Como a tentativa de censura a um livro didático no norte do país mostra que, no Brasil atual, a ignorância não é apenas uma tragédia nacional, mas um instrumento político usado por milícias de ódio
Estudantes de uma escola pública no Rio de Janeiro.SILVIA IZQUIERDOAP
No final de março, um grupo de pais de uma escola pública estadual da cidade de Ji-Paraná, no norte do Brasil, entregou um abaixo-assinado ao Ministério Público de Rondônia. Eles exigiam a retirada da sala de aula de um livro de ciências cujo conteúdo de educação sexual seria “impróprio” para alunos da oitava série do ensino fundamental. O desenho de um pênis ereto, usada pelas autoras da obra didática para explicar o funcionamento do órgão, é um dos principais motivos da tentativa de censura. O pinto duro não deveria estar lá.
Neste pequeno grande acontecimento há muitas tragédias. E todas elas contam de nós. Há quem ache bizarro. Eu só consigo achar triste. Seria mais fácil se este fosse um caso isolado, numa escola pública do interior de Rondônia, no norte do Brasil, lugar distante para a maioria. Seria mais fácil, mas falso. É preciso prestar muita atenção ao que está acontecendo no Brasil: incitados pelos novos inquisidores, cada vez é maior o número de fogueiras onde queimam livros, reputações e, principalmente, direitos.
É na Escola onde tudo se articula.
1) Por que querem castrar um livro didático?
Uma das mães afirma ao portal G1, da Globo: “Neste livro, eles incitam a criança, que está no início da adolescência, a descobrir a vida sexual. Também vulgarizam a virgindade da criança, dizendo que ela pode sofrer bullying e que, se ela perder a virgindade, pode ser melhor”.
O coordenador regional de educação, José Antônio de Medeiros, diz ao portal UOL: "Este livro traz uma abordagem sobre sexualidade e tem ilustrações, de certo modo, até um pouco agressivas. Ficou muito explícito as simulações de carícias, de estímulo sexual, e até umas imagens demonstrando penetração, mostrando o órgão sexual masculino e feminino...”.
O vereador de Ji-Paraná, Johny Paixão (PRB), afirmou à TV Globo que os temas do livro podem incitar à prática não consensual do sexo. “Meu compromisso com eles (pais) é lutar com todas as forças possíveis para que nós venhamos a retirar esse livro da sala de aula, porque ele é tendencioso. As imagens são tendenciosas. Elas afloram a sexualidade. Por que vou aflorar a sexualidade se as crianças não podem fazer sexo?”.
Dito assim, a impressão de quem lê as matérias e assiste às notícias sobre a “polêmica” é de que o livro Ciências 8o ano – Ensino Fundamental II da coleção Projeto Apoema (Editora do Brasil) é uma espécie de Kama Sutra escolar.
2) Mas o que diz o livro ameaçado de fogueira pelos novos inquisidores?
Tenho um hábito cada vez mais raro: antes de opinar sobre um livro ou um texto, eu o leio. Esta frase pode ser interpretada como ironia. Gostaria que fosse. Quero deixar explícito que não é. Infelizmente.
A seguir, um trecho do capítulo 5, intitulado “Adolescência”, do livro indicado para adolescentes de 13 anos ou mais:
“Nos últimos 30 anos, tem-se falado muito sobre sexualidade. Propuseram-se diversas teorias, realizaram-se vários estudos, e o tema é até hoje explorado nos jornais, nas revistas e nos programas de televisão. No entanto, muitas vezes, há uma idealização da vida sexual, dando a falsa impressão de que existe uma fórmula única de viver plenamente a sexualidade, um padrão sexual, um modelo rígido ao qual todas as pessoas devem se adaptar (...). Cada um pode viver muito bem, e plenamente, do seu jeito e conforme sua orientação. O importante é fazê-lo com responsabilidade e ter direito à informação e espaço para expressar suas opiniões”.
Num outro ponto, o livro reproduz a fala de um médico ginecologista: “É preciso lembrar que o sexo é bom quando é bom para os dois”. E segue: “O médico explica que ser virgem não significa de maneira alguma estar fora do mundo atual, mas estar em um momento de reflexão: ‘A pessoa virgem ainda não se sente preparada para enfrentar a relação sexual com a maturidade que ela merece. E isso independe de idade’”.
Há ilustrações de um homem na fase infantil, adolescente e adulta. Nenhum deles é eunuco. Deveriam ser? Se fossem, haveria um problema, já que homens castrados e com pênis decepados, na nossa sociedade, são vítimas de violência. Há também o desenho de um pênis “flácido” e de um pênis “em ereção”, para ilustrar a explicação sobre anatomia e aspectos biológicos: “O tamanho do pênis varia entre os homens e não tem relação biológica com fertilidade nem com potência sexual”.
Outra reclamação se refere a uma série de ilustrações que ensinam as mulheres a realizarem o autoexame de mamas, como um ato de prevenção ao câncer. E, sim, nas imagens a mulher tem seios. Se não tivesse, haveria um problema de informação, já que mulheres têm peitos, dos mais diversos formatos e tamanhos, mas decididamente peitos. Sem contar que seria difícil ensinar a fazer o toque, no exame preventivo, sem que houvesse um seio no desenho. Como detectar um caroço ou uma alteração suspeita num seio sem um seio? E haveria ainda mais uma complicação: mulheres mastectomizadas, na maioria das vezes, perderam os seios devido ao desenvolvimento de tumores, exatamente a doença que este capítulo do livro pretender colaborar para prevenir.
Reproduzi aqui os principais pontos atacados. Mas o livro ainda não foi proibido e pode ser lido por todos, para que tirem suas próprias conclusões.
Uma das páginas que gerou o abaixo-assinado.REPRODUÇÃO
3) Como ler a tentativa de censura?
Minha primeira hipótese é a de que as pessoas que atacaram o livro não leram o livro. Lembrando que ler é bem diferente de apenas passar os olhos. A diferença entre o que é dito sobre este capítulo do livro e o que está de fato escrito no livro é enorme, como se pode ver nos exemplos citados. Em alguns momentos, o que dizem que o livro disse é exatamente o oposto do que o livro de fato diz. Como é possível?
Aqui, estamos diante de duas tragédias contemporâneas, explícitas nas redes sociais da internet. A primeira delas é que as pessoas não leem, mas mesmo assim jogam o texto na fogueira. Ou leem apenas o enunciado e dão uma olhada nas imagens e “queimam” o livro. E, como ler exige tempo e atenção, mas reproduzir o discurso de ódio leva apenas um segundo, em pouco tempo as chamas já incineraram o alvo do ataque. Isso vale para livros, como é o caso, vale para reputações. Assim, livros que exigiram anos de pesquisa de seus autores, como é o caso deste, ou reputações construídas ao longo de uma vida inteira, são destruídas sem que uma parte dos linchadores perceba a violência e a amplidão do seu ato.
