Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini - Doutores em Direito Penal
A tese da redução da maioridade penal
(hoje fixada em dezoito anos), embora conte com apoio da maioria da
população (pesquisa Datafolha de 2006 - FSP, 13 ago 06, indicava que 84%
da população defendia a redução da maioridade penal), é incorreta,
insensata e inconseqüente. Mas também é certo que o Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA) não é razoável quando fixa um único limite máximo
de internação (três anos) como regra geral (e inflexível), válida para
todas as situações. Essas duas posturas extremadas (redução da
maioridade versus inflexibilidade do ECA) devem ser evitadas.
Embora tenha forte aclamação popular, a
proposta de redução da maioridade penal para 16 anos ou menos deve ser
refutada, em razão, sobretudo, do seguinte: (a) da sua ineficácia e insensibilidade; (b) da sua impossibilidade jurídica e (c) do fato de que são poucos os delitos violentos que envolvem os menores. Vejamos:
(a) se os presídios são
reconhecidamente faculdades do crime, a colocação dos adolescentes neles
(em companhia dos criminosos adultos) teria como conseqüência
inevitável a sua mais rápida integração nas organizações criminosas.
Recorde-se que os dois grupos que mais amedrontam hoje o Rio de Janeiro e
São Paulo (Comando Vermelho e PCC) nasceram justamente dentro dos
presídios.
(b) do ponto de vista jurídico é
muito questionável que se possa alterar a Constituição brasileira para o
fim de reduzir a maioridade penal. A inimputabilidade do menor de
dezoito anos foi constitucionalizada (CF, art. 228). Há discussão sobre
tratar-se (ou não) de cláusula pétrea (CF, art. 60, § 4.º). Pensamos
positivamente, tendo em vista o disposto no art. 5.º, § 2.º, da CF, c/c
arts. 60, § 4.º e 228. O art. 60, § 4º, antes citado, veda a deliberação
de qualquer emenda constitucional tendente a abolir direito ou garantia
individual.
Recorde-se, de outro lado, que os
direitos e garantias individuais não se encontram exclusivamente no art.
5º da CF. Na ação direta de inconstitucionalidade 939, de 1993 (rel.
Min. Sidney Sanches), o STF admitiu a existência de "princípios e normas
imutáveis" fora do art. 5º da CF. Conclusão: nem sequer por emenda
constitucional é possível alterar a idade da imputabilidade penal,
porque se trata de direito individual fundamental relacionado com o
desenvolvimento da personalidade humana.
(c) Dados da Secretaria de
Segurança Pública de São Paulo revelam que de janeiro a outubro de 2003
os menores participaram de apenas 1% dos homicídios dolosos, 1,5% do
total dos roubos e 2,6% dos latrocínios. [nota 1]
Eca e menoridade
Mas uma coisa é a prática de um furto,
um roubo desarmado etc., outra bem distinta é a morte intencional
(dolosa), causada por um menor, especialmente quando ostenta requintes
de perversidade. Para o ECA, entretanto, tudo conta com a mesma
disciplina, isto é, em nenhuma hipótese a internação do infrator (que é
medida sócio-educativa voltada para sua proteção e também da sociedade)
pode ultrapassar três anos (ou sobrepor a idade de 21 anos).
Casos chocantes e aberrantes como os que
vêm ocorrendo nos últimos tempos no nosso país não deveriam nunca
conduzir, de qualquer modo, a um perigoso e eletrizante clamor popular
e/ou midiático, que emocional e desesperadamente propugna pela adoção de
medidas radicais e emergenciais, como se fosse imprevisível e
inesperada a violência juvenil.
Esses agudos e críticos momentos exigem,
na verdade, maior ponderação, mesmo porque de medidas "salvadoras" e
pouco eficazes (como foi e é a lei dos crimes hediondos, por exemplo)
todos já estamos exaustos. Uma nova alteração legislativa seria mais um
engano e mais uma fraude que promete solução para todos os males
decorrentes do estado de violência endêmica, mas que na verdade nunca
resolve praticamente nada.
Com o advento da Convenção da ONU sobre os direitos da criança [nota 2],
que foi subscrita por mais de 180 países (incluindo o Brasil), não há
dúvida que se transformou em consenso mundial a idade de 18 anos para a
imputabilidade penal. Mas isso não pode ser interpretado, simplista e
apressadamente, no sentido de que o menor não deva ser responsabilizado
pelos seus atos infracionais.
