segunda-feira, 17 de julho de 2017

Entrevista com José Paulo Netto


imagemDialética: Teoria e Prática
ODiario.info – 12 de julho de 2017
Nesta entrevista Netto discute principalmente a dialética a partir da matriz marxista, entendendo-a tanto como um método de apreensão da realidade quanto como o movimento do real. Para Netto, Marx, a despeito de ter deixado poucos escritos sobre o tema, constitui uma referência fundamental para aqueles que buscam hoje pensar e transformar de forma objetiva a realidade. Seguindo esta temática, a entrevista trata ainda da relação entre teoria e prática, das potencialidades do conhecimento científico e da lógica acadêmica contemporânea.
Revista: Para o pensamento marxista, a dialética nomeia tanto um método de conhecimento da realidade quanto o movimento da própria realidade. Eu queria que você falasse um pouco sobre esse conceito. Você poderia discorrer sobre ele, em linhas gerais?
José Paulo Netto: Quando pensamos na palavra ‘dialética’, vemos como certas categorias filosóficas, quando se tornam de uso comum, entrando na linguagem cotidiana, nos media etc., frequentemente perdem o seu sentido rigoroso. Eu costumo dizer, brincando, que a palavra ‘dialética’ é uma espécie de panaceia ou recurso de macumba que resolve todos os problemas. Quem tem uma fumaça de cultura de esquerda, quando se depara com alguma coisa complicada, geralmente afirma: “Isto é um processo dialético”. Com isso, não se diz coisa nenhuma. Se tratarmos o tema com um mínimo de rigor e seriedade, para além do senso comum, veremos que a palavra comparece no marco das noções e conceitos ainda da nascente filosofia, na Grécia. Então, dialética denotava um método discursivo, uma forma retórica. Ao longo da história da filosofia no Ocidente, ora a dialética se referiu a esse significado original, ora ganhou outros sentidos.
Na entrada da Modernidade, ela se constituiu como pedra angular do pensamento de Hegel, um filósofo que é, até hoje, para muitos, um pensador enigmático ou, no limite, cheio de obscuridades. Para Hegel, o que era dialética? De forma muito breve, pode-se dizer que era um modo de pensar o mundo, um ‘método’. Em Hegel, esse método constitui uma superação da grande tradição intelectual que vem desde Aristóteles. Se você fala em método, logo está pensando em lógica. Aristóteles é o fundador de uma lógica rigorosa que vai ser conhecida nos manuais de filosofia como ‘lógica formal’, que se funda numa série de princípios e elementos. Um princípio importante, por exemplo, é o da não- identidade: A não é igual a não-A. Hegel diria que essa é uma forma de pensar o mundo que não é falsa, mas é unilateral, insuficiente.
Por quê? Porque A, se é diferente de não-A, é simultaneamente igual a não-A. Pode parecer muito confuso, mas o que Hegel está querendo dizer é que o ‘mundo é um processo, movimento’. Em Hegel, o ser é processualidade. A dialética, para ele, é o método para pensar o mundo enquanto movimento.
Revista:: Como se situa a contradição no pensamento hegeliano?
José Paulo Netto: O movimento do ser não é um movimento qualquer: é na verdade um automovimento, ou seja, um movimento que tem a sua força motriz, a sua dinâmica, no próprio ser. E, além de não ser movimento qualquer, é um movimento que tem seu dinamismo fundado na contradição. A é ao mesmo tempo A e não-A; A é ao mesmo tempo a afirmação de si contendo forças que negam essa afirmação. É desse confronto entre a afirmação de A e aquilo que é a negação de A que vai surgir o diferente, o outro. Mas o outro, se é novo em relação a A, traz em si os traços da positividade de A. Por isso não é uma simples negação: é uma negação da negação que conduz a um novo – Hegel diria: em um nível superior – mas conservando, metamorfoseados, elementos originais. Isso seria a dimensão tríplice do movimento da lógica dialética de Hegel: uma afirmação, uma negação e a negação da negação, que se pode chamar de superação. Numa linguagem que se tornou comum: tese, antítese e síntese. Mas isso não significa que aquela lógica formal que vem de Aristóteles é falsa; ela é apenas unilateral, insuficiente. O método dialético supera essa unilateralidade.
