quinta-feira, 26 de agosto de 2010

STRESS DOCENTE: A SÍNDROME DE BOURNOUT EM PROFESSORES. COMO IDENTIFICAR

Entrevista com Chafic Jbeili

Qual a definição da síndrome de Burnout?

Stress crônico laboral é a definição mais objetiva. Em espanhol o fenômeno é conhecido como Sindrome del Quemado. O termo Burnout (Burn + out) alude gíria inglesa utilizada por engenheiros aeronáuticos, desde 1940, para sintetizar o estado mecânico final de turbinas de jato que eram colocadas em teste de resistência até o seu limite final e, então, “burnout”, “queima total”, “fundiam”.

No meio médico e assistencial à época, a gíria era empregada com a mesma analogia para designar o estado biofisiológico e psicosocial dos jovens de rua, usuários compulsivos de drogas, conhecidos aqui no Brasil como “drogaditos”; nem tanto pelo uso específico das drogas, mas pelo estado deplorável de extremo comprometimento biopsicosocial a que chegavam. Posteriormente, a partir de 1974, com as pesquisas do psiquiatra dr Freudemberg a gíria foi também empregada para designar o estado de esgotamento físico e mental dos médicos residentes, que trabalhavam em sua equipe, apresentando sinais claros de stress crônico relacionado diretamente com a dinâmica e ambiência de trabalho.

Quais são as causas e os fatores determinantes?
A relação causa-fatores é muito subjetiva, pois ganha ou perde forças na dinâmica entre capacidade pessoal em lidar com o stress e a intensidade/frequência na dedemanda de fatores relacionados, exclusivamente, com o ambiente de trabalho, tais como: Cobranças excessivas, jornadas longas e desgastantes, remuneração inadequada, ausência de recompensas, falta de camaradagem entre membros da equipe, subemprego de competências pessoais, baixa perspectiva de assenção/promoção na carreira, sentimento de vulnerabilidade em relação a segurança pessoal, falta de apoio técnico-operacional e falta de reconhecimento no serviço prestado, entre outros fatores. Assim, de acordo pesquisas recentes a causa essencial do Burnout perpassa três dimensões, não necessariamente nesta ordem: a) Esgotamento emocional; b) Despersonalização, quando o profissional evita/desfaz qualquer tipo de envolvimento/vínculo com as pessoas que atende; c) Baixa realização pessoal no trabaho.

Tem algum paralelo com a depressão?
O Burnout apresenta sinais e sintomas comuns ao quadro depressivo, tais como: tristeza aparente, desânimo, pessimismo, inapetência, apatia geral, dificuldade em desempenhar papéis, queda brusca da libido, aumento no desejo de afastamento social, isolamento e absenteísmo. A pessoa tem vontade de “sumir” e não quer ver ninguém, não possui forças para fazer nada, nem mesmo a mais simples tarefa ou o que antes lhe dava muito prazer, culminando em descuido com a própria aparência e a própria saúde. A diferença está no fato de que a depressão é multifatorial, ou seja, tem várias causas distintas entre fatores endógenos, por disfunções hormonais, transtornos psicológicos etc; e exógenos, por perdas e danos sociais, materiais, profissionais, acadêmicos, afetivos etc.

A princípio parece tudo a mesma coisa, mas não é tão simples assim, pois como as causas são diferenciadas o tratamento só será eficaz se o diagnóstico for preciso. Não se tratam sintomas de burnout com diagnóstico de depressão e, por isso, o médico ou psicólogo que for realizar o diagnóstico deverá esmerar-se em decobrir as causas reais ao invés de considerar apenas os sinais e sintomas indicativos. Daí a importância de se aprofundar no assunto. Não apenas os profissionais em potencial para desenvolver a Burnout, no sentido de se prevenirem, mas principalmente os profissionais médicos e psicólogos, que são os mais indicados e procurados para a detecção e combate da síndrome.

Quais são os profissionais mais atingidos?
Pessoas que lidam com a dor e sofrimento do outro: Médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, psicanalistas etc; e outros profissionais que formam vínculos assistencialistas no trato com as necessidades alheias diversas, a exemplo dos gestores escolares, professores, psicopedagogos e demais educadores, em função da intensa e complexa dinâmica educativa.

No caso de docentes, quais sintomas apresentam e que consequências psicosocial eles sofrem?
O absenteísmo é o sintoma mais evidente, pois o docente priva a escola, seus colegas e seus educandos de sua importante presença física e institucional, pois está sempre de atestado ou licença médica, fica indiferente nas decisões tomadas em conjunto com a equipe e, na sala de aula, por estar com os sentidos à flor da pele, perde as características essenciais ao exercício de sua função docente, por diminuição da capacidade e qualidade de comunicação e aumento da resistência na interação com os educandos, representando perda significativa para a qualidade do ensino. Daí o Prof. Wanderley Codo, coordenador do labortaório de psicologia da Universidade de Brasília (UnB) afirmar que a síndrome de Burnout “pode levar à falência da educação”, quando considera em suas pesquisas o índice de incidência de burnout em professores da ordem de 43%. Em decorrência do esgotamento generalizado, com impacto na auto-estima do professor, muitos docentes perdem conideravelmente qualidade de vida em outras esferas sociais, a exemplo da vida familiar, conjugal, acadêmica, social e até mesmo espiritual. É um tsnumani na vida do professor, com consequências imprevisíveis, mas não irreversíveis se diagnosticada e tratada devidamente.

Como reconhecer os sinais de stress?
Os principais sinais físicos são: fadiga sem causa aparente; enxaquecas; dores “andarilhas” (cada hora dói num lugar diferente); constipação ou diarréia constantes; alteração do sono e queda na libido. Há porém outras alterações orgânicas, não visíveis, apenas detectadas por exames médicos específicos que irão determinar o diagnóstico.

Os pricnipais sinais psicológicos e comportamentais são: Sinais e sintomas semelhantes aos da depressão, já bastante conhecidos pela população; irritabilidade; ceticismo; indiferença e despersonalização.

Esse sofrimento é somente mental ou pode também trazer problemas físicos?
Mesmo que não saibamos exatamente o que está causando o que, isso somente o médico ou o psicólogoo poderá avaliar melhor, contudo tem-se a certeza que mente e corpo não estão dissociados em suas dinâmicas. São chamados os fenômenos somatopsíquicos, quando o corpo interfere na mente e psicossomáticos, quando a mente interfere no corpo. Sabe-se que o hormônio do stress, o cortisol, baixa a imunidade do organismo deixando-o mais vulnerável a infecções e viroses, além de causar irritação cutênea e queda de cabelos. Quem não perde o apetite quando está triste ou come compulsivamente quando está ansioso? Da mesma forma, o zelo com a aparência física e estética corporal/facial tem impacto direto na auto-estima das pessoas. Portanto, certamente o sofrimento mental pode sim trazer problemas físicos e não há notícias na ciência moderna a respeito de recursos técnicos e medicamentoso capazes de protegerem de forma permanentemente eficaz e, portanto, irrestrita e cabal a mente do sofrimento físico, nem o físico do sofrimento mental. É preciso harmonizar mente e corpo para gozar saúde satisfatória e prevenir doenças.

Como prevenir a Síndrome de burnout?
Primeiro conhecendo como ela surge e como é a sua dinâmica. Depois aprendendo técnicas mais eficazes e eficientes de lidar com o estress próprio e o stress alheio. O material produzido, compilado e disponibilizado no curso, tais como: slides, cartilhas, questionário, pesquisas, textos diversos e video facilitam a compreensão tanto do assunto quanto dos métodos de prevenção.

Quando deve-se procurar ajuda? Que profissional é indicado?
Ajuda é sempre bem-vinda em qualquer época e em qualquer momento. Infelizmente, muitas pessoas resistem à ajuda até chegarem ao limite, à cronicidade. Diante do eminente problema é comum negar o estado aparente de debilididade ou fragilidade. Depois de reconhecer a existência do problema a pessoa tende a investir muita energia para sustentar a postura de forte e durona. Na verdade estão apenas “encapsulando” o problema que encontra as condições ideais de desenvolvimento. Num terceiro momento, quando o problema eclode e torna-se visível a todos, então recorrem-se a auto-medicação, entre outras tentativas inadequadas e inócuas para resolver o problema. Somente quando essa dinâmica esgota todas as energias e consome toda saúde da pessoa é que ela procura ajuda profissional, isso quando procura.

Pensando nas pessoas mais maduras e que não necessitam sustentar essa postura de “super-herói” criei um questionário indicativo da Burnout, inspirado no Maslach Burnout Inventory, da psicóloga norte-americana Christina Maslach, cujo intuito não é diagnosticar burnout, longe disso, mas oferecer indícios muito elementares e orientar as pessoas a procurarem ajuda médica em tempo hábil, facilitando toda intervenção do médico ou do psicólogo, posteriormente.

