quarta-feira, 30 de junho de 2010

O GARGALO DA EDUCAÇÃO EM SÃO PAULO

Artigo de Opinião publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 31/07/2008 pelo professor Luís Fernando de Lima Júnior

A aprovação automática completou 11 anos de vigência nas escolas públicas do Estado de São Paulo como um dos mais significativos entraves para o desenvolvimento da qualidade do ensino público. Formulada a partir de uma proposta planejada para solucionar os problemas de aprendizagem de uma realidade européia, a divisão da estrutura curricular em ciclos de quatro anos de estudo com regime de progressão continuada não trouxe bons frutos para o ensino paulista. Na Espanha e na Inglaterra, onde essa proposta teve bons resultados, os ciclos de estudo têm uma duração de dois anos. Nesse período, os alunos estudam em tempo integral, em salas de aula com média inferior a 30 alunos por classe e na passagem de um ano para outro, dentro do mesmo ciclo, praticamente não existe mudança no quadro de educadores. Com um número menor de alunos por sala de aula, o professor, motivado e bem remunerado, pode disponibilizar a atenção necessária à aprendizagem de cada aluno.

No cotidiano escolar, a criança vai para a escola no período da manhã e tem contato com os conteúdos das disciplinas regulares, para no período da tarde participar de oficinas lúdicas, esportivas ou profissionalizantes. Enquanto os colegas desfrutam essas atividades, o aluno que apresenta dificuldades de aprendizagem é colocado em reforço intensivo e o aluno indisciplinado é estimulado a corrigir suas atitudes por não poder participar dessas atividades. Como dentro do ciclo não se tem a noção de aprovação do primeiro para o segundo ano, pelo fato de as classes receberem nomenclaturas sem referência de série, os alunos entendem a passagem do ano como férias escolares, da mesma maneira que o recesso do meio do ano, pois reiniciam suas atividades no período letivo seguinte como continuidade do anterior.

Não existe a noção de aprovação automática, pois o aluno só progride de ciclo se ao final dos dois anos apresentar evolução. A partir do momento em que se aplica essa idéia sobre uma estrutura com uma concentração de alunos superior à capacidade física do espaço escolar, dentro de uma concepção que ainda faz a distinção de séries, não se pode esperar que ela funcione, até porque a concentração de estudantes reduz a capacidade do professor de disponibilizar atenção diferenciada aos alunos e a concepção de séries distorce a idéia de ciclo. Em São Paulo, por não existir efetivamente escola em tempo integral na rede estadual, o efeito dessa política é tenebroso. Como o ensino ocorre em meia jornada e não existe um programa de recuperação intensiva fora do horário regular de estudo, os alunos com defasagem de aprendizagem não superam suas dificuldades e, sem conseguirem acompanhar a turma, eles se tornam indisciplinados. Nos quatro anos do ciclo essas defasagens se acumulam e a indisciplina se generaliza. Sem suporte para as escolas aplicarem sanções aos alunos indisciplinados, o sistema não permite a correção efetiva da indisciplina e reproduz a certeza da impunidade.

Com mais de 40 alunos por sala de aula e sem nenhum respaldo contra a indisciplina e a violência na escola, o professor – que muitas vezes trabalha manhã, tarde e noite para garantir a sobrevivência de sua família com um valor tão baixo por cada aula ministrada – esgota todos os seus argumentos para tentar convencer os alunos da importância de estudar, mas o sofrimento de uma pessoa que estudou bastante e não recebe a valorização do Estado e da sociedade serve como argumento contrário. Muitos se cansam e por essa razão passam a freqüentar os consultórios médicos. Nesse ambiente, que tipo de estímulo recebem os alunos? Amontoados em salas de aula depredadas, cujo espaço físico não comporta a quantidade de alunos presente, esses estudantes têm a nítida impressão de que, como as carteiras quebradas depositadas no fundo da classe, não servem mais à sociedade.

De acordo com pesquisa realizada como análise quantitativa e qualitativa sobre a quantidade de matrículas e o desempenho dos alunos das escolas públicas da cidade de São José dos Campos, nos períodos de 1993 a 1996 e 2001 a 2004, antes e depois da implantação estrutura de ciclos de quatro anos com progressão continuada, a situação é aterradora. Tanto nas escolas de periferia, que recebem alunos oriundos de camadas sociais menos favorecidas, quanto nas escolas centrais, que recebem estudantes oriundos de realidades sociais menos desestruturadas, os resultados foram semelhantes. Antes da progressão continuada, 12% dos estudantes apresentavam desempenho escolar com notas acima de 8 e apenas 7% terminavam o ano com notas abaixo de 5. As escolas tinham uma média de 36 alunos por classe e o índice de evasão escolar era de 6%. Depois da progressão apenas 8% dos estudantes apresentaram desempenho escolar com notas acima de 8 e 27% foram aprovados ao final do ano com notas inferiores a 5. A média de alunos por classe subiu para 40 e o índice de evasão escolar atingiu 22%.

Como essa pesquisa analisou recortes distintos, sem transição de uma estrutura para outra, em escolas com realidades que representam bem a desigualdade de nossa sociedade, é possível afirmar que seus resultados servem de modelo para todo o Estado de São Paulo. Com base nesses resultados, fica evidente a perda da qualidade, num curto espaço de tempo, de um ensino que não era dos melhores. Isso somado ao sucateamento e à depredação das escolas explica os resultados obtidos pelo Estado de São Paulo no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). A melhoria da qualidade do ensino está diretamente relacionada à valorização do professor, no seu suporte salarial e na sua autonomia pedagógica, para que possa viver com dignidade e se dedicar a um número menor de alunos. Qualquer coisa fora disso não passa de propaganda e maquiagem.

Fonte: http://professortemporario.wordpress.com/2010/06/30/o-gargalo-da-educacao-em-sao-paulo/

Mortos

Por João Paulo da Silva

- Diga-me, Seu João, por que pensa que está morto?
- Existem evidências, doutor.
Pausa reflexiva do médico.
- O senhor trabalha?
- Sou operário.
- Gosta do que faz?
- Deveria? Está claro que o doutor não percebe as evidências, não é?
- Infelizmente, não. Mas se o senhor estiver disposto a dividi-las comigo, posso tentar perceber.
Nova pausa.
- Algum problema, Seu João? Sente-se à vontade?
- Não muito.
- Quer que feche a janela?
- Não, não, não! Seria o mesmo que fechar a tampa do caixão e pôr a última pá de terra.
- Por que ainda insiste nessa história? Por que pensa que está morto?
- Porque realmente estou.
O médico coça o queixo, intrigado.
- Se está verdadeiramente morto, como posso vê-lo? O senhor é um espírito?
- Não se trata desse tipo de morte.
- De que tipo então?
O paciente deixou um riso debochado escorrer pelo canto da boca. Após um suspiro, provavelmente de impaciência, o médico continuou:
- Diga-me, Seu João, o senhor já amou?
- E o que é o amor? Como é que se sabe quando é amor?
- Bom, o amor é gostar de estar perto, é querer bem o outro ser, é poder completar a si mesmo no outro... essas coisas.
- Isso é pieguice, nada mais.
Silêncio. O médico e o paciente se estudam através de olhares. Por fim, o paciente fala:
- Diga-me, doutor, o senhor “cheira”?
- Já cheirei. Influência freudiana.
- O senhor fuma?
- Dois maços.
- Bebe?
- Socialmente.
- Trepa?
- Não me parece um termo técnico, nem adequado.
- Trepa ou não?
- Às vezes.
- O senhor...
- Espere aí! Receio que o psicanalista aqui seja eu.
- Não, doutor. Todos somos.
Médico sem palavras. O paciente prossegue.
- É por isso, doutor, que pensa que está vivo?
- Isso o quê?
- Fumar, beber, trepar. É por isso?
- Talvez.
- Ouça, doutor, nunca sentiu olhos a lhe vigiar?
- Não.
- Nunca sentiu que lhe controlam a vida? Nunca se sentiu como um cordeiro num rebanho qualquer?
- Isso é absurdo! Ninguém controla minha vida.
O paciente soltou uma risada longa e gorda.
- O senhor me diverte com sua inocência, doutor. Ouça, a sua vida é programada desde o nascimento até o óbito. O senhor faz parte de um sistema, assim como eu e todas aquelas pessoas lá fora. Acordar, comer, trabalhar, votar, fumar, beber, amar, dormir. Estamos presos. Há tempo para tudo, e tudo está delimitado. Mas isso não é o pior. O pior é saber que os outros cordeiros desconhecem o fato, isso realmente é pior. Compreende?
- Eu não sei o que di...
- Não. Não diga nada, doutor. Eu sei como é. Venha comigo até a janela. Olhe lá fora. Vê? As pessoas estão sempre apressadas, atrasadas, ocupadas demais para notar. Vê aquele mendigo ali? E aquele menino no sinal? E aquele sujeito correndo para pegar o coletivo? Vai chegar atrasado na senzala. Venha, vamos nos sentar novamente. Aceita um copo d’água, doutor? Onde fica a geladeira?
- Ali. Ponha um pouco de açúcar, sim?
O médico bebe a água com açúcar que o paciente lhe oferece. Um suspiro longo e um leve arroto, o médico diz:
- Quem controla?
- A resposta para essa pergunta está presente no dia-a-dia, nas relações de “Sim, senhor” e “Não, senhor”. Mas acho que a pergunta que deseja fazer não é quem, e sim por quê?
- Então, por quê?
- Existe uma ordem a ser mantida, doutor.
- E que ordem é essa?
- Ordem e progresso, o meu fracasso é o teu sucesso.
O médico está pálido. O paciente pergunta:
- Ainda se sente vivo, doutor?
- Não muito.
- É, eu sei bem como é estar morto. Venha cá, doutor. Vamos voltar à janela.
Longa pausa. Silêncio entre eles, quebrado apenas pelos barulhos externos. Apitos, buzinas, gritos, gemidos, palavrões, ruídos de fábricas, mãos trabalhando e dedos em máquinas de escrever.
- Você viu, doutor?
- O quê?
- Já passou.
- O quê?
- A vida, doutor. A vida.
Fonte: http://ascronicasdojoao.blogspot.com/

terça-feira, 29 de junho de 2010

BELO MONTE : Cronologia do projeto


1975 - O aproveitamento hidrelétrico da Amazônia, cujo potencial representa 60% do total do país, figura entre as prioridades do projeto desenvolvimentista de industrialização brasileira e começa a ser diagnosticado na década de 70. A recém-criada Eletronorte, subsidiária da Centrais Elétricas Brasileiras - Eletrobras na Amazônia Legal, inicia os Estudos de Inventário Hidrelétrico da Bacia Hidrográfica do Rio Xingu. O trabalho de mapear o rio e seus afluentes e definir os pontos mais favoráveis para barramentos ficou sob a responsabilidade do Consórcio Nacional de Engenheiros Consultores S.A., integrante do grupo Camargo Côrrea.



