sábado, 25 de julho de 2015

Novo endereço da Terra: “Sistema Solar, Via Láctea, Laniakea”





Superaglomerado Laniakea com cores que representam a densidade - vermelho para densidades elevadas e azul para buracos - áreas com relativamente pouca matéria. Galáxias individuais são mostradas como pontos brancos. Velocidades dos fluxos gravitacionais dentro da região são mostrados como linhas brancas. A região tem a massa de 100 quatrilhões de sóis. A Via Láctea está marcada pelo ponto preto no centro da imagem. Crédito: SDVision Interactive Visualization Software por DP do CEA/Saclay, França.

Artigo traduzido de Nature. Autor: Elizabeth Gibney.
Análise de galáxias mostra que o superaglomerado local é 100 vezes maior do que se pensava anteriormente.
O superaglomerado de galáxias que inclui a Via Láctea é 100 vezes maior em volume e massa do que se pensava, uma equipe de astrônomos afirma. Eles mapearam a enorme região e deram o nome de Laniakea – “céu imensurável” em havaiano.
As galáxias tendem a se amontoar em grupos chamados aglomerados; regiões onde esses grupos estão densamente juntos são conhecidas como superaglomerados. Mas a definição destas estruturas cósmicas massivas é vaga.
O novo estudo, publicado na Nature, descreve uma nova maneira de definir onde um superaglomerado termina e outro começa. Uma equipe liderada por Brent Tully, um astrônomo da Universidade do Havaí, em Honolulu, traçou os movimentos das galáxias para inferir a paisagem gravitacional do universo local e redesenhar seu mapa.
Velocidade Cósmica
A equipe usou um banco de dados que compila as velocidades de 8000 galáxias, calculadas depois de subtrair a taxa média de expansão cósmica. “Todos esses desvios são devidos à atração gravitacional das galáxias, que vem da massa”, diz Tully. Os investigadores utilizaram um algoritmo para traduzir estas velocidades para um campo tridimensional de fluxo e densidade de galáxias. “Nós realmente não podemos pretender ter uma boa compreensão da cosmologia se não podemos explicar esse movimento”, diz Tully.

Duas visões do Superaglomerado Laniakea. A superfície externa mostra a região dominada pela gravidade de Laniakea. As linhas de corrente mostradas em traço preto são os caminhos pelos quais as galáxias fluem à medida que são puxadas para mais perto dentro do superaglomerado. Cores das galáxias individuais distinguem principalmente pelos componentes dentro do Superaglomerado Laniakea. Crédito: SDVision Interactive Visualization Software por DP do CEA/Saclay, França.
Duas visões do Superaglomerado Laniakea. A superfície externa mostra a região dominada pela gravidade de Laniakea. As linhas de corrente mostradas em traço preto são os caminhos pelos quais as galáxias fluem à medida que são puxadas para mais perto dentro do superaglomerado. Cores das galáxias individuais distinguem principalmente pelos componentes dentro do Superaglomerado Laniakea. Crédito: SDVision Interactive Visualization Software por DP do CEA/Saclay, França.
Este método é superior a meramente mapear a localização da matéria, porque permite aos cientistas criar um mapa de regiões desconhecidas do Universo, diz Paulo Lopes, astrofísico do Observatório do Valongo, parte da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ele se baseia em detectar a influência das galáxias ao invés de vê-las diretamente.


Além disso, os movimentos das galáxias refletem a distribuição de toda a matéria, e não apenas o que é visível em nossos telescópios – incluindo a matéria escura.
Descontando a expansão cósmica, seu mapa mostra linhas de fluxo para baixo que as galáxias se arrastam sob o efeito da gravidade na sua região local (veja o vídeo [em inglês]). Com base nisso, a equipe define a borda de um superaglomerados como o limite em que essas linhas de fluxo divergem. De um lado da linha, galáxias fluem para um centro gravitacional; além disso, elas correm para o outro. “É como a água dividida em um divisor de águas, onde flui para a esquerda ou para a direita de uma altura de terra”, disse Tully.

Fronteiras no Espaço
Esta é uma forma completamente nova de definir superaglomerados. Os cientistas já colocaram a Via Láctea no Superaglomerado de Virgem, mas segundo Tully e colegas “por definição, a região torna-se apenas um apêndice de Laniakea, que tem de 160 milhões de parsecs (520 milhões de anos-luz) e contém a massa de 100 quatrilhões de sóis.
No entanto, é improvável que seja a palavra final sobre o que é um superaglomerado, diz Gayoung Chon, astrônomo do Instituto Max Planck de Física Extraterrestre, em Garching, Alemanha. Sua equipe trabalha com uma definição diferente, com base em superaglomerados sendo estruturas que um dia irão colapsar em um único objeto. Isso não vai acontecer com Laniakea, ela estima, porque algumas das galáxias dentro dele vão se afastar um do outro para sempre. “A definição que você usa realmente depende das perguntas que você quer fazer. Este último método é uma boa forma de mapear as estruturas de grande escala do Universo, mas não perguntam o que vai acontecer com esses superaglomerados eventualmente “, diz ela.
Embora o mapa seja abrangente sobre o universo em torno da Via Láctea, as suas medidas de distância tornam-se menos precisas e menos numerosas a medida que você se afasta, diz Lopes. Esta é atualmente a maior fonte potencial de erro da técnica, diz ele, mas acrescentar mais medidas das galáxias irá melhorar o mapa e poderia eventualmente ajudar os cientistas a rastrear totalmente o que está por trás do movimento do nosso grupo local de galáxias.
Fonte: http://www.universoracionalista.org

Esquerda/direita: manual do usuário




Carlos Zacarias de Sena Júnior



Responda rapidamente: o atual governo do Brasil é de esquerda ou de direita? Se você se confundiu na resposta, não se aborreça. Muito provavelmente a maioria dos que tentaram responder a pergunta, caso tenham pensado um pouco (o que certamente aconteceu, apesar da sugestão de que deveriam responder rápido), escolheu uma das alternativas, mas acrescentou uma conjunção adversativa no caminho.

Definir um governo ou um partido por suas posições políticas é, sem dúvida nenhuma, uma tarefa difícil, mas isso não é novidade. Dado o grau de subjetividade que a díade esquerda/direita permite, não seria impossível que aqueles que se situam à esquerda do governo venham a acusá-lo de práticas direitistas, do mesmo modo, seria improvável que à sua direita o governo não tenha adversários que apontam as suas práticas como esquerdistas. Não obstante, segundo Marx: “Assim como não se julga um indivíduo pela idéia que ele faz de si próprio, não se poderá julgar uma tal época de transformação pela mesma consciência de si; é preciso, pelo contrário, explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção”.[i] Ou seja, a “consciência não pode ser mais do que o ser consciente”,[ii] e ainda que estejamos num período de sobredeterminação política, é descendo do céu à terra que podemos começar a entender a realidade daquilo que se tem chamado de “onda conservadora” e “ofensiva das direitas”, como forma de tiramos as conclusões necessárias sobre o atual momento para sermos propositivos quanto ao futuro.[iii]

Os termos “esquerda” e “direita” são bastante imprecisos e insuficientes para definir os grupos contendores do presente, mas como muitos já entenderam, ainda permanece necessário identificar os projetos pelo seu conteúdo antitético e relacional, pelos compromissos que assumem, pelos adversários e inimigos que elegem e pelo lugar de classe que ocupam. Bandeiras e movimentos políticos podem ser classificados como conservadores ou progressistas e nem precisa de muito treino e conhecimento para saber que o fascismo é um movimento de direita, enquanto o socialismo é de esquerda. Mas poucos sabem que Mussollini, antes de se tornar Il Duce italiano foi editor do periódico Avanti! e militante do Partido Socialista, o mesmo de Antonio Gramsci. De outro lado, muito dificilmente Stalin encontraria unanimidade ao ser classificado como de esquerda, pelo simples fato de que muitas das bandeiras progressistas incorporadas pela Revolução de 1917 retroagiram a partir de sua ascensão ao poder em fins dos anos 1920.

