domingo, 21 de dezembro de 2014

A REVOLUÇÃO RUSSA EM QUADRINHOS- ANDRÉ DINIZ


O Estado, a política e o Direito em Marx

Marx-Engels conceberam três grandes obras de política, que tratam a sequencia evolutiva do pensamento Marxista sobre Estado, política e direito.
A primeira, onde Marx, ainda jovem publica “A crítica da filosofia do direito de Hegel”, depois, quando Marx já detinha certa maturidade intelectual, refletindo as contradições da sociedade capitalista, publica “18 de brumário de Luís Bonaparte” (1852). E mais tarde, quando Marx já havia morrido, Engels e Kautsky escrevem uma obra intitulada “O socialismo jurídico”.
Nas três obras, especialmente na primeira e na terceira, Marx-Engels tratam também sobre o direito, curso que Marx se formara e único feito pelo mesmo. Lembra-se que no século XIX o Direito era o arcabouço mais tradicional das Ciências Humanas.
Para melhor entendimento e leitura iremos tratar de cada livro separadamente.

“A crítica da filosofia do direito de Hegel”

Para primeiro entendimento do leitor, é importante salientar que durante o século XIX a ideologia reinante dentro do Direito era a de Hegel. Embasado em seu livro “Princípios da filosofia do Direito”, Hegel inaugura o novo pensamento do Séc. XIX afirmando: “O Estado é a razão”. Pensamento este contrário a então filosofia dominante de Kant: “A razão não está no Estado, a razão está no sujeito”. É interessante historicamente perceber que os principais filósofos do século XVII e XVIII pregavam o Estado como o causador das injustiças e a razão como algo individual. Mas quando a burguesia toma o Estado no século XIX, a ideologia então passa a ser hegeliana, manifestada pela adoração ao Estado e sintetizada na afirmação de Hegel acima.
O jovem Marx, aos 25 anos, tendo aprendido a filosofia hegeliana em sua formação acadêmica demonstra sua discordância com a mesma através deste seu pequeno notável livro. Ele simplesmente, a partir do parágrafo 258 dos “Princípios da filosofia do Direito” onde Hegel diz: ”O Estado é a razão em si, e para si” declara que a partir desta frase não concordara com nada. E doravante este parágrafo começa a rebater cada suposição de Hegel com seu texto.
Meses depois, após casar-se, Marx resolve escrever uma Introdução ao seu livro, introdução belíssima e famosa, onde começa a refletir os problemas da sociedade capitalista e chega a conclusão de que o problema do mundo não está no Estado, mas sim no fato de que a sociedade está dividida em classes. Com isso, ele funda um dos alicerces do Marxismo como é conhecido hoje, o conceito de classes e a luta de classes. E é quando compreendemos as classes sociais, que entendemos os movimentos da política. O eventual acaso da política se explica através das classes, dizia Marx. 

“18 de Brumário de Luís Bonaparte”   

O livro aborda o golpe dado por Luís Bonaparte no dia 18 de Brumário (de acordo com o calendário da Revolução Francesa). Todos na época analisavam este golpe assustados, com base na ventura ou no acaso, já que haviam se passado décadas da Revolução Francesa e a República burguesa já estava com alicerces bem embasados. Como o sobrinho de Napoleão, considerado um desastre político e debochado pelos franceses obteve sucesso em sua tentativa golpista de se coroar imperador em plena República? Enquanto uns falavam que os franceses estavam desatentos, ou que foi sorte, Marx rejeitou essas explicações e foi buscar motivos políticos e racionais. O resultado: “18 de Brumário de Luís Bonaparte”.
Luís Bonaparte dera um golpe na burguesia francesa, que estava no poder do Estado desde 1789. Marx declara no livro que para entender como isso foi possível, como a burguesia deixara algo dessa magnitude acontecer, precisamos entender o Estado e o seu funcionamento.
O Estado pode estar na mão de qualquer classe, mas vai continuar sendo sempre um Estado burguês, pois seus aparelhos, suas engrenagens são ideologicamente burguesas. Basta analisar historicamente o Estado-Moderno, e verificar como o mesmo foi produto do capitalismo, e não ao contrário.  
Tendo em vista essas considerações e notando as brigas e disputas internas da burguesia francesa na época e o real perigo à ordem burguesa nos anos pré-golpe, já que trabalhadores haviam inclusive organizado a Comuna de Paris e uma certa cena de instabilidade política estava no ar, a burguesia francesa achou interessante um representante da decadente nobreza com ligações sanguíneas aos áureos tempos de prosperidade da Era Napoleônica sentar ao poder.
Marx nos ensina em 1852 que não basta somente sentar ao poder do Estado para transformar a sociedade, a transformação da sociedade só poderá estabelecer-se de forma efetiva quando dominadas as relações capitalistas, que são as produtoras do capitalismo, e, portanto, produtoras do Estado. Ou seja, bem especificamente, o Estado é resultado das relações capitalistas. O Estado não é o dominante do capital, o Estado é o dominado do capital. Para Marx, a burguesia literalmente terceirizou o Estado através de Luís Bonaparte.  

“O socialismo jurídico” de Engels e Kautsky (este último na imagem abaixo) 

Após a morte de Marx, Engels e Kautsky decidiram fazer uma crítica específica aos socialistas juristas que apontavam um mundo melhor através da conquista de direitos jurídicos para os trabalhadores, como a diminuição e regulamentação da jornada de trabalho,etc.Para esses a Revolução não era o caminho, mas sim reformas que melhorariam de forma superficial o bem-estar do trabalhador.
O principal expoente do socialismo jurista era um sociólogo e jurista austríaco chamado Anton Menger, que inclusive tentara falsificar essências da teoria marxista, fato que não passou despercebido por Engels e resultou no livro com título irônico: “O socialismo jurídico”.
Para Marx, Engels e Kautsky não haveria sequer garantias das reformas jurídicas, já que a ordem social burguesa e a estrutura dela se manteriam, e as relações capitalistas seriam as mesmas. Não bastava o domínio do Estado e de algumas normas jurídicas, era preciso findar a estrutura que gera o Estado e todo esse conjunto de normas através da Revolução.
Com esse livro, separa-se dentro da esquerda os reformistas dos marxistas. Marx-Engels com esses livros tentam nos ensinar, entre outras coisas, que na política o fundamental são as formas da sociabilidade capitalista. Que o Estado é corpo estrutural e produto do capitalismo, e o corpo protege o coração, que são as relações capitalistas em si. E que o fim da exploração não se dá através do controle do Estado pelos trabalhadores, e sim como consequência da extinção das relações capitalistas. 
 
