domingo, 22 de fevereiro de 2015

A Geografia e o estudo da paisagem

A Geografia e o estudo da paisagem


Este artigo será publicado brevemente em um livro organizado pelo Prof.Dr. Roberto Verdum, do Departamento de Geografia da UFRGS. Esta publicação pretende ser uma referência para os estudos sobre a paisagem, tema que ganha força no Brasil, onde ainda existem poucas publicações a respeito.


A Geografia e o estudo da paisagem


A paisagem, em uma definição mais abrangente, pode ser entendida como a composição de elementos da natureza no espaço, dentre os quais a fauna e a flora, o homem e as edificações que constrói com a sua ação no espaço geográfico. A Geografia, enquanto ciência, estuda a paisagem por deferentes vertentes do pensamento geográfico de distintas maneiras. Mas todas têm como consenso, que a paisagem, é a materialização resultante da interação do homem e os elementos da natureza.


A paisagem também pode ser tudo que pode se ver num lance de vista ou o "conjunto de componentes naturais ou não de um espaço externo que pode ser apreendido pelo olhar" (HOUAISS, 2001, p. 2105). A polissemia da paisagem traz consigo muitas definições. Entre estas, para Santos (2002), "a paisagem é o conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as heranças que representam as sucessivas reações localizadas entre homem e natureza". Santos, aqui, agrega à paisagem o fator da temporalidade na sua constituição.

Assim, ao longo da história, as diferentes abordagens sobre paisagem tentam não somente descrevê-la enquanto conceito geográfico. A paisagem é diferenciada e compartimentada entre paisagem natural, que reflete a interação dos elementos naturais (relevo, vegetação, solo, rios, etc.) e paisagem cultural, como o resultado da ação do homem e da sociedade sobre a natureza, da qual resulta os espaços urbanos e rurais. Mas, também, a paisagem como objeto que pode ser sentida pelo homem, trazendo-lhe inúmeras sensações e sentimentos.

Berque (1998) afirma que a paisagem é uma marca, pois expressa uma civilização, mas é também uma matriz, porque participa dos esquemas de percepção, de concepção e de ação – ou seja, da cultura, que canaliza, em um certo sentido, a relação de uma sociedade com o espaço e com a natureza e, portanto, corresponde a paisagem do ecúmeno.

Bertrand (1968), ao propor o estudo de Geografia Física Global, pensou a paisagem como "resultado sobre uma certa porção do espaço, da combinação dinâmica e, portanto, instável dos elementos físicos, biológicos e antrópicos, que, interagindo dialeticamente uns sobre os outros, fazem da paisagem um conjunto único e indissociável em contínua evolução". A paisagem também pode ser tida como a "configuração de símbolos e signos" (COSGROVE e JACKSON, 2003, p. 137), sendo que a "linha interpretativa da Geografia Cultural recente desenvolve a metáfora da paisagem como ’texto’, a ser lido como documento social".

Dessa maneira, o estudo geográfico da paisagem apresenta dois enfoques principais. Um que a considera total e a identifica como o conjunto do meio, contemplando a este como indicador e síntese das inter-relações entre os elementos inertes: rocha, água e ar, e os vivos: plantas, animais e homem. E o outro, que considera a paisagem visual percebida como a expressão dos valores estéticos, plásticos e emocionais do meio.

A paisagem, em seu conjunto, reúne todos esses fatores, e aos quais se adiciona a possibilidade de valores expressivos e de significação cultural. Os mesmos podem compreender conteúdos estéticos e conotações significativas, constituindo-se como um tema de inspiração para o homem.
Ao tratar sobre a origem e a conformação do processo de produção de uma paisagem, seja ela natural ou cultural, intervém um conjunto de fatores geológicos, geográficos e biológicos, que não permitem analisá-la como ente independente do ser humano e sobre sua incidência no mesmo, posto que sua ideologia, desenvolvimento e cultura modificam em maior ou menor grau tais fatores. Essa correlação entre o homem e esses fatores daria lugar à história de uma paisagem. Não se pode realizar uma análise específica de um lugar sem considerar os aspectos gerais, que tornariam esse estudo mais completo.