Grosso modo, pode-se dizer que posturas políticas de direita são conservadoras, quando não reacionárias ou fascistas. Regra geral, a direita defende a propriedade privada dos meios de produção, inclusive o latifúndio, o liberalismo econômico, o não intervencionismo do Estado e a meritocracia. Direitistas são contra as políticas afirmativas, são contra a imigração (desde que não sejam eles os imigrantes!) e acham que o casamento deve se restringir a união de um homem com uma mulher. No que se refere aos conflitos recentes no Brasil, os direitistas defendem o porte de armas, a redução da maioridade penal e a pena de morte, embora nem todos assuma abertamente esta defesa por conta dos compromissos religiosos. Direitistas se identificam com a bancada BBB (Bíblia, Bala e Boi) e acham que bandido bom é bandido morto. São contra o aborto e o que chamam de “ideologias de gênero”, e ainda por cima temem que estejamos em vias de termos implantado no Brasil uma “ditadura gayzista” articulada pelo “bolivarianismo lulista” e pelo Foro de São Paulo.

Em determinadas épocas, os grupos de direita podem preconizar um Estado forte como forma de evitar a ascensão dos movimentos revolucionários, chamados por eles de “totalitários”. Vez por outra sepultam a limitada democracia burguesa em nome do que seria a salvaguarda da própria democracia diante do “totalitarismo de esquerda”. Na maior parte do tempo são apenas liberais, alguns são reacionários e por vezes todos se juntam contra os trabalhadores quando há algum grande ascenso revolucionário, tornando-se contrarrevolucionários. Na história, por vezes, épocas inteiras podem ser caracterizadas por reacionárias ou contrarrevolucionárias, como foram os anos 1930/1940, quando as ditaduras nazi-fascistas e governantes protofascistas ascenderam ao poder no rastro da derrota de inúmeras revoluções. Da mesma forma, as ditaduras militares da América Latina foram tipicamente de direita, funcionando como espécies de contrarrevoluções ou contrarrevoluções preventivas.

Do lado oposto, entre os grupos que podem ser chamados de esquerda e que são também tratados como progressistas, vemos o combate à propriedade privada dos meios de produção, a luta pela reforma agrária, a defesa da regulação do Estado na economia e o argumento pelo tratamento diferenciado para os setores mais vulneráveis da sociedade. Partidários da esquerda (“esquerdista” é um termo pejorativo desde que Lenin redigiu o texto Esquerdismo, doença infantil do comunismo, em 1921) defendem posturas comportamentais que valorizam as escolhas individuais, como o direito ao corpo e ao livre exercício da sexualidade. São favoráveis aos processos migratórios e acusam as mazelas do imperialismo e do capitalismo como elementos que provocam guerras e expulsam as populações de suas terras.

No que se refere aos temas da pauta política do Brasil, a esquerda é contrária à redução da maioridade penal e denuncia a criminalização dos movimentos sociais e das camadas mais pobres da sociedade. Enquanto isso, a esquerda defende o direito ao aborto, condena a homofobia e o machismo, denuncia o racismo e batalha pela descriminalização das drogas, apontando o tráfico e o genocídio da população negra como políticas desenvolvidas no interior do Estado burguês. Partidários da esquerda também podem defender os programas de renda mínima, mas creem tratar-se de uma política de transição.[iv] Ao mesmo tempo, a esquerda advoga pela suspensão do pagamento da dívida pública, enquanto aponta os juros e a prática do superávit primário como um dos nossos maiores problemas. Na história, governos surgidos de revoluções operárias e populares podem ser chamados de esquerda, mas, como dissemos, o curso da história comprovou que não é tão simples assim, pois as vezes correntes contrarrevolucionárias podem surgir de dentro da própria revolução, como foi o caso do stalinismo.

A origem e a definição dos termos “direita” e “esquerda” remontam a Revolução Francesa, quando defensores do aprofundamento da revolução e partidários do Antigo Regime se sentavam à esquerda e a direita do parlamento, respectivamente. Desde então, a díade vem sendo usada para explicar comportamentos, movimentos e épocas históricas. Não se tratam de termos simples, e obviamente que muitos podem não se identificar completamente com as posturas acima apontadas como de esquerda ou de direita. Haverá quem alegue que o autor dessas linhas foi excessivamente parcial, mas haveria como não sê-lo?

Os termos esquerda e direita são tão importantes nas discussões políticas que, de acordo com Norberto Bobbio, mesmo quando alguns refutam a sua validade, o fazem percebendo o significado de cada um. Ou seja, caso você não se identifique como sendo de esquerda ou de direita, é porque você tem alguma ideia que compartilha com a maioria das pessoas sobre o que vem a ser uma coisa e outra: “Como fazemos para dizer que tal objeto não é nem branco nem preto, se não temos a mínima ideia a respeito da diferença entre as duas cores?”[v]

Apesar de imprecisos, a díade esquerda e direita permanece válida, não há dúvidas, mas deve-se usar entendendo os riscos e compreendendo suas limitações. Foram apropriados por diversas correntes, muito embora não tenham sido utilizados muito frequentemente pelos marxistas que preferem classificar as posições de acordo com os interesses e posições de classe. Marx e Engels não usam os termos “esquerda” e “direita” para caracterizar os movimentos políticos do seu próprio tempo. Apesar disso, como parece óbvio, distinguiam bem o que era progressivo e regressivo. Os bolcheviques, por seu turno, só se referiam a “direita” ou “esquerda” quando tratavam das disputas que atingiam o partido, entendendo que melhor do que usar expressões eivadas de subjetivismo, era classifica-las pela sua dimensão material. Muito raramente Lenin, Trotsky ou outro bolchevique classificam os movimentos por esta perspectiva relacional. Os inimigos dos bolcheviques, se eram das classes dominantes (aristocratas e burgueses), eram prioritariamente chamados pelos seus nomes, como aristocratas e burgueses. Em oposição às classes dominantes e suas frações, estavam os operários e camponeses (às vezes os pequenos burgueses das cidades). Militantes de organizações operárias adversárias dos bolcheviques eram tratados por “reformistas”, “conciliadores”, “economicistas”, “marxistas legais” e uma plêiade de nomenclaturas que buscavam precisar o adversário pelo termo exato do que eles objetidamente representavam. Apenas quando se referiam as disputas intestinas os bolcheviques citados usavam a denominação de “esquerda”, “direita” e “centro”, para caracterizar as querelas políticas abrigadas no partido.

Em todo caso, não se pode prescindir de termos que podem dar conta de uma parte da realidade, ainda que a explicação do todo prescinda de categorias de análise mais precisas e elaboradas, como as utilizadas por Marx e pelos marxistas mencionados acima. Por conta da importância dos termos relacionais para a política, podemos tomar a rápida definição de Jacob Gorender para explicar a esquerda e o seu oposto, a direita, já que, como sugere Bobbio, por se tratar de termos antitéticos, “são reciprocamente excludentes, e conjuntamente exaustivos”.[vi] Para Gorender, que adverte sobre a imprecisão do termo, mas apela para o seu significado cotidiano, presente na linguagem do jornalismo e na oratória, a definição de esquerda pode ser tomada aplicando-se “o conceito referencial de movimentos de ideias endereçadas ao projeto de transformação social em benefício das classes oprimidas e exploradas”.[vii] Por exclusão, direta deve ser entendida como seu exato-contrário.