É necessário tratamento medicamentoso?
Embora eu não seja médico, sabe-se que assim como toda e qualquer anomalia psicofísica, o quadro de Burnout é passível de intercorrência medicamentosa sim e somente o médico e mais ninguém aquém deste profissional tem condições de avaliar e prescrever a medicação mais indicada que pode variar desde analgésicos, ansiolíticos e até anti-depressivos, conforme cada caso. Tenho notícias de pessoas que se tratam por tabela. Comparam alguns sintomas com outro colega e, havendo similaridade, compartilham do mesmo medicamento. Isto é totalmente contra-indicado haja vista que cada pessoa tem um porte físico diferenciado e um histórico pessoal muito peculiar interferindo em seu metabolismo e absorção de muitos princípios farmacológicos.

Contudo, ao identificar os primeiros sinais e sintomas da síndrome, estes podem ser debelados com simples mudanças de hábitos ou de atitudes na rotina diária. À medida em que o quadro evolui e outros sintomas vão surgindo, faz-se necessária a interveção do psicólogo, em especial os especialistas em estress e biofeedback. Quando o sofrimento mental começa a causar transtornos psíquicos como ansiedade, pânico ou quadro depressivo e transtornos físicos, então o tratamento medicamentoso se torna não apenas necessário como imprescindível. O ideal é aprender a prevenir para não ter que remediar, como diz o sábio ditado!

Qual é a importância da identificação nos docentes?
De acordo com pesquisas encabeçadas pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação e do Laboratório de Psicologia da UnB nos anos de 1999 e posteriormente atualizado em 2002, comparadas com notícias recentes, divulgando última pesquisa (2008) divulgada pela Universidade de Brasília (UnB), mais de 40% dos professores regentes desde a educação infantil até o ensino superior apresentam pelo menos uma das três dimensões da Síndrome. Isso quer dizer que alguns têm o quadro do Burnout iniciado e outros estão em um estágio mais avançado da doença. Se associarmos esta informação ao que o Prof. Codo disse, percebemos que realmente o Burnout pode “levar à falência da educação”, torno a citar. Portanto, além desse risco, é ainda fator potencial de comprometimento da qualidade de vida desses profissionais, reafirmando a importância que se deve conferir ao conhecimento deste fenômeno tão ameaçador quanto simples de se identificar e prevenir.

Fale-nos sobre o curso a distância “Stress docente: a Síndrome de Bournout em professores. Como identificar”, a quem é dirigido e qual a importância deste conhecimento nos dias atuais?
O curso é para quem quer e pretende empreender melhorias na qualidade de vida sua e na de seus educandos/clientes/pacientes, sem o inconveniente das manobras mirabolantes e de qualquer gasto extravagante, mas por mudança de atitudes simples em função do conhecimento adquirido.

A formatação do curso na modalidade a distância surgiu em função do reconhecimento dos riscos públicos e pessoais que o Burnout representa em nosso contexto social e educativo, devendo as nuanças e características desta síndrome serem divulgadas de forma mais objetiva e abrangente possível ao maior número de profissionais interessados direta ou indiretamente sobre o assunto.

A disponibilzação deste curso pelo Portal Psicopedagogiaonline e Fundação Aprender vai muito além dos objetivos comuns a um bom curso a distância. Mais do que oferecer recursos teórico-práticos aos cursistas e uma certificação reconhecida e respeitada internacionalmente, pretendemos, eu enquanto tutor e toda equipe envolvida na produção e sistematização deste curso, oferecer informações estratégicas de identificação, tratamento e prevenção do Burnout, por meio de metodologia didática adequada, em linguagem de fácil assimiliação, não necessitando, portanto, fluência nas áreas médica e psicológica para compreender o assunto e aplicar as dicas oferecidas.

A matrícula e ingresso no curso não tem restrição acadêmica e foi desenvolvido tanto para atender as necessidades básicas de eslarecimentos a profissionais das áreas médica e psicológica, responsáveis pelo diagnóstico e tratamento da doença, quanto para oferecer dicas valiosas de prevenção aos demais profissionais com potencial de desenvolvimento da síndrome, tais como docentes, educadores de modo geral, assistentes sociais, secretárias, fonoaudiólogos, enfim, todos os profissionais que, de alguma forma, lidam de forma assistencialista com seus clientes/pacientes.
Mais do que conhecer o burnout estamos oferecendo a oportunidade aos cursistas em repensar paradigmas e melhorar significativamente a sua qualidade de vida pessoal e profissional com estratégias simples e de fácil aplicação. Daí a importância e pertinência de todos os profissionais, em especial aqueles da área educacional, não pensarem duas vezes em fazer este curso, pois conhecer o inimigo é o primeiro passo para vencê-lo. Capacite-se, previna-se e torne você também um agente multiplicador na prevenção e combate da Síndrome de Burnout.

Fonte:http://www.psicopedagogia.com.br







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Burnout

Sindrome

Progressão continuada alastra analfabetismo funcional em SP, afirmam professores

Progressão continuada alastra analfabetismo funcional em SP, afirmam professores

O avanço sucessivo e sem interrupções dos alunos da rede pública no estado de São Paulo preocupa docentes. Jovens chegam ao ensino médio e à universidade com dificuldades para ler e escrever

Por: Suzana Vier, Rede Brasil Atual

Progressão continuada - política educacional responsável pela aprovação automática dos alunos - é o principal problema educacional do estado de São Paulo, segundo professores ouvidos pela Rede Brasil Atual (Foto: Sxc.hu)

São Paulo - Na sala de reuniões de uma escola da rede pública estadual de São Paulo, a professora de Língua Portuguesa Paula* comemora a evolução de um aluno da sexta série do ensino fundamental. "Ele escreveu o nome na capa do trabalho", mostra a docente a três colegas e à reportagem da Rede Brasil Atual. Ele começou a ler e escrever apenas neste ano. Até o início de 2010, o garoto de 12 anos sequer abria o caderno, afirma Cristina*, responsável pela disciplina de Biologia. A professora conta que não é difícil detectar os alunos considerados "analfabetos funcionais". "Ou ele avisa ou, na primeira leitura, eu vou perceber", indica a docente.

O principal motivo para esse tipo de deficiência de aprendizado está, na visão dos docentes ouvidos pela reportagem, no sistema de progressão continuada, em que o aluno precisa apenas se fazer presente em sala de aula para ser aprovado automaticamente. No máximo, os alunos podem ser retidos na quarta série, por um ano, depois eles vão seguir, mesmo sem o conhecimento necessário. Os entrevistados ainda apontam problemas de infraestrutura, de salário e distanciamento das famílias.

"É comum 30% dos alunos da sexta série não saberem ler e escrever", detecta Paula*, professora de Língua Portuguesa há 21 anos no magistério. A aprovação ano após ano, sem avaliação do conteúdo dominado pelo aluno permite que muitos estudantes terminem o ensino médio sem terem o conhecimento mínimo necessário, alerta Tomé Ferraz, professor de física e matemática das redes municipal e estadual de São Paulo.

"É a aprovação a qualquer custo", identifica. "Em São Paulo, a educação são dados estatísticos, é porcentagem para lá, porcentagem para cá, mas não se analisa como o aluno está terminando o ensino médio. Depois ele vai ser só mais um diploma", analisa o professor.

Paula conta que utiliza, nos primeiros dias de aula nas sextas séries em que leciona, ditado e produção de textos como ferramentas. A percepção do problema não demora. "Geralmente tem criança que entrega em branco, não sabe fazer nada do ditado", aponta. "Se eles vão escrever, por exemplo, 'bala', eles colocam qualquer letra", descreve.

Apesar de lecionar Biologia, Cristina faz um esforço pessoal para trabalhar a alfabetização com os alunos cuja atuação esteja comprometida. "Se eu alfabetizei meu filho de quatro anos, eu vou conseguir com um garoto de 12", afirma. Ela cita que os alunos têm enorme dificuldade com sílabas complexas como "tra" e "pla". "Eles conhecem formações silábicas básicas somente", acentua.

Na hora de avaliar alunos de sexta série, sem condições de ler e escrever com fluência, Cristina utiliza métodos diferenciados do restante da classe. "Faço avaliação com prova oral e análise comportamental, afinal se ele não compreende o teor da prova não consegue responder. Uma avaliação escrita envolve habilidade de leitura e escrita", explica.