Você dirá: isso é muito complicado, muito confuso, muito difícil! O difícil não é o método. Porque esse método apreende que aquilo que ele estuda – o ser, que está sempre em movimento, dinamizado pelas contradições – é que é complexo. Mas note: Hegel é um pensador idealista. Isso significa que, antes do ser material, tem-se um ser ideal, que cria, põe, esse ser material ao se contradizer, ao desdobrar-se, cindir-se, objetivar-se. Em Hegel, o primário é o Espírito que, num automovimento, instaura a sua negação, ela mesma também automovida. Uma série de pensadores operou uma análise crítica da obra de Hegel e, entre eles, muitos filósofos materialistas, que contribuíram para desenvolver a dialética numa direcção diversa da de Hegel. Materialista, aqui, significa simplesmente o seguinte: no ser, o primado da existência (se você quiser: o primado ontológico) é material – não há nenhuma negação do espírito, das realidades anímicas, nada disso. Essas dimensões anímicas, do espírito, são produtos de uma longa, complexa e contraditória evolução do ser material. Para evitar qualquer equívoco, é melhor esclarecer: o materialismo a que aqui se refere implica o ateísmo, mas ele é muito mais do que o ateísmo.
Revista:: Qual a relação histórica entre Marx e Hegel no que tange à dialética?
José Paulo Netto: Para ser curto e grosso: sem Hegel, Marx é impensável. Marx partiu da dialética de Hegel, recolhendo-a mediante uma crítica rigorosa e profunda; tomou-a como o movimento do real, ou seja, o automovimento efetivo da realidade, seja a natureza ou a história e a cultura (ainda que sua atenção básica tenha se voltado para a sociedade ou, na expressão de Lukács, para o ser social). Para Marx, pois, a dialética é objetiva.
É importante destacar que o fato de só Hegel ter posto a dialética no centro da reflexão filosófica não significa que a dialética nasce com Hegel. Como algo objetivo, é claro que ela independe do conhecimento (ou da consciência) que se tenha dela. Ela é objetiva em razão de o ser constituir-se dialeticamente. Mas foi com Hegel que ela se construiu como o que podemos chamar de ‘dialética subjetiva’, ou seja, como o modo mais adequado para compreender o ser e seu movimento – vale dizer, estritamente, como método. E o método de Marx é dialético exatamente neste sentido: como o modo mais adequado para conhecer o ser social.
É evidente que este é um método muito difícil de ser utilizado, porque os homens não pensam em abstrato: pensam a partir dos problemas, dos impasses, dos dilemas que são postos na vida quotidiana – com a sua heterogeneidade e a sua necessária imediaticidade. E nenhum homem pode suspender sua relação com a vida cotidiana senão por momentos. O cientista que está no laboratório, o filósofo que está refletindo, o romancista que está criando – nesses momentos, eles se suspendem de sua vida quotidiana e concentram e direcionam a sua energia para um objeto determinado. Nesses momentos, empenham toda a sua energia nas suas criações e descobertas. Mas eles depois tomam ônibus, enfrentam o trânsito em seus carros, voltam para casa, fazem suas refeições… A vida cotidiana, na sua imediaticidade, não mostra o movimento do ser.
Revista:: O conhecimento dialético do mundo, então, é dificultado pela vida cotidiana, que mobiliza outros saberes, baseados, sobretudo, na experiência. Em que medida a experiência produz conhecimento?
José Paulo Netto: O conhecimento começa com a experiência, tem nela seu ponto de partida. Mas apenas o ponto de partida. Permita-me um exemplo bem simples. Você nasce aqui, no lugar x, onde está sua casa, e tem a experiência cotidiana, ao longo de toda a sua vida, de ver que a sua casa está no mesmo lugar. Você observa e constata que o sol nasce num ponto específico pela manhã, naquilo que você chama de meio-dia ele está ali em cima e de tarde ele se esconde. O que a sua experiência cotidiana lhe mostra? Que a terra, onde está sua casa, está paradinha e o sol se movimenta em torno dela. Essa é a experiência imediata de todos os homens. Mas o que essa experiência mostra é verdadeiro? O conhecimento e a própria prática social demonstram que não. Sabemos, comprovadamente, que a terra não está parada, é ela que gira em torno do sol. Isso significa que o conhecimento rigoroso, profundo, da essência, da estrutura íntima dos fenômenos, não pode se limitar a essa experiência cotidiana. A aparência dos fenômenos é absolutamente importante porque começamos a conhecê-los a partir dela – o que não tem qualquer aparência não pode ser conhecido. Mas o conhecimento veraz, verdadeiro, parte da aparência dos fenômenos para encontrar a sua essência, a sua estrutura íntima e o seu movimento. A