Dito isso não estamos em melhor posição para concluirmos se o atual governo brasileiro é de esquerda ou de direita, pois ainda que se possa recordar das suas origens na esquerda, já que não se pode negar que o PT surgiu de um projeto de transformação gestado a partir das lutas empreendidas por diversos setores do proletariado dos anos 1970, não seria improvável que todos concordassem que o partido de Lula sofreu uma profunda transfiguração nas últimas décadas. Todavia, caso optássemos por chamar essa transfiguração de “transformismo” no sentido gramsciano do termo, muito dificilmente teríamos alguma unanimidade, isto porque esta intepretação redundaria em assumir que o PT sofreu em algum nível uma mudança objetiva do seu lugar de classe, com ainda maior repercussão no âmbito da política.[viii] O fato, entretanto, é que talvez fique mais fácil concluir que os trabalhadores, quando fazem greves e lutam por pautas que foram abandonadas pelos petistas (ao menos pelos petistas do governo), estão encampando um movimento de esquerda, mesmo que este governo tenha se originado pela esquerda. Em sentido contrário, quando milhares de pessoas saem às ruas gritando contra o governo, contra a corrupção e acusando o PT de tentar implantar uma “ditadura comunista bolivariana no Brasil”, ainda que arrastem consigo uma minoria de trabalhadores, devem ser caracterizados como de direita em função das suas pautas políticas.

Em pelo menos duas circunstâncias em 2015, milhares de pessoas foram às ruas em várias cidades brasileiras, empunhando bandeiras distintas. Pautas conservadoras e progressistas foram observadas em diversos atos. Categorias de trabalhadores que fizeram greves foram provocadas por muitas das direções e algumas centrais sindicais, a defender o governo petista. Na maioria das vezes se recusaram a cumprir este papel, deixando seus dirigentes sozinhos. Apesar das direções governistas que atuam nos sindicatos e movimentos sociais, a classe trabalhadora, quando se põe em movimento, tende a recobrar o sentido histórico das suas lutas e passa a acreditar nas suas próprias forças. Por conta disso muitas das lutas do Brasil recente se dão pela esquerda do governo e das direções sindicais.

Por seu turno, as várias frações da burguesia, que financiam partidos tipicamente de direita, como o DEM e o PSDB, e com origens na esquerda, como o PT e o PCdoB, procuram reestabelecer a direção política do presente, que lhe ameaça fugir ao controle, às vezes ensaiando algum tipo de golpismo. Isso não quer dizer que sejam sempre golpistas. Como foi dito, é, por vezes, com a “melhor das intenções democráticas” que fascistas e golpistas são forjados na história, mas a possibilidade de um golpe ser posto em movimento deve ser cuidadosamente analisado, embora nunca subestimado, porque há épocas em que as classes dominantes preferem a “reação democrática” através das eleições, evitando ao máximo o caminho do confronto, de resultado imprevisível.

Há sinais de que vivemos uma crise de hegemonia, porque a burguesia não tem sido capaz de imprimir uma estabilidade efetiva há alguns anos, de maneira que a alternativa frentepopulista do PT não representa muito mais do que uma espécie de hegemonia fraca, sempre sujeita às intempéries da realidade da luta de classes e da correlação de forças, que permanentemente se altera e é frequentemente ameaçada. Todavia, como sugerem Ruy Braga e Álvaro Bianchi, a crise de direção “atinge de maneira combinada, mas desigual, tanto a burguesia como o proletariado”, já que as classes subalternas ainda não construíram uma direção efetivamente capaz de se colocar diante das enormes tarefas do presente.[ix] Obviamente que a construção de um terceiro campo é o maior desafio para os partidos que estão na chamada “oposição de esquerda” ao governo do PT.

Enquanto nossas debilidades não são superadas, seguimos o caminho de recolha do que perdemos ao longo da estrada. Alguns dirão ser possível salvar o PT dele mesmo, empurrando o partido de Lula para a esquerda, de forma a resgatar o petismo das origens, o que significaria o abandono do lulismo e tudo o que ele significou, com suas crises de corrupção e esgotamento do projeto de conciliação de classes levado às suas últimas consequências na última década. Para estes, bastaria expulsar Levy do governo, restabelecendo as políticas anticíclicas dos últimos anos, e tudo voltaria a ser como antes. Outros insistirão na alternativa de ruptura pela esquerda, apontando os riscos do comprometimento com o projeto falido de conciliação levado à cabo pelo PT.

Para uns e outros, 2013 deu o sinal. Por seu lado, o instinto de sobrevivência das classes dominantes já acendeu o alerta. O ciclo está esgotado, e enquanto as direitas voltam a ocupar as ruas, coisa que não faziam desde as “Marchas de Família com Deus pela Liberdade”, de 1964, a esquerda precisa reagir, preparando o caminho para novas jornadas, como aquelas ocorrias em junho de 2013. Mas um novo Junho precisa necessariamente ser mais orgânico e a esquerda partidária deve envidar os maiores esforços para reestabelecer a frente única, com vistas a derrotar tanto as direitas tradicionais, quanto o governo. Porque só a alternativa da reorganização será capaz de permitir o protagonismo dos trabalhadores, ameaçado pelas classes dominantes e pelas novas e velhas direitas.

[i] MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Tradução Maria Helena Barreiro Alves. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983, p. 24.

[ii] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, p. 20.


[iv] O sentido da política de transição aqui descrito é aquele tomado do Programa de Transição de Leon Trotsky.

[v] BOBBIO, Norbert. Direita e esquerda. Razões e significados de uma distinção política. 3 ed. São Paulo: Edunesp, 2011, p. 31.

[vi] Id. Ibid., p. 49.

[vii] GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. 4 ed. São Paulo: Ática, 1990, p. 7.

[viii] Sobre o conceito gramsciano de transformismo e sua efetividade prática no PT, veja-se COELHO, Eurelino. Uma esquerda para o capital. O transformismo dos grupos dirigentes do PT. São Paulo: Xamã, Feira de Santana, UEFS Editora, 2012.

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Por que existe ser ser humano?

 
Existem pelo menos duas respostas para esta pergunta. Uma resposta religiosa é de que os seres humanos foram criados à imagem e semelhança de Deus. Você talvez queira ouvir uma resposta formulada com base em teorias científicas. Não sei se você vai ficar satisfeita com essa resposta, mas lá vai: a partir de uma perspectiva científica, não há necessidade de haver seres humanos. Os seres humanos são apenas animais como todos os outros, que, assim como existem, poderiam não existir.

Na biologia, há uma teoria que fala sobre isso. Essa teoria se chama evolução por seleção natural e foi formulada por um cientista inglês chamado Charles Darwin, que viveu no século XIX. A teoria da evolução por seleção natural é muito fácil de compreender. Em resumo, ao observar as variadas características de forma e comportamento dos seres vivos (que eram transmitidas de geração para geração), Darwin deduziu que, dependendo do ambiente, algumas características podem ser mais adaptativas do que outras, fazendo com que alguns indivíduos vivam mais ou se reproduzam mais.

Quer ver um exemplo? Na Inglaterra, existe um tipo de borboleta que pode apresentar duas cores: cinza ou preto. Essa borboleta se chama betulária, porque ela costuma pousar numa árvore de casca cinza que se chama bétula. Inicialmente, a maioria das borboletas era cinza. A cor cinza funcionava com uma excelente camuflagem. Assim, as borboletas cinza pousavam sobre as árvores cinza e não eram vistas pelos seus predadores, os pássaros. Mas as borboletas pretas se destacavam, eram mais facilmente comidas pelos pássaros e existiam em menor número na população.

Até que, com o aumento do número de indústrias, a fuligem das fábricas foi se depositando nas cascas das árvores, fazendo com que elas ficassem pretas. Com isso, as borboletas cinzas ficaram em desvantagem e seu número diminuiu. As bétulárias pretas, por sua vez, conseguiram se esconder dos pássaros predadores, sobreviveram e se reproduziram, aumentando assim seu número na população.

