 700 resoluções da 11ª Conferência e em inúmeras outras, das Conferências Nacionais temáticas, de planos e programas do governo federal, além de tratados internacionais ratificados pelo Brasil e nas recomendações dos Comitês de Monitoramento dos Tratados da ONU e seus relatores especiais ( BRASIL, 2009b ). Foi lançado pelo presidente da República no dia 10 de dezembro de 2009, em meio a muita polêmica. No final de 2010, o Brasil ratificou a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado. No início de 2011, tramitava no Congresso Nacional, encaminhado pelo Executivo, o projeto de lei n. 7.376/2010 7 que finalmente deverá instituir, com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar, a Comissão Nacional da Verdade.
REFERÊNCIASBibliografia e outras fontes
ALMEIDA, W.L. de. Direitos humanos no Brasil (1988-1998) : um desafio à consolidação democrática. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
ARNS, D.P.E. (Org.). Brasil : nunca mais. Petrópolis: Vozes, 1985.
ARQUIVO NACIONAL. Memórias reveladas . Disponivel em: . Último acesso em: 12 dez. 2009.
BRASIL. Congresso Nacional. Anistia . Brasília, DF: 1982. v. 1, 2.
______. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à verdade e à memória : comissão especial sobre mortos e desaparecidos. Brasília, DF: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, 2007a.
______. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Para presidente Lula, Brasil deve saber a verdade sobre desaparecidos políticos . Brasília, DF, 30 ago. 2007b. Disponível em: MySQLNoticia.2007-08-30.4655> Último acesso em: 01 set. 2007.
______. Presidência da República. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Brasil Direitos Humanos, 2008 : a realidade do país aos 60 anos da Declaração Universal. Brasília, DF: SEDH, 2008.
______. Ministério da Justiça. Comissão de Anistia. Relatório de atividades . Brasília, DF, jun. 2009a.
______. Presidência da República. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Programa Nacional de Direitos Humanos. PNDH 3 – versão preliminar. Brasília, DF, set. 2009b. Disponível em: Último acesso em: 26 nov. 2009.
D’ARAUJO, M.C.; SOARES, G.A.D.; CASTRO, C. Os anos de chumbo : a memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
DALLARI, D. de A. Anistia e restauração de direitos . São Paulo: CBA, 197 ?.
DANTAS, I. Livro vai relacionar vítimas da ditadura. Folha de S. Paulo , São Paulo, 2 dez. 2004. Caderno Brasil.
FAUSTO, B. História do Brasil . 8. ed. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2000.
GRECO, H. Dimensões fundacionais da luta pela anistia. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2003.
GREEN, J.N. Apesar de vocês : oposição à ditadura brasileira nos Estados Unidos, 1964-1985. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS (IBCCRIM); SABADELL, A. L.; ESPINOZA MAVILLA, O. (Coord.). Elaboração jurídico-penal do passado após mudança do sistema político em diversos países : relatório Brasil. São Paulo: IBCCRIM, 2003.
INSTITUTO INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS. Direitos humanos : um debate necessário. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1991.
LUIZ, E. Vítimas da ditadura podem ser indenizadas até o fim do governo Dilma . Correio Braziliense , Brasília, 14 jan. 2011. Disponível em: vitimas-da-ditadura-podem-ser-indenizadas-ate-o-fim-do-governo-dilma.shtml>. Último acesso em: jan. 2011.
MARTINS, R.R. Liberdade para os brasileiros : anistia ontem e hoje. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
MERLINO, T. Anistia: após 28 anos, esperança de solução para os desaparecidos. Agência Brasil de Fato , 29 ago. 2007. Disponível em: Último acesso em: 24 out. 2007.
MEZAROBBA, G. Um acerto de contas com o futuro : a anistia e suas conseqüências – um estudo do caso brasileiro. São Paulo: Humanitas/Fapesp, 2006.
______. O preço do esquecimento : as reparações pagas às vítimas do regime militar (uma comparação entre Brasil, Argentina e Chile). Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
MIRANDA, N.; TIBÚRCIO, C.. Dos filhos deste solo – mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar : a responsabilidade do Estado. São Paulo: Boitempo, 1999.
SOARES, G.A.D.; D’ARAUJO, M.C.; CASTRO, C. A volta aos quartéis : a memória militar sobre a abertura. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995.
UNIÃO ESTADUAL DOS ESTUDANTES. Caderno da anistia . São Paulo, 1979. Arquivo da Fundação Perseu Abramo.

NOTAS

* Este artigo reproduz trechos de “Um acerto de contas com o futuro: a anistia e suas conse-qüências – um estudo do caso brasileiro” e “O preço do esquecimento: as reparações pagas às vítimas do regime militar (uma comparação entre Brasil, Argentina e Chile)”, respectivamente dissertação de mestrado (2003) e tese de doutorado (2008) defendidas pela autora no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (MEZAROBBA, 2006, 2008).