Em "The Morphology of Landscape", Sauer (1925) argumenta que a paisagem geográfica é formada pelo conjunto de formas naturais e culturais associadas a uma dada área e analisada morfologicamente, a integração das formas entre si e o caráter orgânico delas. Portanto, a paisagem cultural ou geográfica é uma resultante da ação, ao longo do tempo, da cultura sobre a paisagem natural. Sauer também considera que a "paisagem possui uma identidade, sustentada por uma constituição reconhecível, limites e uma relação com outras paisagens, para construir um sistema geral".

O estudo da paisagem cultural proporciona uma base para a classificação regional, possibilita um insight sobre o papel do homem nas transformações geográficas e esclarece sobre certos aspectos da cultura e de comunidades culturais em si mesmas. Busca diferenças na paisagem que possam ser atribuídas a diferenças de conduta humana sob diferentes culturas, e procura desvios de condições "naturais" esperadas, causados pelo homem.

A paisagem cultural aborda a associação de características humanas, biológicas e físicas sobre a superfície da Terra (especialmente as que são visualmente perceptíveis), alteradas ou não pela ação humana. Como a paisagem, é considerada a materialização da ação humana no espaço, através da necessidade de adaptação à sobrevivência do homem na natureza, e, atualmente, a sociedade, de alguma maneira, está presente em quase toda a superfície terrestre, podemos dizer que, nessas circunstâncias, não mais existe uma paisagem natural. Haja vista que toda a paisagem, mesmo que aparentemente intocada, já perdeu a sua "naturalidade", pois foi, segundo Santos (2002), coisificada. Mesmo que o homem não tenha nela colocado os seus pés, já lhe foi atribuído algum significado e, portanto, faz parte de uma cultura, até mesmo de uma cultura capitalista, na qual faz parte o "racionalismo econômico" (LEFF, 2006) a tudo dá valor. Assim sendo, mesmo de maneira genérica, poder-se-ia dizer que toda a paisagem é cultural, pois mesmo nos recantos intocados das florestas tropicais há a incidência dos valores sociais atribuídos pelo homem.

Tomando como base essas definições, podemos dizer que:

"[...] a paisagem que vemos hoje não será a que veremos amanhã e nem tão pouco é a que foi vista ontem, pois a paisagem é produzida e reproduzida no decorrer do tempo, através da ação do homem e da sociedade sobre o território, levando em conta que cada ator social tem seu tempo próprio no espaço. Assim, a paisagem é por conseguinte objeto, concreto, material, físico e efetivo e é percebida através dos seus elementos, pelos nossos cinco sentidos, é sentida pelos homens afetivamente e culturalmente". (BERINGUIER, 1991, p. 7)
A paisagem como suporte para a leitura da percepção

A percepção da paisagem tem como pressuposto que seja produzida segundo a cultura das pessoas que nela estão inseridas. Assim, não há como entender a paisagem sem levarmos em consideração os preceitos metodológicos e teóricos da Geografia Cultural.
A Geografia Cultural é tida como um ramo das ciências geográficas preocupado com a distribuição espacial das manifestações culturais, como: religiões, crenças, rituais, artes, formas de trabalho; enfim, tudo que é resultado de uma criação ou transformação do homem sobre a natureza ou das suas relações com o espaço, seja no planeta, em um continente, país, etc. A exemplos dos estudos sobre: "espaço e religião; espaço e cultura popular; espaço e simbolismo; paisagem e cultura; percepção ambiental e cultural; espaço e simbolismo..."(CORRÊA, 1995, p. 03-11).