Texto: Matheus P. S. Ramos, autor e colunista do blog Um quê de  Marx. 
É permitido o compartilhamento desta publicação e até mesmo a edição da mesma. Sem fins lucrativos e cite a fonte. Creative Commons Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.

domingo, 16 de novembro de 2014





Alysson Mascaro   Marx, Engels e a crítica do Estado e do direito   IV Curso Livre Marx-Engels


Antonio Rago   A crítica do idealismo em Marx e Engels   IV Curso Livre Marx-Engels


José Paulo Netto   A atualidade do Manifesto Comunista   IV Curso Livre Marx-Engels



Osvaldo Coggiola   Análises concretas da luta de classes   IV Curso Livre Marx-Engels



Ricardo Antunes | A constituição da classe trabalhadora | IV Curso Livre Marx-Engels



Mario Duayer | A crítica ontológica do capital | IV Curso Livre Marx-Engels



Jorge Grespan | A crítica da economia política em Marx | IV Curso Livre Marx-Engels


Ruy Braga | Democracia, trabalho e socialismo em Marx e Engels | IV Curso Livre Marx-Engels

Fonte: http://marxismoemarxistas.blogspot.com.br/2014/09/iv-curso-livre-marx-engels-boitempo.html

domingo, 12 de outubro de 2014

Brasil: "Resultado das presidenciais será disputado voto a voto"