nossa vida cotidiana e os seus quadros sociais contribuem para que o pensamento dialético seja pouco favorecido. Recorro a outra ilustração simples: imagine se você acorda e reflete: o mundo está numa mudança constante, cheio de contradições, tudo se move e tenho que conhecer o conjunto desta dinâmica. Se pensar assim, você não se levanta da cama. É preciso manipular o mundo, intervir no mundo. E você precisa das oposições imediatas para poder se mover: precisa saber que o alto se opõe ao baixo, que o quente se opõe ao frio, que o sólido se opõe ao líquido ou ao gasoso etc. E essas discriminações que você faz não são falsas, são apenas unilaterais. Mas sem elas você não vive. Ora, o pensamento dialético implica que você, reconhecendo essas determinações – alto/baixo, perto/longe, branco/preto –, saiba que o branco é diferente do preto, mas que ele pode tornar-se preto e por assim adiante… Então, pensar dialeticamente traz uma série de exigências que vão na contracorrente da instrumentalização, da manipulação que nós praticamos com os fatos do mundo. Essa manipulação é necessária, mas nos dá uma visão que não é da totalidade do mundo, que não nos permite perceber a processualidade e a dinâmica do mundo e a natureza dessa dinâmica. Pensar dialeticamente supõe uma formação teórica, pesquisa, estudo constante, e supõe que se aproprie da herança cultural que vem, pelo menos, de Hegel a nossos dias. Isso é absolutamente importante não apenas para termos uma relação mais eficiente com a natureza e com o mundo que instrumentalizamos e manipulamos, mas, sobretudo, para que possamos adquirir o conhecimento teórico-científico verdadeiro do conjunto da nossa vida. Porque a nossa vida não é um amontoado de pequenos segmentos: ela é uma totalidade que se insere numa totalidade maior, que é a nossa sociedade, que não existe sem a sua relação unitária (não identitária) com outra totalidade que é a natureza. São essas totalidades que constituem o ser. É evidente que isso supõe pesquisa, reflexão. É difícil compreender o mundo? É dificílimo. Porque o mundo é muito complexo. Nesse mundo, nesse pedaço de universo que nós estamos, não há nada de simples.
Conhecer o mundo, então, é muito mais do que sistematizar experiências cotidianas. A organização, a sistematização de experiências e sua discussão são extremamente importantes e úteis porque mostram, ademais, que qualquer processo de conhecimento eficaz tem que ser social e coletivo. Mas se não houver aí uma inserção e um insumo do ponto de vista teórico, nós podemos acabar concluindo que o sol gira em torno da terra… É preciso tomar muito cuidado com a ideia de que, a partir da prática, se constrói conhecimento. Não: a prática põe os problemas que o conhecimento teórico-científico pode esclarecer. Imagine um torneiro mecânico que, sabendo ler e escrever, reúna alguns companheiros de trabalho e desenvolva uma discussão coletiva para compreender a sua situação como trabalhador partir da sua vida prática, que se dá lá na fábrica. Se não dispuser de uma elaboração teórica que lhe abra caminhos para além da experiência prática e imediata, ele só vai conseguir chegar à ideia de que há injustiças sociais neste mundo: ele trabalha muito, a empresa cresce, seus proprietários individuais e coletivos enriquecem e ele não. Veja como o mundo é injusto! Isso não é falso, mas não leva à compreensão dos mecanismos que põem e repõem as bases da injustiça percebida. Para chegar a esta compreensão, ele precisa estudar a crítica da economia política, que não está na vida cotidiana: é resultado de uma larga elaboração teórica que partiu da vida cotidiana, mas produziu e utilizou categorias, investigações, instrumentos heurísticos para entender por que a realidade parece – e é, de fato, segundo determinados padrões éticos – injusta.
Se permanecer no nível imediato da sua prática, jamais ele vai encontrar uma jovem senhora – que hoje já é uma velha caquética – chamada mais-valia. Ninguém nunca cumprimentou a senhora mais-valia. Eu estou sinalizando isso porque importantes grupos e movimentos sociais se esforçam para elaborar um conhecimento sobre o mundo limitando-se à experiência cotidiana. Ora, este conhecimento tem que transcender a cotidianidade e sua prática imediata. É só nesta transcendência que a dialéctica do real pode aparecer. A dialética é um movimento real. Mas para que ela apareça como um movimento real, há que estar equipado intelectualmente para poder apreender esse movimento do real – ele não é imediatamente visível.
Revista: Voltando à vida cotidiana: para manipular o mundo, precisamos ‘conhecê-lo’ de alguma forma. Existem outros tipos de conhecimento além do científico?