Atualmente, pode-se pensar na Geografia Cultural como aquela que considera os sentimentos e as idéias de um grupo ou povo sobre o espaço a partir da experiência vivida. Trata-se de uma geografia do lugar. Também pode ser considerada como a dimensão espacial da cultura. Tradicionalmente, desde o começo do século XX, essa dimensão espacial tem sido focalizada por intermédio de temas como os gêneros de vida, a paisagem cultural, as áreas culturais, a história da cultura no espaço e a ecologia cultural. Para Cosgrove (2003, p. 103) "a tarefa da Geografia Cultural é apreender e compreender a dimensão da interação humana com a Natureza e seu papel na ordenação do espaço".

Como dito anteriormente, é impossível falar na Geografia Cultural sem citar Sauer ou a "Escola de Berkeley", que denomina a corrente do pensamento geográfico fundamentada a partir de sua obra. A Geografia Cultural surgiu no início do século, na Alemanha: era a "Kulturlandschaft". Na Geografia Cultural alemã, as paisagens correspondiam a um conhecimento específico, que servia para diferenciá-la das outras ciências.

Essa Geografia considerava a paisagem como uma unidade espacial definida em termos formais, funcionais e genéticos. A primeira obra teórica importante de Sauer foi The Morfology of Landscape. Neste importante trabalho, Sauer estabelece conceitos que fundamentaram a Geografia Cultural, principalmente a norte-americana, entre eles: a valorização da relação do homem com a paisagem (ambiente), que por ele é formatada e transformada em habitat; a análise dessa relação sempre é feita a partir da comparação com outras paisagens, formatadas organicamente, o que gera uma visão integral da paisagem que individualiza a Geografia enquanto disciplina.

Ao longo dos anos, outros conhecimentos vêm fazer parte da Geografia Cultural, enriquecendo as pesquisas geográficas que enfatizam a cultura como agente transformador do espaço. São incorporadas diversas referências teóricas e metodológicas, tais como os ramos da filosofia dos significados, da fenomenologia, do materialismo histórico e dialético e das humanidades em geral.
A esses aprofundamentos também são agregados à Geografia Cultural temas que não eram por ela tratados anteriormente. Nessa mudança, o conceito de cultura é repensado. A cultura não é mais vista como entidade supra-orgânica, nem como superestrutura. A cultura diz respeito às coisas do cotidiano, comuns, apreendidas na vida diária, na família, no trabalho e no ambiente local. As idéias, habilidades, linguagem, relações em geral, propósitos e significados comuns a um grupo social são elaborados e reelaborados a partir da experiência, contatos e descobertas – tudo isto é cultura.

A cultura pode ser vista, também, como o conjunto de manifestações humanas que contrastam com a natureza ou comportamento natural, a soma total dos modos de vida construídos por um grupo de seres humanos e transmitidos de uma geração para outra, ser considerada uma propriedade ou atributo inerente aos seres humanos, ou ainda ser meramente um artifício intelectual para generalizar convenientemente a respeito de atitudes e comportamentos humanos (WAGNER e MIKESELL, 2003).

A noção de cultura não considera indivíduos isolados ou as características pessoais que possam possuir, mas comunidades de pessoas que ocupam um espaço determinado, amplo e geralmente contínuo. Assim, a cultura está assentada em uma base geográfica. Dessa maneira, a Geografia Cultural é a aplicação da idéia de cultura aos problemas geográficos, os aspectos da Terra, em particular aqueles produzidos ou modificados pela ação do homem (sociedade). Distingue, descreve e classifica os complexos típicos de aspectos ambientais, incluindo aqueles realizados pelo homem, que coincidem com cada comunidade cultural, considerando-os como paisagens culturais e procurando origens na história cultural. Assim, a cultura ao produzir e reproduzir o espaço, deixa a sua marca visível, o resultado material da interação do homem com o meio: a paisagem ou a paisagem cultural.