A segunda tragédia é a da própria educação. A internet escancarou uma realidade conhecida, mas cujas proporções não tinham ficado tão claras até então. Muitos leem de fato o texto, o livro, mas não conseguem interpretá-lo. Qualquer frase um pouco mais elaborada ou mais longa ou menos direta se torna um enigma. Ironias não são compreendidas, metáforas são decodificadas como literalidades. Pessoas têm alcançado a universidade sem conseguir interpretar um texto.
É possível que parte destes pais – parte – tenha lido o capítulo do livro e não tenha conseguido interpretá-lo, adotando assim a versão que estava disponível. E se a versão que estava disponível era a da necessidade de proteger os filhos do mal, ali representado pelo livro, podemos supor que pode ter se tornado fácil aderir ao protesto. Aderir sem uma reflexão maior que poderia, inclusive, ter sido proporcionada pela escola.
É fácil culpar os pais e apontar uma suposta ignorância. E, vale a pena deixar claro, uso ignorância neste texto no sentido daquele que ignora um fato ou informação, daquele que não teve ou não tem acesso ao conhecimento. Como parte de uma sociedade, somos todos responsáveis pela tragédia educacional. É muito triste que as pessoas não consigam ler ou interpretar um texto ou por falta de acesso à escola ou porque a escola que deveria ensiná-lo não foi capaz de fazê-lo.
Quando alguém passa pelo sistema educacional e chega à vida adulta sem condições de interpretar o que lê isso representa uma traição àquela pessoa, com graves consequências para a sua vida e para a vida da comunidade. Assim, se parte destes pais são algozes de um livro, são também vítimas de um sistema educacional em que, com poucas exceções, a escola pública tem prédios precários e cheios de problemas, a maioria dos professores é mal paga e uma parcela deles é mal preparada, uma escola pública onde falta até mesmo o básico. E, ainda assim, contra tudo, muitos profissionais lutam para criar espaços de qualidade e educar a população.
É importante lembrar ainda que os pais e mães deste abaixo-assinado fizeram um percurso. Eles levaram suas questões até a autoridade na área da educação e buscaram a Câmara de Vereadores. O coordenador regional de educação e o vereador que assumiu a “causa” têm uma responsabilidade pública e devem responder publicamente por ela. Como se vê nas matérias, seguiram o caminho do ataque fácil. Do representante da educação, em especial, seria legítimo esperar uma abordagem mais responsável.
Contradições não devem ser contornadas, mas acolhidas e enfrentadas. Este episódio, surgido a partir do susto de uma mãe, poderia ter se tornado uma oportunidade de encontro, de diálogo e de reflexão coletiva, inclusive dentro da escola. Mas, por irresponsabilidades variadas, da qual não escapa a imprensa, assumiu de imediato contornos de fogueira. É assim que os cada vez mais escassos espaços de debate estão sendo interditados neste país.
4) O que o pinto duro tem a ver com isso?
Não é possível ignorar o tema que alimentou a fogueira. Fosse outro, talvez a leitura tivesse se mostrado mais acessível e a interpretação do texto não sofresse tanta interdição. Mas era de educação sexual que se tratava. E de um mito (ou seria tabu?) muito difícil de ser desmontado, que é o da criança assexuada. Ele aparece em todas as falas reproduzidas pelas matérias da imprensa. A ideia de uma criança sem sexualidade se confunde com a própria invenção da infância na modernidade, já que em outros períodos históricos pessoas desta faixa etária não eram vistas desta maneira.
Os principais pensadores da infância derrubam esse mito. Mas ele persiste. E aparece das mais variadas formas, muitas delas inconscientes. Se alguém observar as matérias de imprensa, por exemplo, vai descobrir frases como esta: “Homens, mulheres e crianças...”. Ou seja, as crianças não são homens e mulheres, mas seres assexuados. Eu mesma cometia esse equívoco, sem perceber o que fazia, até ser alertada por uma amiga. Passei a usar então “Adultos e crianças, homens e mulheres...”.
A ideia de que as crianças são “puras” e que uma das provas disso é que não teriam sexualidade é amplamente difundida no senso comum. E assim os pais acabam por reprimir qualquer manifestação que desminta essa crença. Para piorar, a repressão é respaldada por algumas religiões. Isso não significa que as crianças terão relações sexuais, obviamente. Seu corpo nem está preparado para isso. Mas significa que vão se tocar, descobrir o corpo, e que não há nada de errado com isso. Pelo contrário. É saudável que se descubra também o próprio corpo na idade em que tudo se descobre.
Aos pais cabe orientar e respeitar seus filhos e filhas, ajudando-os a se tornarem adultos capazes de respeitar o corpo e o desejo do outro e capazes de respeitar seu próprio corpo, fazendo do sexo uma experiência prazerosa e responsável quando o momento chegar. E é também pelo conhecimento que se conhece e se respeita o próprio corpo e o corpo do outro. A ignorância é uma grande aliada da violência que se faz consigo mesmo e com o outro.
Se é mais fácil reprimir as crianças exatamente porque são crianças e dependem para tudo dos pais, o mesmo não se pode dizer dos filhos na fase que se nomeou “adolescência”. E este talvez seja o susto de parte destes pais. Não há nenhum mistério nisso. Qualquer um, eu e você, estivemos lá (na adolescência) e nos lembramos muito bem. Estes pais também devem se lembrar que um dos principais interesses – ou talvez o principal interesse – era justamente sexo.
Assim, acusar o livro, como fez uma mãe e o vereador, por fazer “aflorar o sexo” em adolescentes de 13 anos ou mais é uma negação completa da realidade. Aos 13 anos, a maioria dos humanos quase só pensa nisso, o que não significa que vai fazer sexo com um parceiro ou parceira de imediato, passar do pensamento ao ato, da masturbação à relação sexual com outro corpo. Esta é uma decisão que cada um deverá tomar no seu tempo, com conhecimento e responsabilidade e respeito com seu corpo e com o corpo do outro, como o próprio livro tão bem sublinha.
Do mesmo modo, considerar que o desenho de um pênis ereto vai surpreender algum adolescente não faz qualquer sentido. Com permissão para uma brincadeira, porque o tema deveria ser também lúdico, o que talvez surpreenda mais um menino nesta faixa etária é o desenho do “pênis flácido”. Do mesmo modo, é comum uma menina conferir várias vezes por dia no espelho se seu peito cresceu, apalpando-o e acariciando-o, sem qualquer problema em ter prazer com isso. Assim como é natural tocar seu pênis ou sua vagina para descobrir o que lhe dá prazer e conhecer seu corpo, o que também vai ajudá-lo a ter prazer e dar prazer ao outro quando o dia chegar.