1980 - Finalizado o relatório dos Estudos de Inventário Hidrelétrico da Bacia Hidrográfica do Rio Xingu. Para o aproveitamento integral da Bacia do Rio Xingu, foram previstos sete barramentos, que gerariam 19 mil megawatts (MW), metade da capacidade instalada nas hidrelétricas brasileiras à época. Essas usinas representariam o alagamento de mais de 18 mil km2 e atingiriam sete mil índios, de 12 Terras Indígenas, além dos grupos isolados da região.

1980 - A partir das recomendações do relatório final do estudo, a Eletronorte inicia os estudos de viabilidade técnica e econômica do chamado Complexo Hidrelétrico de Altamira, que reunia as Usinas de Babaquara (6,6 mil MW) e Kararaô (11 mil MW).

1986 - Concluído o Plano 2010 - Plano Nacional de Energia Elétrica 1987/2010. Propõe a construção de 165 usinas hidrelétricas até 2010, 40 delas na Amazônia Legal, com o aumento da potência instalada de 43 mil MW para 160 mil MW, e destaca: "pela sua dimensão, o aproveitamento do Rio Xingu se constituirá, possivelmente, no maior projeto nacional no final deste século e começo do próximo". Os estudos do Plano indicam Kararaô como a melhor opção para iniciar a integração das usinas do Rio Xingu ao Sistema Interligado Brasileiro. Até então, os estudos de Babaquara eram a prioridade.

1988 - O Relatório Final dos Estudos de Inventário Hidrelétrico da Bacia Hidrográfica do Rio Xingu é aprovado pelo Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (DNAEE), extinto órgão regulador do setor elétrico.

1988 - Paulinho Paikan, líder Kaiapó, Kube-I Kaiapó e o etnobiólogo Darrel Posey, do Museu Emílio Goeldi do Pará, participam, em janeiro, na Universidade da Flórida, em Miami (EUA),de um simpósio sobre manejo adequado de florestas tropicais. Ali, relatam indignados que o Banco Mundial (BIRD) iria financiar um projeto de hidrelétricas no Xingu que inundaria sete milhões de hectares e desalojaria 13 grupos indígenas. Apesar de serem diretamente atingidos, os índios não tinham sido consultados. Foram convidados a repetir o relato em Washington.

1988 - Em março, pelas declarações em Washington, Paiakan e Kube-I são processados e enquadrados na Lei dos Estrangeiros. Quando voltam ao Brasil, recebem o apoio do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi), uma das organizações que originou o Instituto Socioambiental (ISA), que faz campanha mobilizando a opinião pública contra a arbitrariedade. Somente em 16/02/1989, o Tribunal Federal de Recursos decidiria pela concessão de habeas corpus aos dois e também pelo trancamento da ação penal.

Em novembro, lideranças Kaiapó se reúnem na aldeia Gorotire para discutir as barragens projetadas para o Rio Xingu, ocasião em que decidem convidar autoridades brasileiras para um grande encontro com os povos indígenas que seriam afetados pelas usinas. A convite de Paiakan, uma equipe do Cedi participa da reunião na aldeia Gorotire, assessorando os Kaiapó na formalização, documentação e encaminhamento do convite às autoridades.


Tuíra: gesto de advertência a Muniz Lopes

1989 - Realizado o 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, em fevereiro, em Altamira (PA). Patrocinado pelos Kaiapó, conta com a participação da equipe do Cedi desde o início dos preparativos até a implantação, realização e avaliação do encontro. Seu objetivo é protestar contra as decisões tomadas na Amazônia sem a participação dos índios e contra a construção do Complexo Hidrelétrico do Xingu.

O encontro acaba ganhando imprevista notoriedade, com a maciça presença da mídia nacional e estrangeira, de movimentos ambientalistas e sociais. Reúne cerca de três mil pessoas. Entre elas: 650 índios de diversas partes do país e de fora, lideranças como Paulo Paiakan, Raoni, Marcos Terena e Ailton Krenak; autoridades como o então diretor e durante o governo FHC, presidente da Eletronorte, José Antônio Muniz Lopes, o então presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Fernando César Mesquita, o então prefeito de Altamira, Armindo Denadin; deputados federais; 300 ambientalistas, em torno de 150 jornalistas e o cantor inglês Sting. Durante a exposição de Muniz Lopes sobre a construção da usina Kararaô, a índia Tuíra, prima de Paiakan, levanta-se da platéia e encosta a lâmina de seu facão no rosto do diretor da estatal num gesto de advertência, expressando sua indignação. A cena é reproduzida em jornais de diversos países e torna-se histórica. Na ocasião, Muniz Lopes anuncia que, por significar uma agressão cultural aos índios, a usina Kararaô - nome que significa grito de guerra em Kaiapó - receberia um outro nome e não seriam mais adotados nomes indígenas em usinas hidrelétricas. O evento é encerrado com o lançamento da Campanha Nacional em Defesa dos Povos e da Floresta Amazônica, exigindo a revisão dos projetos de desenvolvimento da região, a Declaração Indígena de Altamira e uma mensagem de saudação do cantor Milton Nascimento. O encontro de Altamira é considerado um marco do socioambientalismo no Brasil.

1990 - A Eletronorte envia ao Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica (DNAEE) o Relatório Final dos Estudos de Viabilidade do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte, antiga Kararaô, solicitando sua aprovação e outorga de concessão.

1994 - Novo projeto, remodelado para se mostrar mais palatável aos ambientalistas e investidores estrangeiros, é apresentado ao DNAEE e à Eletrobras. O reservatório da usina, por exemplo, é reduzido de 1.225 km2 para 400 km2, evitando a inundação da Área Indígena Paquiçamba.

1996 - A Eletrobrás solicita autorização à Aneel para, em conjunto com a Eletronorte, desenvolver o complemento dos Estudos de Viabilidade do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte.

2000 - Acordo de Cooperação Técnica é celebrado entre a Eletrobrás e Eletronorte com o objetivo de realizar os Estudos de Complementação da Viabilidade do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte.

2000 - O Plano Plurianual de 2000-2003 - instrumento de planejamento de médio prazo das ações do Governo Brasileiro apresentado ao Congresso -, nomeado Avança Brasil, contempla Belo Monte não apenas como uma obra estratégica para elevar a oferta de energia do país, mas também como um projeto estruturante do Eixo de Desenvolvimento - Madeira/Amazonas.

2000 - A Fundação de Amparo e Desenvolvimento de Pesquisas (Fadesp), vinculada à Universidade Federal do Pará (UFPA), é contratada para elaborar os Estudos de Impacto Ambiental (EIA) do Complexo Hidrelétrico de Belo Monte.

2001 - O Ministério das Minas e Energia anuncia, em maio, um plano de emergência de US$ 30 bilhões para aumentar a oferta de energia no país. Inclui a construção de 15 usinas hidrelétricas, entre as quais o Complexo Hidrelétrico de Belo Monte, que seria avaliada pelo Conselho Nacional de Política Energética - órgão criado em 1997, vinculado ao Ministério de Minas e Energia, voltado à formulação de políticas e diretrizes de energia - em junho do mesmo ano.

2001- Ainda em maio, o Ministério Público move ação civil pública para suspender os Estudos de Impacto Ambiental (EIA) de Belo Monte, cujo pedido é atendido por uma liminar da 4.ª Vara Federal de Belém, porque não houve licitação para a Fadesp, acusada, entre outros, de elaborar o EIA/RIMA das Hidrovia Araguaia-Tocantins e Teles-Tapajós com uma metodologia questionável sob o ponto de vista científico e técnico; a obra deve ser licenciada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e não pelo governo do Pará, já que o Xingu é um rio da União; e os EIA devem examinar toda a Bacia do Xingu e não apenas uma parte dela.

2001 - Governo edita a Medida Provisória 2.152-2 , em junho, conhecida como MP do Apagão, que, entre outras medidas, determina que o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) estabeleça licenciamento simplificado de empreendimentos do setor elétrico de “baixo impacto ambiental”. Estabelece também o Relatório Ambiental Simplificado, aplicável às hipóteses de obras em que não se exigirá o Estudo de Impacto Ambiental.

2001 - O Movimento pelo Desenvolvimento da Transamazônica e Xingu (MDTX), que reúne 113 organizações sociais, elabora, em agosto, um documento intitulado SOS Xingu: um chamamento ao bom senso sobre o represamento de rios na Amazônia.