Então, os seres humanos existem porque o cruzamento de seus ancestrais deu origem ao ser humano que existe hoje. Pela teoria da evolução, não havia “necessidade” de surgirem os seres humanos, assim como não havia necessidade de surgirem muitas borboletas pretas. A nossa espécie poderia ter surgido ou não. Mas ela surgiu e permanece até hoje... 
Fonte: http://www.universidadedascriancas.org/perguntas/resposta.php?id=137

ECA: cumprir antes de modificar

Newton Lima Neto
Engenheiro químico, Político de São Carlos
Agnaldo Soares Lima
Padre salesiano, Presidente do CMDCA - São Carlos

O exemplo de São Carlos, que reduziu os homicídios praticados por adolescentes, mostra que o ECA deve ser aplicado, e não modificado.
Como seria dizer que um remédio não é bom para uma doença ou, ainda, que é necessário dar uma dose maior para que ele produza o seu efeito antes mesmo que ele tenha sido administrado ao doente? Essa é a imagem que deveria vir às nossas cabeças quando se fala em mudança do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) ou em redução da idade penal.
Nem bem colocamos em prática os princípios contidos nessa lei, de 1990, nem experimentamos executar suas proposições pensadas e discutidas por quem atua na área e somos interpelados por aqueles que apenas a conhecem pelo "ouvi dizer" e, sob clima de comoção, querem propor mudanças ou estabelecer critérios mais duros na sua aplicação.
Solidarizar-se com a tragédia e a barbárie vivida pelo pequeno João Hélio e sua família é o mínimo que se espera de um cidadão consciente. Indignação é, por certo, atitude ainda mais adequada. O que fazer, porém, diante de fatos como esse exige de nós uma reflexão séria e a busca de uma solução consistente. Para continuar na comparação acima, não é a receita que cura o paciente, mas a administração regular do medicamento.
O adolescente é impulsivo, imprevisível, ousado. Isso nós já conhecemos e sabemos que faz parte das suas qualidades e também está presente nos seus erros. Por não acreditar no impossível, ele é capaz de fazer malabarismos impensáveis sobre uma bicicleta, um skate ou um par de patins.
Bem orientado, é capaz de canalizar tais atributos para grandes realizações. O que vemos muitas vezes, porém, são oportunidades negadas e uma contínua exclusão. Excluído da família, da escola, do lazer, da profissionalização, do trabalho e, não raro, até da sociedade pelo seu modo irreverente de se vestir e de andar.
Negamos as oportunidades, os deixamos à mercê do consumismo e da mídia que banaliza a violência e os valores morais e, quando caminham em direção ao delito, mais uma vez o que nos ocorre é a violação do direito.
O ECA contempla a situação do jovem que errou e, pedagogicamente, propõe um itinerário que o ajude a se reorientar de forma positiva. Serviços comunitários, liberdade assistida e semiliberdade são oportunidades que devem levá-lo a refletir sobre sua conduta antes que tome gosto pelos enganos do mundo da criminalidade.
Salvo raras exceções, programas de medidas socioeducativas inexistem ou têm péssima qualidade. Não investimos na prevenção e queremos relegar a responsabilidade à internação.
Chame-se por qualquer nome (Degase, Febem, Caje etc.) esses centros que se regem pelas mesmas leis dos cárceres e presídios para adultos. Não será o tempo que os jovens permanecem neles que irá tirá-los do mundo da criminalidade. Serão as oportunidades oferecidas e o que fizermos para que eles não precisem chegar lá.
São Carlos, no interior do Estado de São Paulo, vem apostando nessa fórmula. Em 2001, criou o NAI (Núcleo de Atendimento Integrado) e tirou do papel o art. 88, inciso V, do ECA. Começou a trabalhar na integração entre Estado e município, Judiciário, segurança pública, Ministério Público, assistência social, saúde, educação, ONGs e família. Uma ação ágil na intervenção junto ao adolescente autor de ato infracional, que se inicia a partir de pequenos desvios, que tem como centro da sua atenção a pessoa do adolescente, e não o delito praticado, tem trazido bons resultados.
A cidade, que em 1998 teve 15 homicídios praticados por adolescentes, viu cair este índice para no máximo dois por ano entre 2001 e 2005 e nenhum em 2006. O índice de reincidência de São Carlos fica em torno de 4%, contra uma média de 30% quando apenas há procedimentos convencionais de internação. Além disso, teve reduzido em 90% o número de internos na Febem quando comparado a municípios de igual porte.
A experiência, que busca sempre novos parceiros para melhorar ainda mais, é exemplo concreto de que o ECA precisa ser aplicado, e não modificado. Para multiplicá-la pelo país, basta vontade política de governantes, pois recursos financeiros não faltam -o interno da Febem, por exemplo, custa quatro a cinco vezes mais que um jovem atendido pelo NAI.
Além do mais, nenhum país resolveu o problema pelo endurecimento das leis. Reduzir a idade penal é ilusório, inócuo e contraproducente. Investir em educação, oportunidades e atenção é mais barato, eficiente e humano.

Artigo publicado na Folha de São Paulo, de 26 de fevereiro de 2007
[Fonte: Folha de São Paulo - Folha OnLine]

A Maioria e a maioridade penal

Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini - Doutores em Direito Penal
 A tese da redução da maioridade penal (hoje fixada em dezoito anos), embora conte com apoio da maioria da população (pesquisa Datafolha de 2006 - FSP, 13 ago 06, indicava que 84% da população defendia a redução da maioridade penal), é incorreta, insensata e inconseqüente. Mas também é certo que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não é razoável quando fixa um único limite máximo de internação (três anos) como regra geral (e inflexível), válida para todas as situações. Essas duas posturas extremadas (redução da maioridade versus inflexibilidade do ECA) devem ser evitadas.
Embora tenha forte aclamação popular, a proposta de redução da maioridade penal para 16 anos ou menos deve ser refutada, em razão, sobretudo, do seguinte: (a) da sua ineficácia e insensibilidade; (b) da sua impossibilidade jurídica e (c) do fato de que são poucos os delitos violentos que envolvem os menores. Vejamos:
(a) se os presídios são reconhecidamente faculdades do crime, a colocação dos adolescentes neles (em companhia dos criminosos adultos) teria como conseqüência inevitável a sua mais rápida integração nas organizações criminosas. Recorde-se que os dois grupos que mais amedrontam hoje o Rio de Janeiro e São Paulo (Comando Vermelho e PCC) nasceram justamente dentro dos presídios.
(b) do ponto de vista jurídico é muito questionável que se possa alterar a Constituição brasileira para o fim de reduzir a maioridade penal. A inimputabilidade do menor de dezoito anos foi constitucionalizada (CF, art. 228). Há discussão sobre tratar-se (ou não) de cláusula pétrea (CF, art. 60, § 4.º). Pensamos positivamente, tendo em vista o disposto no art. 5.º, § 2.º, da CF, c/c arts. 60, § 4.º e 228. O art. 60, § 4º, antes citado, veda a deliberação de qualquer emenda constitucional tendente a abolir direito ou garantia individual.
Recorde-se, de outro lado, que os direitos e garantias individuais não se encontram exclusivamente no art. 5º da CF. Na ação direta de inconstitucionalidade 939, de 1993 (rel. Min. Sidney Sanches), o STF admitiu a existência de "princípios e normas imutáveis" fora do art. 5º da CF. Conclusão: nem sequer por emenda constitucional é possível alterar a idade da imputabilidade penal, porque se trata de direito individual fundamental relacionado com o desenvolvimento da personalidade humana.
(c) Dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo revelam que de janeiro a outubro de 2003 os menores participaram de apenas 1% dos homicídios dolosos, 1,5% do total dos roubos e 2,6% dos latrocínios. [nota 1]