Qualquer cultura é limitada em sua capacidade de transformar o habitat por meio de conhecimento técnico, administração e organização institucional, preferências, proibições, etc. "O geógrafo cultural não está preocupado em explicar o funcionamento interno da cultura [...], mas avaliar o potencial técnico de comunidades humanas para usar e modificar seus habitats" (WAGNER e MIKESELL, 2003, p. 31).

As pesquisas em Geografia Cultural se dão através da investigação sobre a distribuição passada e presente de características da cultura, que constitui a base para o reconhecimento e as delimitações de áreas culturais. A área cultural implica uma uniformidade relativa ao invés de absoluta. A similaridade cultural relativa aparece em diferentes graus, desde a identidade virtual de atitudes e aptidões em num pequeno território até semelhanças gerais ou ampla disseminação de características individuais ou elementos da cultura em grandes áreas (WAGNER e MIKESELL, 2003, p. 32). Em termos geográficos, uma área cultural pode constituir uma região, forma uma unidade definível no espaço, caracterizada pela relativa homogeneidade interna com referência a certos critérios. A associação típica de características geográficas concretas numa região ou em qualquer outra subdivisão espacial da superfície terrestre pode ser descrita como paisagem.

A paisagem, em seu conjunto, reúne esses fatores e adiciona a possibilidade de valores expressivos e de significação cultural, os mesmos podem compreender conteúdos estéticos e conotações significativas, havendo se constituído como um tema de inspiração para o homem.
Para Nassauer (1995), a cultura e a paisagem interagem em uma constante realimentação, na qual a cultura estrutura as paisagens e as paisagens incorporam a cultura. Há, por conseguinte, um feedback, em que a percepção do meio, através dos filtros da cultura, determina valores paisagísticos que são atribuídos a uma paisagem, que, por sua vez, podem ser modificados se houver uma mudança na paisagem. Essa dinâmica a ajuda explicar a estrutura da paisagem de duas maneiras: primeiro como um efeito da cultura, segundo como um produto das mudanças culturais.

Toda a paisagem somente é paisagem, quando é vista, sentida e percebida. Não podemos lembrar ou descrever alguma paisagem que nunca tenhamos visto, mesmo por intermédio de algum artifício (filme, fotografia, desenho, pintura, etc.). Então, a paisagem somente existe na relação do homem com o meio. E essa relação é sempre repleta de significados que são influenciados pela cultura de um determinado lugar e seu povo. Nesse caso, os estudos da paisagem como texto podem descrever os significados da ação humana sobre o processo histórico de sua formação e sua percepção..

Pode-se comparar a percepção da paisagem a um sistema de "filtros" e relacionar esses filtros como se fossem a lente de uma câmara fotográfica. Tenta mostrar que a significação individual da paisagem depende de múltiplos fatores, dentre eles estão os culturais.

Cada indivíduo tem a sua concepção a respeito da paisagem e, sendo o indivíduo parte de uma sociedade que tem sua cultura distinta, cada cultura tem, então, o seu ideal de paisagem. E essa paisagem vai também refletir esse ideal, que juntamente com outros fatores vão influenciar na percepção da paisagem. Assim, qualquer estudo dessa natureza que não inclua a questão cultural em sua análise poderá resultar incompleto, sem um componente indispensável: o homem e a sua ação no espaço.

Assim, é importante que se inclua nesses estudos da interação homem/meio, sociedade/natureza, o estudo das paisagens culturais, pois essas consideram não apenas os atores, mas também as ações que elaboraram e continuam a elaborar as paisagens (WAGNER e MIKESELL, 2003, p. 46).

Hoje em dia, não se pode negar a relação entre cultura e urbano. Mas, nem sempre foi assim, pois até, ao final da década de 1960, não era esse o "objeto" de estudo dos geógrafos, que se debruçavam sobre as pesquisas relacionadas ao urbano. Somente a partir do início dos anos 70, começa a se entender essa imbricação. Segundo Corrêa (2003, p. 167),
"o urbano pode ser analisado sobre diversas dimensões que se interpenetram. A dimensão cultural é uma delas. Por seu intermédio amplia-se a compreensão da sociedade em termos econômicos, sociais e políticos, assim como se tornam inteligíveis as espacialidades e temporalidades expressas na cidade, na rede urbana e no processo urbano".