1. A íntegra do texto da Lei n. 6.683 está disponível em: .
2. Entrevista concedida pelo ex-presidente da República José Sarney a Glenda Mezarobba em 23 de agosto de 2007.
3. Entrevista concedida pelo ex-presidente da República José Sarney a Glenda Mezarobba em 23 de agosto de 2007.
4. A íntegra do texto da Lei n. 9.140 está disponível em: .
5. A íntegra do texto da Lei n. 10.559 está disponível em: .
6. O texto oficial da sentença está disponível em: .
7. A íntegra do PL n. 7.376/2010 pode ser encontrada em: .

terça-feira, 10 de junho de 2014

Copa da FIFA/BRASIL: Tem dinheiro público, sim, senhor

Governos estaduais usaram dinheiro público nas obras de 10 dos 12 estádios da Copa do Mundo. O gasto público estadual usado na construção das arenas soma pelo menos R$ 4,8 bilhões, segundo informações levantadas pela Pública entre o fim de maio e o início de junho no Portal da Transparência da Copa, de responsabilidade da Controladoria-Geral da União (CGU), nos contratos, diários oficiais, relatórios dos Tribunais de Contas Estaduais e acórdãos do Tribunal de Contas da União. A conta inclui as despesas relacionadas a empréstimos e investimentos diretos.
Em sete arenas, os governos estaduais assumiram dívidas com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Juntos, Amazonas, Bahia, Ceará, Mato Grosso, Paraná, Pernambuco e Rio de Janeiro pegaram R$ 2,3 bilhões em empréstimos com o banco, que serão quitados somente entre 2025 e 2027. A quantia será paga com recursos desses governos. O Rio de Janeiro também tomou um empréstimo com o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) no valor de R$ 250 milhões e usou uma porcentagem de um empréstimo de R$ 1,2 bilhão com a Caixa Econômica Federal para bancar a reforma do Maracanã.
Seis estados também firmaram parcerias público-privadas (PPPs) com empresas responsáveis pela construção e administração dos estádios, que serão remuneradas para isso. Estes contratos preveem pagamentos milionários feitos pelo poder público nos próximos anos.
Apesar dos sucessivos contatos da Pública com as secretarias estaduais responsáveis pelas obras e com os tribunais de contas estaduais (TCEs), em apenas seis casos foi confirmado o volume de recursos que o estado injetou diretamente nas arenas. Estas informações foram divulgadas pelos estados Amazonas, Bahia, Ceará, Distrito Federal, Mato Grosso e Paraná.
infografico-final-estadios
A dívida pública com a Copa só começou a ser admitida recentemente pelo governo federal, que mantinha um discurso bem diferente. “Não haverá um centavo de dinheiro público para os estádios da Copa”, falou o ministro do Esporte, Orlando Silva, em 2007. As declarações oficiais mudaram este ano. Recentemente, a presidenta Dilma Rousseff disse ao jornal português Público que nem “meio estádio” sairia sem dinheiro público. O secretário-geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, deu uma explicação semelhante em entrevista ao UOL. “Havia uma pretensão, uma expectativa de que pudéssemos mobilizar a iniciativa privada para que ela desse conta [dos investimentos em estádios], (…) [mas] houve uma contradição entre o que se esperava e a realidade”, afirmou.
Na visão de Gil Castello Branco, fundador da Associação Contas Abertas, entidade não-governamental que fiscaliza e estuda gastos do Estado, o discurso oficial confunde a população sobre o real custo das arenas da Copa para os cofres públicos. “O gasto público não está sendo divulgado de forma clara. Muitas vezes vemos na internet que os estados foram custeados com financiamentos e que serão pagos. Quando houve as manifestações de junho, a presidente foi a público dizer que não existem recursos do orçamento federal para estádios. Ela foi cirúrgica nessa declaração porque existem os financiamentos federais, mas existem os recursos dos orçamentos estaduais, municipais e do Distrito Federal que são dinheiro público, sim”, critica. Ele ainda ressalta que os empréstimos do BNDES ocorrem sob condições especiais de juros, em uma linha de financiamento criada exclusivamente para as arenas da Copa.
Houve casos em que os poderes estaduais tiveram que bancar completamente as obras, endividando-se com o BNDES e destinando verbas de seus cofres diretamente para os estádios. Para a construção da Arena da Amazônia, em Manaus, o governo recebeu R$ 400 milhões do BNDES, além dos R$ 269 milhões que estavam previstos para serem gastos na obra com dinheiro do tesouro estadual, segundo dados da CGU. Já o governo do Mato Grosso gastou R$ 286,3 milhões na Arena Pantanal, em Cuiabá, e ainda firmou um empréstimo de R$ 337,9 milhões com o banco.
Sandro Cabral, professor da Escola de Administração e coordenador de grupo de pesquisa sobre o legado das Arenas da Copa na Universidade Federal da Bahia (UFBA), acredita que a iniciativa privada percebeu que esses empreendimentos não eram vantajosos e não quis se comprometer com a construção ou operação dos estádios de Manaus e Cuiabá. “Esses casos nem atratividade para PPPs tiveram. Foram 100% públicos porque você não tem um campeonato local ou um clube de expressão que seja capaz de atrair jogos. A alternativa que sobrou foi fazer o governo investir”, aponta.
Os governos da Bahia, do Ceará e de Pernambuco também precisaram contratar empréstimos com o BNDES para ressarcir a iniciativa privada – responsável pelas obras das suas respectivas arenas, construídas no formato de parcerias público-privadas. O Maracanã, no Rio de Janeiro, é um caso à parte: depois de uma bilionária reforma bancada exclusivamente com recursos públicos, o governo do Rio concedeu o estádio à iniciativa privada por 35 anos.