Eca e menoridade
Mas uma coisa é a prática de um furto, um roubo desarmado etc., outra bem distinta é a morte intencional (dolosa), causada por um menor, especialmente quando ostenta requintes de perversidade. Para o ECA, entretanto, tudo conta com a mesma disciplina, isto é, em nenhuma hipótese a internação do infrator (que é medida sócio-educativa voltada para sua proteção e também da sociedade) pode ultrapassar três anos (ou sobrepor a idade de 21 anos).
Casos chocantes e aberrantes como os que vêm ocorrendo nos últimos tempos no nosso país não deveriam nunca conduzir, de qualquer modo, a um perigoso e eletrizante clamor popular e/ou midiático, que emocional e desesperadamente propugna pela adoção de medidas radicais e emergenciais, como se fosse imprevisível e inesperada a violência juvenil.
Esses agudos e críticos momentos exigem, na verdade, maior ponderação, mesmo porque de medidas "salvadoras" e pouco eficazes (como foi e é a lei dos crimes hediondos, por exemplo) todos já estamos exaustos. Uma nova alteração legislativa seria mais um engano e mais uma fraude que promete solução para todos os males decorrentes do estado de violência endêmica, mas que na verdade nunca resolve praticamente nada.
Com o advento da Convenção da ONU sobre os direitos da criança [nota 2], que foi subscrita por mais de 180 países (incluindo o Brasil), não há dúvida que se transformou em consenso mundial a idade de 18 anos para a imputabilidade penal. Mas isso não pode ser interpretado, simplista e apressadamente, no sentido de que o menor não deva ser responsabilizado pelos seus atos infracionais.
No imaginário popular brasileiro difundiu-se equivocadamente a idéia de que o menor não se sujeita a praticamente nenhuma medida repressiva. Isso não é correto. O ECA prevê várias providências sócio-educativas contra o infrator (advertência, liberdade assistida, semiliberdade etc.). Até mesmo a internação é possível (e "internação" nada mais significa que "prisão"), embora regida (corretamente) pelos princípios da brevidade e da ultima ratio (última medida a ser pensada e adotada). A lei concebe a privação da liberdade do menor, quando se apresenta absolutamente necessária.
Não é preciso, evidentemente, chegar à solução do Direito penal italiano, que admite a imputabilidade penal acima dos 14 anos, conforme se constate concretamente (em cada caso) que o menor tinha capacidade de querer e de entender (CP italiano, art. 97) [nota 3]. Não parece aceitável, de outro lado, remeter o menor para o Código Penal; muito menos transferi-lo para os cárceres destinados aos adultos quando completa dezoito anos. Não basta, ademais, para se adotar medidas mais contundentes, a mera grave ameaça à pessoa (que faz parte da essência do roubo). Para isso o ECA já prevê a internação. Moderação e equilíbrio é o que se espera de toda medida legislativa.
Mas ao menor com grave desvio de personalidade e que tenha causado a morte intencional e violenta de alguma pessoa não parece haver outro caminho senão o do tratamento adequado, nos termos dos §§ 4º e 5º abaixo sugeridos, que deveriam ser agregados ao art. 112 do ECA. Com isso se conclui que, quando absolutamente necessário e razoável, devem ser extrapolados os limites de três anos de internação ou dos 21 anos de idade.
A proposta de alteração legislativa no ECA que estamos formulando, de qualquer maneira, embora possa ser tida como razoável, não é de modo algum suficiente, para solucionar a violência que se expande pelo país. Faltam investimentos e decisões políticas e sociais que possam proporcionar ao jovem pautas de valores aceitáveis. Resta sempre saber até quando estamos dispostos a pagar com nossa vida a negligência de toda a sociedade brasileira para com o problema do "menor".

Proposta de alteração legislativa no ECA
O ECA, no seu art. 112, cuida da enumeração das medidas sócio-educativas cabíveis contra o adolescente que pratica ato infracional. No seu § 3º diz: "Os adolescentes portadores de doença ou deficiência mental receberão tratamento individual e especializado, em local adequado às suas condições".
Esse dispositivo legal não conta com clareza suficiente para alcançar situações em que o adolescente, cometendo crime violento e intencional, revele total insensibilidade frente à vida humana. Dois novos parágrafos deveriam ser agregados ao citado art. 112, para melhor disciplina do assunto:
"§ 4º Os adolescentes que venham a ser responsabilizados pela morte intencional consumada ou tentada de alguma pessoa e que revelarem grave desvio de personalidade, constatado em laudo pericial fundamentado, estarão sujeitos a tratamento individual, especializado e multidisciplinar".
"§ 5º O tratamento previsto no parágrafo anterior terá duração máxima de dez anos ou terminará antes desse prazo quando laudo médico, psicológico ou psiquiátrico, que deve ser renovado de ano em ano ou quando houver determinação judicial, atestar a cessação do grave desvio de personalidade".

Direito penal emergencial e simbólico
A alteração da legislação penal em momentos de aguda crise popular (e midiática) tende a não atender os fins legítimos do Direito penal (de proteção fragmentária e subsidiária de bens jurídicos relevantes). Ao contrário, sempre retrata uma legislação penal simbólica e de emergência.
Conceber a norma e a aplicação do Direito penal sob a égide de uma função puramente simbólica significa inegavelmente atribuir-lhe um papel "pervertido", porque um Direito penal simbólico relega a eficaz proteção de bens jurídicos em prol de outros fins psicossociais que lhe são alheios. Não visa ao infrator potencial, para dissuadi-lo, senão ao cidadão que cumpre as leis, para tranqüilizá-lo, para acalmar a opinião pública.
Um Direito penal com essas características carece de legitimidade: manipula o medo do delito e a insegurança, reage com um rigor desnecessário e desproporcionado e se preocupa exclusivamente com certos delitos e determinados infratores. Introduz um exagerado número de disposições excepcionais, sabendo-se do seu inútil ou impossível cumprimento e, a médio prazo, traz descrédito ao próprio ordenamento, minando o poder intimidativo de suas proibições.
Exigir ou supor que esse meio de controle social (o Direito penal) possa cumprir funções para além do que sua atribuição social permite, pode significar a exacerbação do seu papel simbólico, com o grave risco de perda de suas reais possibilidades.
Como corretamente advertem Hassemer e Muñoz Conde, "a explosiva mescla de grandes ‘necessidades de atuação’ social, de fé quase cega na eficácia dos meios jurídico-penais e dos deficits enormes que logo têm esses instrumentos quando se aplicam na realidade, pode fazer surgir o perigo de que o Direito penal viva da ilusão de solucionar realmente seus problemas, o que a curto prazo pode ser gratificante, mas a largo prazo é destrutivo". [nota 4]
Particularmente quando a política assume a forma de espetáculo (a expressão é de Zaffaroni), "as decisões orientam-se não tanto no sentido de modificar a realidade, senão no sentido de modificar a imagem da realidade nos espectadores: não tanto a satisfazer as reais necessidades e a vontade política dos cidadãos senão a seguir a corrente da chamada opinião pública [...]. O déficit da tutela real de bens jurídicos é compensado pela criação, no público, de uma ilusão de segurança e de um sentimento de confiança no ordenamento e nas instituições que tem uma base real cada vez mais escassa: com efeito, as normas continuam sendo violadas e a cifra negra das infrações permanece altíssima enquanto as agências de controle penal seguem [iludindo] com tarefas instrumentais de impossível realização". [nota 5]
O uso desvirtuado do Direito penal vem se acentuando nos últimos anos. A mídia retrata a violência como um "produto espetacular" e mercadeja sua representação. A criminalidade (e a persecução penal), assim, não somente possui valor para uso político (e, especialmente, para uso "do" político), senão que é também objeto de autênticos melodramas cotidianos que são comercializados com textos e ilustrações nos meios de comunicação. São mercadorias da indústria cultural de massa, gerando, para se falar de efeitos já aparentes, a sua banalização e a da violência.
Para citar exemplo de emprego eleitoreiro do Direito penal recorde-se que o legislador brasileiro, sob os efeitos do "escândalo dos remédios falsos", não teve dúvida em reagir imediatamente: elaborou primeiro a Lei 9.677/98, para alterar o marco penal de diversas condutas relacionadas com o tema (a falsificação de remédio agora é sancionada com pena mímima de dez anos de reclusão. Por meio do mesmo diploma legal, outras condutas não tão graves, como a falsificação de creme para alisar o cabelo, passaram a receber a mesma punição). Depois, publicou-se a Lei 9.695/98, para transformar diversos desses delitos em "hediondos" (o que, desde aquela outra lei, já se almejava, mas que, por defeito de técnica legislativa, não se conseguiu). Em lugar de providências administrativas eficazes, para a prevenção da falsificação, privilegiou-se a edição de uma nova lei penal (considere-se que, na ocasião, estava-se na iminência de eleições presidenciais). Impressiona o fato de a lei ter sido proposta e aprovada em quarenta e oito horas.