Ruy Braga explica nesta entrevista o resultado da primeira volta e diz que Dilma e Aécio não sairão do empate técnico até à eleição. Consoante esse resultado, o sociólogo do Trabalho antevê o futuro das leis laborais brasileiras e a relação do poder com o movimento sindical.
Ruy Braga, sociólogo e professor da Univ. São Paulo, é autor de "Política do precariado: do populismo à hegemonia lulista"
Que avaliação faz da primeira volta das eleições, considerando a queda de Marina e a diferença de 8% entre Dilma e Aécio? Como o senhor interpreta esse resultado?
Fiquei surpreso não com o facto de Aécio estar na segunda volta, mas com a diferença entre Dilma e Aécio, que foi pequena, de 8%. Acredito que essa situação se explique pela combinação de alguns fatores que são mais determinantes. O primeiro deles tem a ver, evidentemente, com um grande nível de insatisfação popular com o atual momento económico, que acaba se transferindo para uma insatisfação com o governo federal. É uma insatisfação que, diga-se de passagem, já conseguimos identificar desde junho de 2013, quando o índice de aprovação do governo Dilma caiu de 59% para 30% e a partir de então se recuperou muito pouco. Então existe, de facto, no país, uma situação em que a massa da população encontra-se insatisfeita com a atual situação económica e política. Evidentemente essa insatisfação se traduz eleitoralmente, ou seja, houve uma tradução dessa insatisfação eleitoral no primeiro turno.
Qual é a surpresa? A surpresa é a relação com a Marina Silva, que após a morte do Eduardo Campos assumiu a candidatura pelo PSB, e em grande medida atraiu o eleitorado insatisfeito com o governo federal. Essa distribuição foi muito nítida quando Marina, logo após ser lançada, atraiu uma quantidade enorme dos votos daquelas pessoas que recebem entre dois e cinco salários mínimos – ela ganha de Dilma nesse aspecto -, e dos eleitores mais jovens. Então, essa massa de milhões de eleitores foi atraída por Marina. Logo em seguida, ela recebeu o reforço de uma massa grande de jovens de classe média alta e da elite, os quais viam em Marina uma possibilidade real de vencer a eleição e de derrotar a Dilma e o PT. Houve até um momento, em setembro, que se imaginava que Marina poderia vencer Dilma no primeiro turno.
Durante esses dois meses de campanha, Marina apresentou-se como alternativa ao PT. No entanto, como o PT adotou, como tática central, centrar fogo na Marina, e a própria candidata não teria condições de manter essa aliança entre setores de classe média alta e setores populares que ganham entre dois e cinco salários mínimos, o que aconteceu foi uma desidratação progressiva da Marina, que se acelerou no final. Os votos que ela havia ganho dos eleitores de Aécio retornaram para ele e, nesse movimento de desidratação, os indecisos decidiram, na última hora – e essa é uma característica do eleitorado brasileiro -, apoiar Aécio. O que explica a nossa surpresa passa por esses fatores, ou seja, uma insatisfação com o governo, a candidatura de Marina ter atraído e depois repelido votos, os indecisos que se inclinaram num volume maior pela oposição, e a própria campanha eleitoral do PT de criticar única e exclusivamente Marina Silva e não Aécio Neves, explicam de facto o primeiro turno.
Por que diz que Marina não teria condições de manter uma aliança entre a elite e os setores populares? O PT não fez isso ao longo dos últimos 12 anos? O que diferenciaria o governo dela do que foi o do PT nesse aspecto de manter alianças com a elite e os setores populares?
A posição da Marina ficou insustentável, porque o discurso dela era um discurso em que as propostas concretas eram propostas para o mercado financeiro, para os investidores. Para a massa popular, que é a massa que definiria a segunda volta, ela tinha um discurso muito frouxo, abstrato. E por isso não tinha condições de garantir essa relação por muito tempo.
É porque ela não tinha o que dizer para a massa que ganha entre dois e cinco salários mínimos, a não ser algo muito abstrato. Em bom rigor, até para que ela conseguisse se firmar como uma candidata viável do ponto de vista eleitoral, ela tinha de prioritariamente atrair o apoio de eleitores com muito dinheiro. Normalmente ela fez isso a partir da mediação do mercado financeiro e acabou apresentando-se e apresentando um programa que refletia essa dependência e carência do apoio da elite, dos setores endinheirados, dos bancos, das elites. E numa situação como essa em que o país passa por um momento de desaceleração económica, num momento em que há uma polarização mais acentuada no país em termos de luta redistributiva, ou seja, de quem controla o orçamento do Estado e para onde vai o orçamento, num momento em que é preciso apresentar propostas que seduzam setores da sociedade, que são setores com interesses distintos, essa posição da Marina ficou insustentável, porque o discurso dela era um discurso em que as propostas concretas eram propostas para o mercado financeiro, para os investidores. Para a massa popular, que é a massa que definiria a segunda volta, ela tinha um discurso muito frouxo, abstrato. E por isso não tinha condições de garantir essa relação por muito tempo.
Por que os partidos com uma proposta mais de esquerda não tiveram projeção, considerando que eram terceira via a essa polaridade entre PT e PSDB?
O PSOL foi bastante bem-sucedido este ano, porque dobrou sua votação em comparação com a eleição de 2010 e isso é um reflexo do que aconteceu em junho do ano passado. Nesse sentido, diria que o PSOL, com a candidatura da Luciana Genro, foi bem-sucedido na sua empreitada.
Agora, a razão para que partidos de esquerda, como PSOL, PSTU, PCdoB, não consigam uma expressão eleitoral mais aguda tem a ver com causas que são ao mesmo tempo estruturais, ligadas ao financiamento de campanhas, e causas mais específicas, que têm a ver com o programa de cada um desses partidos, que são mais radicais e mais à esquerda. Do ponto de vista da psicologia das massas, sempre que aparecer, com exceção de situações de crises agudas, uma alternativa mais moderada, as massas tendem a se aproximar de posturas mais moderadas e a repelir posturas mais radicais. Então, vejo uma combinação de dois fatores: um tipo de sistema eleitoral que tem um financiamento de campanha que é absolutamente antidemocrático e antirrepublicano, porque são basicamente as empresas que financiam as campanhas e elas colocam milhares de milhões em candidatos que são aqueles que lhes parecem mais razoáveis, descontando imposto sobre rendimento, ou seja, fazem isso com dinheiro público – estima-se que a candidatura da Dilma tenha custado 500 milhões de reais e isso é absolutamente injusto em relação a candidaturas de outros como Luciana Genro; e, por outro lado, se tem um perfil de partidos de esquerda que são mais radicais.
Enfim, é mais fácil para a população achar que os problemas serão resolvidos simplesmente apertando o sinal verde numa máquina e votando em Dilma, Aécio ou Marina, que prometem resolver todos os problemas a partir do ano que vem, do que votar numa candidata que diz que tem de taxar os ricos, ou em outro candidato que diz que não há mudança sem mobilização nas ruas. Apesar disso tudo, a votação do PSOL me deixou bastante impressionado em termos dessa eleição, porque houve uma votação razoável e a bancada da Câmara aumentou. Além disso, há situações regionais particulares, como a eleição de Marcelo Freixo, e tudo isso contribui para fortalecer posições de esquerda.
Como vê o apoio declarado do PSB e do PV à candidatura de Aécio? Os eleitores desses partidos tendem a votar no candidato do PSDB? Qual é o peso desse apoio à candidatura de Aécio?
A minha aposta é que, ao longo dessas três semanas de campanha para a segunda volta, não haverá um candidato que fuja da margem de erro do empate técnico entre os dois candidatos.
Faço a seguinte avaliação e posso estar errado, mas entendo que os votos de Marina Silva, os quais vieram durante a campanha do primeiro turno daqueles que intencionavam votar em Aécio Neves, já migraram de volta para ele. O perfil do voto da Marina é bastante parecido com o que ela obteve em 2010: à época, 55% dos votos de Marina foram para José Serra e 45% para Dilma. Este ano, o que se tem é uma situação económica deteriorada e muito pior do que a de 2010, um quadro político mais polarizado e, nessa situação, seria razoável supor que 70% do voto de Marina vá para Aécio e 30% para Dilma, apesar de o perfil do eleitor de Marina não ser o mesmo perfil do eleitor de Aécio; eles têm diferenças por conta dessa fatia mais popular do eleitorado. Nesse sentido, se acompanharmos um pouco a lógica dessa eleição e do eleitorado da Marina nessa eleição, me parece supor que a maior parte dos votos irá para Aécio, mas uma parte importante ainda deve ir para Dilma, o que faria com que essa eleição fosse muito imprevisível e disputada voto a voto. Minha aposta é que, ao longo dessas três semanas de campanha para a segunda volta, não haverá um candidato que fuja da margem de erro do empate técnico entre os dois candidatos.