Os contratos das PPPs de seis arenas também exigem que os governos estaduais paguem os parceiros privados por seus serviços. Esse valor, chamado de contraprestação, inclui os custos da obra, das operações financeiras e de manutenção e administração dos estádios, já que a exploração comercial das arenas ficará a cargo dessas empresas. “É a diferença de comprar uma casa à vista e uma casa financiada. Nas prestações de financiamento está embutido o custo financeiro. Além disso, tem uma pequena parcela que é do custo de manutenção dos estádios nesses anos todos, porque isso ficará também com o concessionário. Então as duas coisas se somam ao valor que, segundo a avaliação, custava a obra em si”, aponta Carlos Sundfeld, professor do curso de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV).
Duas sedes do Nordeste possuem os maiores valores de contraprestação: em Natal, durante 12 anos, o governo chegará a pagar R$ 10,3 milhões por mês, enquanto em Salvador as despesas somam cerca de R$ 99 milhões por ano ao longo de 15 anos. Nos dois casos, o valor será corrigido anualmente pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) e, em Natal, ele será reduzido ao longo da vigência da PPP.
Para Sandro Cabral, da UFBA, o que se espera é que numa PPP o Estado tenha o menor gasto possível. Mas, no caso dos estádios da Copa, não é isso que ocorre. “Muitos desses empreendimentos não têm capacidade de geração de receitas que sejam capazes de cobrir os custos da operação e de amortizar os custos de construção”, disse. O professor explica que, nesses casos, o poder público precisa garantir um faturamento mínimo para as concessionárias, para que esses empreendimentos sejam atraentes à iniciativa privada.
Apenas três arenas não resultaram em dívidas contraídas pelo poder público: a Arena Corinthians, que recebeu incentivos da Prefeitura de São Paulo, mas que será custeada pelo Corinthians; o estádio privado Beira-Rio, do Internacional de Porto Alegre; e o Mané Garrincha, em Brasília, que já custou R$ 1,4 bilhões aos cofres públicos, mas foi pago graças à venda de terras públicas pela Terracap.
Pública analisou os nove estádios restantes para mostrar o caminho que o dinheiro fez dos cofres públicos estaduais até os campos de futebol.

Amazônia e Pantanal – empréstimos do BNDES pagos com dinheiro público

A Arena da Amazônia, em Manaus, e a Arena Pantanal, em Cuiabá, são dois exemplos de estádios públicos nos quais, além da verba gasta diretamente pelos governos estaduais, estes precisaram tomar empréstimos significativos com o BNDES para botar as estruturas de pé para a Copa do Mundo. Em outras palavras, as duas arenas serão inteiramente pagas com dinheiro público dos estados – que já arcam com o aumento significativo do valor das obras.
Para o secretário-geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, o número de sedes prejudicou o plano de bancar as arenas só com recurso privado. “Se nós tivéssemos feito seis estádios, teríamos conseguido”, disse. “Esse esforço de nacionalizar a Copa nos custou a necessidade de entrar com aportes maiores, digamos assim, sobretudo dos governos locais.”
O custo inicial da Arena da Amazônia, firmado pela Secretaria de Estado da Infraestrutura do Amazonas (Seinfra) e pela construtora Andrade Gutierrez, em 2010, era de R$ 499 milhões. Naquele mesmo ano, o Tribunal de Contas do Estado do Amazonas (TCE-AM) já afirmava que essa cifra não passava de faz-de-conta. O TCE apelidou o projeto básico da Arena da Amazônia de “jogo de planilha”, trabalho que foi realizado pelo Grupo Stadia (SD Plan) – que atuou também na Arena do Pantanal, em Cuiabá, e na das Dunas, em Natal – e pela gigante alemã GMP – que também participou dos projetos do Maracanã, no Rio, e do Mineirão, em Belo Horizonte. O órgão chegou a sugerir que fossem anuladas a licitação e a contratação da Andrade Gutierrez. Atualmente, a Seinfra informa que, dos R$ 669 milhões previstos, já foram contratados R$ 675,8 milhões para a Arena da Amazônia.
Em 2010, TCE-AM afirmava que orçamento inicial da Arena Amazônia, de  R$ 499 milhões,não passava de faz-de-conta (Foto: Portal da Copa)
Em 2010, TCE-AM afirmava que orçamento inicial da Arena Amazônia, de R$ 499 milhões,não passava de faz-de-conta (Foto: Portal da Copa)
O custo total da obra da Arena Pantanal, previsto na Matriz de Responsabilidades de 2010 como R$ 454,2 milhões, aumentou após uma série de nove aditivos e diversas irregularidades – incluindo sobrepreço e acréscimo maior do que 25% do valor inicial, como atestado pelo TCU no acórdão nº 1311/2014, de 21 de maio de 2014. Com os acréscimos, a parcela do empréstimo do BNDES destinada à construção do estádio subiu para R$ 337.900.362. Mas isso não alterou o valor global do empréstimo, que continuou a ser de R$ 392.952.860. Assim, quem arcou com o aumento nos custos da obra foi o governo do estado, que viu seu gasto direto saltar de R$ 124,2 milhões, previstos na Matriz de 2010, para pelo menos R$ 286,3 milhões, valor pago até agora, confirmado pela Secretaria da Copa do Mato Grosso (Secopa-MT). Segundo a secretaria, o governo já pagou R$ 628,4 milhões pela obra e a previsão de gasto total é R$ 646,5 milhões. A diferença será paga pelo estado, ou seja, os gastos vão subir.