Conclusão
Se todos os dados da Coordenadoria de Análise e Planejamento da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo revelam, desde 2001, uma diminuta participação dos menores nos crimes violentos, sabe-se desde logo que a redução da maioridade penal não viria a diminuir nossos índices de violência, que são protagonizados pelos agentes maiores de dezoito anos. Eventual mudança na legislação brasileira, se fosse possível constitucionalmente, no que diz respeito à idade da imputabilidade penal, só teria mesmo o caráter de um Direito penal emergencial e simbólico. Pouca ou nenhuma eficácia prática apresentaria. Daí nosso posicionamento contrário à redução da maioridade penal.
Mais isso não significa que os crimes violentos cometidos pelos menores, com requintes às vezes de crueldade inusitada, sejam regidos inflexivelmente pela atual legislação do ECA. Somos favoráveis a uma ampliação do tempo de permanência desse infrator nos estabelecimentos adequados à sua faixa etária. Alterar os limites do ECA (três anos de internação e vinte e um anos de idade) é a providência legislativa mais sensata neste momento. Dessa forma, estaria o legislador brasileiro respeitando os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil no sentido de manter a idade da imputabilidade penal em dezoito anos, tendência que se consolida no mundo democrático. Nosso maior problema, como concluiu Gilberto Dimenstein (Folha de S. Paulo de 25.02.07, p. C9), "não é de maioridade penal, mas de menoridade dos adultos". [nota 6]

 
Notas do texto:
1 Gilmar Penteado, "Menor participa de 1% dos homicídios em SP", Folha de S. Paulo, 1 de janeiro de 2004, pág. C3.
2 Convenção Sobre os Direitos da Criança, adotada pela Resolução I.44 (XLIV), da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20.11.1989. Aprovada pelo Decreto Legislativo 28, de 14;09.1990, e promulgada pela Decreto 99.710, de 21.11.1990. Ratificada pelo Brasil em 24.09.1990.
3 Este mesmo texto pode ser encontrado na internet com uma redação diferente, no início deste parágrafo, de forma mais genérica: "Não é preciso, evidentemente, chegar à solução dada por alguns países no sentido de punir o menor como se fosse um maior". (Nota desta edição)
4 HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. La responsabilidad por el producto en Derecho penal, Valença: Tirant lo Blanch, 1995, p. 33.
5 BARATTA, Alessandro. Funciones instrumentales y simbólicas del Derecho penal: una discusión en la perspectiva de la Criminología crítica. Pena y Estado, Barcelona: Promociones y Publicaciones Universitarias, n. 1, p. 53, set./dez. 1991.
6 Cf. DIMENSTEIN, Gilberto, que evocou a história pessoal de Expedito Resende, um cearense, Professor de engenharia química da Universidade Federal do Ceará, que descobriu o biodiesel, desenvolveu o "bioquerosene" (novo combustível para avião, extraído do óleo de babaçu), criou a "vaca mecânica" (para produção do leite de soja) etc. e que é filho de José Parente que, com doze anos de idade, deixou sua Sobral, rumo à Fortaleza, para ganhar a vida e ensinar que "o gosto pelo conhecimento é a melhor herança que posso deixar".
 
Informações bibliográficas:
Conforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOMES, Luiz Flávio. A Maioria e a maioridade penal. Clubjus, Brasília-DF: 30 jul. 2007. Disponível em: http://www.clubjus.com.br/?artigos&ver=2.1669&hl=no. Acesso em: 03 jul. 2009.
Sobre os autores:
Alice Bianchini é Doutora em Direito Penal pela PUC/SP, Mestre em Direito pela UFSC, Professora do Curso de Mestrado em Direito da UNISUL; é membro da Diretoria do Instituto Panamericano de Política Criminal – IPAN e Coordenadora Geral dos Cursos de Especialização Telepresenciais e Virtuais da Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes – Rede LFG.
Luiz Flávio Gomes é Doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito penal pela USP, Secretário-Geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), Consultor e Parecerista, Fundador e Presidente da Rede LFG - Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes.

Redução da idade penal: solução ou ilusão? Mitos e verdades sobre o tema

 

Por Murillo José Digiácomo

Promotor de Justiça do Ministério Público
do Estado do Paraná

1 - MITO:
Os adolescentes não respondem por seus atos perante a sociedade e a Justiça, estando acobertados por uma espécie de "imunidade", sinônimo de "impunidade";
   - VERDADE:
Os adolescentes, na forma da lei, já são devidamente responsabilizados por seus atos anti-sociais, sendo passíveis de SANÇÕES estatais que, apesar de tecnicamente não serem chamadas de "penas" (são conhecidas por "medidas sócio-educativas"), extrinsecamente a elas em muito se assemelham, e para o leigo com elas acabam se confundindo, como é o caso da medida de "prestação de serviços à comunidade", que tem até o mesmo nome que uma pena destinada a adultos prevista na lei penal e das medidas de "inserção em regime de semiliberdade" e "internação", que importam na restrição e privação de liberdade (respectivamente), e quanto ao regime de cumprimento equivalem às penas de detenção e reclusão para os adultos, vez que são aplicadas nos regimes semi-aberto e fechado respectivamente. Em muitos casos o tratamento dispensado a um adolescente pode ser mais rigoroso que aquele, em situação idêntica, a Lei Penal confere a um adulto, valendo lembrar que em TODOS os atos infracionais praticados por adolescentes a autoridade policial tem o DEVER DE AGIR, independentemente da provocação da vítima ou de seus representantes, ao passo que em relação a certos crimes praticados por adultos, como o ESTUPRO, a AMEAÇA, a LESÃO CORPORAL LEVE e o DANO, somente poderá agir se AUTORIZADA PELA VÍTIMA ou seus representantes que, em determinados casos (como - pasmen - o ESTUPRO), para ver o adulto infrator processado perante a Justiça terá de CONSTITUIR ADVOGADO e, às suas expensas, ingressar com ação penal privada. De acordo com o previsto no próprio Estatuto, a privação da liberdade do adolescente pode se estender por até 06 (seis) anos, sendo 03 (três) anos em regime de internação e outros 03 (três) anos em semiliberdade. Esta drástica solução, no entanto, é utilizada apenas em última instância, e sempre como MEIO de promover a recuperação do jovem (através de atividades educativas e profissionalizantes - que são obrigatórias nas unidades onde a medida é cumprida) e jamais como um fim em si mesma. Eventual inércia das autoridades (seja por desconhecimento, seja por pura indolência) não pode ser creditada à lei nem servir de pretexto para sua alteração, demandando apenas a orientação e/ou responsabilização dos omissos, por não estarem cumprindo DEVER funcional.

2 - MITO:
Os adolescentes são responsáveis por grande parte da violência praticada no País;
   - VERDADE:
Os adolescentes são responsáveis por MENOS DE 10% (DEZ POR CENTO) das infrações registradas, sendo que deste percentual, 73,8% (SETENTA E TRÊS VÍRGULA OITO POR CENTO) são infrações contra o patrimônio, das quais MAIS DE 50% (CINQÜENTA POR CENTO) são meros FURTOS (sem, portanto, o emprego de violência ou ameaça à pessoa), geralmente de alimentos e coisas de pequeno valor, que para o Direito Penal se enquadrariam nos conceitos de "furto famélico" e "crime de bagatela", impedindo qualquer sanção a adultos. Apenas 8,46% (OITO VÍRGULA QUARENTA E SEIS POR CENTO) das infrações praticadas por adolescentes atentam contra a vida (perfazendo cerca de 1,09 - UM VÍRGULA ZERO NOVE POR CENTO do total de infrações violentas registradas no País), sendo que, historicamente, crianças e adolescentes são muito mais VÍTIMAS que autores de homicídios (na proporção de 01 homicídio praticado para cada 10 crianças ou adolescentes mortas por adultos). Ocorre que as infrações praticadas por adolescentes ganham grande VISIBILIDADE e REPERCUSSÃO na mídia, que nos últimos anos, além de DESINFORMAR a população sobre a VERDADE relacionada ao Estatuto da Criança e do Adolescente, deflagrou verdadeira CAMPANHA a favor da redução da idade penal, elegendo de forma absolutamente INJUSTA adolescentes como "bodes expiatórios" da violência no País, para qual comprovadamente os jovens contribuem muito pouco.