Debater este tema é responsabilidade também da escola. E os pais deveriam enxergar nela uma aliada para que seus filhos tenham de fato educação sexual não apenas em uma disciplina, mas em todas. E, assim, sentirem-se à vontade para discutir as transformações que lhe causam angústia e conhecer o seu corpo não só pela biologia, mas por todas as áreas que atravessam o tema da sexualidade. O conhecimento é o principal fator de prevenção de gravidez adolescente indesejada, doenças sexualmente transmissíveis, violências sexuais e bullying. É pelo conhecimento e pelo diálogo que adolescentes poderão tomar as melhores decisões sobre a sua vida e construir, no seu tempo, uma vida sexual responsável e prazerosa.
Quem lê o livro jogado na fogueira percebe claramente o esforço das autoras para cumprir este papel. É uma pena que seus detratores não consigam – ou não queiram – enxergar que livros como este, assim como professores que ajudem os estudantes a interpretá-los e debatê-los, são justamente os que não deixam os pais sozinhos num mundo tão complicado e violento, em que os adultos têm se sentido tão desamparados para educar crianças e adolescentes. É abrindo os livros – e não fechando-os – que os pais estariam melhor acompanhados.
5) Onde se esconde a maldade?
Ainda que seja improvável (mas não impossível) que o livro seja formalmente banido das salas de aula, como quer uma parcela dos pais desta escola, a obra já foi “queimada” publicamente. A fogueira já foi acesa e ardeu, porque as fogueiras hoje são sem matéria (por enquanto), mas suas labaredas têm longo alcance e graves consequências.
Diante da repercussão, é possível que o Ministério da Educação, numa próxima seleção, não escolha este livro. É possível que os professores das escolas privadas prefiram pular esta obra para não se arriscar a polêmicas. E é possível que os autores de livros didáticos passem a contornar o tema da educação sexual em suas obras, para se protegerem de eventuais inquisidores. Assim como jornalistas, políticos e intelectuais já começam a evitar certos temas para se protegerem de linchamentos que atingem não só a eles, mas começam a alcançar suas famílias.
Depois da fogueira pública, o resto acontece em silêncio. E acontece (também) por causa do silêncio. É desta maneira insidiosa que a ignorância se infiltra. É por esse caminho sombrio que o medo penetra e domina. É por essa técnica que historicamente os fascismossubjugaram as mentes e os corpos e produziram seus crimes. É preciso prestar muita atenção ao que está acontecendo no Brasil.
Por décadas a escola pública foi abandonada, enquanto o ensino privado foi se tornando um negócio cada vez mais lucrativo, cada vez menos pedagógico e mais empresarial. Por décadas os professores foram desvalorizados, os prédios foram sendo depredados, a escola se afastando mais e mais da comunidade – e a comunidade se afastando mais e mais da escola. Por décadas muito poucos se perguntaram seriamente como se sentiam alunos em escolas às vezes literalmente caindo aos pedaços, sem equipamentos básicos, em salas de aula ocupadas por professores mal pagos, sobrecarregados e, em alguns casos, despreparados. Por décadas um número crescente de pais passou a se esfalfar para conseguir dinheiro para matricular os filhos numa escola particular, mesmo que ruim, e aqueles que tinham mais condições de fazer a disputa por qualidade de educação deixaram a escola pública. Permaneceu quem não pôde sair – e permaneceram os idealistas, sempre em menor número. A escola pública passou a ocupar o lugar de resto. E como resto professores e alunos foram tratados.
Mas também nos últimos anos um movimento muito mais articulado se organizou. Ele não é novo, mas ganhou uma articulação nova. E sua principal arma é justamente a deseducação que a escola no lugar de resto produziu. Sua principal arma é a ignorância e a falta de conhecimento, que geram adesão em vez de reflexão, gritos em vez de diálogo. Fogueira.
Depois da corrosão da educação pública produzida pela ditadura civil-militar(1964-1985), a resposta dos governos democráticos que vieram a seguir foi insuficiente para a urgência do problema. Houve avanços significativos em algumas gestões, como a de Fernando Henrique Cardoso e de Luiz Inácio Lula da Silva, mas muito menores do que seria necessário para uma mudança que produzisse transformação estrutural. E, como todo vazio acaba sendo ocupado, ressurgiu o velho engodo embalado em papel novo e disseminado para milhões de seguidores nas redes sociais: o problema da escola pública é “moral” – e “de doutrinação ideológica”. Percebendo o risco, era preciso ocupar. Isso fica explícito no momento em que os estudantes tomam o partido da escola pública e restauram o valor da política, mas são duramente reprimidos não só pela polícia, mas também pelas milícias de ódio em defesa do projeto nomeado “Escola Sem Partido”.
Nesta manipulação, vendida à sociedade como um projeto restaurador da ordem (mas qual ordem?), o problema não seria a escola caindo aos pedaços, os professores mal pagos, a falta de estrutura material e pedagógica, mas uma suposta “doutrinação ideológica” praticada por professores “esquerdistas”, “comunistas” e moralmente desvirtuados a serviço do mal. (Com a esquerda mal parando em pé, isso deveria ser piada, mas não é, já que uma das consequências da ignorância é sua vítima não entender piada, muito menos humor ou ironia.)
Diante do medo e do desamparo, sentimentos que crescem em qualquer crise, a resposta moral sempre cola. Assim como um inimigo forjado. E cola mais ainda quando não existe uma proposta alternativa que as pessoas possam compreender e confiar. O problema então torna-se o outro – e ele deve ser destruído. Diante de pais assustados, com todo o direito tanto de querer que seus filhos sejam bem educados como de concluir que não estão sendo, qualquer mão estendida, mesmo que seja na forma de uma resposta estapafúrdia e violenta, geradora de mais desconhecimento e ignorância, é agarrada.
E assim pais são incitados por milícias de ódio na internet a tornarem-se inquisidores. Em vez de irem à escola para dialogar, compartilhar e reivindicar, construir junto, são estimulados a apontar o dedo e a linchar. Na época da ditadura, este serviço odioso era realizado nas escolas públicas por professores cooptados pelas forças da repressão, que espionavam os colegas e faziam seus relatórios, enquanto ganhavam pontos na carreira. Hoje, o que antes acontecia nos cantos escuros é amplamente incitado nas redes. A infâmia é vendida como virtude moral.
Construir é difícil, lento e dá trabalho. Queimar é imediato. E nada mais cômodo do que poder extravasar sua frustração culpando o outro e, se possível, eliminando-o. Ou deletando-o do espaço público. A estratégia é velha, muito velha. A única novidade é a entrada da internet na equação. Mas como a história não foi bem ensinada para as gerações que aí estão, ela é vendida e comprada como nova.