Sendo assim, os geógrafos passaram a perceber a dimensão cultural do urbano, em que essa relação passa a ser mais valorizada e problematizada, coincidindo com "as transformações em curso na sociedade, que se torna mais urbana e multicultural[...]" (CORRÊA, 2003, p. 168).

O urbano está repleto de significações culturais, desde a forma de organização e de uso do solo, nas suas materialidades, que são expressas em suas construções (ruas, casas, avenidas, edifícios, praças, parques, monumentos, etc.) ou nas suas relações econômicas e sociais, redes técnicas e informacionais (SANTOS, 2002, p. 263). Pode-se dizer também que a cidade abriga atualmente um contigente majoritário da população, e os interesses individuais são contraditórios. No espaço urbano, os diferentes interesses, relacionados à ocupação e uso do solo, estão repletos dessas contradições (CARLOS, 2005, p. 42). Santos (2002 p. 78) diz que "através do trabalho, o homem exerce a ação sobre a natureza, isto é, sobre o meio, ele muda a si mesmo, sua natureza intima, ao mesmo tempo em que modifica a natureza externa". E como a paisagem é a materialização do processo relacional homem/meio, a paisagem urbana tem, sem dúvidas, esse significado.

Corrêa (2002, p. 175) diz que, mesmo não se encerrando as possibilidades temáticas, as relações entre cultura e urbano podem se manifestar de diferentes modos. Mas ele relaciona aqui três dessas manifestações. Primeiro, a toponímia e identidade que, segundo Corrêa, "constitui-se em relevante marca cultural e expressa uma efetiva apropriação do espaço por um dado grupo cultural" (p. 176). Segundo, a cidade e a produção de formas simbólicas, "sendo que, em parte, por meio das formas simbólicas é que a cidade expressa uma dada cultura e realiza o seu papel de transformação cultural" (p. 177). E, em terceiro, a paisagem urbana e seus significados, sendo esta que "constitui-se em importante temática, tendo atraído a atenção dos geógrafos[...]" (p. 179).

Até a década se 1960, o foco central dos estudos da paisagem estava na sua morfologia, sendo a contribuição de Sauer, em seu artigo, já referido, The Morfology of Landscape, uma das mais importantes nesse sentido. A partir do final da década de 1970, Corrêa (2003, p. 179) sublinha que diversos autores, entre eles Meinig (1979), introduzem, nos estudos da paisagem, a interpretação. Assim, pode-se dizer que, a paisagem urbana é um campo rico para a interpretação, permitindo "múltiplas leituras a partir de diversos contextos históricos-culturais, envolvendo diferenças sociais, poder, crenças e valores". Portanto, a paisagem urbana é repleta de signos e símbolos, e seus significados podem ter inúmeros sentidos.

Partindo-se do pressuposto que a paisagem urbana é o produto e a materialização do trabalho social, ela está profundamente impregnada de relações sociais e conflitos (CORRÊA, 2003, p. 181), e é constantemente ressignificada, para que possa viabilizar a circulação do capital. Na paisagem urbana, evidenciado, dessa forma, um valor simbólico, "repositório de símbolos de classes sociais e de herança étnica". Essa dialética está presente nas diferenças das paisagens urbanas, tanto internamente, nas zonas residenciais populares e de classes mais abastadas, "que se justapõem, superpõem, contrapõem no uso da cidade" (SANTOS, 2002, p. 326), quanto externamente, nas diferenças entre as cidades. Assim, os diferentes grupos sociais, que ocupam áreas distintas das cidades e/ou cidades diferentes, vão produzir, de acordo com o seu modo de vida e de ocupação do solo, diferentes formas e diferentes paisagens no espaço urbano. Essas diferentes paisagens serão percebidas de inúmeras maneiras e com distintos significados, pois cada indivíduo "enxerga" a paisagem através dos seus "filtros", dentre os quais o filtro da cultura.