Analfabetismo funcional

  • Segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura (Unesco), analfabeto funcional é a pessoa que sabe escrever seu próprio nome, assim como ler e escrever frases simples, efetua cálculos básicos, mas é incapaz de interpretar o que lê e de usar a leitura e a escrita em atividades cotidianas, dificultando seu desenvolvimento pessoal e profissional. Ou seja, o analfabeto funcional não consegue extrair o sentido das palavras, colocar ideias no papel por meio da escrita, nem fazer operações matemáticas mais elaboradas.

Sem compreender bem o conteúdo das disciplinas, o aluno de Cristina e Paula, que iniciou o ano sem estar alfabetizado, também se mostra desmotivado. Em uma única aula de biologia de 50 minutos, Cristina pediu atenção ao garoto pelo menos cinco vezes.

Sem coerência

Rosana Almeida, professora de sociologia da rede pública estadual, enfrenta problema semelhante com alunos do 1º ano do Ensino Médio. "Eles conseguem construir a palavra, mas não a frase", diz. "Nós professores temos de aceitar que se a ideia dele foi certa, ele vai ser aprovado", critica. "O jovem entendeu o que você explicou, mas não sabe escrever".

O motivo para haver uma parcela significativa de alunos que chegam ao ensino médio sem estar devidamente alfabetizados envolve, de um lado, alunos com problemas de deficiência intelectual e, de outro, o "abandono" do sistema educacional, na visão da professora. "Você tem uma sala superlotada, a professora trabalha com quem sabe ler e escrever e quem não sabe vai ficando para trás", expõe Paula.

Entre os principais problemas dos alunos que chegam ao ensino médio, Rosana cita que "não existe mais gramática, nem conjugação de verbo". Quando a professora pede para os alunos produzirem um texto, surge resistência. "Chega na quinta (série) não sabe escrever e não consegue acompanhar, passa para a sexta, sétima e oitava. Na oitava, tem um índice de indisciplina altíssimo porque ele, de novo, não consegue acompanhar", sustenta.

Paula confirma que os alunos que têm essa dificuldade acabam fazendo mais bagunça. "São os mais indisciplinados. Por não saberem nem ler, nem escrever eles não entendem nada, não participam da aula; o que resta é ficar bagunçando", desabafa. "No ensino médio, os estudantes produzem jogos de palavras sem sentido, sem coerência e coesão. Isso tem bastante, até na universidade", completa.

Estudante Ensino Médio
Estudantes chegam ao Ensino Médio com dificuldade de expressar ideias (Foto: Sxc.hu/Sanja Gjenero)

O motivo para haver uma parcela significativa de alunos que chegam ao ensino médio sem estar devidamente alfabetizados envolve, de um lado, alunos com problemas de deficiência intelectual e, de outro, o "abandono" do sistema educacional, na visão da professora. "Você tem uma sala superlotada, a professora trabalha com quem sabe ler e escrever e quem não sabe vai ficando para trás", expõe Paula.

Em matemática o problema se repete, jovens dominam as contas básicas, mas não sabem porcentagem, por exemplo. "Elas têm a capacidade de raciocínio lógico, mas fazer a conta para chegar ao resultado, as crianças não sabem", pontua Rosana.

Problema adiado

De 30 alunos da rede municipal da capital paulista, Tomé calcula que só dois teriam condição de estar no Ensino Médio, levando em conta o conhecimento em matemática. "Em física então, os professores vão ter muito problema, no ensino médio", relata. Para o docente os alunos da rede pública de São Paulo que se formarem serão "alguns no turbilhão".

Progressão continuada ou aprovação automática?

  • A progressão continuada, adotada a partir de 1998 em São Paulo, é um procedimento utilizado pela escola que permite ao aluno avanços sucessivos e sem interrupções, nas séries, ciclos ou fases, de acordo com a Agência EducaBrasil.
  • Para especialistas, é uma metodologia pedagógica avançada por propor uma avaliação constante, contínua e cumulativa, além de basear-se na ideia de que reprovar o aluno sucessivamente não contribui para melhorar seu aprendizado.
  • Sua aplicação, porém, transformou-se em sinônimo de "aprovação automática" dos alunos, segundo muitos professores e analistas.
  • Essa ideia leva em conta que a progressão foi adotada, no Brasil, sem se mudar as condições estruturais, pedagógicas, salariais e de formação dos professores.

Eduardo*, professor universitário, mestrando e pesquisador da geração Y – jovens nascidos a partir de 1980 –, analisa que os estudantes são vítimas de um círculo vicioso fatal para a vida profissional futura. A dificuldade inicial em ler e escrever, transforma-se em dificuldade de compreensão, de reunir informações e de se expressar diante do mundo, conceitua.

"Se o aluno não compreende frases inteiras, como ele vai resolver questões de matemática?" questiona. "Eles até sabem que 3 x 5 é 15, mas se você colocar na prova quanto é o triplo de 5 mais o dobro de 20, ele não vai saber", exemplifica. "Se questões básicas não estão resolvidas, a estrutura fica afetada e o conhecimento que vem depois não se concretiza", alerta Eduardo.

* Os nomes de alguns professores foram trocados a pedido dos entrevistados

Fonte: Rede Brasil Atual

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Sem material, professor 'faz milagre' para lecionar em SP

Sem material, professor 'faz milagre' para lecionar em SP

Docentes da rede pública dizem que falta até lápis para atividades. Salários baixos e sem reajustes para a maioria também são criticados

São Paulo - Depois da progressão continuada, a falta de infraestrutura e salários são os principais problemas apontados pelos professores da rede pública estadual de São Paulo, ouvidos pela Rede Brasil Atual. Os materiais fornecidos pelo governo do estado para os alunos são insuficientes, o que obriga os docentes a reunir, reutilizar, reaproveitar materiais para atender os estudantes.

"Professor faz milagre, um lápis viram dois, as coisas se multiplicam", anuncia Cristina*, professora de biologia da rede pública estadual. "Eu vivo juntando borracha, caneta e lápis onde eu vejo sobrando para levar para a escola e emprestar aos alunos", descreve.

Das diversas atividades realizadas na escola, Paula*, professora de Língua Portuguesa, calcula que apenas 40% da infraestrutura e materiais necessários são oferecidos. "Os outros 60% são criação e esforço pessoal do professor pelo ensino", calcula. "O governo pode investir na escola, mas não investe no professor. O governo não prepara o professor para esse mundo moderno", dispara.

Tomé Ferraz, professor de física e matemática, das redes estadual e municipal de São Paulo, acredita que o governo estadual sobrecarrega e culpa os professores pela situação da educação no estado. "Ele (governo) joga a culpa das mazelas da educação sobre o professor", opina.

"Professor faz milagre, um lápis viram dois, as coisas se multiplicam", anuncia Cristina, professora de biologia da rede pública estadual.

Ele preparou alunos da rede pública para a Olimpíada Brasileira de Física, deu aulas a mais, levou os jovens com seus próprios recursos para a competição e até no dia da premiação, na Universidade de São Paulo (USP), em São Carlos, e precisou arcar com os gastos. Na volta das atividades, teve o ponto cortado e os dias descontados. "A gente tem de fazer milagre", reclama.

Se faltam lápis e borracha no dia a dia dos alunos, para a disciplina ministrada por Tomé a situação é um pouco pior. "Não temos material. Como eu vou dar aula de calorimetria sem um calorímetro, sem substâncias químicas?", lamenta. Ele mesmo responde: "Fico frustrado porque vejo uma geração sendo perdida, mas no que depender de mim, vou comer giz até onde aguentar, porque o aluno não tem culpa", analisa.

Tomé contraiu uma doença no cotovelo pelo uso contínuo da lousa. "Temos lousas imprestáveis. Perdi a força para dobrar os dedos", argumenta. Como tratamento, o físico teve de fazer fisioterapia e, agora, apaga a lousa com a mão direita, na tentativa de minimizar os problemas na esquerda.

Os colegas, aponta o docente, sofrem com problemas nas cordas vocais, por passarem o dia todo em sala de aula "gritando". "Eu sou resistente, mas o estresse e a frustração leva muitos colegas a adoecerem", diz.

Salário de barbeiro

Árvore da miséria
Comprovantes de salário viram árvore da miséria (Foto: Rede Brasil Atual)

Depois de 28 anos de magistério e com mestrado em Física Quântica, ele ganha R$ 500 na rede pública estadual. Somado à escola municipal, alcança remuneração de R$ 2.200, por 40 horas semanais. Tomé avalia que os professores têm a pior remuneração entre as carreiras de nível superior. "O que recebemos não é salário para um professor do maior estado da federação. Morando na capital, não dá para sobreviver", garante.