O Mato Grosso começou a pagar a dívida com o BNDES em janeiro de 2014 e precisa quitá-la em dezembro de 2025, após 144 prestações mensais com valor médio de R$ 4.307.430, segundo estimativa do TCE-MT publicada em relatório de 2012. No texto, o tribunal alertou que o estado pode comprometer investimentos futuros para conseguir pagar os empréstimos de cerca de R$ 1,57 bilhão tomados para arcar com todos os custos do Mundial, já que vai destinar o correspondente a “79% do total do investimento em obras e instalações (aplicações diretas) realizado em 2012.”
Dos 10 relatórios produzidos pelo TCE-MT, este foi o único que atentou para essa questão. Os outros acompanharam apenas o andamento das obras. A assessoria de imprensa do TCE-MT informou que a análise do endividamento do estado não é feita nas contas relativas à Copa, e sim na auditoria realizada nas contas de governo. Os valores atualizados só serão divulgados nas próximas semanas.
A Arena Pantanal será inteira bancada com dinheiro público: o governo do MT fez um empréstimo de R$ 337,9 milhões com o BNDES e, além disso, já pagou R$ 286,3 milhões. (Foto: Portal da Copa)
A Arena Pantanal será inteira bancada com dinheiro público: o governo do MT fez um empréstimo de R$ 337,9 milhões com o BNDES e, além disso, já pagou R$ 286,3 milhões. (Foto: Portal da Copa)
Confusão de números
O Portal da Transparência da Copa divulga os valores totais previstos para reforma ou construção de cada estádio. Apesar de matemática, essa ciência não é exata. No levantamento feito pela Pública, por meio dos relatórios emitidos pelo Tribunal de Contas da União, pelos Tribunais de Contas dos Estados e pelos contratos entre governos, bancos e empresas, nem sempre a conta fecha com os números do Portal, divulgados pela Controladoria-Geral da União (CGU).
No caso da Arena da Baixada, por exemplo, o valor atestado pelo Grupo Executivo da Copa do Mundo FIFA 2014 (Gecopa), fonte da CGU, é diferente do apresentado pelo TCE do Paraná em seu último relatório, baseado no orçamento feito pela própria sociedade do Clube Atlético Paranaense. Ali também não está previsto o empréstimo tomado pelo governo desse estado ao BNDES, no valor de R$ 131,1 milhões – o empréstimo consta em outra seção de financiamentos na página.
No caso do Maracanã, só dois dos três contratos firmados para a reforma do estádio estão contabilizados no Portal da Transparência. Há um valor relacionado como investimento direto do estado do Rio, mas o site não informa que ele inclui dois empréstimos tomados pelo governo estadual para bancar a reforma do estádio. Dos 16 aditivos já firmados ao contrato principal da reforma, apenas seis estão disponíveis no site.
Já na Arena das Dunas, a “previsão de investimento” apontada pelo Portal da Transparência e confirmada pela Secopa-RN é de R$ 400.000.000, valor atualizado em setembro de 2013. Mas esse número não é o custo total da obra, e sim, o valor estimado do contrato de PPP. A CGU explicou que o Rio Grande do Norte viabilizou a construção por meio desse contrato. No entanto, o estado não paga R$ 400 milhões diretamente à concessionária – em vez disso, remunera a empresa por meio da contraprestação, que segundo estimativa do procurador-geral do Ministério Público junto ao TCE, chega a um custo total de R$ 1,3 bilhão.
Gil Castello Branco, da ONG Contas Abertas, afirma que a população brasileira está longe de ter um dado real sobre os gastos com estádios e com a Copa em geral. “Eu costumo dizer que só vamos saber realmente o custo da Copa no ano que vem ou daqui a dois anos. Muitas dessas obras ainda terão restos a pagar e vai se discutir o que era obra do estádio e o que não era. Dessa discussão é que vai surgir o valor global do que se gastou na Copa. Ninguém em sã consciência pode dizer que sabe hoje qual é o custo real do Mundial”, critica.
O TCU explicou que as diferenças nos valores do Portal da Transparência em relação aos acórdãos produzidos pelo tribunal se devem à origem das informações e ao momento em que os valores foram divulgados. O órgão disse ainda que irá monitorar as determinações feitas nos acórdãos apenas no segundo semestre de 2014, utilizando os relatórios finais de acompanhamento que só serão feitos pelo BNDES após o fim do Mundial.

Dinheiro público garante PPPs da Copa

As PPPs são uma alternativa para o poder público quando ele não dispõe de capital para conduzir uma obra, quando procura reduzir os gastos dos cofres públicos ou mesmo quando deseja rapidez, explica Francisco Vignoli, professor de Economia da Escola de Administração da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP). “Hoje, se você considerar as características e especificidades que essas arenas têm, acho que fazer a concessão, desde que bem feita e que represente a possibilidade de o poder público ter o controle excessivo sobre aquilo que está sendo concedido, é uma boa medida”, opina o professor.
É esse, em tese, o caso da Arena Pernambuco, na qual foi firmada uma PPP com empresas do grupo Odebrecht. Na justificativa do governo estadual, que está presente nos relatórios do TCU e do TCE-PE, a parceria resultaria em uma economia de R$ 66 milhões. O representante do estado afirmou ainda que a “qualidade técnica do equipamento e dos serviços a serem prestados, que é de dificílima mensuração, seria, inevitavelmente, melhor alcançada pela modelagem da PPP”.