José Paulo Netto: Sim, sem dúvida existem vários tipos de conhecimento. Tome outro exemplo simples. Você sabe perfeitamente que, para iluminar esta sala, precisa apertar o interruptor. Essa é uma forma de conhecimento. Mas você não sabe o que acontece entre apertar aquele comutador ali na parede e o acendimento dessa lâmpada incandescente: disso entendem o eletricista e, rigorosamente, o físico… Boa parte do nosso conhecimento do mundo opera assim. Você sabe ligar seu carro, sabe que tem que abastecê-lo, lubrificá-lo etc., mas não tem a menor ideia de como o motor funciona – e, para dirigir bem, não precisa dominar o conhecimento de como ele funciona. Eu diria que esse conhecimento é prático-mental. Se você observar bem, verá que quase tudo o que você faz durante o dia é com esse tipo de conhecimento.
Existe outra forma, mais elevada, de conhecimento – a arte, por exemplo. Quando lê Machado de Assis, você tem uma clara ideia de como vivia uma parte da sociedade no Segundo Reinado, aqui no Rio de Janeiro. Mas eu posso também conhecer como vivia essa população recorrendo aos historiadores que trataram daquele período. O objeto destes últimos e de Machado de Assis, neste caso, é o mesmo, mas o modo do conhecimento é diferente. Um é arte, o outro é ciência. Se a ciência é indispensável para o conhecimento do mundo, isto não significa dizer que as outras modalidades de conhecimento sejam dispensáveis: não se pode conceber o mundo, quando a sociabilidade está desenvolvida, sem a arte e sem a manipulação prático-mental. Mas é a ciência que permite saber como o mundo é independentemente da sua subjetividade. É diferente do conhecimento que a arte oferece. Quando você conhece parte da sociedade do Segundo Reinado no Rio de Janeiro lendo Machado de Assis, o conhecimento oferecido pelo Bruxo do Cosme Velho tem como centro organizador a subjetividade humana. Na arte, o sujeito humano se compromete com o objeto: o objeto é apreendido numa perspectiva que eu diria, seguindo Lukács, que é ‘para nós’, para os sujeitos humanos. A perspectiva do cientista é outra; o biólogo, por exemplo, não estuda a célula ‘para nós’: ele quer saber o que a célula é ‘em si’, tal como ela é.
Revista: Como método, a dialética é o reflexo do real?
José Paulo Netto: Como método, a dialética não produz a realidade. O objeto é – perdoe-me a aparente tautologia – objetivo e efetivo, está fora da consciência dos homens. O que a dialética me permite é apreender o que se passa nele. Enquanto o que designei como ‘dialética subjetiva’, ela tem caráter de reflexo – é o mundo refletido no cérebro humano –, mas é fundamental sublinhar que esse reflexo não é um espelhamento. Ele implica que a mente, o cérebro, as faculdades intelectivas dos homens se mobilizem ativamente. O mundo é sempre um mistério a ser decifrado. Então, o reflexo do mundo não é o reflexo da aparência do mundo, da fenomenalidade – do ponto de vista da dialética, é o reflexo do movimento real do mundo.
Revista: Carlos Nelson Coutinho, no livro O estruturalismo e a miséria da razão, aponta problemas nas concepções que pensam separadamente o materialismo histórico ou o materialismo dialético. A dialética precisa ser histórica?
José Paulo Netto: Carlos Nelson tem inteira razão. A dialética é a expressão da história. A dialética é um processo objetivo, o movimento tanto do ser natural quanto do ser social. Mas a dialética da natureza não é igual à dialética da sociedade porque o ser social, embora surgido da natureza e a ela necessariamente vinculado, tem especificidades. Há movimento, há contradição, há avanço, há superação, tanto na natureza quanto na sociedade. Mas a dialética da natureza não pode ser equalizada à da sociedade. Por exemplo, a categoria de liberdade – categoria que é um traço pertinente da realidade social, um modo de ser do real social – não existe na natureza. Na natureza não há liberdade, há acaso, azar, acidente, mas não liberdade. Esta é uma característica específica do ser social.
