domingo, 8 de outubro de 2017

O corpo não pornográfico existe

  1. Ivana Bentes
    disse:
“Todas essas constatações nos fazem presumir que a intenção dos movimentos de esquerda é, de no futuro próximo, pretenderem o fim do crime de pedofilia e liberarem o sexo entre adulto e crianças”, afirmou de forma alucinatória e alarmista o advogado Pierre Lourenço, convocado pelo MBL para dar respaldo “jurídico” às acusações de pedofilia e pornografia na performance do artista Wagner Schwartz.
Eis explicitado, afinal, o “inimigo” a se destruir e a estratégia a ser usada. Falsear os fatos, tirá-los do contexto e distorcer as propostas e intenções de artistas, curadores e museus para produzir histeria coletiva baseada em uma hipótese absurda e conspiratória.
A eficácia parcial das ações tem lastro no passado, quando se construiu a narrativa da “ameaça comunista” que respaldou a ditadura militar de 1964; ou ainda a demonização de partidos políticos como a origem da corrupção no Brasil – base do golpe jurídico-parlamentar de 2016. O campo dos comportamentos, da moral, é o mais eficaz em produzir comoção, discursos de ódio e demonização que catapultem um candidato conservador ou de ultra-direita nas eleições de 2018.
Essa é a argumentação de base que escandaliza os “homens e mulheres de bem” – despropositada e de má fé, como vemos em outra fala de Pierre Lourenço, advogado do MBL: “Se pensarmos que o caso do MAM envolveu um homem completamente despido e a instigação, por parte de várias pessoas, para que uma criança completamente ingênua e indefesa viesse a tocar no homem nu para satisfazer a lasciva ou a tara sexual dos participantes do evento, podemos sim cogitar o crime de estupro”.     
Wagner Schwartz em performance ‘La Bête’ no Museu de Arte Moderna de São Paulo – MAM (Divulgação)
O artista Wagner Schwartz na performance ‘La Bête’, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (Divulgação/MAM)
A desqualificação da arte como formadora
O mais preocupante é ver como segmentos do campo progressista, feministas radicais e pessoas bem intencionadas, reforçam os argumentos do MBL ao invocarem o ECA (Estatuto da Criança e Adolescente), um avanço no campo dos direitos no Brasil, para dizer que houve violação e exposição da criança.
Até agora, no entanto, ninguém soube explicar como a performance fere ou viola o estatuto pela simples presença da criança, acompanhada da mãe na cena da performance em espaço público. Onde estaria a perversão e a violação no fato de uma criança tocar a canela de um homem nu, estirado como um morto em um espaço público, em uma encenação, com a mãe presente e sem nenhum risco real de qualquer violação?
Os que bradam que ocorreu uma violação desqualificam a própria função da arte como formadora das sensibilidades e do olhar. Mais uma vez os acusadores só veem a imagem e a cena em sua literalidade. Como se os artistas, curadores, educadores, progenitores falhassem espetacularmente no seu papel! Em um mundo em que os sentidos são construídos socialmente: pelo artista, pelos curadores, pela mãe, pelas mídias, a performance e a experiência narrada são destituídas do sentido proposto. A escola, os professores e a arte são colocados em um campo de suspeição e perversão!
Os museus, os centros culturais e os espaços de exposição são frequentados por pessoas que estão dispostas a se expor às provocações e problematizações de obras e autores. Não são igrejas, não são lugares privados, são espaços públicos que têm uma função e um propósito.
Obviamente que mesmo a arte, os museus e os espaços culturais devem estar atentos aos totens e tabus dos grupos sociais, indicando (como fazem) a presença de nudez ou de cenas que podem constranger pessoas sensíveis ou a família brasileira (que Nelson Rodrigues tão bem descreveu, na sua loucura hipócrita!)
cruzada patética do MBL contra a arte contemporânea é uma guerrilha de marketing contra as esquerdas e os artistas, associados a comportamentos “pervertidos”. Esse é o objetivo. Uma associação que na história da arte e do mundo já foi derrotada há tempos. Voltar à censura, alimentar tabus, é uma campanha obscurantista que não dá para relativizar em hipótese alguma.
O debate sobre a classificação indicativa de idade para exposições artísticas é bem-vindo, obviamente. Mas quando a mesma foi aplicada para novelas e produtos de televisão houve um rechaço virulento por parte das emissoras de TV e do campo “liberal” e conservador, que consideravam a proposta (finalmente implementada nos anos Lula) um tipo de “censura”. O que se argumentava então: “não quer ver, basta mudar de canal”. O mundo dá voltas conforme as conveniências.