Ele compara o salário de um professor ao de seu próprio cabeleireiro. "No estado, a hora-aula é de R$ 7,58, já meu barbeiro, que cobra baratinho, ganha R$ 8, por um corte de cabelo de 15 minutos", exemplifica. Em função dos baixos salários, Tomé lembra que os professores de sua área estão em extinção. "Com poucas faculdades oferecendo o curso de Física e a dificuldade em chegar até o fim, é muito mais rentável ser funcionário da iniciativa privada", afirma.

Em 2009, ele chegou a ministrar mais de 300 horas de aulas por semana, com aulas de segunda a sexta nas redes públicas estadual e municipal e aulas particulares no final de semana, na casa de alunos, para um salário de R$ 3 mil. Neste ano, decidiu reduzir a carga para dar mais atenção ao filho adolescente. O jovem agradece, mas os problemas financeiros aumentaram. "Estou em uma situação de aperto financeiro, não consigo pagar todas as contas", reforça.

"Fico frustrado porque vejo uma geração sendo perdida, mas no que depender de mim, vou comer giz até onde aguentar, porque o aluno não tem culpa", analisa Tomé Ferraz, professor de física das redes estadual e municipal.

A falta de investimento na qualificação dos professores é outro problema, revela Tomé. "Tenho mestrado, fiz cursos na PUC e na USP, mas para o estado eu sou incompetente", critica por não evoluir na carreira há oito anos. A obtenção do mestrado também não foi computada para efeito salarial.

Desvalorização

Em Pernambuco, Tomé recebeu medalha de ouro e a comenda do mérito educacional "Professor Paulo Freire", pelo conselho estadual de educação do estado, por um projeto de incentivo aos alunos de cursos de licenciatura. "O estado de São Paulo não valoriza a formação do professor e também não oferece oportunidade para isso", condena. "Em oito anos, nenhum curso na área de física foi oferecido", cita. "Quando a secretaria estadual de educação oferece qualificação tem de ser fora do horário de aula, mas o professor com carga extrema de aula, como fica, então?", suscita.

Para Paula, o salário "é uma vergonha". "Você pega um professor de 20 anos no magistério que ganha R$ 1.500. E tem alunos que ganham isso em trabalhos elementares", revolta-se. "Estamos há dez anos sem aumento", protesta.

Há dois anos, o governo do estado criou, em lei aprovada na Assembleia Legislativa, um mecanismo que permite evitar reajustes. A Secretaria de Educação promove uma política de aumentos conforme o desempenho em provas de avaliação do professor e o de seus alunos. Apenas 20% dos profissionais são contemplados com correção salarial, enquanto s demais mantém os mesmos rendimentos.

Com remuneração deficitária e sem condições materiais de trabalho, os professores indicam que o desânimo como quase inevitável. "Tem professor que ministra aulas no estado, na prefeitura e na rede particular. Aí ele trabalha demais e não tem como preparar uma boa aula mesmo", sentencia Paula.

Educação
(Foto: Piotr Lewandowski)

Rosana Almeida, professora de sociologia da rede pública estadual, defende a tese de que "desacreditar o professor é uma forma de não questionar a incapacidade de gerir a educação" e uma forma de terceirizar uma área que deveria ser essencial.

A docente passou em todas provas estabelecidas pelo governo estadual e em concurso público, mas até hoje não conseguiu ser efetivada. "É revoltante, você é testada, questionada e, depois ter provar sua capacidade todas as vezes", afirma, decepcionada com os rumos da educação.

*Os nomes de alguns entrevistados foram alterados a pedido dos professores

Fonte: http://www.redebrasilatual.com.br/temas/educacao/professor-faz-milagre-diz-professora-sobre-a-falta-de-estrutura-das-escolas

terça-feira, 24 de agosto de 2010

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO DISTRIBUI LIVROS COM CONTEÚDO IMPRÓPRIO AOS ALUNOS, DE NOVO…

No ano passado já havíamos comentado uma notícia parecida: Clic aqui e releia.

Naquele momento, no qual a Secretaria de Estado da Educação protagonizou um episódio deprimente de distribuir atlas geográficos com erros grosseiros, chegou-se ao absurdo de distribuir livros com conteúdo erótico às crianças da 3ª série do Ensino Fundamental. Ainda se fosse uma literatura de educação sexual, com esclarecimentos dessa natureza em uma linguagem própria… Mas, o conteúdo expresso nos livros paradidáticos em questão tinha uma abordagem sarcástica e mesmo erótica, num total descompasso com a proposta pedagógica planejada para essa faixa etária.

O tempo passou, algumas cabeças rolaram, mas os problemas não foram corrigidos. Na mais recente iniciativa de incentivo a leitura protagonizada pela Secretaria de Estado da Educação realizou-se a distribuição gratuita de livros de literatura a todos os alunos do 3° ano do Ensino Médio.

Considerando a faixa etária média desses alunos em cerca de 16 anos, o título Os cem melhores contos brasileiros do século certamente sugere qualidade. A publicação da editora Objetiva, do Rio de Janeiro, organizada por Ítalo Moriconi em 2001 abriga contos escritos por grandes nomes da literatura brasileira, como Machado de Assis, Lima Barreto, Graciliano Ramos, Monteiro Lobato, Carlos Drummond de Andrade, Rachel de Queiroz, Érico Veríssimo, Clarice Linspector e outros tantos.

Certamente, é uma bela obra. Mas, dentre todos esses grandes nomes da literatura brasileira, considerando o fato de que livro foi destinado aos adolescentes de 16 anos, roubaram a cena:

Ignácio de Loyoloa Brandão, com o conto Obscenidades para uma dona de casa; p. 471

Myriam Campello, com o conto Olho; p. 548.

Se considerarmos a proposta da obra, descrita por Ítalo Moriconi na sua introdução, “[...] Tratava-se de fazer uma leitura com olhos livres, uma leitura desprovida de preconceitos doutrinários e teóricos,”[MORICONI, 2001, p.16] em momento algum faz-se a sugestão de que a obra se destine a apreciação de menores de idade. (aliás, subjetivamente, os indícios do discurso sugerem justamente o contrário…).

Nesse sentido, sem ter o objetivo de simplesmente criticar a obra ou condenar seus autores, numa espécie de censura, observamos que a escolha específica dessa obra para distribuição gratuita aos alunos do 3° ano do Ensino Médio (não esqueçamos que isso significa uma licitação avaliada em alguns milhões de reais) não obedece, por exemplo, à classificação de conteúdo e faixa etária imposta pelo Ministério da Justiça aos grupos de comunicação.

Provavelmente, diante dessa argumentação, algumas pessoas podem questionar se esse excesso de “proteção” condiz ou não com a realidade cotidiana dos adolescentes de nossa época. Então, passemos a uma coisa mais prática:

No conto “Obscenidades para uma dona de casa”, a narrativa se desenvolve a partir da expectativa de uma personagem que vive como dona de casa e espera diariamente por cartas enviadas pelo correio, com propostas e insinuações sexuais que geram um conflito com os valores de sua criação, de forma que a personagem passa a viver com intensa ansiedade em função da espera de novas cartas. O enredo prende a atenção do leitor e realmente pode ser considerado bom, mas na descrição dos conteúdos das cartas encontramos:

[...] Mulher, quando quer, sabe ser pior do que homem. Sim, só que conhecia muitas daquelas amigas, diziam mas não faziam, era tudo da boca para fora. A tua boca engolindo inteiro o meu cacete e o meu creme descendo pela tua garganta, para te lubrificar inteira. Que nojenta foi aquela carta, ela nem acreditava, até encontrou uma palavra engraçada, inominável. Ah, as amigas fingiam, sabia que uma delas era fria, o marido corria louco atrás de outras, gastava todo o salário nas casas de massagens, em motéis. E aquela carta que ele tinha proposto que se encontrassem uma tarde no motel? Num quarto cheio de espelhos, para que você veja como trepo gostoso em você, enfiando meu pau bem no fundo.”

[...] Qual pode ser a reação de um homem de verdade, que se preze, ao ver que a mulher está recebendo bilhetes de um estranho? Que fala em coxas úmidas como a seiva que sai de você e que provoquei com meus beijos e com este pau que você suga furiosamente cada vez que nos encontramos, como ontem à noite, em pleno táxi, nem se importou com o chofer que se masturbava. Sua louca, por que está guardando cartas no fundo daquela cesta? A cesta foi a firma que mandou num antigo natal, com frutas, vinhos, doces, champanhe. A carta dizia deixo champanhe gelada escorrer nos pelos de sua bocetinha e tomo embaixo com aquele teu gosto bom. Porcaria, deixar champanhe escorrer pelas partes da gente. Claro, não há mal, sou mulher limpa, de banho diário, dois ou três no calor. Fresquinha, cheia de desodorante, lavanda, colônia. Coisa que sempre gostei foi cheirar bem, estar de banho tomado. Sou mulher limpa. No entanto, me pediu na carta: não esfregue desse jeito, deixe o cheiro natural, é o teu cheiro que quero sentir, porque ele me deixa louco, pau duro.” (Todo o conteúdo desses dois parágrafos foi extraído de uma única página; 473)

Literatura é democracia. Aceita vários gêneros e com certeza a escrita apresentada no conto tem seu público. Mas, será que é adequado oferecer essa literatura a quem não saiu da adolescência? Será que essa linguagem peculiar de tratamento da sexualidade ajuda a desenvolver a maturidade dos alunos da rede estadual de São Paulo?