2001 - Em setembro, Resolução do Conselho Nacional de Política Energética reconhece Belo Monte como de interesse estratégico no planejamento de expansão de hidreletricidade até 2010.

2001 - A Justiça Federal concede, em setembro, liminar à ação civil pública que pede a suspensão dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA) de Belo Monte

2002 - Em janeiro, a Eletrobrás aprova a contratação de uma consultoria para definir a modelagem de venda do projeto de Belo Monte.

2002 - Em março, uma Resolução do Conselho Nacional de Política Energética cria um Grupo de Trabalho (GT) com o objetivo de estudar e apresentar um plano de viabilização para a implantação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. O GT, formado por representantes da Casa Civil da Presidência da República, dos ministérios de Minas e Energia, do Meio Ambiente, da Fazenda, do Planejamento, Orçamento e Gestão; da Eletrobrás, da Eletronorte, da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), da Furnas Centrais Elétricas S.A, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e do Governo do Estado do Pará, deveria envolver também dois representantes da sociedade civil. Wilson Quintella, presidente da Agência de Desenvolvimento Tietê Paraná, parceira da Eletronorte, entretanto, é o único representante nomeado.

2002 - Em março, a Federação dos Trabalhadores da Agricultura Transamazônica promove debate em Altamira (PA) com a participação de representantes indígenas, igreja, políticos locais, ONGs, confederações e federações de agricultores como a Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), Ministério Público, entre outros.

2002 - A Fundação Viver, Produzir e Preservar (FVPP), o Movimento pelo Desenvolvimento da Transamazônica e Xingu (MDTX), o Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), a Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetagri/Regional) e o Conselho Indigenista Missionário - Cimi Norte II enviam, em março, carta ao presidente Fernando Henrique Cardoso pedindo a suspensão de todas as obras de grande impacto na Amazônia, até que haja uma discussão exemplar e a construção de um consenso com a sociedade local.

2002 - Em abril, a Comissão de Minas e Energia realiza audiência pública sobre a construção de Belo Monte, apenas com participantes totalmente favoráveis à obra, entre eles, os deputados federais Nicias Ribeiro (PSDB-PA), Antônio Feijão (PSDB-AP), Josué Bengtson (PTB-PA), Juquinha (PSDB-GO), Marcos Lima (PMDB-MG), Fernando Ferro (PT-PE) e Asdrubal Bentes (PMDB-PA).

2002 - Ainda em abril, o presidente Fernando Henrique Cardoso afirma que a birra de ambientalistas atrapalha o país, referindo-se à oposição e construção de usinas hidrelétricas. “Além do respeito ao meio ambiente, é preciso que haja também respeito às necessidades do povo brasileiro, para que a 'birra' entre os diferentes setores não prejudique as obras, porque elas representarão mais emprego.” Ele menciona que o projeto de Belo Monte foi refeito diversas vezes e que tem um “grau de racionalidade” bastante razoável.

2002 - Encontro das Comunidades da Volta Grande do Rio Xingu, em maio. Participantes produzem carta com diversos pedidos às autoridades que estudam e discutem sobre o setor elétrico brasileiro.

2002 - Realizado o 1o Encontro dos Povos Indígenas da Região da Volta Grande do Rio Xingu, em maio, que reúne cerca de 250 representantes da sociedade civil e povos indígenas, para reafirmar posição contrária à construção de Belo Monte.

2002 - Em junho, cópias dos Estudos sobre a Viabilidade de Implantação do Complexo Hidrelétrico Belo Monte são colocadas à disposição dos interessados na sede da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).

2002 - Em agosto, resolução do Conselho Nacional de Política Energética prorroga para 30 de novembro o prazo para a apresentação do plano de viabilidade para a implantação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.

2002 - Em setembro, MDTX, Fundação Viver, Produzir e Preservar, Prelazia do Xingu, Comissão Pastoral da Terra e Arikafú - Associação dos Povos Xipaya da Aldeia Tukamã enviam carta aos membros do Conselho Nacional de Política Energética exigindo que o órgão tome as providências cabíveis, começando por ouvir todas as partes envolvidas nesse projeto, em especial, os povos indígenas, que nunca tiveram suas proposições consideradas pelo governo.

2002 - O candidato à presidência, Luiz Inácio Lula da Silva lança em setembro, O Lugar da Amazônia no Desenvolvimento do Brasil, quinto caderno temático de seu programa de governo. Além de citar Belo Monte como um dos projetos de intensos debates na região, o documento também afirma que “a matriz energética brasileira, que se apóia basicamente na hidroeletricidade, com megaobras de represamento de rios, tem afetado a Bacia Amazônica. Considerando as especificidades da Amazônia, o conhecimento fragmentado e insuficiente que se acumulou sobre as diversas formas de reação da natureza em relação ao represamento em suas bacias, não é recomendável a reprodução cega da receita de barragens que vem sendo colocada em prática pela Eletronorte”.

2002 - O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Marco Aurélio Mello, nega, em novembro, pedido da União e mantém suspensos os Estudos de Impacto Ambiental de Belo Monte. Segundo o ministro, o artigo 231 da Constituição Federal prevê que é nulo e extinto “todo e qualquer ato” que tenha por objeto a ocupação, o domínio e a posse de terras indígenas, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. Embora a União tenha argumentado que a Constituição Federal não cita o EIA, o presidente do STF considera que a única ressalva do artigo 231 é a existência de “relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar” e, tal lei, ainda não existe. Também contou o fato de a Fadesp ter sido contratada sem licitação, o que poderia pesar sobre o patrimônio público. A defesa da União de que Belo Monte está voltada ao desenvolvimento do potencial energético nacional foi rebatida pelo presidente do STF pela necessidade de se “proceder com segurança, visando-se a elucidar os parâmetros que devem nortear o almejado progresso” e princípios constitucionais respeitados.

2002 - Ainda em novembro, advogados da Eletronorte analisam com a Advocacia Geral da União (AGU) a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).

2002 - A Eletronorte e o Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UnB) promovem, em novembro, o seminário Dinamismo Econômico e Conservação Ambiental: um Desafio para Belo Monte ...e para todos. O objetivo é discutir textos preliminares da pesquisa Dinamismo econômico e conservação ambiental: o caso de Belo Monte, Pará, encomendada pela Eletronorte à UnB, e submeter a críticas os Planos de Desenvolvimento Sustentável da Região de Belo Monte (PDSBM) e o Plano de Inserção Regional (PIR). Entretanto nenhum representante da região, do Ministério Público ou especialista em energia está entre os expositores e debatedores do evento.

2003 - O físico Luiz Pinguelli Rosa assume a presidência da Eletrobrás e declara à imprensa que o projeto de construção de Belo Monte será discutido e opções de desenvolvimento econômico e social para o entorno da barragem estarão na pauta, assim como a possibilidade de reduzir a potência instalada.

2003 (maio) - O governo federal anuncia que vai retomar os estudos de impacto ambiental para a construção da hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, obedecendo às recomendações do Ibama e do Ministério do Meio Ambiente.

2004 (fevereiro) - O novo Presidente da Eletrobrás, Luis Pinguelli Rosa, afirma pela imprensa que a Hidrelétrica de Belo Monte deve ser considerada um “projeto nacional” e se compromete a realizar consultas e de negociações em relação à obra.

2005

Julho - O Projeto de Decreto Legislativo (PDC) nº 1.785/05, que autoriza a implantação da Usina Hidrelétrica (UHE) de Belo Monte (PA), é aprovado pela Câmara, no dia 6 de julho. Comunidades locais atingidas não foram ouvidas, conforme determina a Constituição Federal, que afirma que o aproveitamento dos recursos hídricos em Terras Indígenas só pode ser efetivado com “autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas”.

Uma semana depois, o Senado também aprova o projeto (agora denominado PDS nº 343/05) que autoriza implantação de Belo Monte. Segue para promulgação sem que tenham sido ouvidos os nove povos indígenas que poderão ser atingidos seriamente pelo empreendimento. - No dia 14 de julho, é lançado o livro Tenotã-Mõ, Alertas sobre as consequências dos projetos hidrelétricos no Rio Xingu, que tem a participação do ISA. Em artigo na publicação, o professor Oswaldo Sevá, da Unicamp, aponta que, por simulações feitas para o período de 1931 a 1996, a usina só seria capaz de garantir uma potência de 1.356 MW ao longo do ano, com picos de 5 mil MW durante apenas três meses, diferentemente do divulgado pelo governo federal. - No dia 21/7, ISA, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Greenpeace e Centro dos Direitos das Populações da região do Carajás entram com representação na Procuradoria Geral da República contra a implantação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte no Pará, aprovada pelo Congresso Nacional. A representação ao procurador-geral da República se baseia no fato de que o Congresso Nacional autorizou os estudos sem ouvir as populações que serão afetadas. - De 13 a 15 de julho, em Altamira, um seminário com a presença de vários especialistas discute com a comunidade todas as implicações da construção da usina.

Agosto - Com base na representação encaminhada pelas organizações da sociedade civil, a Procuradoria Geral da República ingressa, no dia 26 de agosto, com Ação Direta de Inconstitucionalidade(Adin) no STF, contra o decreto que autoriza a implantação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e a realização de Estudos de Impacto Ambiental (EIA) sobre a obra. O procurador-geral da República, Antônio Fernando de Souza, pede o deferimento de medida liminar para suspender os efeitos do decreto.