6) O que diz a autora do capítulo atacado?
Nos últimos anos, episódios de censura ou tentativas de censura a livros didáticos e de literatura têm pipocado pelo país. Alguns casos se tornam conhecidos, outros são abafados. É raro professores, bibliotecários e autores se arriscarem a defender a obra publicamente. Em geral, temem a demissão e, mais recentemente, o linchamento pessoal. Algumas editoras costumam aconselhar seus autores a silenciar, na expectativa de que o incêndio se extinga com menos prejuízos. Na minha opinião, isso é um erro e uma omissão de responsabilidade pública. Tentativas de censura e ataques a livros e autores dizem respeito a toda sociedade e devem ser enfrentados como o que são.
O livro de Ciências para o 8o ano, da coleção Projeto Apoema, é assinado por Ana Maria Pereira, Margarida Santana e Mônica Waldhelm. O capítulo atacado foi escrito por Mônica. Ela é professora do Ensino Médio, titular de Biologia no Centro Federal de Educação Tecnológica do Rio de Janeiro (CEFET/RJ). Tem 50 anos de idade e 33 de magistério. É doutora em Educação pela PUC-Rio e consultora da Unesco. Enviei a ela algumas perguntas por e-mail e ela respondeu a todas elas. A seguir, os principais pontos:
Pergunta.Como você se sentiu ao tomar conhecimento deste episódio?
Resposta. Confesso que custei a entender o motivo alegado para o abaixo-assinado feito pelo grupo de mães e pais. Ao ler e ouvir as declarações não reconhecia naquelas palavras o conteúdo do livro: Pornografia? Vulgarização do sexo? Estímulo à promiscuidade? Imagens fortes? Sabia de todo cuidado que tivemos ao produzir cada volume e constatei que havia um ruído na comunicação ou algo mais preocupante por trás desta ação. Foi um misto de surpresa, perplexidade e tristeza.
P. O livro já havia sofrido algum tipo de ataque antes?
R. Esta coleção em questão não. Recebemos um parecer muito positivo na última avaliação do MEC no âmbito do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), e os livros são adotados por escolas públicas e privadas de todo o Brasil. Contudo, este campo da sexualidade é tradicionalmente espinhoso. Ao longo de 20 anos como autora, visitando escolas de Norte a Sul e conversando com os colegas professores, já ouvi alguns relatos de situações delicadas. Em uma escola, embora os professores manifestassem explicitamente o desejo de utilizar nossos livros, a presença de imagens de vulvas e pênis foi motivo de controvérsia por parte da coordenação pedagógica. Também soubemos de uma escola na qual uma professora de Ciências venceu a resistência da coordenadora e adotou a coleção, mas depois teve problemas com a mãe de uma aluna. Esta mãe simplesmente grampeou as páginas do livro que continham figuras de vulvas, pênis, camisinha e similares. Mas foram casos isolados e resolvidos com conversa e mediação.
P. Você escreveu a parte relativa à educação sexual. Quais são os cuidados que toma nas suas escolhas?
R. Como docente – e até quando fui aluna – sempre me incomodou a maneira como o corpo historicamente é apresentado e, deste modo, estudado nos livros didáticos de Ciências. O tema sexualidade humana quase sempre é abordado nos capítulos finais dos livros, onde o professor em geral nunca chega durante o ano letivo – e de modo reduzido ao aspecto da reprodução. As figuras aparecem quase sempre na forma de esquemas em cortes transversais ou longitudinais. Com seu corpo ainda desengonçado e com acne, o adolescente se depara, nos livros didáticos, com figuras e modelos “perfeitos”, bem torneados e com dentes corretos e, então, não se reconhece como tal. Também acho difícil um aluno da Educação Básica reconhecer-se nas estranhas figuras assexuadas. Ainda hoje, em muitos livros, pênis e vulvas/vaginas, em geral, só aparecem em cortes "estratégicos", expondo apenas sua anatomia interna. Além disso, com imagens humanas idealizadas e retocadas no computador, os livros acabam por reforçar o que faz a produção mídiatica predominante, que hipervaloriza a aparência física e acaba por determinar padrões estéticos. Estes “padrões” são buscados febrilmente por jovens nas academias de ginástica e no uso de anabolizantes. Também se refletem nos consultórios médicos, onde vão em busca de "reparos", assim como no avanço de distúrbios como bulimia e anorexia.
P. Esta foi a razão para a sua investigação no mestrado?
R. Este incômodo com certeza motivou minha pesquisa no mestrado em Educação realizada na Universidade Federal Fluminense (1998), na qual investiguei a produção sociopolítica do corpo nos livros didáticos de Ciências editados nas décadas de 1960 e 1990. Ao ser convidada logo depois para escrever livros didáticos, tive a oportunidade de propor um material que modificasse, ainda que em parte, este cenário preocupante. Hoje é consenso no meio educacional que o currículo escolar não pode estar desvinculado da realidade dos alunos, tendo em vista que uma das funções da escola é a preparação para a vida cidadã. No contexto desta discussão, entendo que as questões relativas ao corpo, gênero, sexualidade e papeis sociais devem ser trazidas para sala de aula, dado o impacto que provocam na vida dos alunos. Muitas vezes, porém, as angústias e tabus acerca da sexualidade estão baseadas no desconhecimento da anatomia e da fisiologia do próprio corpo.
Daí a importância de criar condições para que os professores possam conversar com os alunos, levando-os a expressar suas crenças e seus mitos em relação ao corpo e à sexualidade como ponto de partida para o estudo dos aspectos biológicos do sexo. No volume didático alvo da polêmica, num total de seis unidades, optamos por abordar a sexualidade na terceira unidade. Queríamos evitar que este tema fosse relegado a segundo plano caso ficasse no fim do livro. O texto escrito por mim foi objeto de cuidadosa análise também das outras autoras e da equipe da editora, pois não queríamos correr o risco de produzir nem reforçar subjetividades hegemônicas que levassem a preconceitos e discriminação por gênero, etnia, orientação sexual etc. Em diversos momentos, na versão para o professor, colocamos “bilhetes” sinalizando para a importância de debater determinados tópicos e atentar para atitudes preconceituosas. Ao abordar as características anatômicas femininas e masculinas incluímos também representações de corpos inteiros e com as estruturas externas visíveis. Cuidamos para não reforçar a “pedagogia do terror”, associando sexualidade somente à doença ou à gravidez indesejada. Destacamos a importância do cuidado com o corpo, associando-o à promoção da saúde e à vivência prazerosa e responsável da sexualidade.