Entre as comparações entre PT e PSDB, diz-se de modo geral que o PSDB atende aos interesses do capital, do setor empresarial, ao passo que o PT atende aos interesses dos trabalhadores e tem uma agenda social, apesar de ter recebido várias críticas por desenvolver uma política económica semelhante à do PSDB, a qual gera um impacto nas políticas sociais. Considerando essas questões, o que diferencia os partidos? Essas diferenças são reais ou fazem parte do imaginário coletivo? É possível separá-los como direita ou esquerda, ou são dois tipos de social democracia?
Existe de facto uma convergência em termos de política macroeconómica, porque tanto PT quanto PSDB são variações de um mesmo modelo de desenvolvimento económico muito focado no sistema financeiro, na independência do Banco Central, na defesa da taxa de câmbio flutuante. Ambos também adotam um tipo de relação promíscua entre a dívida pública e os financiadores privados. No entanto, existe uma diferença se analisar a base social de cada um dos partidos. O PT, por mais que se aproxime do PSDB em termos macroeconómicos, tem uma base social formada pela CUT e os movimentos sociais e isso faz toda a diferença quando se pensa no ajuste do mercado de trabalho, na proteção trabalhista, na própria postura do governo em relação ao salário mínimo e nas políticas sociais de inclusão. O PT no governo produziu um tipo de relação de dominação que, do ponto de vista dos setores dos trabalhadores organizados e dos movimentos sociais, reflete de uma forma distorcida uma agenda que é a agenda dos movimentos sociais e do movimento sindical, ainda que muito aquém das necessidades, ou seja, daquilo que seria o desejo dos setores mais progressistas. Em contrapartida, o PSDB é uma tragédia em termos de base social, ele é a ave de rapina do mercado financeiro, e uma vitória de Aécio seria uma tragédia do ponto de vista do movimento sindical e social.
O que vislumbra na agenda do trabalho num possível governo Dilma ou Aécio?
Tanto num governo Dilma quanto num governo Aécio haverá um ajuste no mercado de trabalho: muito provavelmente a taxa de desemprego deve subir com um ou com outro, porque tanto um quanto o outro farão ajustes em preços regulados pelo governo, o que supõe um aumento da taxa de juros para controlar a inflação, ou que supõe um choque em termos de recessão, ou que supõe despedimentos. No entanto, o ajuste com Dilma tende a ser menor do que com Aécio. As primeiras medidas do governo dele serão antipopulares e cujo resultado será o aumento do desemprego e da taxa de juros, ajuste das contas públicas, ou seja, uma agenda neoliberal stricto sensu, e com Dilma isso tende a ser menos agudo e mais negociado.
O Projeto de Lei 4330 sobre a terceirização [subcontratação] de trabalhadores com recurso, que se arrasta desde os anos 90, corre o risco de ser aprovado caso algum dos candidatos seja eleito?
Na vitória de Aécio, sim. Com Dilma aconteceria o que tem acontecido nesses últimos anos. Sandro Mabel, autor desse projeto de lei, é do PMDB de Goiás e faz parte da base governista, mas seu projeto não foi aprovado por conta das articulações com a bancada governista e a pressão do governo. Caso Aécio ganhe, essas pressões serão eliminadas e há chances de que o projeto seja aprovado.
O senhor mencionou num artigo recente que “um espectro ronda o mundo do trabalho no Brasil, o espectro do fim da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)”. Quais as evidências que demonstram a possibilidade de risco aos direitos garantidos na CLT?
Basicamente se tem, de um lado, ameaças políticas em relação ao PL 4330 e, por outro lado, o recurso que está sendo julgado no Supremo Tribunal Federal. Essas são as duas ameaças mais imediatas. O recurso da empresa de celulose, que está sendo julgado no Supremo, é uma ameaça mais premente porque autorizaria a terceirização na atividade fim, modificando de forma radical o sistema regulatório de proteção laboral no país. Caso isso aconteça, terá se estabelecido no país a possibilidade do modelo de flexibilização total, o que significa que, por exemplo, haveria empresas que não teriam um único funcionário e todo o quadro funcional seria terceirizado. Basta ver os números para saber que os trabalhadores terceirizados recebem 30% menos do que os contratados diretamente, estão mais sujeitos ao desrespeito à legislação trabalhista, têm muito mais incidência em acidentes de trabalhos, ou seja, ainda que a CLT não fosse rasgada e queimada, esse recurso da empresa de celulose, caso seja aprovado, significaria praticamente o fim da CLT enquanto proteção do trabalho, porque o modelo de terceirização total impede que haja uma proteção efetiva do trabalho no país.
Por que não foi possível avançar em relação aos direitos trabalhistas da CLT, nem rediscutir a jornada de trabalho no governo do Partido dos Trabalhadores nos últimos 12 anos?
O PT abstém-se em todos os grandes debates, as grandes questões do movimento social e sindical no que toque ao interesse de classe, ou seja, ao confronto entre trabalhadores e capitalistas. Esse estilo de política, de fazer uma política redistributiva de renda sem tocar nos interesses do mercado financeiro, bloqueou qualquer avanço na CLT, o que significaria um aumento dos níveis de proteção no trabalho e, por outro lado, uma diminuição dos lucros dos capitalistas.
A explicação para isso basicamente é a explicação do modelo de regulação que o PT implantou, basicamente um modelo de evitar um confronto com os setores capitalistas, com os proprietários dos meios de produção no país. O PT abstém-se em todos os grandes debates, as grandes questões do movimento social e sindical no que toque ao interesse de classe, ou seja, ao confronto entre trabalhadores e capitalistas. Esse estilo de política, de fazer uma política redistributiva de renda sem tocar nos interesses do mercado financeiro, bloqueou qualquer avanço na CLT, o que significaria um aumento dos níveis de proteção no trabalho e, por outro lado, uma diminuição dos lucros dos capitalistas. O PT se absteve por conta do modelo de regulação que ele próprio construiu; é o tipo de política que procura satisfazer algumas demandas populares, mas sem tocar nos interesses do grande capital brasileiro.
Esse modelo tem na CLT um dos seus limites mais explícitos, ou seja, a jornada de trabalho brasileira continua uma das mais longas do mundo, uma jornada semanal de 44 horas, o salário mínimo continua baixo apesar de ter se recuperado no último período e ainda existe um nível muito grande de informalidade no mercado de trabalho brasileiro. Se você olhar para o que foi criado em termos de direitos trabalhistas nos últimos 12 anos, é praticamente zero. A única vitória foi a equiparação dos direitos das trabalhadoras domésticas aos demais trabalhadores e, ainda assim, isso não foi regularizado no Congresso. Então, se tem um estilo de governo que impediu avanços na área trabalhista.
Entre as críticas feitas ao PT, fala-se da relação de cooptação com os movimentos sociais. Caso Aécio seja eleito, vislumbra uma nova relação entre as centrais sindicais e o Estado no sentido de se retomar uma agenda e uma postura mais combativa e menos aparelhada?
As duas únicas centrais que acompanhariam isso seriam a Central Única dos Trabalhadores - CUT e a Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil - CTB, porque a Força Sindical já apoia Aécio e as demais centrais criadas são pelegas e simplesmente acompanham a maré. Então, aconteceria, sim, uma radicalização, ou um realinhamento no caso da CUT e da CTB. A CUT voltaria para uma situação de oposição, principalmente no tocante ao serviço público ou sindicalismo bancário, ou aquele tipo de ação sindical mais próximo ao Estado. Nesse caso, sim, prevejo que a CUT e a CTB se posicionem na oposição. As demais centrais, com exceção da Central Sindical e Popular CSP-Conlutas – que já é de oposição e sempre foi de oposição -, já estão praticamente alinhadas com a candidatura de Aécio.
Que políticas seriam necessárias para superar os baixos salários pagos no Brasil e que avanços poderiam ser feitos em relação à CLT?
Em relação à CLT é nítido que precisamos diminuir a jornada de trabalho sem diminuir os salários, o que garantiria um impulso no sentido da redistribuição da renda nacional e aumentaria a oferta de empregos, o que do ponto de vista do mundo do trabalho é positivo, porque se cria uma oferta de trabalho adicional ao absorver mais pessoas e com melhores salários, gerando uma concorrência entre os empregadores, aumentando o valor dos salários apresentados.
O segundo aspecto necessário é a aprovação de uma lei contra a demissão desmotivada. Precisamos urgentemente estancar essa sangria que é taxa de rotatividade média do mercado de trabalho brasileiro, que está na ordem de 70%. Isso é inadmissível numa sociedade democrática e que protege o trabalhador, o que também implicaria uma revisão da CLT em favor dos trabalhadores.
Pontualmente existem questões que são prementes, que não passam pela CLT, mas por políticas de Estado: o salário mínimo é uma delas, que apesar de ter se recuperado nos últimos anos, ainda está muito abaixo do seu patamar histórico, considerando as décadas de 1950, 60 e meados dos anos 80. Tem que valorizar ainda mais o salário mínimo, porque o aumento do salário mínimo tende a pressionar as empresas a investirem em tecnologia, em inovação, pesquisa e desenvolvimento, o que garantiria um desenvolvimento sustentável a médio prazo. E, evidentemente, são necessárias políticas de Estado que caminhem nessa direção de valorizar a economia brasileira do ponto de vista de ciência e tecnologia.