Outubro - Depois de ter apresentado representação ao Procurador Geral da República denunciando irregularidades no Decreto Legislativo 788/05, que autoriza a implantação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte no Rio Xingu, na região de Altamira (PA), o Instituto Socioambiental, em conjunto com o Greenpeace, o Fórum Carajás e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), ingressa, no dia 10 de outubro, com um pedido de Amicus Curiae(amigo da causa, em português) junto ao Supremo Tribunal Federal para que possa participar da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3573 e demonstrar os problemas existentes com a usina e com o processo que pretende autorizar sua implantação. Na petição apresentada, as organizações trazem ao STF uma série de informações relevantes sobre o projeto e suas conseqüências socioambientais, para que o tribunal possa contextualizar a questão.

Dezembro - Por sete votos a quatro, o Supremo Tribunal Federal (STF) julga inapropriado o meio utilizado, isto é, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), para questionar a constitucionalidade do Decreto Legislativo nº 788/05, que autorizou a implantação de Belo Monte, na região de Altamira, no Pará. A decisão contraria o relator do processo, ministro Carlos Britto, que havia julgado pela aceitação da ação.

2006

Março - O processo de licenciamento ambiental da usina hidrelétrica de Belo Monte é suspenso por liminar concedida no dia 28 de março. Decisão impede que os estudos sobre os impactos ambientais da hidrelétrica prossigam antes que os povos indígenas que seriam afetados pelo empreendimento sejam ouvidos pelo Congresso Nacional.

Outubro - No primeiro debate televisivo dos candidatos à Presidência da República, no dia 8 de outubro, Luis Inácio Lula da Silva (PT) e Geraldo Alckmin (PSDB) citam os polêmicos projetos de construção das hidrelétricas de Tijuco Alto, no rio Ribeira de Iguape, na divisa entre São Paulo e Paraná, e de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará.

2007

Março - Um ano após a Justiça Federal de Altamira paralisar liminarmente o licenciamento ambiental da usina, ela mesma volta atrás e julga improcedente o pedido do Ministério Público Federal (MPF) de anular o licenciamento ambiental feito pelo Ibama. A decisão abre precedente negativo ao afirmar que o Congresso Nacional pode autorizar a implantação de usinas hidrelétricas em terras indígenas sem necessidade de lei específica e tampouco de consulta aos povos afetados. No dia 16, o Supremo Tribunal Federal já havia autorizado a continuidade do licenciamento ambiental ao derrubar liminar que havia sido proferida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Com a sentença, a decisão do tribunal superior perde eficácia, já que se referia a uma decisão preliminar.

Outubro - Em encontro promovido pelo Ministério Público Federal (MPF) no Pará, reuniundo especialistas na questão energética e representantes de comunidades do rio Xingu para discutir os empreendimentos hidrelétricos na Amazônia, o especialista Glenn Switkes, diretor na América Latina da International Rivers Network, revela os planos da Eletrobrás para barragens no rio Xingu. A informação, contida na revisão do inventário energético do rio, é de que pelo menos cinco barramentos foram considerados possíveis e importantes pela estatal. Se todas virarem realidade, o alagamento total pode chegar a 12 mil km2.

2008

Maio - Encontro Xingu Vivo para Sempre reúne representantes de populações indígenas e ribeirinhas, movimentos sociais, organizações da sociedade civil, pesquisadores e especialistas, para debater impactos de projetos de hidrelétricas na Bacia do Rio Xingu: a construção prevista da usina de Belo Monte, que faz parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), e de pequenas centrais hidrelétricas (PCHs). A mobilização ocorre 19 anos depois do I Encontro de Povos Indígenas, realizado em Altamira, que reuniu três mil pessoas - 650 índios - para protestar contra a construção já prevista de cinco hidrelétricas no Rio Xingu, Belo Monte entre elas. Durante o encontro de 2008, índios entram em confronto com responsável pelos estudos ambientais da hidrelétrica de Belo Monte e, no meio da confusão, o funcionário da Eletrobrás e coordenador do estudo de inventário da usina, Paulo Fernando Rezende, fica ferido, com um corte no braço. Após o evento, o Movimento divulga a Carta Xingu Vivo para Sempre, documento final que avalia as ameaças ao Rio Xingu, apresenta à sociedade brasileira um projeto de desenvolvimento para a região e exige das autoridades públicas sua implementação.

- O Tribunal Regional Federal da 1ª. Região, de Brasília, suspende uma liminar da Justiça Federal de Altamira e autoriza a participação das empreiteiras Camargo Corrêa, Norberto Odebrecht e Andrade Gutierrez nos Estudos de Impacto Ambiental da hidrelétrica de Belo Monte. MPF do Pará recorre contra privilégios para empreiteiras e defende necessidade de licitação para escolher os responsáveis pelo EIA-Rima.

2009

Maio - Xingu Vivo para Sempre exige diálogo sobre a Avaliação Ambiental Integrada (AAI) da Bacia do Rio Xingu em carta divulgada após evento ocorrido em Altamira, no Pará. O encontro, que não tem a participação de lideranças indígenas e ribeirinhas, as principais afetadas por obras como a construção de Belo Monte e Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), deveria apresentar resultados preliminares da Avaliação Ambiental Integrada (AAI) da Bacia do Rio Xingu e gerar diretrizes para compor a versão final dos estudos. A carta apresentada pelo Movimento exige análise e consentimento dos povos atingidos pelos empreendimentos.

Julho - Xingu Vivo para Sempre divulga carta após declaração do ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, de que ‘ambientalistas e ONGs atrapalham a construção das hidrelétricas, penalizando a sociedade com energia mais cara’. O Movimento questiona se os gastos justificam tal empreendimento, cujos estudos de viabilidade econômica ainda não haviam sido entregues pelo consórcio à sociedade, impedindo definição sobre se a energia de Belo Monte será mais barata ou mais cara. No mesmo mês, em reunião com representantes de movimentos sociais do Xingu, procuradores da República, o bispo da Prelazia do Xingu e presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Dom Erwin Kraütler, e cientistas, o Presidente da República garante que Belo Monte só sai após ampla discussão e se for viável. Apesar disso, o leilão para concessão da hidrelétrica é anunciado para 2009. -Indígenas entregam requerimento pedindo a Lula realização de consulta livre, prévia e informada com os povos indígenas que serão atingidos pela construção da usina.

Setembro - São realizadas quatro audiências públicas sobre Belo Monte, em seis dias, nas cidades de Brasil Novo, Vitória do Xingu, Altamira e Belém, revelando as fragilidades dos estudos e diversas lacunas no processo de licenciamento. O EIA completo só é disponibilizado dois dias antes da primeira audiência, sem tempo para uma análise qualificada pelas comunidades atingidas. O Ministério Público Federal (MPF) apresenta recomendação ao Ibama para realização de pelo menos mais treze audiências, de forma a incluir mais regiões que serão atingidas. De acordo com estudos iniciais, a usina de Belo Monte afetará direta e indiretamente 66 municípios e 11 Terras Indígenas.

Outubro - Organizações e redes da sociedade civil divulgam moção contra Belo Monte durante o seminário "Clima e Floresta em debate: REDD e mecanismos de mercado como salvação para a Amazônia?", realizado em Belém (PA). A ‘Moção de solidariedade aos povos originários e às populações tradicionais do Xingu, contra a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte’ afirma que a aliança entre os povos da floresta será capaz de barrar a ofensiva do grande capital sobre a Amazônia e que Belo Monte não passará. Um painel formado por 40 especialistas lança documento com análises do projeto hidrelétrico de Belo Monte. Os pareceres são entregues ao Ibama para servir como insumo da análise sobre a viabilidade ambiental do projeto, e ao MPF, para verificar se há violações da lei, dadas as graves consequências da obra. - Seminário realizado em 26 de outubro, em Altamira, apresenta e debate, com a sociedade, os resultados da análise do painel de especialistas sobre o Estudo de Impacto Ambiental da hidrelétrica de Belo Monte. - Lideranças Kayapó mandam carta a Lula, pedindo para serem ouvidos em audiência pública sobre Belo Monte. Entre as lideranças que assinam a carta está o cacique Raoni. - Funai libera construção de Belo Monte apesar de não saber quais serão seus impactos sobre os povos indígenas, contrariando seu próprio parecer técnico. Em ofício ao Ibama, o órgão oficial indigenista considera empreendimento “viável, observadas as condicionantes”, embora reconheça que o EIA/Rima de Belo Monte não dimensionou corretamente todos os impactos e tampouco apresentou propostas concretas de como evitar ou diminuir aqueles esperados sobre os povos indígenas da região.

Novembro

- Caso de Belo Monte é apresentado em audiência pública da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em Washington, capital dos Estados Unidos. O encontro trata do impacto causado pelas grandes barragens na América Latina no que se refere a direitos humanos e meio ambiente. A audiência é uma solicitação de mais de 40 organizações ambientalistas nacionais e internacionais, além de comunidades afetadas, que apresentam as conclusões do relatório "Grandes Barragens na América. É o remédio pior que a doença?”, preparado pela Associação Interamericana para a Defesa do Ambiente (AIDA), em coordenação com várias entidades. - Indígenas dizem não a Belo Monte em reunião na aldeia Piaraçu, na Terra Indígena Capoto-Jarina (MT), com 284 representantes de 15 diferentes etnias. Motivados pelo fato de o projeto estar sendo levado adiante sem diálogo com as comunidades indígenas e por declaração do ministro Edson Lobão, das Minas e Energia, em setembro, sobre a existência de "forças demoníacas" contrárias aos projetos hidrelétricos, eles ameaçam ir à guerra caso as obras se iniciem. - Representantes de povos indígenas, ribeirinhos, extrativistas, ONGs, agricultores e movimentos sociais analisam os impactos da construção de Belo Monte e produzem parecer próprio sobre o projeto, durante o II Encontro dos Povos da Volta Grande do Rio Xingu, na Vila da Ressaca. Em carta, os participantes manifestam indignação por que se sentem excluídos do processo e denunciam a falta de esclarecimentos às dúvidas que apresentaram às empresas que elaboraram o EIA e também nas audiências públicas realizadas em setembro. - No dia 10, Justiça Federal suspende licenciamento e determina novas audiências para Belo Monte, acatando pedido do Ministério Público para que as comunidades atingidas sejam, de fato, ouvidas. No dia 11, cai a liminar que suspendeu o licenciamento de Belo Monte e o Ibama volta a analisar o projeto. Sem a licença prévia do Ibama, o governo não pode realizar o leilão de concessão do projeto da hidrelétrica, previsto para dia 21 de dezembro. - Belo Monte é tema de audiência pública no Senado no dia 19. A Comissão de Direitos Humanos de Legislação Participativa debate os termos do EIA com a presença do procurador da República em Altamira (PA), Rodrigo Timóteo. O secretário executivo do Ministério de Minas e Energia, Márcio Zimmerman, levanta a possibilidade de que o leilão para a concessão da hidrelétrica, previsto para 21 de dezembro, seja adiado para janeiro de 2010, tendo em vista que o prazo original foi afetado pela falta da licença prévia ambiental. O ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, diz que a licença do Ibama sai quando todas as pendências estiverem solucionadas. - Depois de 20 anos, o cantor britânico Sting e o cacique kayapó Raoni reunem-se em São Paulo para conversar sobre a construção da hidrelétrica de Belo Monte, razão que os uniu pela primeira vez, em fevereiro de 1989, em Altamira, no Pará.