No imaginário popular brasileiro
difundiu-se equivocadamente a idéia de que o menor não se sujeita a
praticamente nenhuma medida repressiva. Isso não é correto. O ECA prevê
várias providências sócio-educativas contra o infrator (advertência,
liberdade assistida, semiliberdade etc.). Até mesmo a internação é
possível (e "internação" nada mais significa que "prisão"), embora
regida (corretamente) pelos princípios da brevidade e da ultima ratio
(última medida a ser pensada e adotada). A lei concebe a privação da
liberdade do menor, quando se apresenta absolutamente necessária.
Não é preciso, evidentemente, chegar à
solução do Direito penal italiano, que admite a imputabilidade penal
acima dos 14 anos, conforme se constate concretamente (em cada caso) que
o menor tinha capacidade de querer e de entender (CP italiano, art. 97)
[nota 3].
Não parece aceitável, de outro lado, remeter o menor para o Código
Penal; muito menos transferi-lo para os cárceres destinados aos adultos
quando completa dezoito anos. Não basta, ademais, para se adotar medidas
mais contundentes, a mera grave ameaça à pessoa (que faz parte da
essência do roubo). Para isso o ECA já prevê a internação. Moderação e
equilíbrio é o que se espera de toda medida legislativa.
Mas ao menor com grave desvio de
personalidade e que tenha causado a morte intencional e violenta de
alguma pessoa não parece haver outro caminho senão o do tratamento
adequado, nos termos dos §§ 4º e 5º abaixo sugeridos, que deveriam ser
agregados ao art. 112 do ECA. Com isso se conclui que, quando
absolutamente necessário e razoável, devem ser extrapolados os limites
de três anos de internação ou dos 21 anos de idade.
A proposta de alteração legislativa no
ECA que estamos formulando, de qualquer maneira, embora possa ser tida
como razoável, não é de modo algum suficiente, para solucionar a
violência que se expande pelo país. Faltam investimentos e decisões
políticas e sociais que possam proporcionar ao jovem pautas de valores
aceitáveis. Resta sempre saber até quando estamos dispostos a pagar com
nossa vida a negligência de toda a sociedade brasileira para com o
problema do "menor".
Proposta de alteração legislativa no ECA
O ECA, no seu art. 112, cuida da
enumeração das medidas sócio-educativas cabíveis contra o adolescente
que pratica ato infracional. No seu § 3º diz: "Os adolescentes
portadores de doença ou deficiência mental receberão tratamento
individual e especializado, em local adequado às suas condições".
Esse dispositivo legal não conta com
clareza suficiente para alcançar situações em que o adolescente,
cometendo crime violento e intencional, revele total insensibilidade
frente à vida humana. Dois novos parágrafos deveriam ser agregados ao
citado art. 112, para melhor disciplina do assunto:
"§ 4º Os adolescentes que venham a ser
responsabilizados pela morte intencional consumada ou tentada de alguma
pessoa e que revelarem grave desvio de personalidade, constatado em
laudo pericial fundamentado, estarão sujeitos a tratamento individual,
especializado e multidisciplinar".
"§ 5º O tratamento previsto no parágrafo
anterior terá duração máxima de dez anos ou terminará antes desse prazo
quando laudo médico, psicológico ou psiquiátrico, que deve ser renovado
de ano em ano ou quando houver determinação judicial, atestar a
cessação do grave desvio de personalidade".
Direito penal emergencial e simbólico
A alteração da legislação penal em
momentos de aguda crise popular (e midiática) tende a não atender os
fins legítimos do Direito penal (de proteção fragmentária e subsidiária
de bens jurídicos relevantes). Ao contrário, sempre retrata uma
legislação penal simbólica e de emergência.
Conceber a norma e a aplicação do
Direito penal sob a égide de uma função puramente simbólica significa
inegavelmente atribuir-lhe um papel "pervertido", porque um Direito
penal simbólico relega a eficaz proteção de bens jurídicos em prol de
outros fins psicossociais que lhe são alheios. Não visa ao infrator
potencial, para dissuadi-lo, senão ao cidadão que cumpre as leis, para
tranqüilizá-lo, para acalmar a opinião pública.