3 - MITO:
Os adolescentes devem ser punidos como adultos porque "já sabem o que fazem", tendo perfeita capacidade de discernir entre "o certo e o errado", podendo inclusive votar e dirigir;
   - VERDADE:
A questão do discernimento é absolutamente irrelevante, haja vista que a capacidade de distinguir "o certo do errado" é encontrada mesmo em crianças de menos de 04 (quatro) anos de idade. A fixação da idade penal em 18 (dezoito) anos ou mais - critério adotado por 59% (CINQÜENTA E NOVE POR CENTO) dos países do mundo, se deve não apenas a questões de "política criminal", mas também - e especialmente, em razão da COMPROVAÇÃO TÉCNICO/CIENTÍFICA de que, na adolescência, onde há a transição entre a infância e idade adulta, a pessoa atravessa uma fase de profundas transformações psicossomáticas, tornando-a mais propensa à prática de atos anti-sociais (não apenas crimes, mas toda e qualquer forma de manifestar rebeldia e inconformismo com regras e valores socialmente impostos, facilmente identificáveis pela forma de se vestir, colocação de tatuagens e "piercings", fumo, consumo de bebidas alcoólicas, drogas etc.), em especial quando o jovem se envolve com algum grupo, perante o qual sente necessidade de se afirmar. A condição sui generis do adolescente demanda um tratamento diferenciado, com especial enfoque para sua orientação e efetiva recuperação, que somente pode ser obtida em instituição própria, onde exista uma PROPOSTA PEDAGÓGICA SÉRIA e bem definida. Aqueles que utilizam o direito de o adolescente, a partir dos 16 (dezesseis) anos votar, como argumento para a redução da idade penal se esquecem que, em primeiro lugar, o voto até os 18 (dezoito) anos é FACULTATIVO, e em segundo que, apesar de poder votar (e as estatísticas revelam que menos de 25% - VINTE E CINCO POR CENTO dos adolescentes de 16/17 anos se inscrevem como eleitores, demonstrando franco despreparo para o exercício do voto), o adolescente NÃO PODE SER VOTADO, não podendo exercer cargos públicos de qualquer natureza (que em muitas vezes exigem idade superior a 21 ou mesmo 25 anos), obviamente porque o legislador constituinte entendeu não terem os jovens a maturidade suficiente para assumirem tais cargos. Quanto à condução de veículos automotores, TODOS os OITO projetos de lei que permitiam a concessão de habilitação a maiores de 16 (dezesseis) anos foram ARQUIVADOS pelo Congresso Nacional, sendo que no início de 1999, o art.11 da Resolução nº 50/98 do CONTRAN que permitia a condução de CICLOMOTORES por adolescentes foi apressadamente REVISTO pelo Ministro da Justiça, que através da Deliberação nº 04/44, posteriormente referendada pelo próprio CONTRAN, exigiu que, mesmo para condução de tais veículos, é necessária a idade mínima de 18 (dezoito) anos. Em países desenvolvidos, como a Alemanha, não apenas houve o retorno da maioridade penal aos 18 (dezoito) anos, como está sendo criada uma sistemática também diferenciada para o tratamento de infratores com idade entre os 18 (dezoito) e os 21 (vinte e um) anos.

4 - MITO:
Somente com a diminuição da idade penal e imposição de verdadeiras penas a adolescentes, em patamar elevado, que haveria uma diminuição da violência nessa faixa etária.
   - VERDADE:
Está mais do que provado que a punição pura e simples, bem como a quantidade de pena prevista ou imposta, mesmo para o adulto, não é um fator de diminuição da violência. Exemplo claro é aquele dado pela chamada "Lei dos Crimes Hediondos" (Lei nº 8.072/90), que através de um tratamento mais rigoroso com os autores de tais infrações, pretendia diminuir sua incidência. Ocorre que, nunca foram praticados tantos crimes hediondos como hoje, estando nossas cadeias e penitenciárias abarrotadas a tal ponto de se estar estudando a revogação ou modificação dessa lei, de modo a permitir a progressão para um regime prisional menos severo tal qual previsto para os crimes comuns. Nos Estados Unidos, onde existe a previsão de penas de morte e prisão perpétua, em 07 (sete) anos de recrudescimento de sentenças aplicadas a jovens, o que se verificou foi a TRIPLICAÇÃO dos crimes praticados entre adolescentes, sendo comuns casos de "chacinas" promovidas por jovens em escolas. O que é importante para a redução da violência é a AÇÃO RÁPIDA e EFICAZ das autoridades encarregadas da segurança pública e da própria Justiça, de modo que os crimes praticados sejam rapidamente elucidados e seus autores - adolescentes ou não, recebam a devida sanção. A sistemática prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente visa justamente isso, de modo que, por exemplo, um adolescente possa ser sentenciado a uma medida de prestação de serviços à comunidade ou obrigação de reparar o dano NO DIA SEGUINTE à prática infracional, desde logo iniciando o cumprimento da medida. Se isso não ocorre na prática, a culpa não é da lei, mas sim da falta de uma estrutura adequada para sua implantação. A proposta do Estatuto é tão boa e avançada que, no Brasil, foi COPIADA pela chamada "Lei dos Juizados Especiais Criminais" (Lei nº 9.099/95), destinada a crimes de menor potencial ofensivo praticados por adultos, bem como vem sendo estudada e tendo sua sistemática também adotada por vários outros países, em especial da América Latina.

5 - MITO:
É muito comum que adultos utilizem adolescentes de dezesseis ou dezessete anos para prática de crimes, e a responsabilização penal destes serviria de desestímulo a esta prática.
   - VERDADE:
Embora o "recrutamento" de adolescentes para prática de crimes de fato ocorra, a redução da idade penal para dezesseis anos fará com que este patamar seja reduzido para quinze, quatorze anos ou ainda menos. Se tal argumento fosse válido para justificar a redução da idade penal, qual seria o limite etário a atingir, diante da utilização, pelo crime organizado de adolescentes cada vez mais jovens e mesmo de crianças? Hoje já se fala, em tom jocoso (mas não sem uma boa dose de ironia e preconceito), em "berçários de segurança máxima", onde seriam colocados os bebês recém-nascidos que, por apresentarem um "perfil" ou uma "tendência natural" (devido, em especial, a uma condição sócio-familiar desfavorável) à prática de crimes. Evidente que não é este o caminho, sendo necessário o recrudescimento da repressão penal aos adultos que utilizam adolescentes e mesmo crianças para prática de crimes, através da alteração da Lei nº 2.252/54 (que dispõe sobre a "corrupção de menores"), com a previsão de penas mais rigorosas e mesmo da previsão de que semelhante conduta, independentemente de qualquer "histórico infracional" da criança ou adolescente, caracteriza "crime hediondo", com todas as consequências daí advindas. É também necessário investir maciçamente em EDUCAÇÃO, e numa educação de qualidade, comprometida com a "inclusão" dos jovens (e também de suas famílias, na medida em que o dever de educar também incumbe a estas) e com o cumprimento dos objetivos traçados pelo art. 205, da Constituição Federal: "...o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho", o que somado a políticas de prevenção ao uso de drogas e outras voltadas à neutralização dos fatores que levam à violência, por certo evitará que os jovens ingressem no mundo do crime, de forma muito mais eficaz que sua pura e simples repressão.