Dezembro - A 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (Índios e Minorias) do Ministério Público Federal promove Audiência Pública sobre a construção da usina, dia 1º, em Brasília, com o objetivo de obter explicações definitivas sobre a insistência do governo federal em construir o empreendimento e seus reais impactos e conseqüências, com a presença das autoridades envolvidas na construção da usina. Entretanto, o governo não comparece. Funai, Ibama, Ministério de Minas e Energia, Eletrobrás e Eletronorte, órgãos diretamente relacionados à obra, nem mandam representantes.

- Diversos representantes de povos indígenas (Arara, Guarani, Juruna, Kaiapó, Xavante, Xipaia, Xicrin e Yanomami) presentes lançam um manifesto, denunciando o descaso do governo federal. O texto fala de 20 anos de luta dos povos indígenas contra o projeto de Belo Monte e conclui com a mensagem de que o Rio Xingu pode virar um “Rio de sangue”. - No dia 2,indígenas e ribeirinhos fazem ato na rampa do Senado contra hidrelétrica de Belo Monte, após audiência pública da Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado Federal, na qual apenas o diretor de Assistência e presidente substituto da Funai, Aloysio Guapindaia, comparece. Eletrobrás e Ibama não enviam representantes e sequer justificam a ausência para a comissão. Durante o evento, a índia kayapó Tuíra – que, em 1989 empunhou um facão contra o atual presidente da Eletrobrás, José Antonio Muniz Lopes, então diretor da Eletronorte, em um protesto em defesa do Xingu – fica de pé em frente à mesa da Comissão de Direitos Humanos e aponta o dedo para o representante da Funai, dizendo que o governo os abandonou e agora ele mesmo os ameaça. - Os indígenas participam, ainda, de reuniões no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) e no Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais (Ibama). Na mesma semana, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) envia ao relator da Organização das Nações Unidas (ONU), James Anaya, uma carta denunciando a violação do direito de consulta livre, prévia e informada, previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e na Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas. O documento descreve o processo unilateral e atropelado do licenciamento e a violação do direito de consulta prévia, confirmando o descaso do governo brasileiro e a falta de diálogo com os povos indígenas sobre Belo Monte. Coiab e ISA solicitam que o relator recomende ao Estado brasileiro que realize as devidas consultas antes do leilão da obra.

2010

Fevereiro -Ministério do Meio Ambiente libera Belo Monte sem conhecer os impactos da obra. A licença ambiental para construção da usina, publicada no dia 1º de fevereiro de 2010, demonstra que questões centrais para avaliar o impacto da obra ainda não estão esclarecidas.Parecer Técnico do Ibama, do final de novembro de 2009 e que não foi disponibilizado na internet, denuncia pressão política da Presidência da República para liberar a obra e indica que os estudos, superficiais, não conseguem prever o que acontecerá com os peixes num trecho de mais de 100 km de rio, e consequentemente com as pessoas que deles sobrevivem, sobretudo as comunidades indígenas ribeirinhas.

- A Eletrobrás anuncia que será sócia na futura empresa a ser criada pelos vencedores do leilão de concessão da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu. O presidente da estatal, José Antônio Muniz Lopes, disse em 5/2,que caberá ao conselho de administração definir como será a participação da empresa no leilão da hidrelétrica, previsto para abril. - A Vale e a Neoenergia entram na disputa pela hidrelétrica de Belo Monte unindo-se à Andrade Gutierrez e à Votorantim Energia em consórcio. - A CNBB defende, em 24/2, a paralisação do processo que autoriza a construção da hidrelétrica de Belo Monte (PA), maior projeto do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento).

Março - O custo total estimado pelo governo para a construção da usina foi elevado em relação aos R$ 16 bilhões previstos inicialmente. O novo valor não deverá ser superior a R$ 20 bilhões.

Fonte: http://www.socioambiental.org

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Na Grécia professores ocupam TV Pública


Fonte: http://www.rupturafer.org/index.php?option=com_hwdvideoshare&task=viewvideo&Itemid=538&video_id=15

Qual emissora brasileira merecia ser ocupada pelos professores?

Belo Monte: um crime ambiental

Apesar dos protestos, no último dia 22 o governo conseguiu concluir o leilão de concessão da construção da usina de Belo Monte. O projeto, criado pela ditadura militar e ressuscitado por Lula, prevê a construção da terceira maior usina do mundo no rio Xingu.

A usina terá impacto brutal no meio ambiente e nos povos da floresta. É bem provável que represente um dos maiores ataques à ecologia das últimas décadas. Calcula-se por baixo que a usina fará sumir cerca de 50 mil hectares da Floresta Amazônica, além de cidades e vilarejos indígenas. Destruir um ecossistema como esse é o mesmo que queimar livros que a humanidade ainda não leu.

O consórcio vencedor já anunciou que pretende mudar o projeto para reduzir os custos da obra, que prevê escavações dos dois canais, cada um com cerca de 30 quilômetros de extensão, cujo volume de terra a ser retirado (de 230 milhões de metros cúbicos) é maior do que o retirado na construção do canal do Panamá. O impacto socioambiental de obra desse tipo será brutal.

“Normalmente, o impacto ambiental das hidrelétricas acontece com os alagamentos. Em Belo Monte, o impacto será duplo: além do alagamento, será preciso secar outra região, porque o rio terá que ser desviado. Isso nunca aconteceu no país e torna o projeto mais arriscado”, disse Francisco Hernandez, pesquisador do Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP, que também coordenou um painel com 40 especialistas para estudar a obra.

Os povos indígenas que dependem do Xingu serão os mais atingidos. A construção da usina vai diminuir a vazão do rio, provocando a morte de várias espécies de peixe que servem de alimento e de base para a economia local.

Em 1989, os povos indígenas chamaram a atenção do mundo quando realizaram o 1º Encontro dos Povos Indígenas do Xingu e conseguiram fazer o governo recuar para uma revisão dos planos. Desde então, inúmeras personalidades declararam apoio à luta contra a construção. Recentemente, o cineasta James Cameron declarou que a história de seu filme “Avatar” pode ser comparada à luta dos indígenas contra Belo Monte.

Somam-se ainda as nefastas consequências socioambientais, como o deslocamento de milhares de pessoas para as cidades da região. Isso vai potencializar os problemas sociais destas cidades, ampliando a ocupação desordenada e a favelização.

O governo também é acusado de agir de forma autoritária. Sequer ouviu as populações locais.

Recentemente, o Ministério da Justiça editou uma descabida portaria que permite o uso da Força Nacional de Segurança Pública no Distrito Federal em apoio à Funai. A intenção é clara: criminalizar qualquer tipo de resistência promovida pelos povos indígenas contra as obras do PAC ou Belo Monte.

Um presente para empresários
A intervenção do governo para garantir o leilão de Belo Monte lembrou as cenas da privatização da Telebrás, realizada pelo governo FHC. Na época, o governo tucano atuou diretamente para beneficiar o capital privado.

Com a Belo Monte não foi diferente. Os dois consórcios que disputavam o leilão receberam generosos aportes financeiros do governo. Ambos tiveram a participação de estatais como manobra para alavancar o caixa dos empresários privados.
A Chesf, estatal ligada à Eletrobras, integra o consórcio vencedor (formado pela construtora Queiroz Galvão, Gaia Energia, J. Malucelli e Mendes Júnior). Já as estatais Furnas e Eletrosul participavam do segundo consórcio (integrado pela Andrade Gutierrez e pela mineradora Vale). Em ambos os casos, a participação das estatais não supera 49,9% do aporte, deixando a maioria para as empresas privadas.

Para ajudar ainda mais os empresários e afastar qualquer risco no negócio, o governo anunciou antes do leilão que a estatal Eletronorte poderá assumir até 35% de participação no empreendimento.

Mas tudo isso não bastou. O governo resolveu injetar mais dinheiro público nas mãos dos empresários e escalou o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento) para ajudá-los. O banco vai financiar 80% dos recursos da obra, estimada em mais de R$ 19 bilhões. Os empresários terão 30 anos para pagar o empréstimo, o maior prazo da história da instituição.

Qual seria a alternativa?
Construir uma grande hidrelétrica movimenta uma montanha de dinheiro e atrai enorme visibilidade política. Belo Monte vai custar mais de R$ 19 bilhões, segundo o governo. As empreiteiras, porém, estimam a obra em R$ 30 bilhões.