Entretanto, mesmo o modelo de PPP não eximiu o estado de contrair diversas dívidas: o governo de Pernambuco firmou um empréstimo de R$ 400 milhões com o BNDES, a ser pago até 2027 para ressarcir dois outros empréstimos tomados pelo consórcio que assumiu o estádio. Ainda se comprometeu a pagar, durante 30 anos, contraprestações que podem chegar a R$ 3,9 milhões por ano, reajustáveis de acordo com o IPCA.
O governo de Pernambuco também cedeu um terreno para a Odebrecht, que a empreiteira avaliou que irá render R$ 30 milhões em 10 anos – esse valor foi inclusive utilizado como garantia para fechar a PPP. Fora os três anos dedicados à construção, a concessionária será responsável pela operação da Arena Pernambuco por 30 anos, durante os quais terá direito à receita operacional e a receitas adicionais, das lojas e estacionamento. A obra está orçada em R$ 479 milhões, segundo o TCU.
Para construir a Arena Pernambuco, o governo do estado emprestou R$ 392,8 milhões do BNDES e firmou um contrato de PPP com o grupo Odebrecht. (Foto: Portal da Copa)
Para construir a Arena Pernambuco, o governo do estado emprestou R$ 392,8 milhões do BNDES e firmou um contrato de PPP com o grupo Odebrecht. (Foto: Portal da Copa)
“No final das contas, os estados é que assumiram o custo das obras, só que vão pagar no longo prazo na forma de remuneração para os concessionários”, explica Carlos Sundfeld, professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP).
A situação é semelhante na Bahia, onde a Odebrecht também participa do consórcio vencedor da PPP da Fonte Nova, junto à OAS. O acordo prevê a concessão do estádio por 35 anos, precedida das obras de reconstrução. Para bancar a PPP, a Bahia se endividou em R$ 323,6 milhões com o BNDES, que começaram a ser pagos em fevereiro deste ano e serão liquidados em agosto de 2026.
Após quatro aditivos, o valor do contrato de PPP para a Fonte Nova subiu de R$ 591,7 milhões para R$ 689,4 milhões. A diferença entre os valores (R$ 97,7 milhões) foi paga pelo governo estadual para atender a exigências técnicas da FIFA. Além disso, os cofres públicos baianos irão arcar com uma contraprestação pública de R$ 99 milhões ao ano durante 15 anos, corrigidos pelo IPCA. Segundo o governo, a contraprestação “engloba custo relativo às obras, bem como aqueles relativos à manutenção e operação da Arena, às despesas pré-operacionais, aos encargos financeiros, tributos e remuneração do privado pelas inversões realizadas ao longo do período de concessão”.
Além de R$ 323,6 de dívida com o BNDES e mais gasto de R$ 97,7 milhões, governo da BA terá que arcar contraprestação bilionária para concessionário da Arena Fonte Nova. (Foto: Wikicommons)
Além de R$ 323,6 de dívida com o BNDES e mais gasto de R$ 97,7 milhões, governo da BA terá que arcar contraprestação bilionária para concessionário da Arena Fonte Nova. (Foto: Wikicommons)
A PPP também pressupõe que, caso a receita estimada no ano para a Fonte Nova não seja atingida (cerca de R$ 23 milhões), o valor que faltar seja completado em partes iguais por Estado e consórcio. Para viabilizar o negócio, o consórcio fechou um acordo com o Bahia, no qual o clube se compromete a mandar 33 jogos por ano na Fonte Nova, e o consórcio paga R$ 9 milhões ao ano ao Tricolor baiano. “No caso da Fonte Nova, somente com o Bahia jogando e com o projeto arquitetônico que foi feito aqui, você não vai conseguir gerar receita o suficiente para cobrir a operação e parte da construção”, afirma o professor Sandro Cabral, da UFBA. “Caso tivesse outro projeto arquitetônico, em que houvesse um shopping atrelado ao empreendimento, se jogassem Bahia e Vitória ali, ela conseguiria ressarcir boa parte dos custos de construção. Mas não foi esse o projeto escolhido pelo governo.”
A Arena Castelão, palco cearense da Copa do Mundo, também foi reformada a partir de um contrato de PPP. Firmado em 2010, o documento define a concessão do estádio por oito anos para o consórcio formado pelas construtoras Galvão Engenharia e Serveng, além da operadora BWA. O contrato define que o governo cearense pague R$ 518,6 milhões ao consórcio pelas obras no estádio e serviços prestados. Esse valor deve ser quitado até o meio de 2018.
Para financiar todo esse montante, o governo cearense recorreu a um empréstimo de R$ 351,5 milhões com o BNDES e completará o restante com recursos diretos do tesouro estadual. O governo terá de 15 de janeiro de 2014 a 15 de dezembro de 2025 para amortizar a dívida contraída com o banco federal.
Castelão deixa o legado de R$ 351,5 milhões em dívidas com o BNDES para o governo do estado do Ceará. (Foto: Portal da Copa)
Castelão deixa o legado de R$ 351,5 milhões em dívidas com o BNDES para o governo do estado do Ceará. (Foto: Portal da Copa)
O governo do Ceará justificou o negócio dizendo que “a contratação da PPP foi autorizada pelo Conselho Gestor de Parcerias Público-Privadas do Estado, (…) após a análise dos estudos de viabilidade econômico-financeira realizados, embasados na metodologia do PSC – Public Sector Comparator, desenvolvida pela Partnerships Victoria da Austrália. (…) A contratação da PPP é o procedimento mais adequado para o Estado. Ratificamos a necessidade de promover a citada concorrência visando consolidar a realização da Copa do Mundo FIFA Brasil 2014 em nosso Estado, garantindo seu legado econômico e social”.