P. Como você insere esse episódio no contexto mais amplo do país?
R. Não há como negar que uma onda conservadora vem assolando nosso país. E isto tem provocado repercussão e embates travados tanto no campo das ideias quanto das ações e até das políticas públicas. No campo educacional não é diferente. Tentativas de censura e cerceamento de práticas docentes e uso de materiais didáticos têm sido recorrentes e até apoiadas por representantes políticos que se dizem “defensores da moral e bons costumes” das famílias brasileiras. A retirada dos termos “gênero e orientação sexual” da última versão do texto da Base Nacional Comum Curricular entregue ao Conselho Nacional de Educação não será inócua. Embora o MEC insista que as escolas terão autonomia para construir seus currículos, a não explicitação do termo esvazia sua legitimidade e importância. Currículo é um território de poder e de embates. Esta omissão no documento norteador deixa autores de livros didáticos e docentes sem respaldo legal para abordar o tema. E pode simplesmente impedir a discussão sobre diversidade sexual, estereótipos de gênero e atitudes homofóbicas nas escolas. Iniciativas como a tentativa de censura ao nosso livro de Ciências, a livros de Geografia que incluem famílias homoafetivas, a periódica conclamação em redes sociais a famílias para que induzam seus filhos a filmarem episódios de “doutrinação” nas escolas, assim como um vereador querendo “fiscalizar” as aulas e vários projetos de lei em andamento são elementos de um cenário que causa extrema preocupação com a liberdade de expressão dos educadores em geral. A propagada neutralidade religiosa, sexual e política não tem nada de neutra. Reflete as visões e crenças de um grupo conservador na sociedade.
P. Como você interpreta a manifestação destes pais? O que, afinal, eles temem, a ponto de querer proibir o livro?
R. Acho que há vários aspectos envolvidos. Um deles é o que envolve o desejo e a crença de controle total sobre os filhos (incluindo seus corpos, sexualidade, formas de pensar e ver o mundo). E sei que este desejo não é mal intencionado. Um outro se refere ao fato de cada pai e mãe como pessoa ter seu conjunto de crenças e referências culturais influenciado por experiências pessoais, familiares, religiosas e outras. E embora a escola pública seja para todos, alguns pretendem impor sua forma de ver o mundo como verdade absoluta. Então o racista não quer ver o racismo discutido, o homofóbico não quer que se aborde gênero e preconceito, o misógino acha desnecessário falar sobre feminismo e por aí vai. Paradoxalmente, constato que enquanto em várias escolas e livros de Ciências a questão da sexualidade é ignorada ou abordada superficialmente, no dia-a-dia é crescente a erotização da infância e da adolescência. A realidade é bem diferente do que muitos pais querem admitir. Adolescentes procuram informações onde podem. E a escola pode trazer esta informação de modo adequado. Sabemos que não basta informar, é preciso debater, problematizar, levá-los a refletir, a construir projetos de vida. Enquanto os pais acham que seus filhos com 13-15 anos ainda não devem discutir sexualidade e ver imagens de pênis, o Ministério da Saúde reduziu a idade mínima para a vacinação contra HPV para 9 anos para garantir imunização antes do início da vida sexual. Soma-se a isso o alarmante número de grávidas adolescentes, o crescimento do HIV entre jovens, o suicídio e homicídio de jovens homossexuais...
P. E como você avalia a relação entre escola e comunidade?
R. Ainda existe falta de diálogo entre muitas escolas e as famílias dos alunos. Uma maior aproximação, buscando esclarecer a proposta pedagógica, a realização de projetos envolvendo a comunidade e trabalhos intersetoriais (com o posto de saúde local, por exemplo) são estratégias que reforçam a parceria e trazem sinergia ao processo educativo. Nosso livro propõe várias atividades envolvendo a comunidade por reconhecer a importância desta interação. A sexualidade envolve pessoas e, consequentemente, sentimentos, que precisam ser percebidos e respeitados. Envolve também crenças e valores, assim como ocorre em um determinado contexto sociocultural e histórico, o que tem papel determinante nos comportamentos. Nada disso pode ser ignorado quando se debate a sexualidade com os jovens. O papel de problematizador e orientador do debate, que cabe ao educador, é essencial para que os adolescentes aprendam a refletir e a tomar decisões coerentes com seus valores, no que diz respeito à sua própria sexualidade, ao outro e ao coletivo, conscientes de sua inserção em uma sociedade que incorpora a diversidade. Consideramos que silenciar – nos discursos e práticas – no âmbito das questões relativas à sexualidade humana tem implicações gravíssimas na formação de nossas crianças e jovens.
P. Como você nomearia o que está acontecendo? E como um professor pode enfrentar essa conjuntura?
R. Como autora, professora, mãe e cidadã, reforço e valorizo a necessidade de um movimento de resistência organizado e coletivo – e portanto com mais impacto e eficiência – por parte dos educadores, frente às recentes e sistemáticas ações que buscam tirar a autonomia docente e isolar a sala de aula e a escola da vida real, alijando os alunos do debate acerca de questões contemporâneas cada vez mais relevantes. A busca por uma sociedade pautada na solidariedade, na alteridade, na justiça social, no respeito e na convivência pacífica passa pelo reconhecimento da diversidade como positiva. Questionar as muitas formas de preconceito e de exclusão social é papel de uma escola que pretende ajudar a construir um Brasil menos sexista, menos racista e menos homofóbico – e isso deve começar na Educação Infantil.
7) Por que a ONU se manifestou?
Apenas nas últimas semanas, vários golpes articulados acentuaram a crise educacional e ética do país. E colaboraram para aumentar a violência e ampliar a ignorância no âmbito da escola pública. Tanto que, em 13 de abril, a ONU fez um comunicado manifestando sua preocupação com ameaças ao direito à educação e à liberdade de expressão no Brasil e pedindo que o governo brasileiro se manifeste em 60 dias.
No documento, os relatores das Nações Unidas apontam o projeto “Escola Sem Partido” e as “visitas-surpresa” a escolas municipais feitas pelo vereador de São Paulo Fernando Holiday (DEM) como motivos de apreensão. O vereador entrou nas escolas para “analisar se há doutrinação no conteúdo que está sendo dado nas salas de aula”. No vídeo divulgado por ele se anuncia: “Escola Sem Partido. Holiday faz visitas supresas em escolas de SP e quer que você denuncie casos de doutrinação”.
No comunicado, os relatores da ONU afirmam que, se os projetos de lei baseados no Escola Sem Partido forem aprovados, isso pode significar restrição indevida ao direito de liberdade de expressão de alunos e professores no Brasil, com impacto no ensino do país em diversos temas. Alertam ainda que o Escola Sem Partido pode representar “censura significativa” e restringir o direito do aluno a receber informação.
O documentomanifesta ainda a preocupação com o impacto destas ideias sobre as políticas públicas, como a retirada da expressão “orientação sexual” da Base Nacional Comum Curricular do país, que define as competências e os objetivos do aprendizado dos estudantes em cada etapa da vida escolar. Os relatores afirmam também que a mudança contraria a recomendação da ONU para que o país reforce os programas de combate à homofobia.