O projeto vai vitaminar a campanha de Dilma Rousseff, reforçando a imagem de “mãe do PAC”. Também será uma ocasião para as empreiteiras reforçarem o caixa da campanha eleitoral do PT. Além disso, obras como essa são uma enorme fonte de corrupção.

O governo Lula diz que a usina é necessária, pois evitará a ameaça de um novo apagão, especialmente no Sul e no Sudeste. Mas há motivos de sobra para desconfiar dessas palavras. Em primeiro lugar, é difícil acreditar que a maior parte da energia produzida em Belo Monte será destinada a essas regiões. Para isso, o governo teria que investir pesado em linhas de transmissão, o que não está e nem será feito.

A verdade é que os milhões de quilowatts servirão para subsidiar energia para grandes empresas exportadoras de matérias-primas como Alcoa, Votorantim, Vale, Gerdau e CSN. Todas elas participaram do leilão de Belo Monte.
Há alternativa para a produção de energia além do modelo de mega-hidrelétricas? Uma mudança profunda de padrão energético só será possível com uma transformação radical da sociedade (ver páginas 8 e 9).

Contudo, especialistas apontam que a produção de energia poderia aumentar apenas com investimentos que potencializariam novamente usinas hidrelétricas com mais de 20 anos, através da troca de equipamentos e da modernização de componentes e sistemas.

Por outro lado, o país precisa investir em fontes energéticas não poluentes. Uma boa alternativa é a energia eólica. Segundo o Atlas Eólico, lançado pela Aneel e pelo Ministério das Minas e Energia, o potencial eólico do Brasil é de 143 mil megawatts (MW). Só para comparar, a capacidade da hidroelétrica de Itaipu é de 14 mil MW. Mesmo assim, a meta do governo é produzir apenas 10 mil MW até 2020. Como o governo investe pouco neste tipo de energia, a capacidade instalada no país.

Fonte: http://defesadotrabalhador.blogspot.com

Universidades: burocratização, mercantilização e mediocridade (2ª Parte)

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Por Marcelo Lopes de Souza [*]

As crescentes burocratização e mercantilização do mundo acadêmico são facilitadas pelo fato de os objetos de conhecimento e os ambientes de trabalho predominantes de várias das ciências sociais terem sempre sido o Estado e o mercado capitalista e não os movimentos sociais e suas organizações.

[Pode ser lida aqui a primeira parte deste artigo.]

A burocratização e a mercantilização têm propiciado as condições ideais para que os “inovadores” se vejam, cada vez mais, acuados por “burocratas” e “(micro)empresários”. Ao mesmo tempo, a impressão que se tem é de que cresce a quantidade destes em comparação com a quantidade de “inovadores” e mesmo de bons “disseminadores”. Na realidade, o que ocorre é que se multiplicam as recompensas para “inovadores” que, candidatos a “caciques”, aceitem absorver algumas das técnicas e artimanhas de “burocratas” e “(micro)empresários”.

Em tempo, para evitar um mal-entendido: “inovador” não é sinônimo de “gênio”. Não se parte do pressuposto delirante de que, para atuar e ser reconhecido por seus pares como um “inovador”, cada professor universitário deve revolucionar sua área de conhecimento, ter livros traduzidos para uma dúzia de línguas estrangeiras ou colecionar prêmios nacionais e internacionais – da mesma forma como não se deve imaginar que, para disseminar competentemente o saber e comunicar-se bem com os pares, os estudantes e o público leigo, seja preciso que o professor possua um incomum talento retórico e uma vocação para “celebridade” midiática. A única premissa é aquela que, inclusive, está embutida nas exigências institucionais mais corriqueiras: que o professor universitário seja, também, um pesquisador, e que, do mesmo modo como se espera que ele, enquanto docente, ministre boas aulas, possa ele, na qualidade de pesquisador, gerar (criar) conhecimento novo.

Ademais, não é o caso de, hipocritamente, negar que é geralmente muito bom que um ou outro colega com talento e capacidade administrativos revele interesse em assumir cargos na administração acadêmica. O princípio da administração da universidade por ela própria, tão deformado no Brasil (porque, ao mesmo tempo em que falta uma genuína autonomia, escasseia a infraestrutura de suporte), implica que as funções de direção, nos diversos níveis, devem ser exercidas por quadros docentes, e não por funcionários que nada tenham a ver diretamente com o ensino e a pesquisa. Além disso, quando as condições materiais e institucionais propiciam o respeito e a cooperação necessários, a administração acadêmica pode, inclusive, assumir traços de atividade de formulador de políticas e estratégias acadêmico-institucionais, exigindo do ocupante do cargo qualidades como arrojo, senso de oportunidade (o que é diferente de oportunismo), vontade de inovação, etc. Nessasmeramente burocrática; exige-se uma certa “representatividade”, um certo prestígio acadêmico para estar à frente, formalmente, como um “primeiro entre pares”. (Nem é preciso dizer que há, sem dúvida, “panelinhas” e interesses extra-acadêmicos em jogo mesmo nos ambientes acadêmicos de melhor nível. Apenas trata-se de reconhecer, aqui, o grande peso dos fatores propriamente vinculados à referida “representatividade”.) Não é isto, lamentavelmente, que o processo de burocratização nas condições de um país semiperiférico como o Brasil costuma engendrar como resultado. Pelo contrário: enquanto cargos de direção são geralmente evitados pela maioria por serem um fardo pouco ou nada compensador em matéria de reconhecimento público, há os que se “especializam” em fazer desses cargos o seu “nicho ecológico” básico, sem que, entretanto, necessariamente tenham a capacidade ou mesmo a vontade de inovar administrativamente ou nem sequer reformar o que quer que seja de modo consistente. condições, exercer um cargo acadêmico pode ser, até mesmo do ponto de vista intelectual (para não falar no “prestígio”, nos marcos de uma sociedade heterônoma que reproduz hierarquias), algo compensador. Não é à toa que, nos institutos e departamentos daquelas que são consideradas as melhores universidades do mundo, os cargos de direção mais diretamente vinculados ao quotidiano dos institutos e departamentos geralmente não são confiados a alguém por conta de sua capacidade

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Dificilmente um “burocrata” ou um “disseminador” se transforma, de estalo, em um “inovador”. Torna-se cada vez mais provável, entretanto, que “inovadores”, exaustos ou desapontados com a escassez de estímulos materiais e imateriais, joguem cada vez mais cedo a toalha no ringue – mesmo que isso se dê sob a forma de um processo gradual, e não subitamente –, convertendo-se em “burocratas” ou “disseminadores” (ou, em alguns casos, em “(micro)empresários”). Do ponto de vista das relações de poder, particularmente grave é quando os “caciques” tornam-se “caciques” em grande parte por seu poder de influência como “burocratas” ou “(micro)empresários” (ou “disseminadores”), sendo o seu papel como “inovadores” pequeno ou inconsistente.

Os “caciques”, a propósito, são uma “espécie” politicamente crucial, ao mesmo tempo em que possui traços muito peculiares. Ao ingressar na carreira acadêmica, o jovem docente demonstrará, não raro desde o princípio, se seu perfil fundamental é o de um “inovador”, de um “disseminador” ou de um “burocrata”. O estabelecimento como um “(micro)empresário”, ao menos por enquanto, é coisa que exige mais tempo (uma vez que se leva algum tempo até poder mobilizar os recursos necessários à atuação como consultor – prestígio, contatos, formação de equipe etc.), e mais tempo ainda se requer para que se atinja a condição de “cacique”. Se, em condições “ideais”, seria de esperar que um “cacique”, por ser muitas vezes uma figura pública influente, ou mesmo uma “estrela”, deveria chegar a essa condição com base em seus méritos e em sua contribuição sobretudo (ainda que não exclusivamente) como “inovador”, o que se observa no Brasil é que isso cada vez menos parece corresponder à realidade.

O problema não é somente o de que “caciques” nem sempre são “inovadores” consistentes, sendo, isso sim, algumas vezes, “pseudoinovadores”: ou seja, alguém que, vítima em certos casos de autoengano, pensa que está verdadeiramente inovando, mas está, na realidade, reinventando a roda (tornando-se, com isso, apenas um tipo sofisticado de “disseminador”). Em um ambiente em que nem sempre se conhece e acompanha direito a literatura de sua área como seria desejável (nem mesmo aquela em português, o que dirá aquela em línguas estrangeiras), esse tipo de deformação é um importante e constante risco. O problema é ainda mais sério quando a capacidade de falar o idioma do poder acadêmico-burocrático prepondera nitidamente, como fonte de prestígio, sobre a capacidade de criar e transmitir ideias. Nessas circunstâncias, está-se diante de um “paradoxo astronômico”: o “cacique” é uma “estrela” que brilha… sem possuir luz própria.

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As crescentes burocratização do mundo acadêmico e mercantilização da produção intelectual são grandemente facilitadas pelo fato de que os “loci de referência discursiva” (= os objetos reais com referência aos quais se definem e constroem os objetos de conhecimento) e os “loci de construção discursiva” (= os ambientes concretos nos e a partir dos quais o trabalho intelectual é elaborado) predominantes de várias das ciências sociais sempre foram o Estado e o mercado capitalista, e não os movimentos sociais e suas organizações. Quanto a isso, os casos mais “didáticos” têm sido, provavelmente, a Economia e a Ciência Política, mas a Geografia Humana também deve ser lembrada – por exemplo, por conta de seu envolvimento, que frequentemente passa ao largo de qualquer senso crítico, com o planejamento urbano e regional promovido pelo Estado.