[…] Não consigo ler direito na primeira vez, perco tudo, as letras embaralham, somem, vejo o papel em branco. Ouça só o que ele me diz: Te virar de costas, abrir sua bundinha dura, o buraquinho rosa, cuspir no meu pau e te enfiar de uma vez só para ouvir você gritar.” (477)

Diante dessa abordagem, imaginamos um estudante da rede sentado no fundo da classe com a professora de costas para ele, escrevendo no quadro… Isso é que é valorização de mérito!

Alguma pessoa pode até questionar: Mas e trata de apenas um único conto, correto?

No conto “Olho” a narrativa descreve um tema ainda mais polêmico, embora em linguagem menos explícita.

Valorizando a carreira docente, o texto trata de incesto, que do desejo à prática coloca um professor universitário de Botânica diante da própria irmã:

Quando ela acorda, põe imediatamente o seio esquerdo em minha boca. Sei muito bem que não é assim que se começa começa uma história. […]

Português de nascença e ex-seminarista de hábitos metódicos, não que a solidão eu possa suportá-la. Mas na de minha irmã e eu que vivemos sós nesta casa há uma tal qualidade de exílio e afastamento dos homens que por vezes nos sufoca ao impossível. Não há a quem falar. Do que acontece, não se pode dizer por proibido. Vivemos arredios, sem sociedade com outros além de um boa-tarde seco, um bom-dia reservado que marca limites.[...]

Minha irmã se que sente-se como eu, embora minta: não quer aumentar a angústia que lê em meus silêncios. Ou por outra, sente-se como eu embora feita de material diverso. É mais forte, talvez. Talvez mais livre. Onde hesitei sequer pestanejou, radiosa como a Epidendrum fragrans S. W, a mesma nitidez alba, a mesma elegância. Sua paixão tem a firmeza imaculada de certas sépalas, de certas pétalas. Mas tanto a ela quanto a mim se alguém nos oferecesse voltar no tempo faríamos tudo igual, privilégio dos atos perfeitos.” (548-549)

Embora nas primeiras páginas do conto a linguagem não seja um problema, será que essa temática é adequada para um público adolescente?

[...] A primeira carta anônima meteu-se à minha correspondência mês atrás, caída do azul. Repelente como papéis desse tipo, dizia apenas “eu sei tudo” em letra forçada, velando-se. Estupor e medo subiram por mim. Como podia ter visto algo e o que se minha irmã e eu só em casa nos tocamos?” (549)

Dando aulas à noite, passo por uma rua escurecida por grandes exemplares de Ficus religiosus, troncos imensos mergulhados na sombra que os namorados aproveitam como ponto de apoio. Por que também não posso levar minha irmã para lá, erguer sua saia e comê-la contra a casca rugosa?” (550)

Além da questão cultural do incesto, imagine uma estudante de 16 anos que volta da escola a noite e passa por uma rua escura, com grandes árvores, após ter lido o conto. Não seria um incentivo a mais a uma atitude sexual precipitada e irresponsável com o seu namorado? (isso, se não fantasiar com um de seus professores…)

Há cinco dias nova carta anônima chegou-me às mãos. “Estou de olho em vocês”, rezava a mesma letra sob a máscara. […] Inconscientemente, assumo posições escabrosas para agradá-lo. Quando derrubo minha irmã na cama, sei que o olho me vê e meu pau lateja mais duro. Invado-a então com o vigor de quem escava um poço. Ontem a machuquei. Mas, não reclamou, como se por alguma razão também necessitasse disso. Ao contrário, dilacerou-me as costas num êxtase profundo, secreto. Enfiado em sua vagina, vasculhei-a com a violência de um estupro. Agora somos três. A lembrança disso logo me faz enchê-la de um jorro quente e espumante.”

Numa mensagem clara de valorização do magistério:


Morrendo-me a mãe viúva há quatro anos e não suportando mais o seminário, resolvi abandoná-lo. O sexo aguilhoava-me além do que se pedia a um sacerdote. Para evitar futuro desgosto à Igreja,e a mim um contínua infelicidade, decidi ser professor.” (551)

Um dia, certa greve de professores me fez voltar mais cedo do trabalho. A casa boiava em silêncio, como sem ninguém. Larguei livros e um caderno cheio de meus traços em qualquer lugar e empurrei a porta do banheiro. Com um movimento de susto, minha irmã cobriu-se com a toalha. Acabara de tomar banho e não esperava tão cedo a minha volta. Durante um longo momento ficamos ali, um diante do outro, imóveis. O coração selvagem. Meu primeiro impulso foi virar-se e sair, mas forças contrárias o combateram, paralisando-me. Finalmente, o desejo me sufocou. Fui até ela e puxei a toalha. Ainda tentou resistir, virou-se mas acabou cedendo, posso dizer que muito menos à força do que à minha vontade. O grande espelho do banheiro viu quando beijei sua nuca loura e explorei-lhe o odor, minha boca eriçando os pelos sedosos, a fronteira entre pele e pelo que sempre quisera sondar.”

Vai ver que é por isso que o Governo manda a tropa em cima dos professores durante as manifestações de greve…

Virei-a de frente. Nosso banheiro tem uma antiga pia de mármore, muito sólida. Ergui minha irmã e sentei-a ali, naquela borda. Quando abri a boca ela sentiu minha respiração dolorida, apressada como a de um animal que sofre, só podia fazer mesmo o que fez. Pegou o seio duro com a mão e o pôs em minha boca. A mucosa incendiada de febre o envolveu. Minha língua rolou pelo mamilo tentando derretê-lo, açoitando o botão de carne em todas as direções. Chupei, mastiguei, devorei seus seios com uma fome antiga. Sempre os mastigo longamente antes de caminhar pelo resto de seu corpo. Azeitonas que se enrijecem, vermelhas, e largam seu suco em minha boca”

Puxei-a para o quarto e joguei-a na cama. Com a língua, umedeci sofregamente e por muito tempo as fendas de seu corpo. Quando a cobri, ela quis. Abriu-se como uma fruta que se racha no solo. O desejo é um vagalhão enfurecido, avalanche que se nutre do próprio excesso para melhor derrubar e engolir. Iniciado, nada pode detê-lo. Se abrissem a porta e me vissem dentro de minha irmã, gozando-a, meu sêmen se estancaria? Penso que não. Uma vez explodindo, é esperar que a convulsão cesse por si mesma. Assim, fomos de roldão nas asas da carne até que o esgotamento nos fez dormir, eu ainda com o membro dentro dela.” (todo conteúdo desses três parágrafos está escrito na página 552)

Imagine uma casa, onde um rapaz de 16 anos, estudante do 3° ano do Ensino Médio da rede estadual de São Paulo, lê esse conto, enquanto escuta sua irmã de 14 anos a cantar sob o chuveiro, no momento em que seus pais não estão em casa…

De qualquer forma, não temos a menor intenção de levantar um estandarte de moralidade. Muito menos, compartilhamos da visão autoritária que varreu o país do inicio da década de 1960 e permaneceu sufocando nossa sociedade até recentemente.

Censura, nunca mais. Mas, existe uma diferença fundamental entre censura e adequação de conteúdo à determinada faixa etária. Tanto existe, que certas publicações vendidas em bancas de jornal ou certos filmes disponibilizados para locação devem ter um espaço reservado, de maneira que seu acesso não seja indiscriminado.

Além disso, na televisão, existe uma classificação indicativa, por faixa etária, para cada programa a ser veiculado, não para bloquear o acesso, mas para alertar os espectadores, no sentido educativo.

Assim, longe de isso representar um TROLOLÓ, acreditamos que a Secretaria de Estado da Educação e o Governo do Estado de São Paulo, que tanto se manifestam sobre valorização de mérito e trabalho bem feito, devam explicar à sociedade, e possivelmente à Justiça, quais foram os critérios pedagógicos utilizados para a escolha dessa obra de conteúdo adulto para ser distribuída aos adolescentes do Ensino Médio da rede.