Escola Sem Partido é um projeto idealizado pelo advogado Miguel Nagib em 2004, nos últimos anos adotado como bandeira pelas milícias de ódio na internet e por algumas das vozes mais atrasadas do Legislativo. A escolha do nome é esperta. Ela sugere uma finalidade legítima: a de impedir que professores façam proselitismo político-partidário em sala de aula ou o que tem sido difundido como “doutrinação ideológica”. Na prática, o Escola Sem Partido propõe exatamente o que afirma combater: doutrinação ideológica e proselitismo. Mas para isso é preciso capacidade de interpretar texto e de “ler” a realidade, justamente o que a Escola deveria promover, mas tem fracassado por todos os motivos conhecidos.
O nome do projeto, que já era esperto quando foi concebido, tornou-se ainda mais eficiente num momento em que os principais partidos políticos do país estão atolados na lama exposta pela Operação Lava Jato e parte da classe política virou caso de polícia. Assim, em vez do “político”, estes grupos lançam a figura do “gestor”, aquele que supostamente está “limpo” porque não foi enlameado pela política, reduzida por eles a palavrão.
Se há dificuldade de interpretar textos, como esperar que exista interpretação de subtextos e de entrelinhas? Quantos vão perceber que negar a política, uma das criações mais potentes do pensamento humano, responsável por alguns dos maiores avanços da humanidade, é um ato político? E que se autodenominar “gestor” é uma esperteza política de um político esperto?
De novo estamos de volta à tragédia da educação. E agora ela ecoa para muito além dos muros das escolas. A ignorância não é apenas uma tragédia, mas um instrumento. E, no Brasil, este instrumento nunca foi usado de forma tão articulada como hoje.
8) Quem silencia?
Como a história ensina, para quem teve a chance de aprender, a opressão se instala devagar. É um acontecimento aqui, outro lá, aparentemente sem conexão. E assim ela vai se infiltrando primeiro nas franjas do cotidiano, nas periferias dos debates. E depois vai avançando para a área central até tornar-se o próprio centro. A cada novo linchamento, a cada nova fogueira, e elas são ateadas pela direita, mas também pela esquerda, muitos têm se calado. Há gente demais se esquecendo de sua responsabilidade pública e soprando as brasas para longe de si. Muitos que têm espaço para falar e ressonância para ser escutado têm silenciado, na esperança de que a vítima mais recente da inquisição promovida nas redes sociais e em certa mídia se incinere sozinho na fogueira da sua reputação e que nenhuma brasa caia no seu quintal. Lamento dizer, mas vai cair. E aí, talvez, seja tarde demais para reagir.
Eliane Brumé escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficçãoColuna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos,e do romanceUma Duas. Site:desacontecimentos.comEmail:elianebrum.coluna@gmail.comTwitter:@brumelianebrum/ Facebook:@brumelianebrum
No dia 9 de outubro de 1967 foi assassinado, a mando da CIA, na selva boliviana, o revolucionário argentino Che Guevara. Em homenagem ao legado de Che Guevara, no aniversário de 50 anos da sua morte, republicamos artigo escrito pelo trotskista argentino Nahuel Moreno logo após a divulgação do seu assassinato.
Editores do Esquerda Online.
Por Nahuel Moreno. Publicado originalmente no jornal do PRT da Argentina, “La Verdad” em 23/10/67.
Com o assassinato de Che, nós revolucionários latino-americanos não só perdemos nosso líder indiscutível, assim como Fidel, mas também o mais apaixonado lutador da revolução permanente de nossa época.
Sua própria vida obedece a uma profunda lógica, que é a da revolução permanente. De revolucionário pequeno-burguês em nosso país que não compreende o peronismo, a dirigente do movimento pequeno-burguês mais revolucionário da América Latina, encabeçado por Fidel. De ativista estudantil argentino a guerrilheiro cubano. De chefe guerrilheiro a construtor da economia socialista. Como tal, reivindica a importância do próprio processo revolucionário interno, da elevação da consciência das massas. Não se duvida de seu caráter revolucionário latino-americano, e não deixa por um minuto de indicar que Cuba é parte da revolução continental. Em suas visitas à China, URSS e África o vêem como representante do internacionalismo proletário, da revolução mundial. De volta a Cuba, passa das declarações e enunciados à preparação da guerrilha no elo mais débil da corrente capitalista sul americana: a Bolívia. Se o enterram podemos dizer: “Não enterram um cadáver, mas sementes revolucionárias”.
Guevara, que arriscou a vida quantas vezes foi necessário, até perdê-la para a revolução cubana e latino-americana, não teve medo de enfrentar e dar resposta aos problemas mais graves colocados pela revolução. Desde a defesa de Cuba até a construção do socialismo na etapa de transição, passando pelas relações econômicas entre os países socialistas, não houve problema de importância decisiva na luta dos trabalhadores que Guevara não abordasse desde o ponto de vista da revolução permanente.
A revolução permanente na América Latina como única defesa certa de Cuba
Os trabalhos mais conhecidos de Guevara sobre a guerra de guerrilhas são categóricos: a defesa da revolução cubana passa pela extensão da revolução latino-americana. É como citava o discurso de Fidel de 26 de julho de 1963 em seu trabalho “Guerra de guerrilhas: um método”: “É o dever dos revolucionários, principalmente neste momento, conhecer, perceber e captar mudanças na correlação de forças que se tem dado no mundo, e compreender que estas mudanças facilitam a luta dos povos. O dever dos revolucionários latino-americanos, não é esperar que uma mudança na correlação de forças produza o milagre de uma revolução social na América Latina, mas fazer pleno uso de tudo que favoreça o movimento revolucionário nesta correlação de forças variável e fazer a revolução”.
Para que não haja duvidas de que se preconizava a revolução permanente, no mesmo trabalho citava Marx: “Marx sempre recomendou que uma vez que se tenha começado o processo revolucionário, o proletariado revolucionário deve golpear e golpear sem descanso. Revolução que não se aprofunda constantemente é uma revolução que retrocede.”