Entrevista de Patricia Fachin publicada no portal do Instituto Humanitas Unisinos.
Ruy Gomes Braga Neto é especialista em sociologia do Trabalho e leciona no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – USP, onde coordenou o Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania – Cenedic. É autor do livro A política do precariado (São Paulo: Boitempo, 2012).
Fonte: http://www.esquerda.net/

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

A USP não é problema, é solução!

Professor da FAU-USP desfaz quatro mitos sobre a crise na Universidade

Sugerido por Gilberto .

A USP não é problema, é solução!
1. Resumindo os Fatos:
Entre 2010 e 2013, a USP parecia viver momentos de euforia. Além da presença já tradicional da universidade no topo da produção científica nacional, um Reitor escolhido a dedo pelo Governador José Serra (afinal, era o segundo colocado da lista tríplice), o Prof. João Grandino Rodas, punha em prática uma gestão que mesclava (propositalmente?) irresponsabilidade financeira, certo autoritarismo (na relação com o Conselho Universitário), e doses de populismo, gastava o que devia e o que não devia em obras de grande visibilidade, bolsas de todos os tipos, vistosas “embaixadas” da universidade em Cingapura, Londres e Boston, e alguns merecidos benefícios a docentes e funcionários, cujo patamar salarial sempre foi muito aquém do que deveria ser (conseguindo assim acalmar os ânimos grevistas em sua gestão).
Terminado seu mandato, o novo Reitor (que fazia parte da gestão anterior), depara-se com o óbvio: a gestão Rodas havia gasto muito além da conta, entrando sem parcimônia nas reservas financeiras da USP e colocando em risco (propositalmente?) sua tão sagrada autonomia face ao Governo do Estado. Nada mais previsível. Porém, a estrutura de poder da universidade é hoje tão viciada que o então reitor pôde fazer tudo isso, pasmem, dentro da legalidade, amparando-se na condescendência de seu Conselho Universitário.
Diante da grave crise, o atual Reitor voltou-se contra seu próprio lado. Esquecendo-se de que é ele mesmo professor (fazendo parte de reduzidíssima elite com salários bem graúdos), em vez de abrir as opacas contas da universidade para amplo conhecimento da sociedade e uma real apreensão do que havia sido feito, preferiu colocar a culpa na folha de pagamento e na massa salarial que compromete 105% do orçamento e “engessa” a universidade. Em suma, para o Reitor, são os professores e funcionários da USP que geram a crise, e não a sequência de gestões irresponsáveis.
Com isso, provoca dois movimentos que parecem bem planejados: por um lado, alimenta uma campanha perversa e simplista da grande mídia contra os “marajás” da USP, supostamente responsáveis pelo colapso financeiro, como sugere, por exemplo, artigo do jornalista Élio Gaspari atacando os “doutores da USP” (leia aqui). Por outro lado, abre espaço para um movimento de enfraquecimento da USP e da universidade pública, que passa a ser vista, também de maneira simplista e perversamente equivocada, como uma máquina anacrônica e deficitária que necessita de um “choque de privatização”. Vão nesse sentido as propostas diversas de privatização da USP, como as avançadas pelo próprio Reitor em artigos na mídia (sugerindo por exemplo a redução de docentes em dedicação exclusiva), ou o tragicômico artigo da Folha de SP sugerindo que os alunos da USP poderiam pagar “pequenas” mensalidades de quase 4 mil Reais!
Que não se enganem os incautos a quem essas campanhas se destinam. São argumentações grosseiras que escondem a realidade. Que Élio Gaspari não se preocupe: os “Doutores da USP” que ele ataca ganham certamente bem menos do que ele, renomado jornalista do mercado midiático, e são bem menos responsáveis pela crise do que parece, como veremos.
2. Desfazendo um primeiro mito: “a folha de pagamento que compromete 105% do orçamento da USP é a grande culpada pela crise”.
Comecemos, então, por essa questão: a folha de pagamento da USP compromete 105% do seu orçamento não porque os salários de seus docentes e funcionários sejam milionários, mas porque há anos a universidade vem sofrendo constante ampliação sem que, ao mesmo tempo, haja um aumento correspondente das verbas para seu sustento.
Para quem não sabe, as universidades estaduais paulistas vivem, desde 1989, do repasse de 9,57% da arrecadação do ICMS do Estado, verba destinada a seu custeio, o que implica, na maior parte, no pagamento dos salários. Além, é claro, de outras fontes de financiamento, estas porém destinadas à pesquisa, provindas dos governos estadual (Fapesp) e federal (Capes-Cnpq e Finep), assim como de agências internacionais ou mesmo de instituições privadas (por meio de convênios específicos). A alíquota do ICMS repassada às universidades, nos primeiros anos, sofreu reajustes, conforme as três universidades cresciam: de 8,4% do ICMS em 1989, passou para 9,57% em 1995.
Porém, desde então, congelou-se. Em quase 20 anos, não houve mais reajuste, enquanto que a universidade não parou de crescer. O orçamento da USP ficou dependente de um repasse variável conforme aumenta – ou diminui – a arrecadação anual do ICMS, para suprir um gasto fixo com tendência a aumentar, o da folha de pagamento. Uma conta que não fecha, e que há anos, e muito antes da gestão Rodas, já compromete em mais de 90% a verba de custeio da universidade.
O Reitor insiste em ver nesse fato e no aumento de empregados as causas da crise que tem que enfrentar: alegando, em carta enviada aos docentes, o “insustentável comprometimento com gastos de pessoal”, e apontando a contratação de cerca de 2.400 funcionários e 400 docentes entre 2010 e 2013 como causa do aumento incontrolável desses gastos, a atual gestão decidiu congelar qualquer reajuste salarial, negando até a reposição das perdas com a inflação. Por isso, e compreensivelmente, docentes e funcionários da USP, e os alunos em seu apoio, estão em greve.
Acima da questão salarial em si, que poderia ser negociada, está a atitude de calar sobre as verdadeiras causas do aperto financeiro: os gastos escandalosos da última gestão, que comprometeram o tênue equilíbrio de um orçamento já em seu limite há décadas. Nada também sobre o uso das reservas da USP (que levaria um poder executivo submetido à Lei da responsabilidade Fiscal - o que a USP não é - à condenação certa por improbidade administrativa). Nada disso, a culpa é da folha de pagamento, “dos doutores da USP”, que o Elio Gaspari mostra empenho em desqualificar. Diz nosso Reitor: “afirmar que a crise financeira da USP é resultado de sua expansão ou de repasses incorretos feitos pelo Governo não nos ajuda a superá-la”.
Pois bem, valeria a pena então que nosso Reitor analisasse com mais acuidade o anuário estatístico que sua universidade produz, ano a ano. Lá veria que sim, o crescimento da USP desde 1995, quando foi congelada a alíquota, foi significativo, e que o problema, nem de longe, está nos 2800 funcionários e docentes recentemente admitidos. A USP nesse período não só criou cursos como incorporou ou fundou novos campi, como os de Lorena, de Santos ou da USP Leste, ampliou seus museus, cresceu em todas as dimensões possíveis. E isto, vale dizer, não pelo acaso, mas como fruto de uma política oficial (e louvável) de expansão por parte do Governo do Estado. Só faltou, é claro, destinar as verbas para sustentar tal crescimento.
Para facilitar o trabalho, mostro a seguir alguns desses números: entre 1995, ano do último reajuste da alíquota, e 2012, a USP passou de 132 cursos oferecidos a 249, ou um aumento de 88,6%. Na Graduação, as vagas oferecidas no vestibular, que eram 6.902 em 1995, passaram para 10.602 em 2012, um aumento de 53,6%. Os alunos matriculados aumentaram em 77,6% no período, passando de 32.834 para 58.303.
Na pós-graduação, área em que a USP se destaca, sendo responsável por 25% da pesquisa no país, os cursos tiveram um aumento de 34,6%, passando de 476 em 1995, para 641 em 2012. O que levou a um aumento do número de alunos matriculados de 102,3% no período.
Tudo isso com a mesma alíquota. A USP só não quebrou porque no rico estado de São Paulo, o ICMS desde então felizmente sempre cresceu.
Por incrível que pareça, o número de empregados docentes e administrativos, alegadamente o grande culpado pela crise, também aumentou, é verdade, mas em proporções MUITO MENORES do que o crescimento da universidade mostrado acima. O número de docentes da USP, entre 1995 e 2012, passou de 5.056 para 5.860, ou um aumento de.....apenas 15,9%! O número de funcionários não docentes, que era de 15.105 em 1995, passou para 16.839, um aumento ainda menor, de 11,5%. E para aqueles que acham que a USP vem “inchando-se” de funcionários em relação ao número de docentes, os dados mostram que, pelo contrário, o corpo funcional enxugou-se nesse período, mesmo que discretamente, a relação professor-funcionário tendo diminuído de 1 / 2,98 para 1 / 2,87.
Ou seja, que me desculpem o Reitor, a mídia e quem mais acreditar no argumento do inchaço da folha salarial, o que ocorreu na verdade é que a USP ampliou em 88% seus cursos e em 77% seu número de alunos mesmo tendo um aumento de docentes e funcionários de apenas 15% e 11%, respectivamente. A verdade é que, isto sim, nos últimos 17 anos, os empregados da USP aumentaram significativamente sua carga de trabalho e sua eficiência!
E dai, evidentemente, a conta não fecha. Aumentar cursos em quase 90% significa aumentar drasticamente os gastos de custeio, e também de pessoal, por mais que se aceite trabalhar mais ganhando pouco. A criação de 282 novos cursos de graduação e pós em 17 anos implica em ter novos professores e novos funcionários, mesmo que isso tenha sido feito em proporções muito menores. Se uma família cresce, não há saída: deve-se aumentar o orçamento familiar, para sustentá-la. É um cálculo simples, que qualquer estudante do ensino fundamental já saberia fazer: não é possível aumentar-se expressivamente o volume de gastos sem buscar mais fundos para custeá-los.
Pois bem, o orçamento das universidades paulistas continua fixado no repasse dos mesmos 9,57% da arrecadação do ICMS, desde 1995. E ai está certamente o maior erro do Sr. Reitor, e o motivo da enorme incompreensão da comunidade que ele deveria representar. Ao invés de voltar-se contra seus pares, deveria enfrentar o Governador do Estado e a Assembleia Legislativa para defender a urgente necessidade de ampliar a verba orçamentária da USP.