Um Direito penal com essas
características carece de legitimidade: manipula o medo do delito e a
insegurança, reage com um rigor desnecessário e desproporcionado e se
preocupa exclusivamente com certos delitos e determinados infratores.
Introduz um exagerado número de disposições excepcionais, sabendo-se do
seu inútil ou impossível cumprimento e, a médio prazo, traz descrédito
ao próprio ordenamento, minando o poder intimidativo de suas proibições.
Exigir ou supor que esse meio de
controle social (o Direito penal) possa cumprir funções para além do que
sua atribuição social permite, pode significar a exacerbação do seu
papel simbólico, com o grave risco de perda de suas reais
possibilidades.
Como corretamente advertem Hassemer e
Muñoz Conde, "a explosiva mescla de grandes ‘necessidades de atuação’
social, de fé quase cega na eficácia dos meios jurídico-penais e dos
deficits enormes que logo têm esses instrumentos quando se aplicam na
realidade, pode fazer surgir o perigo de que o Direito penal viva da
ilusão de solucionar realmente seus problemas, o que a curto prazo pode
ser gratificante, mas a largo prazo é destrutivo". [nota 4]
Particularmente quando a política assume
a forma de espetáculo (a expressão é de Zaffaroni), "as decisões
orientam-se não tanto no sentido de modificar a realidade, senão no
sentido de modificar a imagem da realidade nos espectadores: não tanto a
satisfazer as reais necessidades e a vontade política dos cidadãos
senão a seguir a corrente da chamada opinião pública [...]. O déficit da
tutela real de bens jurídicos é compensado pela criação, no público, de
uma ilusão de segurança e de um sentimento de confiança no ordenamento e
nas instituições que tem uma base real cada vez mais escassa: com
efeito, as normas continuam sendo violadas e a cifra negra das infrações
permanece altíssima enquanto as agências de controle penal seguem
[iludindo] com tarefas instrumentais de impossível realização". [nota 5]
O uso desvirtuado do Direito penal vem
se acentuando nos últimos anos. A mídia retrata a violência como um
"produto espetacular" e mercadeja sua representação. A criminalidade (e a
persecução penal), assim, não somente possui valor para uso político
(e, especialmente, para uso "do" político), senão que é também objeto de
autênticos melodramas cotidianos que são comercializados com textos e
ilustrações nos meios de comunicação. São mercadorias da indústria
cultural de massa, gerando, para se falar de efeitos já aparentes, a sua
banalização e a da violência.
Para citar exemplo de emprego
eleitoreiro do Direito penal recorde-se que o legislador brasileiro, sob
os efeitos do "escândalo dos remédios falsos", não teve dúvida em
reagir imediatamente: elaborou primeiro a Lei 9.677/98, para alterar o
marco penal de diversas condutas relacionadas com o tema (a falsificação
de remédio agora é sancionada com pena mímima de dez anos de reclusão.
Por meio do mesmo diploma legal, outras condutas não tão graves, como a
falsificação de creme para alisar o cabelo, passaram a receber a mesma
punição). Depois, publicou-se a Lei 9.695/98, para transformar diversos
desses delitos em "hediondos" (o que, desde aquela outra lei, já se
almejava, mas que, por defeito de técnica legislativa, não se
conseguiu). Em lugar de providências administrativas eficazes, para a
prevenção da falsificação, privilegiou-se a edição de uma nova lei penal
(considere-se que, na ocasião, estava-se na iminência de eleições
presidenciais). Impressiona o fato de a lei ter sido proposta e aprovada
em quarenta e oito horas.
Conclusão
Se todos os dados da Coordenadoria de
Análise e Planejamento da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo
revelam, desde 2001, uma diminuta participação dos menores nos crimes
violentos, sabe-se desde logo que a redução da maioridade penal não
viria a diminuir nossos índices de violência, que são protagonizados
pelos agentes maiores de dezoito anos. Eventual mudança na legislação
brasileira, se fosse possível constitucionalmente, no que diz respeito à
idade da imputabilidade penal, só teria mesmo o caráter de um Direito
penal emergencial e simbólico. Pouca ou nenhuma eficácia prática
apresentaria. Daí nosso posicionamento contrário à redução da maioridade
penal.