Para viabilizar a Copa, o Rio Grande do Norte também optou pela PPP e firmou um contrato de concessão administrativa com a Arena das Dunas Concessão e Eventos S/A, em abril de 2011. A empresa, que tem como acionista única a construtora OAS, ficou responsável pela demolição do antigo estádio, além de construir e administrar a Arena das Dunas durante 20 anos. Nesse período, o lucro do estádio será dividido igualmente entre o estado e a concessionária.
O custo previsto da obra era de R$ 350 milhões em 2010. O valor subiu e, em outubro de 2011, a empresa assinou um contrato com o BNDES para emprestar R$ 396.571.000 – que se somaram aos R$ 3,5 milhões de investimento direto do estado, valor previsto no Portal da Transparência.
No caso de Natal, o que chama a atenção é a contraprestação, valor que o estado paga todo mês à concessionária, reajustado anualmente com o IPCA e reduzido progressivamente ao longo da concessão. Segundo Luciano Ramos, procurador-geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas do Rio Grande do Norte, o custo atualizado da contraprestação é de aproximadamente R$ 10,3 milhões. Ele estima que até 2031, quando acaba o contrato de PPP, o estado pagará, no total, R$ 1,3 bilhão à concessionária – quase três vezes o investimento previsto para o empreendimento no Portal da Transparência.
“O Estado do Rio Grande do Norte se endividou ao longo dos próximos anos com a obrigação de pagar mensalmente a contraprestação pecuniária, comprometendo, em valores atuais, 2,4% da Receita Corrente Líquida do Estado”, informou o procurador-geral Luciano Ramos. “[O Rio Grande do Norte] atualmente possui inúmeros problemas financeiros que não têm como causa única o endividamento com a Arena das Dunas, porém, direta ou indiretamente, [são] alimentados pelos recursos que são mensalmente canalizados para o estádio, em detrimento de outros gastos prioritários.”
No TCE-RN há um processo específico (nº 11750/2011) para apurar a viabilidade do estádio e a legalidade da PPP, mas a Comissão de Fiscalização e Acompanhamento da Copa 2014 (Cafcopa) ainda não emitiu nenhum relatório sobre o assunto. Outro processo (nº 477/2013) informa que o tribunal estava impedido de investigar irregularidades que prejudicassem o orçamento público porque o projeto executivo apresentado pela concessionária da Arena das Dunas estava pouco detalhado.
Já o TCU alertou, ainda em 2011, no acórdão 843, que os riscos assumidos no contrato de PPP eram assimétricos. O órgão pediu a retirada das cláusulas que obrigavam o estado a arcar com a mudança de preços dos insumos causadas por impactos no mercado financeiro. Para o TCU, esse risco deveria ser assumido pela concessionária. No entanto, isso não aconteceu e o acordo acabou sendo firmado nesses termos.
A reportagem da Pública entrou em contato com a Secretaria da Copa do Rio Grande do Norte (Secopa-RN) no dia 29 de maio para confirmar o custo total das obras, o valor da contraprestação da PPP e por que o estado escolheu este modelo, mas a Secopa respondeu apenas à primeira questão. No dia 3 de junho, a assessoria de imprensa informou que as demais perguntas foram levadas ao secretário Demétrio Torres, “mas infelizmente ele não respondeu”.
Apesar de não ter feito empréstimos com o BNDES, estima-se que o governo do RN chegará a pagar R$ 1,3 bilhão para a empresa que construiu e irá administrar a Arena das Dunas, já que foi firmada uma PPP. (Foto: Portal da Copa)
Apesar de não ter feito empréstimos com o BNDES, estima-se que o governo do RN chegará a pagar R$ 1,3 bilhão para a empresa que construiu e irá administrar a Arena das Dunas, já que foi firmada uma PPP. (Foto: Portal da Copa)
Mesmo os estados que não firmaram empréstimos com o BNDES não estão isentos de dívidas resultantes da construção das arenas da Copa. É esse o caso do governo de Minas Gerais que, para ter o Mineirão reformado, firmou uma PPP que, se por um lado, deixou o custo das obras ao encargo da iniciativa privada, por outro exigiu o pagamento de contrapartidas anuais à concessionária Minas Arena até 2037 – um pagamento que justamente busca cobrir parte dos gastos do ente privado com a reforma, dentre eles um empréstimo de R$ 400 milhões tomado pela concessionária junto ao BNDES.
O governo mineiro assumiu dois tipos de contrapartida com o consórcio, formado por Construcap, Egesa e HAP Engenharia. A primeira é uma dívida fixa paga em parcelas mensais decrescentes, que começou em 2013, com R$ 7,7 milhões, e termina em 2022, com R$ 4,2 milhões – valores que serão corrigidos pelo IPCA. A segunda é uma dívida variável que depende do lucro que a Minas Arena obtém com o estádio. Quanto menor a receita do consórcio, estritamente vinculada à média de público, mais o governo paga ao ente privado, e vice-versa. Na pior das hipóteses, segundo documento da Secopa-MG, o governo mineiro pode pagar até R$ 677 milhões à Minas Arena ao final de 27 anos. Na hipótese mais realista, o governo deve transferir R$ 473 milhões.