Talvez, a ironia mais absurda dessa história, que acaba por atenuar o efeito desse conteúdo, é o fato de que hoje, depois de quase 20 anos de uma política educacional equivocada, a maioria absoluta dos alunos da rede estadual não teria condições de compreender o conteúdo desse livro, simplesmente por não conseguirem lê-lo… (Será que a Secretaria de Estado da Educação considerou isso quando aprovou a escolha desse livro?)

MORICONI, Ítalo. Os cem melhores contos brasileiros do século. Organização: Ítalo Moriconi. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. 618p. ISBN 85-7302-306-6

Fonte: Blog Professor Temporário.

sábado, 21 de agosto de 2010

Manifesto: Grito do Excluídos

Onde estão nossos direitos?

Mais uma vez estamos num ano eleitoral e às vezes o povo imagina que só assim as mudanças virão. No entanto sabemos que só a luta muda a vida, temos a necessidade de debater um projeto popular que vise a construção de uma sociedade fraterna e solidária. Sabemos que esse projeto não será obra de nenhum "salvador da pátria", até por que vimos que afirmar ser democrático e popular não é nenhuma garantia de ser de fato. Embora estejamos numa democracia, vemos uma crescente criminalização do movimento social e sindical combativo. Exemplo dessa política no estado de São Paulo foi o tratamento dado aos servidores públicos na educação e no judiciário durante seus movimentos grevistas.


E a cidade como vai?

Na cidade de São Paulo aumenta a criminalização da pobreza, a expulsão do povo da rua da região central, o desemprego, a falta de perspectiva da juventude pobre, sobretudo negra, que é duramente perseguida e muitas vezes exterminada em nossas periferias. Lembrando que esse quadro tende a agravar-se nos próximos anos com o ufanismo do “eu te amo meu Brasil” embalado por copa do mundo e olimpíadas. Outro ataque contra o povo foi a mudança de horário das feiras - livres imposta pela prefeitura, com a redução, que antes era das 5 às 15hs para 7hs30min às 13hs. Essa medida que a principio atinge os feirantes, prejudica muito os pobres, pois sabemos das chamadas ofertas de "fim de feira". Essa medida acaba beneficiando os grandes hipermercados que agora funcionam de domingo a domingo.

Reforma agrária e urbana!

Segundo dados do IBGE, nos últimos anos a concentração de terras aumentou. As propriedades com mais de 1000 hectares controlam 43% de todas as terras no Brasil (e em sua maioria tem sua produção voltada para a exportação: soja, cana, eucalipto; é o chamado agronegócio) e as propriedades com menos de 10 hectares tem apenas 2,7% das mesmas terras (embora estas se dediquem a produção de alimentos básicos através da agricultura familiar). Só para termos uma idéia, 1 hectare de terra equivale a mais ou menos um campo de futebol. Teremos em setembro a realização de mais um plebiscito popular, este sobre o limite da propriedade rural, já que, como vimos o Brasil é um dos países mais desiguais e injustos nesse sentido. Enquanto milhões de pessoas vivem em condições precárias, morando em favelas, cortiços e áreas de risco; temos só na cidade de São Paulo cerca de 500 mil imóveis fechados. Por isso também defendemos uma ampla reforma urbana.

Todos ao Grito dos Excluídos!

Sendo assim, mais uma vez no dia da proclamação da Independência, iremos dar nosso grito pela soberania nacional e contra a exclusão social, pela nação que queremos, uma nação que respeite e garanta o direito de todos e da natureza.

Vamos juntos construir um grande grito contra a exclusão social em São Paulo, o povo sofrido desta cidade tem muito o que denunciar e também anunciar a sociedade que queremos, com justiça e igualdade. Converse com seus amigos no bairro, na escola e no trabalho, convide - os a participar.

Assinaturas na ordem:
Fórum das Pastorais Sociais e CEBS da Arquidiocese de São Paulo;

CSP CONLUTAS;

Intersindical;

MTST;

Uneafro;

Sefras / Justiça e Paz Integridade da Criação;

Romaria à Pé;

CIMI – SP;

JOC;

Fórum de Luta dos Trabalhadores Desempregados;
]
Movimento Nacional da População de Rua;

Tribunal Popular;

Fórum das ONGS;

Padres Oblatos de Maria Imaculada.

Ideologia e Utopia

Por Antonio Ozaí da Silva

Ideologia!

Eu quero uma prá viver...
(Cazuza)

As ideologias mobilizam indivíduos e multidões, alimentam intolerâncias, intentam conservar ou transformar sociedades, produzem guerras e revoluções. Qual a fonte dessa força imensa que se dissemina e conquista corações e mentes em povos de culturas e realidades tão díspares? Será porque expressam utopias? Ideologias e utopias são semelhantes, nomes diferentes para os mesmos fenômenos políticos e sociais? Se as ideologias sobrevivem ao passar dos anos e vivificam nos homens e mulheres do tempo presente, mesmo quando são declaradas mortas, será que vivemos uma época em que a utopia se exauriu? O objetivo deste texto é analisar essas questões, a partir da obra de Karl Mannheim [1].