Com toda clareza, insistia que havia uma estratégia contra-revolucionaria de conjunto em toda a América, dos exploradores nacionais e do imperialismo ianque e que a única resposta é uma luta continental de conjunto. “Dado este panorama americano, é difícil que haja vitória e se consolide em um único país. A união das forças repressivas deve ser respondida pela união das forças populares. Em todos os países nos quais a opressão das massas chega a limites intoleráveis, a bandeira da rebelião deve ser levantada, e esta bandeira deve ter, por necessidade histórica, características continentais. A cordilheira dos Andes está destinada a ser a Sierra Maestra das Américas, como Fidel havia dito, e todos os imensos territórios que este continente encerra estão destinados a ser cenas de uma luta de morte contra o poder imperialista.” “Não podemos dizer quais características esta luta continental adquirirá nem tampouco quanto tempo durará, mas podemos predizer seu início e seu êxito, porque é o resultado de circunstancias históricas, econômicas e políticas inevitáveis e seu curso não pode ser detido. Iniciá-la quando as circunstancias estiverem dadas, independentemente da situação nos outros países é a tarefa das forças revolucionarias em cada país. O desenvolvimento da luta determinará a estratégia geral, a previsão do caráter continental surge da análise das forças opostas mas isto não exclui – longe disso – um começo independente. Assim como a iniciação da guerra revolucionária contribui para o desenvolvimento das condições nos países vizinhos.” Che, junto com Fidel foram os melhores porta-vozes da estratégia e da teoria revolucionária da direção cubana: há um único processo revolucionário, a escala continental do qual Cuba é um elo muito importante, porém somente um elo. A revolução é de conjunto, continental. O êxito se obterá numa batalha total.
A etapa de transição como um processo revolucionário
Em outubro de 1963 a revista cubana Nossa Indústria publicou uma polêmica apaixonante entre o Che e Alberto Mora, ministro do Comércio Exterior, sobre as leis econômicas dominantes na época de transição ao socialismo num país atrasado como Cuba. Mora sustentava que tinha que deixar a economia cubana em seu conjunto e cada empresa se desenvolverem automaticamente de acordo com as leis de oferta e demanda. Por exemplo, que cada empresa ou cooperativa produziria os produtos cujos melhores preços pudessem obter. Dito de outra forma, que cada empresa controlada pelos trabalhadores seguiria atuando como se fosse uma empresa capitalista, cujo único objetivo é o maior lucro possível. Mora insistiu que o lucro de cada empresa e de cada trabalhador é o único motor da economia de transição. A conclusão do Ministério do Comércio Exterior surgia por si só: a centralização e planejamento da economia cubana são secundários, o lucro das empresas e dos trabalhadores é o mais importante. Tinha que se dar autonomia às empresas e pagar aos trabalhadores por produção, como era no capitalismo.
Guevara insistiu que a economia em marcha ao socialismo não é uma economia capitalista nas mãos dos trabalhadores e sim uma economia que tem objetivos diametralmente opostos ao capitalismo. O objetivo de uma economia socialista é o desenvolvimento econômico do conjunto em benefício do país e dos trabalhadores e não o lucro de tais empresas ou trabalhadores, apesar de ser um país atrasado. Por isso era essencial a centralização e planejamento da economia nacional em seu conjunto. Se a produção de materiais para construção de milhares de casas é uma necessidade dos trabalhadores cubanos, nem que esta produção seja deficitária, tem que fazê-la, sustentava Guevara, porque é benéfica para o conjunto dos trabalhadores do país. De acordo com o critério de Mora, se não dava lucro não se deveria fazer.
Guevara tirava de sua análise teórica conclusões opostas a de Mora: havia que centralizar e planejar cada vez mais a economia cubana e ao invés de encorajar o pagamento de prêmios aos trabalhadores para levantar a produção isto tinha que ser obtido por meio da elevação da moral socialista deles. Para Che a transição da economia cubana devia estar acompanhada de um processo revolucionário, que era a elevação dessa consciência nos trabalhadores cubanos.
Como em todas as suas análises teóricas e políticas, Che costumava passar por alto os detalhes, alguns aspectos da realidade, o atraso de Cuba, de seus trabalhadores, que exigem que se dê grande importância aos incentivos materiais. De qualquer forma, sua insistência na importância do planejamento e centralização como motores do desenvolvimento socialista, como também do progresso permanente da consciência revolucionária dos incentivos morais dos trabalhadores era essencialmente correta. Com todos os erros teóricos que fizeram, a posição de Che era a revolucionária, a que apostava no desenvolvimento da consciência revolucionária das massas cubanas e a de Mora a oportunista, estalinista, que queria apelar a métodos burgueses para obter o desenvolvimento socialista.
Esta polêmica se insere no que vem sendo levantado pelos estalinistas- da linha de Kruschov e os maoístas. Toda a vanguarda revolucionária mundial sabe que o estalinismo tem levantado à teoria de que o socialismo vai se construindo com apelo ao afã dos lucros ou dos salários dos trabalhadores. Os maoístas, ao contrário, crêem que o socialismo se construirá apelando à consciência política das massas.
A direção cubana fechou esta polêmica com uma posição correta, de sínteses de ambas as posições, porém destacando a contribuição essencial feita por Che. Em 8 de maio de 1965, o presidente Dorticós deu a posição oficial da direção cubana sobre a polêmica que estava ocorrendo: “Estamos muito contentes que o fator moral tenha sido incutido com os esforços do Ministério da Industria (Guevara) ao máximo. Sabemos que esta posição foi adotada pelo ministro e aplaudimos sua doutrina. Nosso presente e nosso futuro dependem fundamentalmente de nossa ideologia e nossa moral. Esta não nega o princípio fundamental que deve regular o pagamento do trabalho numa sociedade socialista; concretamente a cada um, de acordo com o seu trabalho. Na nossa opinião este princípio é total e consistentemente compatível com o princípio que sublinha a importância dos estímulos morais. Para harmonizar e sintetizar estes dois fatores, enquanto mantemos seu ajuste, devemos reforçar a cada dia a importância e a extensão de estímulos morais como um dos objetivos de nosso trabalho econômico.”
Opõe-se à política comercial da URSS, em defesa dos países atrasados. Não foi destacado o suficiente a batalha política e teórica que estava sendo levantada por Guevara contra este aspecto da política econômica da URSS. O governo soviético negociou com os outros países socialistas como se fossem países capitalistas. Troca as mercadorias por seu valor no mercado mundial e as vezes paga menos nos produtos dos países socialistas atrasados. Estes países, como era sob o regime imperialista, tem que vender à URSS matérias primas por produtos industriais. Nessa troca a valores iguais tem já uma exploração comercial, a mesma que tem os países imperialistas com as nações atrasadas no mercado mundial. Todo estudante de economia sabe que as matérias primas baixam ano a ano seu valor em relação aos produtos industriais. Esta mesma relação se dá entre os países socialistas atrasados e a URSS. Guevara, revolucionário de uma só bandeira denunciou sem interrupção essa injustiça “burguesa” cometida pela URSS. No seminário de solidariedade afro-asiático que ocorreu em Argel, em princípios de 1965, afirmou categoricamente: “O desenvolvimento dos países que vão tomando o caminho da liberdade deve ser apoiado pelos países socialistas; esta é minha profunda convicção”.