A Secretaria de Estado do Governo de Minas, que se recusou a conceder entrevista comentando a PPP do Mineirão, informou que a parceria reduziu o custo da obra em R$ 100 milhões em relação ao que teria custado caso fosse realizada pelo governo. O TCE-MG, mesmo após sucessivas ligações da reportagem, recusou-se a comentar a análise que fez do projeto executivo do Mineirão – que é obrigatória para a liberação de mais de 65% do empréstimo do BNDES. A Minas Arena negou-se a divulgar as médias de público ou de faturamento, alegando sigilo.
Para Carlos Sundfeld, da FGV-SP, as construções dos estádios não seriam viáveis se fossem unicamente bancadas pelos entes privados. “Esse negócio é completamente inviável não fosse um cliente que é o estado, que se dispõe a investir recursos do seu orçamento, no curto e no longo prazo, para pagar a construção desse estádio e manutenção a longo prazo. É um custo público assumido pelo país a partir do projeto que foi coordenado pelo governo federal”, acredita. “Saber o que é melhor ou pior depende um pouco da situação do estado, se ele tem dinheiro disponível ou não tem, se os juros são bons ou ruins… Mas o grosso da remuneração do concessionário vem do estado.”

A dívida sem fim do Maracanã

A previsão do custo da reforma do Maracanã era de R$ 600 milhões, entre financiamentos do BNDES e recursos diretos do governo do Rio de Janeiro, como constava na da Matriz de Responsabilidades de 2010. O documento, elaborado pelo Ministério do Esporte, lista todos os investimentos necessários para a Copa do Mundo.
Quatro anos (e 16 aditivos ao contrato principal) depois, a obra dobrou de preço, chegou a R$ 1,2 bilhão – sem contar as estruturas temporárias da Copa – e trouxe mais endividamento aos cofres fluminenses do que o esperado: além do empréstimo de R$ 400 milhões com o BNDES, o governo estadual recorreu a um empréstimo de R$ 250 milhões do CAF (Banco de Desenvolvimento da América Latina) e ainda destinou uma porcentagem de um empréstimo de R$ 1,2 bilhão, contraído junto à Caixa Econômica Federal, para ajudar a bancar a reforma. O restante foi pago com recursos do tesouro do Estado. O saldo final deixa o Maracanã como o segundo estádio mais caro da Copa do Mundo, perdendo apenas para o Mané Garrincha, em Brasília.
Em setembro de 2014, passado o furor da Copa e a final no Maracanã, o governo do Rio começará a pagar a dívida de R$ 400 milhões com o BNDES que, segundo o contrato, deve ser quitada até agosto de 2026. A Pública procurou a Secretaria de Obras do Rio de Janeiro, responsável pela obra do Maracanã, para saber o prazo de pagamento dos outros empréstimos e a porcentagem do empréstimo da Caixa usado no estádio, mas não teve resposta até a publicação da reportagem.
Em abril deste ano, uma nota da coluna “Radar”, da Revista Veja, informou que, segundo o Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE-RJ), houve superfaturamento de R$ 67 milhões na obra do Maracanã. Segundo o documento, houve pagamentos indevidos nesse montante na reforma do estádio. “Constatam-se diversas incompatibilidades entre os serviços em execução e os projetos disponibilizados”, diz um trecho do relatório divulgado pelo site Globoesporte.com. A Pública pediu acesso ao relatório do TCE, mas não teve resposta da assessoria de imprensa do órgão. O documento ainda não foi a plenário.
Enquanto o Maracanã ainda estava em obras, o governo estadual publicou em 25 de fevereiro de 2013 o edital de concorrência para a concessão do estádio e do Maracanãzinho à iniciativa privada por 35 anos. O estudo de viabilidade do projeto foi elaborado pela IMX Holding. Segundo o documento, o negócio trará um lucro líquido de R$ 1,4 bilhão à concessionária no período. O edital previa um investimento privado de R$ 594,1 milhões. Entre esses investimentos estariam a demolição do Estádio de Atletismo Célio de Barros, do Parque Aquático Julio Delamare, do presídio Evaristo de Moraes e da Escola Municipal Friedenreich, equipamentos públicos situados no entorno do estádio (o antigo Museu do Índio também seria transformado em um Museu do Futebol). Eles dariam lugar a dois edifícios-garagem e a quadras de aquecimento. “Com o projeto, pretende-se transformar o atual Complexo do Maracanã, hoje de caráter exclusivamente esportivo, em um verdadeiro ‘Complexo de Entretenimento’”, diz um trecho do estudo.
Segundo estádio mais caro da Copa, governo do Rio tomou três empréstimos para deixar o Maracanã pronto. (Foto: Wikicommons)
Segundo estádio mais caro da Copa, governo do Rio tomou três empréstimos para deixar o Maracanã pronto. (Foto: Wikicommons)
Pelo direito de explorar a nova área durante o período de vigência da PPP, a concessionária pagaria ao governo estadual R$ 4,5 milhões ao ano. Segundo o estudo de viabilidade, o entorno do Maracanã, cedido para a exploração da concessionária como contraprestação, traria receitas de R$ 12,15 milhões ao ano.