3. Desfazendo um segundo mito: “os professores da USP, Unicamp e Unesp são marajás e ganham demais”.
Vale então agora uma resposta mais precisa ao Sr. Gaspari. Não, estimado jornalista, os “Doutores da USP” não são marajás. São sim responsáveis por fantástico aumento do alcance da universidade pública paulista, que cresceu muito acima da proporção em que eles mesmos cresceram. Além de sustentarem o crescimento de 77,5% do número de alunos matriculados, promoveram um salto de 127,5% no número de dissertações e teses defendidas desde 1995. E, para isso, ganham, na verdade, muito pouco. Menos, aliás, que seus colegas das universidades federais.
Em um país com discrepâncias salariais escandalosas, em que o salário médio não passa dos R$ 2 mil e onde 43% das famílias têm renda mensal domiciliar menor que um salário mínimo (IBGE), falar desses valores é sempre um tabu, pois parece até perverso. Esse é o argumento comumente usado para desqualificar as reivindicações de professores, como se a discussão fosse a de nivelar por baixo e não a de necessária mudança desse quadro escandaloso, com um aumento efetivo da remuneração salarial geral, o que aliás vem sendo feito pelo governo federal nos últimos anos, com um aumento consistente e regular do salário mínimo.
Assim, talvez por conhecer muito bem dura realidade salarial brasileira, a classe docente das universidades paulistas de fato reclama muito pouco e trabalha com bastante abnegação, considerando a importância, as exigências e a quantidade do trabalho realizado. Aliás, quando o novo Reitor tomou posse, os professores da USP mostraram-se até abertos a abrir mão de reajustes face ao rombo que, sabia-se, havia sido feito na gestão passada. Aceitaram cortes de verbas de pesquisa, de bolsas, desde o início do ano. Porém, o que os mobiliza hoje, certamente, é a postura de jogar a culpa da irresponsabilidade de gestão sobre seus salários, apenas isso. Pior ainda, é ver ser construído na grande mídia um discurso de que são marajás privilegiados que “afundam” a universidade. Vejamos então os números mais de perto.
Embora seja uma carreira que exija como ponto de partida anos de estudos, e o nível de Doutorado, e seja considerada o ápice da trajetória acadêmica tendo em vista a reputação e a excelência internacional da universidade, um professor em início de carreira na USP em regime integral e dedicação exclusiva (não pode ter outras remunerações) ganha hoje, líquidos, cerca de R$ 6,5 mil, e um livre-docente com quinze anos de casa ganha menos de dez mil. Muito menos, certamente, do que os jornalistas que se levantam contra os “doutores da USP”. Enfim, os salários "faraônicos" alardeados pela mídia, e que beneficiam apenas um pequeno punhado de professores – inclusive o Reitor –, todos com mais de trinta anos de carreira e acumulando chefias e direções, são da ordem de R$ 22 mil.
Um número significativo de carreiras no funcionalismo público estadual, por exemplo na área jurídica, cujos concursos são disputadíssimos, partem de salários iniciais equivalentes aos desses poucos marajás da USP e três vezes maiores do que os "doutores". Por exemplo, concurso de 2011 para vagas de promotor substituto no Ministério Público do Estado oferecia salário de R$ 20 mil (clique aqui). Os colegas Daniel Borges e Ana Gabriela Braga, professores de Direito da UNESP, explicitaram essa defasagem em artigo recente na Folha de S. Paulo (clique aqui). Muitos alunos recém-formados, após um par de anos de profissão, já recebem salários muito mais altos que o dos professores que os formaram.
Qualquer professor das universidades públicas estaduais que quisesse atuar no mercado, com seu currículo e conhecimentos específicos na sua área, receberia sem dúvida remuneração duas ou três vezes mais alta do que seu salário na universidade. Ainda assim, em geral esses professores optam por ficar na universidade. Dinheiro é importante, mas não é o objetivo central: a profissão de professor e pesquisador é, antes de tudo, uma opção de vida e dedicação ao ensino e à produção do conhecimento.
“Professor, além de dar aula, o Sr. também trabalha?”. Essa frequente pergunta feita aos docentes da USP mostra o quanto a profissão e seu papel são mal compreendidos. Um professor das universidades públicas paulistas tem uma carga de trabalho fenomenal, o que amplia ainda mais a injustiça da sua remuneração: além de dar aulas em sala de classe, deve realizar pesquisas, produzir livros, capítulos de livros e artigos acadêmicos, buscando incessantemente meios de financiamento para essas pesquisas e revistas para suas publicações, elaborando e apresentando projetos, candidatando-se a seminários e conferências, e assim por diante. Um único professor deve também orientar dezenas de estudantes em seus trabalhos de graduação, iniciações científicas, mestrados e doutorados, um trabalho árduo e individualizado, além de participar regularmente de bancas finais e de qualificação (de graduação, mestrado e doutorado), o que o leva a ter uma carga de leitura semanal - extra horário de trabalho - bastante significativa. Além de tudo isso, não são poucos os professores que se dedicam também a atividades de extensão, em que o conhecimento que produzem se confronta e contribui em situações reais de partilha com a sociedade. O fato é que, em resumo, um professor das estaduais paulistas trabalha muito, reclama pouco pois gosta do que faz, recebe menos do que deveria e, sobretudo, dorme pouco.
4. Desfazendo um terceiro mito: “os alunos da USP representam apenas uma elite privilegiada e poderiam pagar pelos seus estudos”
Outro mito amplamente divulgado é que as universidades estaduais paulistas, encabeçadas pela USP, são espaços que privilegiam os setores de alta renda, seus alunos sendo todos de elite. Essa falsa ideia ajuda a alimentar o argumento de que a USP e suas congêneres são injustas, favorecem quem tem dinheiro enquanto são financiadas por toda a sociedade, sobretudo a classe média, que aquece o comércio e portanto a arrecadação de ICMS.
O discurso não é de todo inverossímil, e sobretudo nasce certamente de um fato real: a USP foi criada, na década de 30, como um claro projeto da burguesia e para a burguesia do Estado, em seu objetivo de ganhar a hegemonia política e econômica no Brasil. As primeiras aulas eram dadas em francês, um claro indicativo de sua elitização.
Porém, ao longo do tempo, essa situação mudou. É claro que o sucateamento que nosso sistema econômico concentrador da renda causou no serviço público de educação básica levou a uma histórica e perversa inversão, que até hoje persiste: os mais ricos que podem pagar escolas particulares caras saem mais preparados para os vestibulares mais difíceis e entram na universidade pública gratuita, o que não conseguem os mais pobres, que tiveram de estudar na escola pública sucateada, e para quem se destinam os cursos superiores pagos. Uma inversão tremendamente injusta, mas que vem, felizmente mudando.
Pois é por isso que são imprescindíveis sistemas de acesso que deem a oportunidade do ensino superior gratuito aos menos favorecidos, como as cotas, raciais e sociais, a reserva de vagas para oriundos do ensino público, como vêm adotando as universidades federais e, infelizmente de maneira demasiadamente tímida, as estaduais paulistas (leia aqui). É por isso que é importante a progressiva substituição do vestibular por um exame único, o ENEM, que iguala um pouco as oportunidades e permite um melhor manejo da destinação das vagas. E é por isso que é fundamental a constante expansão das universidades públicas, desde que, é claro, aumentem também os recursos para financiá-la.
Com tudo isso, mas também pelo alto nível de dedicação aos estudos dos adolescentes de menor renda, e como resultado de uma educação básica que vem lentamente melhorando, o acesso à USP se democratizou, como foi apontado por Vladimir Safatle em sua excelente aula inaugural do movimento de greve, e é muito menos elitizado do que se pensa: um rápido levantamento (feito por meu colega Artur Rozestraten) na base de dados da Fuvest mostra que, em dezembro de 2013, 75,9 % ou 3/4 dos alunos da USP tinha renda familiar (ou seja, somando os salários de pai e mãe) de até R$ 6.780,00 ; 39,4% deles cursaram todo o Ensino Médio (ou a maior parte dele) em Escolas Públicas; 48,7% dos alunos vêm de famílias cujo maior grau de instrução é o Ensino Médio Completo. São, em boa parte, os primeiros na família a terem acesso ao Ensino Superior, e 70,1% deles pretende trabalhar ou contar com alguma bolsa ou crédito educativo para se manterem durante o curso. Mesmo que não sejam oriundos dos estratos de renda mais baixa, e mesmo se a USP ainda abrigue também uma boa parcela de alunos de maior nível econômico, não se pode mais dizer que ela seja uma universidade de elite. Na verdade, ela hoje é uma universidade que atende majoritariamente à classe média.