Há outra categoria que não existe na natureza: teleologia, a ação dirigida segundo fins, o movimento que tende a uma finalidade que é pressuposta no seu início. Eu posso perguntar por que uma macieira dá maçãs e não peras, mas eu não posso perguntar para que ela dá maçãs – na natureza, há causas, mas não há motivos, intencionalidades. Com isso, quero dizer que na natureza há movimento dialético, mas a dialética social não é a natural. Há uma história da natureza, como há uma história da sociedade. E, na medida em que a sociedade se constitui, ela interfere na natureza. Mas a história da natureza guarda uma diferença fundamental: não somos nós, os seres sociais, que a fazemos. Nós fazemos a nossa história, mas não fazemos a história da natureza. Nós também não fazemos a nossa história com liberdade absoluta, porque isso não existe (liberdade é escolher entre alternativas concretas). A determinação dessa diferença (fazemos a nossa história, mas não fazemos a história da natureza) coube a um pensador que precede Hegel, Vico, que, sem saber, já estava fazendo dialética. Essa é a diferença essencial entre a história da natureza e a história social. Nos processos da natureza, não há sujeitos – exceto os deuses, mas esta é uma questão de religião e não de ciência. A sociedade tem sujeitos sociais, coletivos, grupos, classes. Na natureza, onde não existe liberdade, mas acaso, predominam causalidades e necessidades. Na sociedade, há leis causais, necessidades, mas há também alternativas: se a sociedade não tem um fim predeterminado, os homens, que atuam sempre coletivamente, têm projetos, finalidades e objetivos. Isto mostra que há história no ser natural e no ser social, mas que esta história tem especificidades em cada um desses níveis, que são distintos, porém unitários. A sociedade e a natureza fazem uma unidade, mas unidade não é junção de iguais, não é identidade, é unidade entre diferentes. O ser é a unidade – não a identidade – entre o ser natural e o ser social. Isso é dialética. Dialética é história, do ponto de vista do seu processo real.
Revista: O conceito de dialética pressupõe uma verdade objetiva. No caminho contrário, pensadores pós-modernos têm defendido, entre outras questões, a impossibilidade de se conhecer objetivamente o mundo. A constatação, dialética, de que o real é contraditório não pode reforçar essa impossibilidade?
José Paulo Netto: Eu diria que a ideia de que o mundo e o ser são movimento é uma conquista da Modernidade. Já na Antiguidade, vários pensadores tiveram essa percepção, mas foi na Modernidade, resultado do desenvolvimento da Ilustração, que as ideias de movimento e processualidade se instauraram no pensamento ocidental. Do ponto de vista dialético, a natureza desse movimento é que ele é um automovimento: não é preciso que alguém lhe dê um empurrão. O ser tem contradições internas, imanentes, que produzem o seu movimento. Desde o século XIX, não há um pensador sério que negue a dinâmica da realidade, seu movimento – alguns até negam do ponto de vista da realidade natural, já que há, neste campo, tendências muito fortes contra a noção de evolução da natureza. Mas não há nenhum pensador sério que negue o movimento da sociedade. O problema está em conceber qual a natureza desse movimento, em primeiro lugar. Em segundo lugar, qual a concepção desse movimento na relação sociedade-natureza. Eu diria que nenhum dos pensadores pós-modernos nega o movimento. Boa parte deles até invoca a dialética para fundar a sua noção de movimento. O problema é que a esmagadora maioria dos pensadores sociais pós-modernos – aqui, é preciso enfatizar o trato da sociedade, uma vez que qualquer ideia de ‘ciência dura’ pós-moderna já foi suficientemente ridicularizada (lembre-se de Sokal) – trabalha uma noção de movimento ao mesmo tempo em que retira de cena categorias sem as quais essa noção não faz nenhum sentido. Por exemplo, a categoria de totalidade. O pensamento pós-moderno, numa operação epistemologicamente ilegítima e histórica e socialmente artificiosa, além de pouco séria, suprimiu a categoria de totalidade, que é por ele identificada ao ‘totalitarismo’. Isso é um absurdo: totalidade é uma categoria ontológica e teórico-metodológica; ‘totalitarismo’ não é nem categoria, é uma das pérolas do cretinismo sociológico ou da teoria política liberal. Neste sentido, o que muitos pós-modernos entendem como movimento não tem nada a ver com a concepção de movimento dialético, seja como ele aparece em Hegel, seja como ele aparece concretizado historicamente sobre fundamentos materialistas em Marx.
Revista: Uma das críticas pós-modernas ao conceito de dialética é que ele supõe um movimento ordenado do mundo, que eliminaria a ideia de liberdade e de acaso…
José Paulo Netto: O pensamento dialético que vem de Hegel pode ter operado inicialmente como um elemento de hipótese, como diríamos hoje, mas é algo que a investigação de Marx comprovou, estudando, por exemplo, o movimento do capital.
O movimento que expressa o modo de ser do ser da sociedade não é aleatório, nem arbitrário ou irracional: dispõe de uma racionalidade. A realidade social não é uma totalidade amorfa nem inarticulada: ela tem forma, é estruturada, concreta, dinâmica e dispõe de racionalidade. Não é arbitrária nem aleatória, o que não significa que não haja acasos, mas isso é o excepcional. A totalidade social não é fechada, está em movimento, pode negar-se. O fato de ser uma totalidade aberta não faz com que ela deixe de ser uma totalidade. Uma totalidade fechada não conheceria mudanças: o movimento seria, no limite, circular. A realidade social é uma totalidade que se movimenta no sentido de sua desestruturação para gerar uma nova estrutura. Nesse sentido, há relações causais necessárias nessa totalidade. E isso não é nenhum determinismo.