A água na paisagem urbana

Nas áreas urbanas, a percepção da água na paisagem tende a ser mais intuitiva e/ou subjetiva, pois o processo de urbanização que ocorre na maioria das cidades brasileiras e no mundo tratou de canalizar e esconder os cursos d’água, que geralmente servirão para escoar o esgoto de seus moradores e das indústrias ali instaladas. E, ao adotar a premissa de que as paisagens urbanas se formam a partir das relações entre as pessoas, o território e os processos naturais, podemos dizer que são paisagens culturais, transformando-se no tempo e no espaço. Essa transformação tende, em muitos casos, a não levar em consideração a relação homem/natureza. Para Costa (2002), "tem-se que destacar a importância do design paisagístico , da percepção e acessibilidade pública aos seus rios". A acessibilidade também pode ser obtida através da visibilidade da paisagem, pois, como essa autora, acreditamos que o acesso visual propicia um comportamento ambientalmente responsável em relação à água no espaço urbano.

Nas cidades, devido a efetiva impermeabilização dos solos pela ocupação imobiliária, pelas vias de transporte e pelo material utilizado nas canalizações, há pouca ou nenhuma realimentação do lençol freático e dos cursos d’água pela chuva, transformando-os exclusivamente em redes de esgotos. No atual processo de urbanização, a característica natural da rede de drenagem é totalmente modificada, assim como a vegetação natural é degradada ou suprimida, o relevo alterado e, até mesmo, a relação do homem com o seu meio sofre influência desse processo.

Somente nas periferias das cidades é que ainda existem redes de drenagem não canalizadas. Mas, nesses locais, os pequenos cursos d’água, sofrem com o despejo contínuo de esgotos e lixo, decorrentes da "quase total inexistência de uma política de uso e ocupação do solo" (RANGEL, 2002, p. 20).

Nas periferias das cidades, onde ocorre a expansão urbana, esta se dá, em grande parte, em áreas impróprias ou de forma inadequada, tendo-se como conseqüência inúmeros problemas ao meio físico, à própria população assentada e aos poderes públicos responsáveis pelos serviços de infra-estrutura nessas áreas.

Tem-se como premissa a ser estudada que as populações desses locais dificilmente percebem os problemas ambientais de onde vivem e não têm consciência de que são responsáveis por esse ambiente, pois estão demasiadamente envolvidas na sua própria subsistência. Essas populações sofrem com a degradação ambiental, mas já estão "acostumadas" ao lugar. A sua paisagem já foi totalmente modificada. O solo, a vegetação e, principalmente, a água já estão seriamente comprometidos.

É preciso entender como se dá o processo de percepção da paisagem pelas populações locais e, principalmente, a percepção da água na paisagem. É importante entender como os diversos grupos sociais a percebem e como é a sua relação com os conflitos inseridos no seu espaço. Pois, para se efetuar qualquer estudo geográfico a respeito da percepção da paisagem, visando a implementação de medidas mitigadoras ou de reorganização do espaço urbano e de ocupação territorial, tem-se que entender como é que as pessoas sentem e entendem o lugar em que vivem, se esperam alguma mudança e quais as mudanças que querem que sejam implementadas para melhorar a sua qualidade de vida.

Não se pode tratar dos impactos ambientais relacionados a qualidade dos recursos hídricos em áreas urbanas de forma isolada. A comunidade científica tem por cacoete compartimentar o estudo da água. No entanto, "a água precisa ser pensada enquanto inscrição da sociedade na natureza, com todas as contradições implicadas no processo de apropriação da natureza pelos homens e mulheres por meio das relações sociais e de poder" (PORTO-GONÇALVES, 2004, p.152). Segundo este autor, "o ciclo da água não é externo à sociedade ele a contém com todas as suas contradições".