Com esses dados, vale uma resposta mais precisa à reportagem da Folha de SP, que sugere que 60% dos alunos da USP poderiam pagar mensalidades, como forma de “tirar a USP da crise” (quando já vimos que trata-se na verdade de um falso problema). O jornal apresenta cálculos do quanto custaria uma mensalidade na USP, de forma a substituir integralmente o atual financiamento oriundo do ICMS: R$ 3,9 mil. De onde o jornal tirou tal conclusão eu não sei, mas sei que faltou explicar como 60% dos alunos de uma universidade em que 76% deles vem de famílias com renda de até R$ 6.780,00 poderiam comprometer 57,5% dessa renda na mensalidade de apenas um único filho.
Em 1999, quando a USP ainda tinha reitorias que defendiam a universidade pública, o então reitor Jacques Marcovich solicitou ao IEA - Instituto de Estudos Avançados um estudo, coordenado por um dos nossos mais brilhantes intelectuais e professor da casa, Alfredo Bosi, que resgatasse o papel e a importância da universidade pública. Dentre os inúmeros argumentos do excelente texto, intitulado “A presença da universidade pública” (leia aqui o texto completo), vale o que segue sobre a cobrança de mensalidades: “De mais a mais, como o custo da universidade pública já é cobrado da sociedade através dos impostos, cobrar também dos alunos significaria cobrar duas vezes pelo mesmo serviço, sem que essa contradição trouxesse alívio orçamentário significativo. A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito que investigou problemas da universidade brasileira (1991-1992), após ouvir especialistas, concluiu que a eventual cobrança de mensalidades nas universidades públicas a preço equivalente ao que se pratica nas particulares, cobriria apenas entre 7% a 10% do orçamento. Paulo de Sena Martins, em seu artigo “A Universidade Pública e Gratuita e Seus Inimigos”, cita três outros cálculos feitos de maneira independente que apontam valores equivalentes ou menores. Recorde-se, ainda que a eventual cobrança de mensalidades implicaria mais burocracia e custos adicionais, reduzindo o que sobrasse a termos irrisórios”.
Além disso, vale lembrar que a cobrança de mensalidade, embora seja desejada pela Folha de São Paulo, é proibida pelo art. 206, IV, da Constituição Federal, que prevê a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais. Mas sequer é essa a questão mais importante. O mais sério está no fato de que a defesa da cobrança de mensalidade representa também a defesa do fim do caráter público da universidade, e mostra desconhecimento sobre o que realmente é caro no ensino superior: a pesquisa.
5. Último (e mais grave) mito: “a universidade pública é ineficaz, a sociedade não deveria continuar sustentando-a e ela deveria ser substituída pelo ensino superior privado”.
Quando aparecem na mídia internacional os tais “rankings” de universidades, os jornalões brasileiros têm reações variadas: quando a USP se destaca (o que é sempre o caso), o feito é exaltado com algum (e ridículo) orgulho patriótico. Mas quando a notícia é “negativa”, ou seja, de que a USP, mesmo que ainda liderando com folga entre qualquer outra universidade do país e até da América Latina, cai algumas posições em algum ranking, surge um coro uníssono apontando para a “falência” da mesma. Rapidamente, surgem também artigos e análises apontando seu suposto anacronismo e a necessidade de sua privatização.
Rankings universitários, deve-se dizer, não medem nada. Ou melhor, medem coisas demais. O que se entende por “qualidade universitária”? O que convier a cada um, e esses rankings apontam para o que mais lhes interessa, o que nos tempos atuais é em geral a “eficiência de mercado” de uma universidade “de resultados”, o que não é forçosamente o melhor critério para avaliar a qualidade de um curso superior.
Não obstante, tome-se o ranking que se quiser, a USP e as universidades públicas lideram todos eles, na produção de conhecimento: número de doutorados concluídos, de patentes registradas, de pesquisas desenvolvidas, de artigos científicos publicados, de alunos graduados, etc. Como coloca o estudo do IEA já citado: “Não há maneira imune a críticas de se classificar universidades ou cursos por ordem de qualidade. Tais e tantas são as variáveis em jogo que sempre se pode discordar do peso atribuído a cada uma delas. Uma coisa é certa, no entanto: todos os critérios sugeridos até hoje apontam para a superioridade esmagadora da universidade pública”.
O interessante é que a própria Folha de SP, que sugere a cobrança de mensalidades na USP, faz o seu ranking (o “Ranking Universitário Folha”). E o utiliza para sugerir uma equiparação entre a mensalidade proposta para a USP e a da PUC-RJ, a “melhor universidade privada do país”. Curioso constatar que o jornalismo apressado (para dizer o mínimo) da Folha deixa de observar um fato de razoável importância: a “melhor universidade privada do país” aparece apenas em 15º lugar de seu ranking, precedida apenas por....universidades públicas, dentre as quais, em primeiro, quinto e sexto lugares, respectivamente, a USP, a Unicamp e a Unesp!
Não achem que, a partir do 15º, surge então uma lista infindável de instituições privadas. Não, seguem ainda mais e mais universidades públicas, exceto em 19º e 26º lugares, ocupados pela PUC-RS e pelo Mackenzie, respectivamente. E assim vai, encadeando-se instituições públicas umas atrás das outras até o 33º lugar, com a PUC-PR, de tal forma que, das cinquenta “melhores” universidades do país, segundo os critérios da Folha (para quem quiser acreditar neles), temos apenas sete instituições privadas. As outras 43 são, todas, públicas....e gratuitas.
Mesmo que se resolva analisar as cem melhores instituições do ranking, a presença de universidades privadas melhora um pouco a partir do 60º lugar, mas, ainda assim, temos apenas 31 instituições no total. Ou seja, das cem melhores universidades apontadas pelas Folha, 31% apenas são instituições privadas e pagas, e 69% são públicas.
Trata-se de uma hegemonia absoluta, por qualquer ranking ou critério que se queira adotar, das universidades públicas. E, vale dizer, todas as “privadas” que aparecem nos 50 primeiros lugares não são propriamente privadas, mas confessionais, ou seja ligadas a alguma ordem religiosa (PUCs, Mackenzie, por exemplo) e declaradamente sem fins lucrativos. As “grandes” universidades privadas, Uninove e Unip, aparecem, respectivamente no 70º e 76º lugares. Um jornalismo sério, em vez de ficar montando simulações sem sentido sobre possíveis mensalidades para a USP, deveria talvez perguntar-se por que, afinal, a universidade gratuita é tão superior, em qualidade, à universidade paga e privada.
Nos resultados mais recentes do ENADE, 47% das instituições públicas obtiveram nota 4 ou 5 (29,8% e 17%, respectivamente) as mais altas possíveis, um resultado bem superior aos 21% das universidades particulares que conseguiram igual desempenho (17,3% notas 4 e apenas 3,5% notas 5).
Vale observar, porém, como sublinha o estudo do IEA de 1999, que “defender a universidade pública não significa desqualificar o ensino superior particular, mesmo porque são complementares e sua convivência no Brasil já tem se mostrado mutuamente proveitosa. Note-se, por exemplo, que a universidade pública é o grande viveiro de onde saem os mestres e doutores que formam o corpo docente do ensino particular. Dos 3.200 mestres e doutores formados pela USP em 1997, mais de 90% encontraram lugar em outros estabelecimentos de ensino superior. O que nos leva a concluir – e aqui sim com propriedade – que dar apoio à universidade pública é uma excelente maneira de se apoiar, também, a universidade privada”.
Entretanto, ainda fica no ar o porquê de tamanha discrepância no desempenho das públicas e das particulares. A resposta se contrapõe ao argumento simplista de que cobrar mensalidades é um meio eficaz e suficiente para manter uma instituição de ensino superior. Não é, e por uma simples razão: o que sustenta uma produção de conhecimento de alto nível não são propriamente as aulas oferecidas, mas sim a capacidade de realizar pesquisa. Nenhuma universidade alcançará um alto padrão de qualidade enquanto se mantiver apenas como “oferecedora de cursos” e não sustentar uma intensa atividade de pesquisa, que retroalimente em permanência seu quadro docente e alavanque a produção científica.