Tomemos o exemplo da economia política: se é próprio do movimento do capital a tendência à concentração e à centralização, um dos resultados necessários é o monopólio. Não se trata de nenhum determinismo prévio, mas da implicação incoercível daquelas tendências. Eis aí um exemplo da racionalidade dessa totalidade, que não é uma racionalidade posta de fora. Onde entra a liberdade? Depende do que entendemos por liberdade. Para Hegel, a liberdade é a consciência da necessidade. Se conhece a necessidade, você é livre, mesmo que não cancele a necessidade. Essa caracterização é importante, mas me parece incompleta, porque não deixa claro onde entra o agir humano. Eu prefiro trabalhar, na tradição dialética que vem de Marx e é expressa por Lukács, com a ideia de que a liberdade é a possibilidade de escolher entre alternativas concretas. Se não há alternativas, não há liberdade. Portanto, a liberdade não é um componente de tipo subjetivo, tal como se expressa em formulações como “Estou preso, mas como sei que estou preso, estou livre”. A liberdade é concreta. O fato de reconhecer a necessidade de que concentração somada à centralização leve ao monopólio não me torna livre; porém, se eu sei que concentração e centralização são movimentos objetivos do capital, que, portanto, não estão na minha cabeça; se sei que o capital não é uma coisa, e sim relação social, entendo que eu estou incluído nisso, que posso escolher outro caminho. Posso escolher, por exemplo, suprimir as bases da concentração: a propriedade privada dos meios de produção. Essa é uma alternativa que eu posso escolher concretamente: há uma via capitalista e uma via socialista. Mas, veja: eu não suprimi a necessidade. É arquiconhecido o mito de Ícaro, aquele que queria voar. Mas o avião só voa porque é mais pesado do que o ar. De balão, você não voa, flutua. Você suprimiu a lei universal da gravitação dos corpos? Não. Você consegue voar exatamente porque a conhece. Nós não suprimimos a necessidade: conhecendo a necessidade, nós podemos utilizá-la.
Revista: Dialética como método é compatível com as metodologias específicas da ciência contemporânea?
José Paulo Netto: Os parâmetros da produção científica e a organização da produção científica institucional contemporâneas têm bases claramente neopositivistas (no livro do Carlos Nelson que você mencionou, há excelentes observações sobre o neopositivismo). E isso é uma camisa de força. A organização institucional da produção do conhecimento expressa o facto de que ela está subsumida a uma lógica macroscópica maior, que é a lógica do capitalismo contemporâneo. No interior dessa organização institucional, nunca se pesquisou tanto, nunca se produziu tanto e… nunca se conheceu tão pouco sobre o conjunto da sociedade. Eu penso que a mesma coisa vale – mas aí sou muito cauteloso – para o domínio das ‘ciências duras’. Penso que aquela que tem avançado mais é a biologia contemporânea, até porque, nela, o processo dialético do ser se impõe obrigatoriamente. Penso, inclusive, que os avanços que virão da engenharia genética, do longo processo – por exemplo – de análise do genoma, vão colocar a dialética no centro da biologia. A biologia hoje restaura a dialética: ela tem que pensar movimento, contradição e transformação. Na física, isso em parte já ocorreu, mas muito subordinado ao complexo industrial-militar.
Em qualquer caso, seja nas ciências sociais, seja nas ‘ciências duras’, a questão da organização institucional da produção científica deve indagar quem financia e o que se financia. Veja como mudou e vai mudar mais ainda a produção na área das ciências sociais desde que, entre nós, o financiamento institucional passou a se organizar mediante os chamados editais. Quando você concorre a um edital, ali já está demarcado por onde vai a pesquisa. É claro que, nestas condições, a tão invocada liberdade de pesquisa torna-se pura retórica. Dificilmente se pode conceber esta liberdade quando o marco da pesquisa está determinado pelo financiamento. Em geral, este marco expressa claramente uma concepção de conhecimento voltado para a manipulação do real. Para manipular o real, eu não preciso conhecer a sua essência. Esse é o caráter neopositivista – não é o positivismo do velho [Auguste] Comte. Não. É o neopositivismo como forma de pensar a realidade a partir da sua manipulação. Penso que isso é terrivelmente nefasto para a dialética. Para o pensamento dialético, no processo de conhecimento, o elemento que dirige o processo, que implica a sua direção, é o objeto, não o sujeito. Assim, não se pode escolher o método arbitrária ou aleatoriamente. Isso, do ponto de vista dialético, é um absurdo. Há que se ter como método aquele que seja capaz de apreender o movimento do objeto. Na academia, frequentemente se identifica método com um conjunto de regras formais e intelectivas para o trato do objeto. É evidente que essas regras são fundamentais: não casualmente, foi Durkheim quem deu o passo decisivo neste sentido. Mas isso não é método, é técnica de pesquisa. Por essas e outras, penso que hoje, na universidade, fazer pesquisa fundada no método dialético significa cada vez mais remar contra a corrente.