Mais isso não significa que os crimes
violentos cometidos pelos menores, com requintes às vezes de crueldade
inusitada, sejam regidos inflexivelmente pela atual legislação do ECA.
Somos favoráveis a uma ampliação do tempo de permanência desse infrator
nos estabelecimentos adequados à sua faixa etária. Alterar os limites do
ECA (três anos de internação e vinte e um anos de idade) é a
providência legislativa mais sensata neste momento. Dessa forma, estaria
o legislador brasileiro respeitando os compromissos internacionais
assumidos pelo Brasil no sentido de manter a idade da imputabilidade
penal em dezoito anos, tendência que se consolida no mundo democrático.
Nosso maior problema, como concluiu Gilberto Dimenstein (Folha de S.
Paulo de 25.02.07, p. C9), "não é de maioridade penal, mas de menoridade
dos adultos". [nota 6]
Notas do texto:
1 Gilmar Penteado, "Menor participa de 1% dos homicídios em SP", Folha de S. Paulo, 1 de janeiro de 2004, pág. C3.
2
Convenção Sobre os Direitos da Criança, adotada pela Resolução I.44
(XLIV), da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20.11.1989. Aprovada
pelo Decreto Legislativo 28, de 14;09.1990, e promulgada pela Decreto
99.710, de 21.11.1990. Ratificada pelo Brasil em 24.09.1990.
3 Este mesmo texto pode ser encontrado na internet com uma redação diferente, no início deste parágrafo, de forma mais genérica: "Não é preciso, evidentemente, chegar à solução dada por alguns países no sentido de punir o menor como se fosse um maior". (Nota desta edição)
4
HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. La responsabilidad por el
producto en Derecho penal, Valença: Tirant lo Blanch, 1995, p. 33.
5
BARATTA, Alessandro. Funciones instrumentales y simbólicas del Derecho
penal: una discusión en la perspectiva de la Criminología crítica. Pena y
Estado, Barcelona: Promociones y Publicaciones Universitarias, n. 1, p.
53, set./dez. 1991.
6
Cf. DIMENSTEIN, Gilberto, que evocou a história pessoal de Expedito
Resende, um cearense, Professor de engenharia química da Universidade
Federal do Ceará, que descobriu o biodiesel, desenvolveu o
"bioquerosene" (novo combustível para avião, extraído do óleo de
babaçu), criou a "vaca mecânica" (para produção do leite de soja) etc. e
que é filho de José Parente que, com doze anos de idade, deixou sua
Sobral, rumo à Fortaleza, para ganhar a vida e ensinar que "o gosto pelo
conhecimento é a melhor herança que posso deixar".
Informações bibliográficas:
Conforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOMES, Luiz Flávio. A Maioria e a maioridade penal. Clubjus, Brasília-DF: 30 jul. 2007. Disponível em: http://www.clubjus.com.br/?artigos&ver=2.1669&hl=no. Acesso em: 03 jul. 2009.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GOMES, Luiz Flávio. A Maioria e a maioridade penal. Clubjus, Brasília-DF: 30 jul. 2007. Disponível em: http://www.clubjus.com.br/?artigos&ver=2.1669&hl=no. Acesso em: 03 jul. 2009.
Sobre os autores:
Alice Bianchini é Doutora em Direito Penal pela PUC/SP, Mestre em Direito pela UFSC, Professora do Curso de Mestrado em Direito da UNISUL; é membro da Diretoria do Instituto Panamericano de Política Criminal – IPAN e Coordenadora Geral dos Cursos de Especialização Telepresenciais e Virtuais da Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes – Rede LFG.
Luiz Flávio Gomes é Doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito penal pela USP, Secretário-Geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), Consultor e Parecerista, Fundador e Presidente da Rede LFG - Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes.
Alice Bianchini é Doutora em Direito Penal pela PUC/SP, Mestre em Direito pela UFSC, Professora do Curso de Mestrado em Direito da UNISUL; é membro da Diretoria do Instituto Panamericano de Política Criminal – IPAN e Coordenadora Geral dos Cursos de Especialização Telepresenciais e Virtuais da Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes – Rede LFG.
Luiz Flávio Gomes é Doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito penal pela USP, Secretário-Geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), Consultor e Parecerista, Fundador e Presidente da Rede LFG - Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes.
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