O presente processo de intensificação da urbanização da sociedade afeta cada vez mais os corpos d’água e a sua qualidade, assim como implica uma maior demanda por água. Essa contradição é motivo de conflitos de uso. A final, "um habitante urbano consome em média três vezes mais água do que um habitante rural" (p.153). Outro ponto a ser destacado é que a água está sendo trazida de mananciais cada vez mais distantes, pois as fontes para o abastecimento nos grandes centros estão inviabilizadas pela crescente poluição.

Mas, como se pode, através do estudo da percepção da paisagem, saber que um dos seus elementos, nesse caso a água, está degradado? E como é que a população pode, através de sua percepção, propor melhorias na qualidade do espaço urbano e da água na paisagem?

Propõe-se então, como referencial para os estudos que pretendam avaliar a percepção da água na paisagem urbana, a comparação entre a percepção da paisagem e da água na paisagem pela população local, com as análises físico-químicas dos cursos d’água. Desta maneira, pode-se saber como está a saúde da rede hídrica na realidade e, de outra forma, como é percebida esta realidade pela população. Assim então, a partir dessa comparação, se terá subsídios para futuras intervenções na paisagem urbana, que tenham o objetivo qualifica-la, assim como qualificar as paisagens onde a água está inserida.

Referências bibliográficas

BERINGUIER, C. e BERINGUIER, P. (1991). Manieres paysageres une methode d’etude, des pratiques. In: GEODOC.Toulouse: Univesité de Toulouse. p. 5-25.
BERQUE, A. (1998). Paisagem-marca, paisagem-matriz: elementos da problemática para uma geografia cultural. In: CORRÊA, R. L. e ROSENDAHL, Z. Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro: Ed. UERJ. p. 84-91.
BERTRAND, G. (1968). Paysage et géographie physique globale. Esquisse méthodologique. In: Toulouse: Revue géographique des Pyrénnées et du SO, 39(2), p.249-72.
CARLOS, A. F. A. (2005). A cidade. São Paulo: Contexto. 98 p.
CORRÊA, R. L. e ROSENDAHL, Z. (1995) Espaço e Cultura. Rio de Janeiro: ed.uerj/ NEPEC. p.
_________. e _________. (Orgs.). (2002) Introdução à Geografia Cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 224 p.
CORRÊA, R. L. (2003) O espaço urbano. São Paulo: Ática. 94 p.
COSGROVE, D. E. e JACKSON, P. (2003.) Novos rumos da Geografia Cultural In: Introdução à Geografia Cultural. CORRÊA, R. L. e ROSENDAHL, Z. (Orgs.) Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 224 p.
COSTA, L. M. (2002). Rios Urbanos e Valores Ambientais. In: Projeto do Lugar. Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria /PROARQ.
HUOAISS. A. (2007). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva. 3008 p.
LEFF, H. (2006) Racionalidade ambiental: a reapropriação social da natureza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 555 p.
NASSAUER, J. I. (1995). Culture and changing landscape estructure. In: Landscape Ecology v. 10 n. 4 p. 229-237, Amsterdam: SPB Academic Publishing bv.
PORTO-GONÇALVES, C. W. (2004). O desafio ambiental. Rio de Janeiro: Record. 179 p.
RANGEL, M. L. (2002). A influência da Ocupação Urbana na Qualidade da Água da Barragem Mãe D’Água. Trabalho de Graduação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 69 p.
SANTOS, M. (2002). A natureza do espaço: Técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp. 384 p.
WAGNER, P. e MIKESELL, M. (2003). Temas em geografia cultural. In: Introdução à Geografia Cultural. CORRÊA, R. L. e ROSENDAHL, Z. (Orgs.) Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 224 p.