“Ou seja, o oferecimento de uma torna [isto é, um retorno] no valor de R$ 4,5 milhões por ano representará um resultado negativo para o Estado do Rio de Janeiro, na ordem de R$ 7,65 milhões por ano”. A frase é de uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MP-RJ) que traz uma série de questionamentos à concessão do Maracanã para a iniciativa privada. O MP-RJ apontou que a concessão era desnecessária à Copa, já que as intervenções necessárias já estavam sendo feitas pelo contrato de reforma, e prejudicial à Olimpíada, pois o projeto aprovado com o comitê organizador dos Jogos Olímpicos não previa as intervenções citadas no edital.
A contraprestação pública também foi alvo do MP-RJ: “Os investimentos previstos no processo de concessão se destinam primordialmente à maximização do aproveitamento econômico do Complexo Maracanã”, afirma a ação. “Evidentemente, a maximização da rentabilidade do investimento privado não consiste em um fim público, por si só, que justificasse o oferecimento de uma contraprestação pública. [Isto] somente se justificaria caso os investimentos a serem realizados pelo particular efetivamente revertessem em obras de interesse público”, afirma o MP-RJ. Segundo o órgão, só com as receitas do estádio e do Maracanãzinho, o negócio já seria economicamente viável para a concessionária e a contraprestação é “lesiva ao erário”.
A ação proposta pelo Ministério Público, no entanto, não prosperou. Em 4 de junho de 2013, após uma queda de braço jurídica entre MP e o governo do Rio, o contrato foi assinado. O valor da contraprestação subiu para R$ 5,5 milhões ao ano. Meses mais tarde, após as manifestações de junho que, no Rio de Janeiro, questionaram vários aspectos da reforma e concessão do Maracanã, a demolição dos equipamentos do entorno do estádio foi cancelada. A concessão, no entanto foi mantida e o governo do Rio afirma que os investimentos previstos foram revertidos em reformas do Célio de Barros, do Júlio Delamare e do prédio do antigo Museu do Índio.
Em resposta à Pública, a Secretaria da Casa Civil do Rio de Janeiro afirmou que “após passar por uma ampla obra de restauro e adequação para que possa receber os grandes eventos esportivos, o Maracanã se tornou um dos estádios mais modernos, confortáveis e seguros do mundo, de alta complexidade e grandes custos de manutenção e conservação. Repassar tais custos foi um dos objetivos do governo do estado ao optar pela concessão, evitando a necessidade de novos investimentos públicos. Além disso, o estado visou ainda a contratar uma gestão profissionalizada e eficiente, para oferecer mais conforto aos frequentadores. A concessão foi realizada após as obras uma vez que a adequação foi um compromisso assumido pelo governo do estado junto à FIFA e ao COI para que o estádio possa receber os eventos esportivos”.

Arena da Baixada – Clube privado, dívida pública

A Arena da Baixada, em Curitiba, é o estádio do Clube Atlético Paranaense. Mas na obra da iniciativa privada, o dinheiro também sai dos cofres públicos, seja pelo empréstimo tomado pelo governo do Paraná, seja em financiamentos feitos pela Fomento Paraná, responsável por gerir o Fundo de Desenvolvimento Econômico (FDE) do estado, seja por incentivos da Prefeitura de Curitiba.
O governo do Paraná tomou um empréstimo de R$ 131,168 milhões com o BNDES pelo programa ProCopa Arenas. Apesar de esse valor ter sido usado pela CAP S.A., sociedade formada majoritariamente pelo Atlético Paranaense, deverá ser pago com dinheiro do tesouro do estado. Isso por conta de uma triangulação feita entre o governo do Paraná, o Fundo de Desenvolvimento Econômico (intermediário no repasse do empréstimo do BNDES) e a CAP S.A.
“A CAP S.A. vai devolver os recursos ao FDE de acordo com os contratos, garantias e prazos estipulados. Esses recursos, ao serem devolvidos pela CAP S.A., permanecerão capitalizados no FDE, onde serão utilizados para financiar outras operações com empreendedores privados de micro, pequeno e médio porte. O Estado é o responsável por reembolsar o BNDES pelos recursos do financiamento à CAP S.A.”, explicou a assessoria de imprensa da Fomento Paraná, via e-mail.
Estádio do Clube Atlético Paranaense era para ser privado, mas também foi bancado com dinheiro público do governo do Paraná. (Foto: Divulgação/CAP S.A)
Estádio do Clube Atlético Paranaense era para ser privado, mas também foi bancado com dinheiro público do governo do Paraná. (Foto: Divulgação/CAP S.A)
Devido aos sucessivos aumentos no orçamento da Arena, novos financiamentos foram retirados do Fundo de Desenvolvimento Econômico do Paraná para a CAP S.A., em uma quantia que soma R$ 160,7 milhões em empréstimos, além do valor que veio do BNDES.
Em março deste ano, uma nota divulgada pela assessoria de imprensa do Tribunal de Contas do Estado do Paraná (TCE-PR) afirmava que ainda não era possível determinar o valor real da reforma e ampliação da Arena da Baixada. Isso porque, apesar de o último valor informado pela CAP S.A. ser de R$ 330,6 milhões, a Fomento Paraná, órgão que viabilizou os empréstimos, não chegou a fazer a análise do orçamento para verificar esse custo.
Fonte: http://apublica.org/