Ocorre que, como aponta mais uma vez o estudo do IEA, “em sua essência, a pesquisa é uma atividade cara, de retorno seguro a longo prazo, mas incerto no horizonte imediato e, por isso mesmo, pouco atrativa para a iniciativa privada”. De tal forma que, em todo mundo, a pesquisa – e estamos falando aqui em valores infinitamente superiores ao da simples atividade didática – é financiada por fundos públicos, mesmo que possa ser também complementada por aportes privados. No Brasil, que ninguém se engane: as universidades particulares que fazem pesquisa – justamente aquelas confessionais que têm destaque nos rankings – recebem financiamento público das diferentes agências de fomento governamentais, tais como a Fapesp, Cnpq, Capes e Finep.
Um argumento recorrente dos paladinos do fim da universidade pública é o suposto exemplo norte-americano. Lá, dizem eles, o mercado privado sustenta a universidade, com o pagamento de mensalidades e doações milionárias dos ex-estudantes. O que, definitivamente, não é verdade.
Diz o estudo do IEA: “72,4% dos estudantes norte-americanos frequentam universidades públicas e apenas 28,6%, as universidades privadas. Em ambos os casos são cobradas mensalidades cujo total, à primeira vista, custeia boa parte das atividades. Nas públicas, essa participação é de 18% na média, enquanto nas privadas sobe a 41,2%. Mas o que não se diz é que essas provêm na sua imensa maioria, parcial ou totalmente, de bolsas oferecidas pelo próprio governo ou fundações de caráter benemérito. Ou seja, o aluno paga, mas paga com o dinheiro da sociedade. A imagem idílica do rapaz que financia seus estudos em Harvard lavando pratos nas horas vagas fica muito bem no cinema mas cabe mal na realidade. Na verdade, ele faz pouco mais do que entregar com a mão direita na tesouraria da escola o dinheiro que recebeu, sob a forma de bolsa de estudos, com a mão esquerda da comunidade”.
Esse quadro reflete a situação de outras nações desenvolvidas, que há séculos entenderam a importância e o papel do ensino superior gratuito e universalizado. Na França e no Reino Unido, no início dos anos 2000, 92,08% e 99,9% das matrículas em cursos superiores eram em universidades públicas, e esse número pouco se alterou até hoje.
Os EUA, o país mais poderoso na produção de pesquisas científicas no mundo, reserva o equivalente a quase 0,9% do seu PIB fenomenal para o fomento público à pesquisa, superado apenas pela Coréia do Sul, que investe 1% do seu PIB, porém em valores totais bem mais modestos. O Brasil figura em boa posição, destinando 0,6% de seu PIB em investimentos públicos à pesquisa, valor equivalente, por exemplo, ao Canadá (vejaaqui).
Cita-se muito também  o papel das doações de ex-alunos nos EUA, que se beneficiam para isso de descontos no imposto de renda que não exitem aqui. O exemplo é bastante citado porque as universidades muito prestigiosas de fato conseguem fundos significativos, como o caso de Harward, que ostenta reservas próprias de cerca de U$ 15 bilhões. Porém, ainda segundo o estudo do IEA, “na média e, ao contrário do que se imagina, essa fonte de recursos não ultrapassa 5% (dados do Departamento de Educação dos EUA)”. Ou seja, fica clara a incompatibilidade da comparação com o Brasil, e desfaz-se a impressão de que naquele país o ensino superior seja financiado pelo setor privado. Não é.
A ideia de alguns de que a USP poderia então reequilibrar-se financeiramente apelando para ganhos diretos tais como a venda ou aluguel de parte do seu campus, a cobrança de estacionamentos ou de licenças para o comércio em seu interior é simplista. Por mais que seja verdade que a universidade poderia de fato arrecadar algum dinheiro com um melhor proveito dos serviços prestados ao setor privado, a cobrança de suas patentes, etc., ainda assim tratam-se de valores irrisórios face ao bilhões necessários para sustentar o ensino e a pesquisa. E, além do mais, deixemos em paz uma das últimas grandes áreas públicas e protegidas da ação do mercado imobiliário na cidade, o Campus do Butantã que, aliás, devia ser bem mais aberto à cidade. Vá lá saber, por exemplo, por que os brilhantes dirigentes da USP, de um lado, e do Metrô, de outro, recusaram-se a implantar a estação de metrô do bairro na entrada da universidade. Se a USP é pública, falta a seus dirigentes, é verdade, uma visão também pública.
Além de seus custos fenomenais, que ensejam obrigatoriamente o fomento estatal, há outra razão pela qual a pesquisa – ou parte significativa dela – deve manter-se sob tutela pública: a sua independência e autonomia.
Há evidentemente alguns setores em que as temáticas de pesquisa até podem casar com os interesses do mercado, e nesses casos, o setor privado mostrará interesse em contribuir financeiramente, o que pode ser muito positivo. Porém, a pesquisa não pode e nem deve depender dessa relação. Pois há um momento em que os interesses não combinam mais, e a universidade deve poder continuar a pesquisar. Daí a importância fundamental do financiamento público, do qual nenhum país, nem mesmo o mais liberal, abre mão. Em linhas gerais, o que alimenta e faz viver o mercado é a busca pelo lucro. Pesquisas que lhe interessem serão, em última instância, aquelas que, a curto ou médio prazo (senão tornam-se desinteressantes financeiramente), avancem nesse caminho. A universidade pública, em compensação, tem por objetivo contribuir para o desenvolvimento do país e a melhoria social em geral, mesmo que em alguns casos isso possa passar muito longe da perspectiva do lucro privado. Ao contrário, é comum que se contraponha a ele.
Vejamos, por exemplo, a área do urbanismo que estuda a precariedade urbana e busca de soluções para a manutenção da população mais pobre em suas comunidades, mesmo que estas estejam situadas em áreas “nobres” de forte interesse do mercado. Não é o setor imobiliário que financiará pesquisas sobre o tema, e esse é um assunto típico, voltado para a questão social e de grande importância em um país que tem cerca de 20 milhões de pessoas sem moradia digna, que não encontra financiamento em lugar nenhum que não seja de órgãos públicos de fomento.
Os exemplos são infinitos. Vladimir Safatle em sua aula inaugural deu o exemplo de pesquisas na área biomédica que possam contrariar os interesses da indústria farmacêutica. Ou de análises econômicas que se confrontem aos interesses do mercado financeiro e dos bancos, e assim por diante. A autonomia na pesquisa é a garantia de um país de produzir conhecimento para o enfrentamento de grandes problemas, que não passem pelo aspecto comercial, nem pressuponham interesse para o setor privado.
A importância da pesquisa, sua autonomia e a atenção que a USP e as universidades públicas paulistas lhe destinam é a razão pela qual elas se destacam tanto na produção científica brasileira. Só a USP, como lembra Vladimir Safatle em artigo na Folha de SP (leia aqui), produz 25% de toda a pesquisa no Brasil. A universidade formou em 2012, 6.016 mestres e doutores, um número que cresceu 268% desde 1989, quando formou 1.634 pós-graduandos.
Em suma, a contribuição da universidade pública, e especialmente da USP e suas congêneres estaduais, para o desenvolvimento do país, é fenomenal. A USP vem cumprindo com louvor seu papel ao longo dos últimos 70 anos, mantendo-se em destaque no âmbito nacional, mas também internacional. É a única universidade da América Latina a aparecer consistentemente em destaque nas mais diversas classificações internacionais, e expande-se de forma regular e consistente. O gigantismo da sua folha de pagamentos é decorrente do seu crescimento e de seus bons resultados, e não o contrário. Ao invés do que se difunde, a massa salarial da USP, mesmo com a participação por sua conta de seus (ilustres) aposentados, se enxugou nos últimos anos se comparada ao aumento dos estudantes que ela beneficia e do volume sempre crescente de seus resultados acadêmicos e científicos.
Termino com uma frase feliz do documento coordenado pelo Professor Alfredo Bosi em 1999: “É indispensável lembrar, ainda e sobretudo, que a universidade pública brasileira não é uma utopia, mas uma realidade duramente construída com o trabalho de gerações de brasileiros, um imenso patrimônio da nação a ser preservado com o devido cuidado. Uma verdadeira universidade demora décadas para ser construída, uma reforma mal conduzida pode destruí-la em muito pouco tempo”.
Fonte: http://www.jornalggn.com.br/