Em geral, tomamos ideologia e utopia como sinônimo. Por exemplo, nos referimos ao comunismo (socialismo) e, praticamente com o mesmo sentido, à utopia comunista (socialista); da mesma forma, consideramos a ideologia anarquista como semelhante à utopia libertária. Quando, porém, aludimos às ideologias de cunho conservador e/ou liberal, não estabelecemos vínculos com utopias. Na linguagem política corrente, essas ideologias são concebidas como valores e idéias que legitimam e mantêm o status quo. Geralmente não falamos em “utopia conservadora” e “utopia liberal”. Reservamos a expressão utopia para as ideologias contestatórias, as quais colocam-se como objetivo o revolucionamento da ordem social e, portanto, a construção do “não-existente” a partir da negação do “existente”. Por isso, é mais comum falarmos em utopias comunista, socialista e anarquista.
Se tomarmos, porém, o pensamento liberal em suas origens, é possível fazer o mesmo raciocínio. Numa época em que predominava a sociedade feudal e a ideologia da nobreza e do clero era seu sustentáculo, as idéias liberais diziam respeito ao “não-existente”, à transformação da ordem social tradicional e sua superação pelo liberalismo, pela ordem social do Capital. O liberalismo foi revolucionário e, portanto, utópico. Mas tão logo derrotou o feudalismo e conquistou seu espaço, tornou-se uma ideologia conservadora e perdeu seus traços utópicos. Não podia ser diferente, pois se a burguesia levasse às últimas conseqüências seu lema “Igualdade, Liberdade, Fraternidade”, teria que negar-se a si própria. E nenhuma classe social comete suicídio político.
O mesmo ocorreu com o “socialismo realmente existente”: à sua vitória seguiu-se a necessidade de conservar a ordem. Os revolucionários de hoje são os conservadores de amanhã. Não é mero acaso que, seja nas revoluções burguesas ou nas socialistas, surja a crítica interna dos setores minoritários que almejam empurrar a revolução para além dos limites dos que desejam estabilizar o poder. A nova ordem precisa ser negada para que a utopia permaneça; o não-existente continua a ser o objetivo a perseguir. No entanto, os novos grupos e classes sociais no poder não podem tolerar os que se mantêm utopistas. Suas cabeças devem ser guilhotinadas, seus corpos são cravados pelas balas dos fuzis dos camaradas da véspera; aos períodos revolucionários seguem-se os tempos inquisitoriais. Assim, os líderes bolcheviques tiveram que perseguir os anarquistas e silenciar a oposição interna no partido; o stalinismo e congêneres completou o serviço. A nova ortodoxia não tolera heresias.
A história parece dar razão a Karl Mannheim. Ele distingue ideologia e utopia. A primeira refere-se ao conjunto de idéias que objetivam manter a ordem existente; a segunda, às idéias que fundamentam as ações pela transformação desta. De acordo com Mannheim:
“O conceito de “ideologia” reflete uma das descobertas emergentes do conflito político, que é a de que os grupos dominantes podem, em seu pensar, tornar-se tão intensamente ligados por interesses a uma situação que simplesmente não são mais capazes de ver certos fatos que iriam solapar seu senso de dominação. Está implícita na palavra “ideologia” a noção de que, em certas situações, o inconsciente coletivo de certos grupos obscurece a condição real da sociedade, tanto para si como para os demais, estabilizando-a portanto.
O conceito de pensar utópico reflete a descoberta oposta à primeira, que é a de que certos grupos oprimidos estão intelectualmente interessados na destruição e na transformação de uma dada condição da sociedade que, mesmo involuntariamente, somente vêem na situação os elementos que tendem a negá-la. Seu pensamento é incapaz de diagnosticar corretamente uma situação existente da sociedade. Eles não estão absolutamente preocupados com o que realmente existe; antes, em seu pensamento, buscam mudar a situação existente. Seu pensamento nunca é um diagnóstico da situação; somente pode ser usado como uma orientação para a ação. Na mentalidade utópica, o inconsciente coletivo, guiado pela representação tendencial e pelo desejo de ação, oculta determinados aspectos da realidade. Volta as costas a tudo que pudesse abalar sua crença ou paralisar seu desejo de mudar as coisas” (MANNHEIM, 1976, p. 66-67).
Para Karl Mannheim, a utopia não apenas desvincula-se da ideologia como do real, o existente. Sua relação com a realidade dá-se apenas enquanto negação. Aqui, a utopia não é um vir-a-ser mas algo a ser vivenciada agora. “Um estado de espírito é utópico quando está em incongruência com o estado de realidade dentro do qual ocorre”, afirma (id., p.216). Não é suficiente, portanto, que as idéias transcendam a ordem existente para ser consideradas utópicas, é preciso que se orientem pela ruptura das amarras com o existente, que se declare plenamente incompatível:
“Todos os períodos da história contiveram idéias que transcendiam a ordem existente, sem que, no entanto, exercessem a função das utopias; antes eram as ideologias adequadas a este estágio de existência, na medida em que estavam “organicamente” e harmoniosamente integradas na visão de mundo característica do período (ou seja, não ofereciam possibilidades revolucionárias. Enquanto a ordem medieval, a organização feudal e clericalmente, pôde situar seu paraíso fora da sociedade, em qualquer outra esfera do mundo que transcendesse a história e que amortecesse seu potencial revolucionário, a idéia de paraíso ainda constituía parte integrante da sociedade medieval. Somente depois que certos grupos incorporaram estas imagens desiderativas à sua conduta efetiva é que estas ideologias se tornaram utópicas” (id., p. 217).
Ideologia e utopia são distinguidas pela relação que mantêm com a ordem social existente. Para que as idéias desempenhem o papel utópico, isto é, adquiram um “estado de espírito utópico”, é necessário que não apenas transcendam a ordem, mas que incorporem-se nos grupos sociais oprimidos e capazes de revolucionar a ordem. A mentalidade utópica, em suma, é revolucionária; a ideologia permanece atrelada ao existente.
Mas é possível viver em sociedade e alienar-se completamente dela? Mesmo o revolucionário mais radical não se vê obrigado a considerar o realmente existente? Ele/ela não está com os pés no chão social real do seu tempo? As idéias dominantes da sua época não influenciam? Como contestar a ordem sem partir da realidade negada? Não há a tentação de se adaptar, ainda que se mantenha o discurso contestatório?
Não é apenas uma questão teórica e conceitual. Os movimentos sociais revolucionários, e, portanto, utópicos, tiverem que levar em conta o existente. Quando não foram derrotados, adaptaram-se. Nas raras oportunidades em que foram vitoriosos, como na Revolução Russa, tiverem que construir a nova ordem a partir do arcabouço da velha sociedade. Tradições, hábitos, valores, idéias permaneceram latentes e atuantes, em conflito com os novos valores e idéias impostos pelo processo revolucionário. O novo homem e a nova mulher socialistas não nascem prontos e purificados.
Além disso, as necessidades políticas para a manutenção do poder do Estado levam à prática de atitudes antes criticadas, mas agora legitimadas pelo “realismo revolucionário”. Inicia-se, então, processos contra-revolucionários, paradoxalmente em nome da Revolução. O discurso revolucionário, vale dizer, utópico, ossifica-se na tradição, cuja legitimidade é dada pelo recurso ao profeta de origem. Daí a necessidade de estabelecer linhas de continuidade do tipo Marx-Engels-Stalin e outras a depender do “profeta” continuador.
O dilema dos utopistas é negar o existente e ser coerente com esta negação. O reformismo expressa essa dificuldade. Sua solução não foi muito melhor do que aquela das sociedades “socialistas” historicamente existentes. Longe de transformar a ordem existente, a estratégia reformista adaptou-se e fortaleceu-a. Negou não apenas as idéias que transcendiam a sociedade capitalista, mas também a possibilidade da utopia.
É praticamente impossível viver a utopia desvinculado do “ser no mundo”. O existir no mundo “consiste no que é “concretamente efetivo”, isto é, uma ordem social em funcionamento, que não exista apenas na imaginação de certos indivíduos, mas de acordo com a qual as pessoas realmente ajam” (id.). As ideologias e utopias não estão apartadas dessa concretude. Por outro lado, as ideologias são conservadoras, mas também contestatórias. E estas se confundem com as utopias. Como assinala Mannheim:
“Ao observador que delas tenha uma visão relativamente externa, esta distinção teórica e completamente formal entre utopias e ideologias parece oferecer pouca dificuldade. Contudo, determinar concretamente o que em um dado caso seja ideológico e o que seja utópico é extremamente difícil” (id., p. 219-220).
A distinção parece mera construção formal, conceitual. Qual o critério para estabelecer com segurança o que é ideologia e o que seja utopia?
“Aqui nos defrontamos com a aplicação de um conceito que envolve valores e padrões. Para que tal aplicação se efetue, deve-se necessariamente partilhar dos sentimentos e das motivações das partes em luta pelo assenhoramento da realidade histórica” (id., p.220).
As definições conceituais nem sempre se encaixam na realidade da vida. Os grupos e classes sociais em pugna apropriam-se e redefinem os conceitos a partir da sua práxis. Ou seja, também os conceitos e teorias são objetos de disputa. Assim, por exemplo, a acusação de “ideológico” a um adversário ou inimigo político, ou mesmo quando ocorre na formalidade das relações acadêmicas, encobre o fato de que a acusação também é ideologia. O “cientificismo” e a pretensão à “neutralidade científica” são tão ideológicos quanto o sujeito-objeto criticado por “ser parcial”, isto é, “ideológico”.
O mesmo ocorre com a utopia. É muito comum a crítica ao “utopismo” dos outros, sendo que o crítico coloca-se na posição do “realista”. Nesses casos, a crítica tende a ser pejorativa, ou feita com certa condescendência. De qualquer forma, o objetivo é caracterizar o outro como “irrealista”, “sonhador”, etc. O uso das palavras expressa posições políticas. Como escreve Mannheim:
“Os representantes de uma ordem dada irão rotular de utópicas todas as concepções de existência que do seu ponto-de-vista jamais poderão, por princípio, se realizar. De acordo com esta utilização, a conotação contemporânea do termo “utópico” é predominantemente a de uma idéia em princípio irrealizável. (...) Dentre as idéias que transcendem a situação, existem certamente algumas que em princípio jamais poderiam realizar-se. Não obstante, os homens cujos pensamentos e sentimentos se acham vinculados a uma ordem de existência na qual detêm uma posição definida, manifestarão sempre a tendência a designar de absolutamente utópicas todas as idéias que tenham se mostrado irrealizáveis apenas no quadro da ordem em que eles próprios vivem” (id., p.220)