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É uma triste e preocupante realidade, além disso, que a burocratização não implica somente o aumento da população daqueles que são, acima de tudo, “burocratas”. Praticamente todos os pesquisadores têm sido submetidos a diferentes pressões “burocratizantes” (por parte de agências de fomento, das universidades, etc.), as quais têm levado a que se gaste cada vez mais tempo elaborando e avaliando projetos, havendo, por outro lado, cada vez menos tempo e tranqüilidade para gerar conhecimento novo.

Diante de todo esse quadro, quem mais se vê comprometido com o risco de incoerência são os docentes e pesquisadores que, à luz de suas biografias e autodefinições, representariam alguma modalidade de pensamento socialmente crítico. O “olhar de longe e do alto” nas ciências sociais, bastante típico da Economia e da Ciência Política, mas também da Geografia Humana, pode, eventualmente, até ser considerado como perfeitamente legítimo do ângulo do pensamento crítico, em uma circunstância: caso seja realizado com a finalidade de se ganhar visão de conjunto e apreender fenômenos somente apreensíveis nas escalas de representação dos grandes espaços, e não por distanciamento em relação aos “mundos da vida”, ao quotidiano dos atores sociais concretos. Mas, se for valorizado com exclusividade ou nítida prioridade, será uma “visão de sobrevôo” similar àquela que é própria do Estado, a qual serve à classificação e ao controle sociais. Essa “visão de sobrevôo” hipervalorizada pode ser compatível ou compatibilizável com a burocratização do mundo acadêmico e a mercantilização da produção intelectual. Entretanto, a disposição de abraçar ou manter um compromisso ético-político com a mudança sócio-espacial vai sendo minada ou dificultada no longo prazo pela burocratização e pela mercantilização, que levam a uma tendência de distanciamento crescente dos ambientes acadêmicos relativamente às circunstâncias espaço-temporais em que é possível observar as contradições e os conflitos sociais “de perto” e mesmo “de dentro” (o que pressupõe incorporar a perspectiva do insider, do “mundo da vida”).

[*] Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Ilustrações: gravuras de Goya.

Fonte: http://passapalavra.info/?p=23469

Universidades: burocratização, mercantilização e mediocridade (1ª Parte)

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Por Marcelo Lopes de Souza [*]
o Brasil e em todo o mundo, as universidades vão-se adaptando às necessidades do capitalismo que as sustenta. Burocratizaçao e mercantilização condicionam a sua vocação de crítica e de criação de novos conhecimentos.


[A segunda parte deste artigo pode ser lida aqui.]


A finalidade deste artigo é convidar à reflexão em torno do avanço da burocratização e da mediocridade no universo acadêmico. Burocratização e mediocridade essas que, no fundo, constituem realidades complementares e interdependentes, as quais produzem, como resultado, mais burocratização e mais mediocridade, em uma espiral ascendente em cujo contexto a dimensão qualitativa subjacente à ideia normativa da universidade como locus, entre outras coisas, de produção de conhecimento novo, é cada vez mais subjugada e engolida pela realidade da “lógica”burocrática. O resultado é, nos planos formal e informal, cada vez mais uma “caquistocracia” acadêmica, ou seja, um “governo dos piores” no interior das universidades.

Não se está a falar apenas do Brasil. O problema em questão não é exclusividade de nenhum país e denenhum campo do conhecimento (“disciplinas” ou “campos interdisciplinares”). A burocratização do mundo universitário, atravessada e agravada por processos como a galopante mercantilização do saber acadêmicoe as diversas formas e modalidades de “privatização” das universidades (que vão desde a pressão para o financiamento privado das pesquisas até a venda de serviços de consultoria e cursos para o universo empresarial como estratégia de complementação salarial), é algo observável em escala mundial. Entretanto, diferentes países e campos do conhecimento sofrem essa experiência de maneiras e com intensidades distintas.

Parece evidente que diversas características do capitalismo contemporâneo (de)formam o ambiente universitário, cada vez mais, de modo a transformar alunos e orientandos em “clientes”; docentes e pesquisadores em “prestadores de serviços intelectuais”; e o conhecimento gerado e transmitido em“produtos”, cuja medida de valor deve ser estabelecida pelo e por meio do mercado. É o mundo da mercadoria corrompendo e modelando o quotidiano dos ambientes de geração de saber que, por muito tempo, e não inteiramente sem razão, puderam ser considerados, mesmo por intelectuais críticos, como espaços criativos e de inovação, ainda que via de regra elitizados e altamente hierárquicos.

Não se deseja, com isso, parecer simplista, mas somente chamar a atenção para o fato de que juízos puramente morais não fornecem um padrão explicativo inteiramente válido do quadro que temos diante de nós. É seguro que isso não autoriza um enfoque “economicista”, o qual negligencie que um fator poderoso (e que não é simplesmente derivável de determinações econômicas) são as mudanças no plano simbólico-cultural, com o enfraquecimento de determinados valores e “freios morais” – fator esse que, no Brasil, tem sido farta e constantemente alimentado pelos “maus exemplos” dados por tantos e tantos agentes públicos, detentores de postos de mando no aparelho de Estado. Apenas sugere-se, com base na percepção de condicionantes dessa magnitude, que sermões e apelos à moralidade e aos brios constituem terapia insuficiente e, no limite, ingênua e tola (mas, do ângulo sistêmico, uma astuciosa e conveniente manobra diversionista) .

Ocorre que, devido a tradições mais solidamente estabelecidas e a exigências e padrões de julgamento qualitativo do conhecimento mais bem assentados, em alguns países (geralmente os países centrais) a burocratização e a mercantilização não chegam a produzir como resultado uma mediocridade acachapante. É bem verdade que também neles, sem dúvida, o “produtivismo”, que é a concretização da máxima publish or perish (= publique ou pereça) levada ao paroxismo, cada vez mais gera uma quantidade de “produtos” (livros, artigos etc.) desproporcionalment e grande em comparação com a qualidadeintelectual daí decorrente ou aí embutida. Entretanto, uma vez que o exemplo mais evidente de “produtivismo” científico no mundo de hoje, o ambiente acadêmico anglo-americano, possui a vantagem de uma incrível “economia de escala”, ali, “no atacado” [por grosso], o problema acaba tendo menor gravidade, valendo em partee crescentemente predominantes) “produtos intelectuais descartáveis” gerados nesse ambiente, parcela expressiva do que aí se faz tenha, de fato, ao menos algum mérito em matéria de inovação ou reflexão. Mesmo que essa qualidade engendrada em meio ao gigantesco aparato burocrático-capitali sta de produção de “produtos de conhecimento” (publicações, congressos, periódicos, etc.) do mundo anglo-saxônico seja parcialmente ilusória ou muito discutível – e não só pela desproporção em relação à quantidade mas, também, intrinsecamente, enquanto inovação muitas vezes mais aparente que real, mais superficial que profunda –, o fato é que ela não é apenas ou inteiramente ilusória. A proliferação de cursos de MBA ditos de “altíssimo nível” (leia-se, em sentido capitalista: capazes de duplicar ou triplicar os salários dos portadores dos respectivos diplomas) ou a quantidade de ganhadores do Prêmio Nobel de que uma universidade pode gabar-se ter em seus quadros são critérios político-filosoficam ente e eticamente muito contestáveis, é certo, quando a perspectiva é a de uma crítica da sociedade existente; no entanto, de um ponto de vista que é, precisamente, o do capitalismo e seus valores (da competição ao “desenvolvimento econômico”), muitas universidades norte-americanas e inglesas são espaços privilegiados de produção de “conhecimento útil”, isto é, com “valor de mercado”. o princípio de que “a quantidade gera qualidade”. Além disso, uma mescla de tradições e excelência gestorial (em sentido capitalista, precisamente) faz com que, apesar dos muitos (

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Em resumo, no contexto da rarefação político-intelectual do mundo contemporâneo (e que se reflete na usual falta de densidade das ciências sociais e da Filosofia), pode-se e deve-se, sem sombra de dúvida, questionar a originalidade e a profundidade da maior parte do que se publica mesmo nos melhores periódicos “internacionais” (que são, na verdade, em primeiríssimo lugar, periódicos em língua inglesa e editados por editoras norte-americanas ou inglesas, com tudo o que isso implica em matéria de vieses etnocêntricos) . Todavia, ao mesmo tempo, há de se conceder que existe, no mínimo, uma substancial diferença de grau entre um ambiente universitário que produz predominantemente ideias conformistas ou não-arrojadas e um outro quase completamente estéril, que cada vez menos produz qualquer ideia original que seja. No Brasil, em que as universidades públicas são solapadas a partir de fora (deterioração ou estagnação em patamares baixos da remuneração de docentes e funcionários, obsolescência e degradação de equipamentos e infraestrutura, ausência de planos de carreira consistentes, falta de uma verdadeira autonomia universitária) e a partir de dentro(corporativismos, tradições “oligárquicas” incompatíveis com uma apreciação minimamente adequada de critérios de merecimento intelectual) , a presença cada vez maior do conformismo e da falta de verdadeira originalidade chega quase a ser eclipsada pelo problema ainda mais grave que é a acelerada erosão da capacidade de produzir ideias consistentes, sejam elas conservadoras ou anticonservadoras. (Uma ressalva sobre o “a partir de fora” e o “a partir de dentro”: eles se acham, indiscutivelmente, entrelaçados, com aquilo que é exógeno condicionando e reforçando aquilo que é ou parece endógeno – e às vezes também vice-versa. Sem contar o fato de que, no plano individual e do grupo, comportamentos são afetados pelo meio social geral do capitalismo fin-de-siècle – estribado no consumismo desenfreado e na extremada competitividade interindividual e, por conseguinte, crescentemente indutor de alienação, despolitização e atitudes oportunistas. )

Os efeitos conjugados da burocratização e da mercantilização sobre o nível e a densidade intelectuais também variam bastante de acordo com a área do conhecimento a que estejamos nos referindo. Para as ciências naturais e as áreas tecnológicas, adaptar-se a esse quadro parece ser algo bem menos doloroso que para as ciências humanas e sociais. (A despeito dos altos graus de exploração e submissão individuais dos cientistas, em especial dos jovens pesquisadores mormente em uma época de “[hiper]precarização do mundo do trabalho”). Uma razão é o próprio padrão de financiamento: recursos são abundantemente direcionados para os campos capazes de gerar conhecimentos diretamente aplicáveis e úteis do ponto de vista da produção de novos produtos (processos produtivos, armamentos, artigos de consumo, etc.), e é óbvio que não se vai esperar que, mesmo remotamente, a mesma magnitude de suporte flanqueie a produção de conhecimentos referentes, muitas vezes, à crítica do sistema.