É TAMBÉM PRECISO CONSIDERAR QUE crianças e adolescentes são diariamente vítimas, por ação ou omissão da família, sociedade e do Estado, de toda sorte de violência (não apenas física), violência essa que na maioria das vezes passa desapercebida por todos. Quando um desses vitimizados assume a condição de "infrator", não raro fazendo de seu ato anti-social um verdadeiro PEDIDO DE SOCORRO, quando não uma "LEGÍTIMA DEFESA" contra aqueles que, tendo POR MANDAMENTO LEGAL E CONSTITUCIONAL O DEVER DE PROTEGÊ-LOS, lhes negam o exercício de seus direitos fundamentais, passa então - e somente então, a ser o objeto da atenção de todos, que desejam vê-los o mais longe possível, de preferência para nunca mais voltar...
Se esquecem, no entanto, que as condições que geraram esses "seres indesejados", permanecem latentes, e outros casos iguais ou ainda piores em breve surgirão. Mesmo aqueles, "exportados" para cumprir suas penas em outras localidades, cedo ou tarde por certo retornarão às suas origens... mas serão eles melhores do que quando saíram? Ou retornarão brutalizados e completamente "formados" na "universidade do crime" que são nossas penitenciárias?
Segundo dados oficiais, o sistema penitenciário brasileiro oferece pouco mais de 107.000 (CENTO E SETE MIL) VAGAS, para uma população carcerária que beira os 200.000 (DUZENTOS MIL) DETENTOS. A superpopulação carcerária é alarmante, e os índices de reincidência em alguns casos ultrapassam os 80% (OITENTA POR CENTO), tendo o egresso, com o estigma de "ex-detento", pouca ou nenhuma chance de emprego e reinserção social. Mesmo aqueles que defendem a redução da idade penal reconhecem que nosso sistema penal NÃO RECUPERA os adultos nele inseridos. É esse o destino que queremos para nossos adolescentes e nossa sociedade?
Melhor não seria CUMPRIR A LEI e, a par da criação e manutenção, em cada município, de uma ESTRUTURA DE ATENDIMENTO ADEQUADA a crianças, adolescentes e famílias fragilizadas, com enfoque eminentemente PREVENTIVO, implantar medidas sócio-educativas em meio aberto, com uma proposta pedagógica séria e voltada à efetiva recuperação e reinserção social e familiar de nossos jovens, que nos casos mais graves seriam então encaminhados a unidades de internação e semiliberdade de pequeno porte (o CONANDA, através de sua Resolução nº 46/96, fixa em QUARENTA o número máximo de adolescentes por unidade), situadas nas diversas regiões do Estado, mais próximas à realidade conhecida pelo adolescente e de sua família, que PRECISA integrar o processo desencadeado com vista a seu resgate, onde o mesmo seria tratado e educado, bem como inserido em cursos profissionalizantes, que lhe proporcionariam alternativas viáveis à delinquência e fazem, em alguns casos, o índice de reincidência ser da ordem de meros 03% (TRÊS POR CENTO)?
O que conseguimos ao longo dos séculos em que se adotou uma postura unicamente punitiva e retributiva, e em especial nos últimos dez anos com "Lei dos Crimes Hediondos"?
A diminuição da violência?
Saímos de casa e dormimos tranquilos?
E é essa fórmula, comprovadamente ineficaz em relação aos adultos, que queremos reproduzir para nossos adolescentes? Não seria melhor seguir o caminho INVERSO, transportando integralmente (parcialmente como vimos já o foi) a sistemática prevista pelo Estatuto também para os imputáveis?
Até quando vamos continuar nos iludindo com o DISCURSO FÁCIL daqueles que, ao invés de combaterem de forma efetiva e eficaz as VERDADEIRAS causas da violência pregam o singelo ataque a seus efeitos, contribuindo assim apenas para a perpetuação e agravamento do problema?
Diante de tais informações, não é difícil concluir que a modificação do sistema hoje vigente em relação a adolescentes acusados da prática de atos infracionais não será a melhor solução para o problema da violência no País, nos fazendo então pensar a quem de fato interessa a redução da imputabilidade penal.
Os únicos beneficiados com a sistemática que se pretende ver implantada serão os "governantes de plantão", que com a solução simplista do encarceramento dos jovens "socialmente indesejáveis" agora a partir dos 16 anos (já se fala em 14), e amanhã talvez dos 12 ou 10 anos de idade, não terão de ser criadas mais escolas e programas de atendimento especializado, tal qual previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente.
A propósito, o verdadeiro foco de nossa preocupação deveria ser justamente com o cumprimento dos dispositivos constantes do Estatuto e da Constituição Federal que prevêem, para a área da infância e juventude, um tratamento PRIORITÁRIO, e com prioridade ABSOLUTA, que importa, dentre outras, na "preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas" e na "destinação privilegiada de recursos públicos..." (art.4º, par. único, alíneas "c" e "d" da Lei nº 8.069/90).
Uma vez que existam programas de prevenção e proteção em número suficiente a atender a demanda, com especial enfoque no atendimento, orientação e restruturação das famílias, que têm por obrigação participar do processo de educação de seus filhos, inclusive no sentido de conscientizá-los de que têm eles os mesmos direitos e deveres de qualquer cidadão, aí sim se estará enfrentando a questão da forma correta, combatendo a violência praticada por e contra crianças e adolescentes (esta como vimos de incidência muito maior que aquela) de forma realmente eficaz e duradoura.
Nosso compromisso, portanto, tem de ser com o CUMPRIMENTO DA LEI E DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, com a devida COBRANÇA no sentido de que nossos governantes destinem à área da infância e juventude a PRIORIDADE ABSOLUTA que a mesma merece. Assim agindo, estaremos garantindo não apenas que adolescentes autores de condutas anti-sociais recebam a devida sanção, tal qual previsto na legislação específica, mas sim lhes assegurando verdadeiras condições de recuperação e reinserção social e familiar, de modo a se tornarem cidadãos úteis à sociedade, o que por certo não acontecerá caso sejam eles encaminhados para nosso sistema penitenciário há muito falido, onde serão privados não apenas de sua liberdade, mas de toda e qualquer possibilidade de escolarização, profissionalização, perspectiva de um futuro melhor e da própria dignidade como seres humanos, retornando assim ao meio social ainda jovens porém em condições infinitamente piores do que quando foram recolhidos.
A pergunta que se deve fazer, portanto, não é se o adolescente deve ou não ser responsabilizado por seus atos, pois isto como vimos já ocorre a contento, mas sim que espécie de tratamento deve ele receber: o previsto no Estatuto, no qual existem chances concretas de recuperação ou aquele hoje destinado aos adultos, onde será apenas "guardado" por um período (que por certo não será muito dilatado) e devolvido à sociedade com toda a carga negativa acumulada no sistema penitenciário?
A resposta, que se espera seja unânime, somente reafirma a certeza de que a redução da imputabilidade penal, além de não ser a resposta para o problema da violência no País, para qual comprovadamente os jovens contribuem muito pouco, trará muito mais prejuízos do que vantagens à sociedade brasileira, que contra tal proposta deve se mobilizar em defesa própria e acima de tudo de suas crianças e adolescentes, que longe de serem vilões, são as maiores vítimas dessa mesma violência, que já começa quando são privados de condições dignas de sobrevivência pela falta de políticas públicas adequadas, passando pela omissão de suas famílias (e aí não se fala apenas naquelas carentes) e pela falta de uma educação (na mais ampla acepção da palavra) adequada, que os priva de seus direitos fundamentais e lhes veda o acesso à cidadania.
Apenas com o efetivo e integral cumprimento da lei e da Constituição, com o envolvimento de todos (família, sociedade e Poder Público) na PROTEÇÃO INTEGRAL de crianças e adolescentes, com o tratamento PRIORITÁRIO que o tema reclama, é que nossos jovens se tornarão verdadeiros cidadãos, e como tal, conhecendo e tendo respeitados seus direitos, saberão exatamente quais são seus deveres e limites, respeitando também os direitos de seu próximo, o que por certo irá destruir a problemática da violência em suas origens, para o benefício de toda a sociedade.

(Texto atualizado pelo próprio autor em 30/07/2009)
Fonte: http://www.crianca.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=255