Os defensores da ordem social vigente procuram desqualificar e até mesmo ridicularizar os contestadores utopistas. Com o tempo, muitos destes se rendem ao discurso “realista”. No século XIX, por exemplo, social-democrata significava a ação política que tinha como objetivo superar a sociedade de classes, o capitalismo, e, por meios revolucionários, construir a sociedade socialista rumo ao comunismo. No que se transformou a social-democracia? Que é o reformismo senão a integração à ordem? Que expressa a história política recente da esquerda brasileira senão o abandono de quaisquer veleidades utópicas? Parcela importante dessa esquerda negou os princípios ideológicos que, mal ou bem, inspiraram a ação de homens e mulheres, jovens e adultos. Os que recusaram a adaptação à ordem e permanecem utópicos, são os órfãos de uma geração que ousou sonhar, mas desistiu de lutar por seus sonhos.
“É inexeqüível”, ouvi certa vez. Compreendo! É difícil imaginar a viabilidade de uma sociedade sem classes, sem Estado e fundada na autogestão dos indivíduos livres. Como vislumbrar qualquer pensamento utópico se nossa mente e sentimentos estão tão enraizados na sociedade em que vivemos. Como agir segundo os princípios utópicos se permanecemos escravos do “reino da necessidade?
A utopia é o discurso sobre o não existente. Mas isso não significa que seja uma quimera, um delírio de indivíduos incapazes de “ver a realidade”. Se o pensamento humano permanecesse prisioneiro da “realidade”, isto é, restrito à ordem social e legitimador desta, as sociedades seriam estacionárias. Muito do que parece “irrealizável” em cada época histórica específica, é apenas e tão somente do ponto-de-vista daquela época, das idéias predominantes nela. Ora, a realidade está em permanente mudança. Não levar isso em conta, é decretar a morte da dialética e acreditar que não fazemos a História. A sociedade que nega veementemente a utopia produz as condições para a sua realização. Com Mannheim,
“Queremos dizer com isso que cada época permite surgir (em grupos sociais diversamente localizados) as idéias e valores em que se acham contidas, de forma condensada, as tendências não realizadas que representam as necessidades de tal época. Estes elementos intelectuais se transformam, então, no material explosivo dos limites da ordem existente. A ordem existente dá surgimento a utopias que, por sua vez, rompem com os laços da ordem existente, deixando-a livre para evoluir em direção à ordem e existência seguinte” (id., p.223).
A mentalidade utópica é vista por muitos como idealismo, quixotismo típico dos que combatem moinhos de vento. Esse tipo de entendimento está presente tanto no senso-comum quanto em intelectuais que se consideram cientistas. Para uns e outros, a utopia é coisa de sonhos irrealizáveis. Na prática, personificam e legitimam a ordem social existente.
A burguesia e seus intelectuais orgânicos afirmam a inviabilidade, inexequibilidade de qualquer projeto político alternativo ao Capital. Qualquer proposta que coloque em xeque as bases de sustentação do seu domínio são consideradas irrealistas e “utópicas”. E, no entanto, a burguesia também acreditou e defendeu sua utopia. Qual a grande utopia dessa classe na época do feudalismo?
“A utopia da burguesia ascendente consistia na idéia da “liberdade”. Era em parte uma verdadeira utopia, isto é, continha elementos orientados para a realização de uma nova ordem social, constituindo um instrumento para a desintegração da ordem previamente existente, e que, após sua realização, se converterem parcialmente em realidade. Liberdade no sentido de quebrar as cadeias da ordem de estado, guilda e casta, no sentido da liberdade de pensamento e de opinião, no sentido de liberdade política e liberdade do desenvolvimento sem entraves da personalidade, tornaram-se em um sentido amplo, ou pelo menos em um sentido mais amplo do que na sociedade feudal anterior baseada nos laços de status, uma possibilidade viável. Sabemos, hoje em dia, exatamente em que medida estas utopias se tornaram realidades e até que ponto a idéia de liberdade daquela época continha não apenas elementos utópicos, mas igualmente ideológicos” (id., p. 227).
Eis o critério da distinção conceitual entre ideologia e utopia. Para Mannheim, é a realização da utopia que indica a sua diferenciação em relação ao aspecto ideológico:
“Idéias que posteriormente se mostraram como tendo sido apenas representações distorcidas de uma ordem social passada ou potencial eram ideológicas, enquanto as que forma adequadamente realizadas na ordem social posterior eram utopias relativas” (id., p. 228).
Na materialidade histórica, porém, as ideologias revolucionárias atuam com o objetivo de construir novas ordens sociais, portanto, capazes de realizar as utopias. Ou seja, ideologias também são utópicas, ainda que se afirmem “científicas”. Assim, a “ideologia” não é apenas o recurso das classes dominantes para dissimular a realidade, mas também meio para o desvendamento desta. Quem atua na perspectiva da crítica à “ideologia dominante” também afirma a sua ideologia. E ao afirmá-la enquanto perspectiva de revolucionar a ordem social existente também assume o caráter utópico.
De qualquer forma, ideologias e utopias estão relacionadas a grupos sociais. Enquanto as idéias não forem incorporadas pelos grupos e classe sociais não terão efeito. O indivíduo utópico, isto é, aquele que inova criando idéias que transcendem o status quo, não pode efetivá-las em sua solidão. As idéias precisam circular, conquistar adeptos e serem personificadas por um número crescente de indivíduos, ou seja, necessitam corresponder ao horizonte político de determinados grupos sociais e se manifestar em ações. Então, a utopia passa a ser realizável.
Eis o “calcanhar de Aquiles” do pensamento utópico. Na medida em que se restringe a alguns indivíduos ou à minoria da minoria, ele é pressionado a se adaptar e/ou é mantido sob limites que permaneça inofensivo. Até é tolerado sob o argumento da liberdade de expressão. Em determinadas circunstâncias, é visto de maneira condescendente como inerente às “esquisitices” típicas de alguns indivíduos “especiais”. Noutros casos, refugia-se nas estruturas que, paradoxalmente, deveria combater. E, assim, academiciza-se, torna-se abstração escolástica, perde o élan utópico e esvazia-se enquanto discurso; auto-proclama-se contestador da ordem social, mas, na prática, ajusta-se aos seus ditames. Assim, as ideologias-utopias cristalizam-se em seus opostos:
“Com efeito, quanto mais ativamente um partido em ascensão colabora em uma coalizão parlamentar, tanto mais abandona seus impulsos utópicos originais e, com eles, sua perspectiva ampla, tanto mais seu poder para transformar a sociedade tenderá a ser absorvido por seus interesses em detalhes isolados e concretos. (...) O esforço utópico visando a um objetivo e a possibilidade, intimamente relacionada a ele, de uma perspectiva ampla desintegram-se, no conselho consultivo parlamentar e no movimento sindical, em mero conjunto de orientações para dominar um vasto número de detalhes concretos, com vista a assumir posição política quanto a eles” (id., p.274).
A pressão pela integração é intensificada com a derrota das ideologias críticas à ordem vigente. Quando as idéias materializam-se nas ações humanas, nem sempre os resultados são os projetados. Dessa forma, decretam o fim das ideologias (claro, referem-se às ideologias contestadoras) e ironizam os “utópicos”, “ingênuos” e, muito provavelmente, “ignorantes”.
Não obstante, é legítimo questionar se ainda há lugar para Utopias. A crise das ideologias, e conseqüentemente das utopias, renova o dilema dos indivíduos que insistem em afirmar a possibilidade de um outro mundo, que não se rendem aos que, com seus discursos pretensamente “científicos”, “realistas” e “bem informados”, congelam a História e insistem em repetir que não há alternativa. Para eles, resta tão somente a reconciliação com o status quo e, já que é inevitável, tirar o máximo proveito. Esse tipo, geralmente personificado em intelectuais respeitáveis, aconselha, ainda, o combate aos que permanecerem renitentes. Ou seja, não basta renegar as próprias idéias e a si mesmo.
Porém, desde a era mais remota, o ser humano se permite imaginar a transcendência da ordem. Quando este sonho é abraçado por outros que sonham o mesmo sonho, então transforma-se em utopias passíveis de realizar-se. Nesse exercício reside a esperança humana que, tal qual a fênix, sempre renasce das cinzas. Mesmo nas fases históricas de maior desespero humano, há os que encontram forças para continuar lutando para transformar a realidade. Se há algo em comum nas utopias e essa promessa de que um novo mundo é possível.
O ser humano é um ser imaginativo, desejante e o único capaz de pensar a vida para além da sua existência. Ainda que derrotados em suas respectivas épocas, as idéias que alimentam utopias sobrevivem e são incorporadas pelas gerações vindouras. Enquanto não forem superadas as contradições presentes na ordem existente, tais idéias permanecem vivas.
O ser humano precisa da utopia. Enquanto indivíduos podemos ser favoráveis ou contra a ordem social vigente, ou sermos indiferentes. Porém, isso apenas mostra o quanto a realidade é contraditória. A erradicação da utopia só é possível com a sua realização ou com o absurdo da eliminação do ser humano (e, historicamente, as inquisições seculares e religiosas também representam a vã tentativa de eliminar as idéias utópicas, consideradas “heresias”, eliminando-se aqueles que as personificam).
A utopia é necessária porque expressa a afirmação do humano. Como ressalta Mannheim:
“A desaparição da utopia ocasiona um estado de coisas estático em que o próprio homem se transforma em coisa. Iríamos, então, nos defrontar com o maior paradoxo imaginável, ou seja o do homem que, tendo alcançado o mais alto grau de domínio racional da existência, se vê deixado sem nenhum ideal, tornando-se um mero produto de impulsos. (...) o homem perderia, com o abandono das utopias, a vontade de plasmar a história e, com ela, a capacidade de compreendê-la” (id., p. 285).
Décadas se passaram desde que o autor escreveu estas palavras. E, no entanto, como as ideologias utópicas, permanecem necessárias e atuais.

Referência

MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976.

[1] Karl Mannheim (1893-1947), nasceu em Budapeste, capital da Hungria. Ideologie und Utopia (Ideologia e utopia), publicado em 1929, foi seu primeiro livro.

Fonte: http://www.espacoacademico.com.br/096/96esp_ozai.htm