Revista: Se o método é histórico, a dialética tem uma relação direta com esse ‘objeto’ que é a sociedade capitalista? A síntese final é a revolução?
José Paulo Netto: Vamos ver se eu consigo responder à sua pergunta de maneira a evitar qualquer finalismo ou teleologismo. Uma das críticas ao marxismo é que ele seria determinista ao afirmar que a ‘revolução’, ou ‘o socialismo’, é ‘inevitável’… Ora, no Manifesto Comunista, o mais ‘clássico’ dos textos de combate de Marx e Engels, lê-se que as lutas de classes resultam sempre na vitória da classe que traz nas suas mãos o futuro – no caso da sociedade que Marx e Engels têm em vista, o proletariado – ou na destruição das classes em presença. Portanto, as lutas de classes em nossa sociedade podem não resultar em socialismo, podem não conduzir ao comunismo. Podem derivar na barbárie: a destruição das classes em presença. E é precisamente por isso que é necessária a iniciativa política: é esta que pode direcionar os processos de lutas para um fim. Não há finalismo imanente na história: a teleologia é posta pela ação organizada dos homens (que, enfim, constituem, em suas relações, as classes). Uma coisa me parece clara: as contradições da ordem burguesa, exponenciadas nos últimos 30 anos, terão o seu desfecho. Uma possibilidade é o processo revolucionário capaz de suprimir a ordem burguesa. Outra é, simplesmente, a destruição da vida sobre o planeta. A alternativa concreta é, pois, socialismo ou barbárie.
Nota:
[1] Entrevista concedida a Cátia Corrêa Guimarães, coordenadora de Comunicação, Divulgação e Eventos da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz.
José Paulo Netto é Professor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (vinculado à Escola de Serviço Social) e um conhecido intelectual marxista brasileiro. Doutor em Serviço Social, Netto se destaca como autor de obras que também apresentam, de forma didática e sem reducionismos, o pensamento marxista. Dentre tais obras, lembramos O que é marxismo (Brasiliense) e, mais recentemente, o livro Economia política: uma introdução crítica, em co-autoria com Marcelo Braz (Cortez), e o volume, com a colaboração de Miguel Yoshida, de Marx-Engels, Cultura, arte e literatura: textos escolhidos (Expressão Popular). Com Carlos Nelson Coutinho, organizou três volumes de textos de G. Lukács (O jovem Marx, Socialismo e Democratização e Arte e Sociedade, todos pela Editora UFRJ).
Fonte: https://pcb.org.br/portal2/15060

domingo, 16 de julho de 2017

Por que a reforma trabalhista é inconstitucional?

Por Ana Magalhães 
Da Repórter Brasil
A reforma trabalhista, aprovada nessa terça-feira (11) no Senado Federal, viola princípios básicos da Constituição, de acordo com relatório do Ministério Público do Trabalho. Pelo menos 12 pontos do projeto de lei que altera a legislação trabalhista ferem direitos constitucionais do trabalhador. As mudanças violam os princípios da dignidade humana e da proteção social do trabalho, e podem ameaçar até o salário mínimo, segundo o procurador-geral do Trabalho, Ronaldo Fleury.
O MPT apresentou estudo no último dia 26 de junho onde recomendou que os senadores vetem os pontos inconstitucionais do projeto de lei (confira abaixo cada um dos 12 pontos inconstitucionais). O procurador-geral do trabalho já havia alertado representantes do governo sobre a inconstitucionalidade de alguns artigos da reforma, quando foi chamado pelo Executivo a dar sugestões e sugerir mudanças no texto. “Nenhuma das nossas sugestões foram acatadas. Até onde sei, só foram acatadas as propostas apresentadas por empresas”, diz Fleury.
Com a reforma aprovada como está, o Ministério Público do Trabalho vê dois caminhos possíveis: entrar com uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF) ou com ações civis públicas nas instâncias inferiores.