“Como pode ser considerado de benefício mútuo vender ao preço do mercado mundial as matérias primas que custaram suor e sofrimento das massas dos países atrasados e comprar ao preço de mercado mundial as máquinas produzidas pelas grandes plantas automatizadas de hoje em dia?. É obrigação dos países socialistas terminar com esta tácita cumplicidade com os países exploradores do oeste.”
Sua luta pela unidade econômica dos países socialistas e atrasados. Não conformado em denunciar indiretamente a concepção falsa, burocrática, do comércio exterior dos governantes soviéticos, Guevara dá todo um programa revolucionário essencialmente correto.
“Uma profunda mudança conceitual deve ser feita em relação às relações internacionais. Não deve ser o comércio internacional quem determina a política, mas sim, o contrário, o comércio internacional deve estar subordinado a uma política fraternal perante aos outros povos.”
Internacionalista convicto se opõe ao propósito de que cada governo socialista cuide de suas peças, seu país, e insiste na necessidade de uma unificação e planejamento do conjunto das economias dos diversos países socialistas e atrasados. “O desenvolvimento não pode ser abandonado a uma completa improvisação; a construção da nova sociedade deve ser planejada. Planejamento é uma das leis do socialismo e sem socialismo não pode existir. Sem um correto planejamento é impossível garantir adequadamente uma relação harmoniosa entre os vários setores econômicos de um país que têm que produzir rapidamente os avanços que requerem a época em que vivemos. O planejamento não é um problema individual para cada um de nossos países, com um desenvolvimento desigual, proprietários de algumas matérias primas ou produtores de certos produtos manufaturados ou semi-terminados, mas sim produzir outros produtos, em forma isolada. Por esta razão, o planejamento deve ser orientado, na verdade, desde o primeiro momento perante certa especialização regional, de maneira que as economias de vários países possam ser complementares e desta maneira a integração se faria sobre a base de um benefício mutuo genuíno.”
Como contrasta esta posição com a batalha dos governos russo e chinês por defender sua autarquia ou independência no lugar de tender planejar suas economias de forma comum!
E para não haver dúvidas do papel que faz jogar a economia no processo da revolução mundial, nosso Che, supomos que a gritos, disse: “As armas não devem ser consideradas mercadorias no nosso mundo; um deve entrega-las sem nenhum pagamento nas quantidades requeridas pelos povos que necessitam delas.” Pensa-se em Stalin, o teórico do socialismo em um único país, vendendo a preço de ouro e a conta-gotas as armas ao proletariado espanhol durante a Guerra Civil e não se pode menos que admirar mais e mais este heróie da revolução permanente.
Seu testamento: o internacionalismo revolucionário
Os revolucionários do mundo inteiro consideram os guerrilheiros vietnamitas a vanguarda da revolução. Consideramos a falta de apoio total por parte da URSS e China uma traição. Não há outro internacionalismo militante neste momento que não seja lutar para que se apóie o Vietnam do Norte e os guerrilheiros vietnamitas, e fazer a revolução nos próprios países. Essa é a posição de Fidel. Em sua carta “testamento” Che insiste apaixonadamente no mesmo. Escutemo-lo:
“Quando analisamos a sociedade vietnamita nos vem a angustia deste momento ilógico da humanidade.
“O imperialismo norte-americano é culpado de agressão. Seus crimes são imensos e por todo o globo. Já o sabemos, senhores! Mas também são culpados aqueles que no momento de definição vacilaram em fazer do Vietnam parte inviolável do território socialista, correndo, sim, os riscos de uma guerra de alcance mundial mas também obrigando os imperialistas norte americanos a uma decisão. E são culpados os que mantêm uma guerra de insultos e trapaças começada há um bom tempo pelos representantes das maiores potencias do campo socialista. “Perguntemos, para obter uma resposta honesta: Está ou não isolado o Vietnam, fazendo equilíbrios perigosos entre as potencias em conflito?
“E: que grandeza deste povo! Que estoicismo e valor deste povo! E que lição para o mundo ensina essa luta.
“Mesmo daqui a muito tempo não saberemos se o presidente Johnson pensava seriamente em iniciar algumas reformas necessárias ao povo, para limar arestas das contradições de classe que assomam com força explosiva e cada vez mais freqüentes. O certo é que as melhoras anunciadas sob o pomposo título de luta “por uma grande sociedade” têm caído no ralo do Vietnam.
“O maior dos poderes imperialistas sentidos nas entranhas é o sangramento provocado por um país pobre e atrasado e sua fabulosa economia se ressente do esforço da guerra. Matar deixa de ser o negocio mais cômodo dos monopólios. Armas de contenção, e não em numero suficiente, é tudo o que tem os maravilhosos soldados, além do amor a sua pátria, a sua sociedade e um valor a toda prova. Mas o imperialismo fica empantanado no Vietnam, não há caminho de saída e busca desesperadamente algum que lhe permita rifar com dignidade este perigoso transe em que se encontra. Mas os “quatro pontos” do Norte e os “cinco” do Sul o atenuam, fazendo a mais decidida confrontação.
“Tudo parece indicar que a paz, essa paz precária a que se tem dado tal nome somente porque não se tem produzido nenhuma confrontação de caráter mundial, está outra vez em perigo de romper-se ante qualquer passo irreversível e inaceitável, dado pelos norte americanos. “E a nós, explorados do mundo, qual é o papel que nos corresponde? Os povos dos três continentes observam e aprendem sua lição no Vietnam. Já que, com a ameaça de guerra, os imperialistas exercem sua chantagem sobre a humanidade, não temer a guerra é a resposta justa. Atacar dura e ininterruptamente em cada ponto de confrontação deve ser a tática geral dos povos.”
Se Trotsky foi o profeta e teórico da revolução permanente, Guevara é seu herói, seu mártir. Que cometeu erros, que não era um teórico do calibre de Marx, Lênin ou Trotsky, que exaltou a técnica guerrilheira do foco e as três etapas, “vamos crianças!”, como diriam os camaradas cubanos aos pedantes unidos das confrarias esquerdistas da América e Europa, todos nós sabemos. Rosa Luxemburgo não fica atrás em errar em alguns problemas teóricos e Liebknecht não sabia muito bem o que era dialética, e são, entretanto, grandes do proletariado e da revolução universal.
Nosso Guevara já não é também por direito próprio, por sua vida, por seus ensinamentos, por sua morte. Mas se isso não bastasse, o seria por haver cunhado em seu ultimo documento público, sua carta testamento, a consigna e o programa dos explorados do mundo neste momento: “Fazer dois, três, muitos Vietnam”. “Com cantos trágicos, com rajadas de metralhadoras e novos gritos de guerra e de vitória” juramos fazê-lo assim, Comandante Guevara. Descansa em paz.