Não que o sistema não financie seus críticos, eventualmente tirando um razoável e multifacetado proveito disso; contudo, trata-se de uma prioridade concernente a outra ordem de grandeza. Para especialistas em engenharia genética, telemática ou química fina, cujos salários são excelentes, cujos laboratórios são moderníssimos, cujos alunos são comumente motivados (a começar pelas perspectivas de altos salários e “reconhecimento social”…) e para os quais, enfim, os recursos não são escassos (o que, evidentemente, varia bastante de país para país), muitas vezes pouco ou nada importa de onde vem o dinheiro para os projetos e que convênios ou acordos são necessários para obtê-lo. Não apenas por isso, mas também pelo fato de que, em meio à burocratização e à mercantilização ascendentes, são justamente os critérios e padrões de julgamento do valor acadêmico típicos das ciências naturais e das engenharias (mais facilmente amalgamáveis com o critério-base, de um ponto de vista capitalista, que é aperspectiva de um valor de troca significativo para o conhecimento gerado) que são tomados como modelares e impostos às ciências humanas e sociais para fins de avaliação de desempenho (e decidir sobre que projetos, candidatos a bolsistas, periódicos, programas de graduação e pós-graduação, etc., etc. apoiar), que os campos voltados para a geração de conhecimento reflexivo e crítico sobre a própria sociedade tendem a perder cada vez mais prestígio e relevância. E, em parte por isso, tendem, também, no longo prazo, a reproduzir de maneira ampliada a mediocridade e a irrelevância – a despeito da presença de algumas ilhas de excelência e resistência. Pesquisadores deficientemente formados serão mais cedo ou mais tarde responsáveis, enquanto docentes e orientadores de graduação e pós-graduação, pela formação de novos pesquisadores, os quais apresentarão, geralmente, deficiências ainda maiores do que eles, analogamente à perda de definição e qualidade ao comparar-se uma cópia xerox com o original, a cópia da cópia com a cópia, a cópia da cópia da cópia com a cópia da cópia, e por aí vai…

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Diversas “espécies” constituem, em qualquer país e relativamente a qualquer campo do conhecimento, a “fauna acadêmica” que povoa as universidades. Várias dessas “espécies” são, por circunstâncias históricas, úteis, e não somente uma. Mas é justamente uma delas, e aquela que mais diretamente contribui para que as universidades sejam e se mantenham como ambientes produtores de inovação, que se acha, atualmente, muitas vezes acuada ou mesmo em processo de encolhimento, em especial nas ciências humanas e sociais (tendência que, no Brasil de hoje, tem comparecido de maneira superlativa) : aquela que denominarei de os “inovadores”, que são os pesquisadores verdadeiramente criativos. Os verdadeiros intelectuais, e muito particularmente os intelectuais críticos (ou seja, que refletem criticamente sobre a sociedade e não se furtam a assumir posições publicamente) , são um subconjunto dos “inovadores”.

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Quanto às outras “espécies”, não tentarei nomeá-las todas. Buscarei identificar sistematicamente, a seguir, apenas aquelas “espécies” da nossa “fauna acadêmica” que, para os fins da presente exposição, são especialmente relevantes.

Os “disseminadores” são aqueles que, geralmente, não primam por gerar ideias novas, restringindo- se a, com maior ou menor competência, manejar, interpretar e repercutir o pensamento de outrem. Conquanto não sejam pesquisadores destacados, podem ser, eventualmente, excelentes professores, inspirados e inspiradores, prestando importante contribuição para a formação de novos pesquisadores e de novos profissionais em geral. Lamentavelmente, nos dias que correm, a tendência não parece ser a da ampliação do número desses “disseminadores” realmente inspirados e inspiradores, mas sim a hipertrofia do grupo daqueles que muito pobremente (e, cada vez mais, até mesmo plagiariamente) administram e reproduzem ideias alheias. São, em analogia com os corretores de imóveis, “corretores de ideias”. De qualquer forma, em meio às “mudanças ambientais” em curso, a espécie dos “disseminadores” se encontra, enquanto tal, menos ameaçada (e são provavelmente mais adaptáveis) que os “inovadores”.

Os “burocratas” são uma espécie particularmente em ascensão. Sua expertise básica não é a da geração de conhecimento novo, e muito menos de conhecimento socialmente crítico, nem tampouco a da disseminação competente do conhecimento científico disponível. Sua expertise básica refere-se ao domínio dos jogos de poder concernentes ao interior da máquina burocrático-acadê mica e às relações dessa máquina com o seu entorno (governos, agências de fomento, etc.). A linguagem dos “burocratas” é a do poder, e sua especialidade é conquistar, manter, traficar e barganhar influência. (Sem contar, obviamente, as formas semilegais ou mesmo ilegais de obter dinheiro utilizando-se da infraestrutura de instituições teoricamente públicas. “Teoricamente”, esclareça-se, porque universidades largamente elitistas e elitizadas jamais podem ser, a rigor, consideradas sem ressalvas como públicas, já que o acesso é tão restrito.) Os “burocratas” são, enfim, especialistas na reprodução (ampliada) do fisiologismo que se difunde a passos largos no capitalismo fin-de-siècle, sobretudo em sua (semi)periferia.

Os “(micro)empresá rios” são outra espécie em ascensão, ao menos em algumas áreas de conhecimento. Por convicção ou conveniência, para eles a universidade pública é um ambiente decrépito em meio ao qual, para sobreviver, é necessário introduzir formas e parâmetros “gerenciais” que mimetizem aqueles das empresas privadas. Entretanto, os arremedos de “parcerias público-privadas” por eles patrocinados costumam ser, analogamente às “parcerias público-privadas” do ambiente exterior à universidade, relacionamentos assimétricos, em que o “público” entra com o grosso dos custos e o “privado” absorve os maiores benefícios. Assim é que bolsas de estudo e de pesquisa (de iniciação científica, de mestrado e doutorado, etc.) e uma infraestrutura (espaço construído e utilizável, energia elétrica, equipamentos, etc.) financiadas pelos contribuintes pagadores de impostos são colocadas, mais e mais, a serviço de trabalhos privados de consultoria e projetos elaborados por encomenda de firmas privadas ou órgãos estatais – não raro em detrimento da dedicação à atividade docente e mesmo à atividade de pesquisa em sentido forte.

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Os “caciques”, por fim, são aqueles que exercem um papel de liderança política. São os “medalhões”, aqueles em torno dos quais formam-se menos ou mais numerosos grupos de admiradores, seguidores e “disseminadores”. Dominam o idioma do poder, mas o utilizam de maneira não necessariamente semelhante à dos “burocratas”: enquanto que o típico “simples burocrata” pouco ou nada brilha, muitas vezes permanecendo todo ou quase todo o tempo na obscuridade, o “cacique”, que é uma figura de renome, empolga e arrebata plateias, influencia os debates e o tratamento de questões institucionais em sua área. Ou, pelo menos, costumava ser assim, já que, cada vez mais, testemunhamos a ação de “caciques” de reduzido talento oratório e pouca vocação para escrever e publicar coisas realmente importantes, mas que, em contrapartida, se mostram hábeis em agenciar o trabalho alheio (na base da superexploração de orientandos, por exemplo), assimilando alguns dos piores cacoetes de “burocratas” e “(micro)empresá rios”. Este assunto será retomado um pouco mais à frente.

As metáforas ecológicas acima empregadas (“fauna”, “espécies”, “mudanças ambientais”) foram escolhidas por permitirem a construção de uma imagem forte: a do risco de “extinção” ou, menos dramaticamente, de redução drástica da “população” de pesquisadores orientados e motivados para inovar e criar, para desafiar o conhecimento herdado. Utilizadas com o propósito de facilitar a comunicação (que é o propósito, aliás, de toda metáfora), essas metáforas merecem, a esta altura, um reparo crucial. Diferentemente de espécies biológicas, as “espécies” de que ora se trata constituem não tipos exclusivos, mas, isso sim, características básicas. Não necessariamente um indivíduo acadêmico concreto é apenas um “burocrata” ou um “inovador”; na esmagadora maioria dos casos de indivíduos acadêmicos concretos, diferentes características básicas se combinam – até mesmo porque cada um é obrigado ou encorajado a desenvolver, minimamente que seja, um certo conjunto variado de habilidades: saber pesquisar, saber ministrar boas aulas, saber lidar com a burocracia de seus próprios projetos de pesquisa (e, eventualmente, exercer, ainda que sem apetite para tal, cargos administrativos) , e por aí vai. Por conseguinte, o que faz um indivíduo pertencer a uma determinada “espécie acadêmica” não é o fato de ele apresentar as características dessa “espécie” de modo exclusivo, mas sim de modo predominante e distintivo.

[*] Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Fonte: http://passapalavra.info/?p=23461