Não existe coerência nos discursos, por isso podemos ver hoje essa proposta marqueteira que propõe um abaixo assinado para “fechar o Museu de Arte Moderna de São Paulo”, num misto de ignorância e má fé. Até agora ninguém sabe explicar como a performance fere ou viola o ECA a ponto de exigir punições!
Assassinato simbólico
Estamos vendo em ação o laboratório do justiçamento em tempo real que, frente a uma comoção artificialmente construída, é o bastante para propor retrocessos e produzir efeitos jurídicos, políticos e de comportamento. Aterradoras são as narrativas produzidas como “efeito-colateral”, como o boato que circula nas redes dizendo que o artista Wagner Schwartz, o homem nu proponente e ator aa performance La Bête foi assassinado após a divulgação de vídeo.
Eis para onde aponta a fábrica de distorções de fatos e fake news! A demonização e morte do outro. Como fizeram com judeus, como fazem com jovens negros nas periferias narrados como “elementos suspeitos” e “assassinos por natureza”, como fazem com LGBTs, como fazem com movimentos feministas e ligados às minorias. Um desejo de aniquilação e de morte do outro social, político, comportamental.
Chamaram o Ministério Público, a polícia, o bispo, o prefeito, advogados e também um psiquiatra para a “cura gay”, e agora pede-se a cura da perversão, a cura da obscenidade atribuída a um campo, as esquerdas degeneradas. Esse é o subtexto das ações de marketing viral e de pós-verdade.
Toda a literatura médica, do campo da comunicação e mesmo jurídica sobre os “efeitos” de cenas como a da performance La Bête trazem outra questão: “Existem cenas sem nudez que podem ser mais eróticas para uma criança do que um homem pelado mexendo em um origami”, como afirma o psiquiatra Daniel de Barros no jornal Estadão.
Sim, um psiquiatra foi convidado a explicar se a criança que viu um homem nu não vai traumatizar, erotizar precocemente. Resposta: “Como psiquiatra, não conheço evidências científicas que dizem que uma criança ver um sujeito nesse contexto vai torná-la mais erotizada”, explica. Barros diz ainda que o mesmo vale para novelas, filmes e outras mídias. Adverte no final: “na dúvida, não exponha a criança”.
Não há dúvida, nem para os curadores da exposição, nem para o MAM-SP, nem para a mãe da criança e nem para uma parcela da população que a performance não violou nenhum direito infantil. Já para outro contingente, toda a nudez, a arte, os artistas, os museus e os pensamentos progressistas são expressões de uma perversão que, na dúvida, têm que ser castigada! A questão não é impedir o debate, mas usá-lo da forma mais sensacionalista e perversa que poderíamos ver.
As mães de hoje não têm medo de naturalizar a nudez masculina ou feminina diante das crianças. Os estupros e violações começam dentro de casa, geralmente nas casas das famílias que bradam a favor da moral e dos bons costumes, que reprimem e censuram a nudez e a sexualidade. Mães e pais que tomam banho com seus filhos, que se expõem e expõem os corpos nus das crianças com naturalidade e que naturalizam a sexualidade não criam estupradores e obcecados por sexo.
É comum ver homens e mulheres parcialmente ou totalmente nus tomando sol nos jardins e parques europeus. Ninguém se incomoda com esse corpos. No Brasil seria atentado ao pudor?
Em nota divulgada, o MAM-SP destaca que a criança estava acompanhada da mãe e que a sala onde ocorria a performance estava “sinalizada sobre o teor da apresentação, incluindo a nudez artística”. O museu também sublinha que o trabalho La Bête não tem qualquer conteúdo erótico. Trata-se de uma releitura de Os bichos, obra de Lygia Clark. Em vez das peças de metal, o próprio corpo nu é um dos bichos expostos para interações sem qualquer conotação sexual.
A questão é: uma criança não pode tocar ou ser exposta ao corpo de um homem ou de uma mulher nua? A mesma criança que manipula o peito e o corpo da mãe e eventualmente é exposta à nudez dos pais no cotidiano?
O corpo dessexualizado existe. Mas a produção de histeria e comoção popular que tenta impedir um debate realmente produtivo sobre a formação do olhar e a narrativa sobre os corpos também nos impele a resistir e dialogar diante de uma sociedade que não consegue encarar um corpo não pornográfico.
Fonte: https://revistacult.uol.com.br/home/ivana-bentes-o-corpo-nao-pornografico-existe/

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