Um dos pontos mais delicados da reforma, na avaliação de Fleury, é a ampliação da possibilidade de contratação de trabalhadores autônomos, permitindo que empresas demitam funcionários com carteira assinada para contratar prestadores de serviço, mesmo que diariamente e exclusivamente. “É o que chamamos de pejotização, e, no projeto de lei, ela não tem limites”, diz Fleury. “O problema da pejotização é que ela acaba com a estrutura constitucional de proteção do trabalhador”.
Fleury se refere ao artigo 7º da Constituição que garante direitos como férias remuneradas, 13º salário, FGTS, contribuições previdenciárias, jornada máxima de 8 horas, licença-maternidade, entre outros. Além disso, segundo o procurador, a pejotização permite que o empregador não cumpra o dever constitucional de pagar valor superior ao salário mínimo.
A pejotização prevista na reforma também impede que o trabalhador autônomo conquiste seus direitos na Justiça. Por exemplo: hoje, se um profissional autônomo comprova na Justiça do Trabalho que tem vínculo de emprego (estabelecido pela pessoalidade, exclusividade e subordinação), ele deve conseguir decisão favorável com relação a seus direitos, como férias remuneradas e 13º salário.
No entanto, o artigo da reforma trabalhista que amplia a pejotização diz que “a contratação de profissional autônomo afasta a qualidade de empregado”. Ou seja, caso a reforma seja aprovada, o juiz não poderá considerar que o contrato de prestação de serviço existe para fraudar um vínculo de emprego.
Outro ponto levantado pelo Ministério Público do Trabalho é a flexibilização da jornada de trabalho, prevista no projeto de lei a partir da negociação entre empregados e trabalhadores. A jornada prevista na reforma pode ser de até 12 horas por dia, o que viola a jornada de 8 horas definida na Constituição, segundo a qual ela só pode ser ampliada por acordo ou convenção coletiva de trabalho. Há, ainda, a possibilidade de redução do tempo de descanso e refeição (de uma hora para meia hora). “Essas medidas são um prato cheio para acidentes de trabalho” afirma Fleury, destacando que a maioria dos acidentes do trabalho acontece nas últimas horas da jornada devido ao cansaço.
Fleury afirma ainda que as definições do projeto de lei sobre danos morais ferem o princípio constitucional de que ‘todos são iguais perante a lei’. Isso acontece porque o projeto cria um limite máximo de valor para a indenização por dano moral, que tem relação com o salário do trabalhador. Ou seja: se o mesmo acidente de trabalho acontecer com um trabalhador que tem salário de R$ 10 mil e com um que ganha R$ 1 mil, a indenização do último será 10 vezes menor do que a do seu colega de trabalho.

Veja abaixo todos os pontos considerados inconstitucionais pelo Ministério Público do Trabalho:
1. Pejotização
O texto da reforma trabalhista afirma que a contratação de autônomos, mesmo que com exclusividade e de forma contínua, “afasta a qualidade de empregado”. Para o Ministério Público do Trabalho, esse tipo de contratação viola o princípio constitucional dos direitos fundamentais dos trabalhadores de ter uma relação de emprego “protegida” e com direitos garantidos, como remuneração não inferior ao salário mínimo, FGTS, seguro-desemprego, 13º salário, férias remuneradas, licença-maternidade, entre outros. Caso a reforma seja aprovada, o governo promete impedir, via medida provisória, que exista uma cláusula de exclusividade no contrato de prestação de serviço.
2. Terceirização
A terceirização de qualquer atividade foi liberada por outra lei aprovada neste ano, mas a reforma trabalhista detalha os casos em que ela será permitida. Os dois projetos de lei permitem a empresa terceirizar qualquer atividade, inclusive sua atividade principal. Segundo o MPT, a ampliação da prática viola o princípio constitucional de que todos são iguais perante a lei porque permite remunerações diferentes a trabalhadores que realizam a mesma função.
O MPT também alega que a terceirização em empresas públicas ou em economias mistas viola a regra constitucional que estabelece concursos públicos para a contratação desses funcionários.
3. Pagamento abaixo do salário mínimo e redução do FGTS
A reforma coloca em risco o direito ao salário mínimo, estabelecido na Constituição e na Declaração Universal dos Direitos Humanos. O projeto apresenta diversas maneiras de o empregador burlar essa remuneração: uma delas é a possibilidade de contratar um autônomo de forma contínua e exclusiva, e outra são os contratos onde o trabalhador fica por um longo período à disposição da empresa, mas recebe apenas pelas horas trabalhadas. Neste caso, não há garantia de que o trabalhador fará o número de horas necessárias para ganhar o salário mínimo.
Além disso, a reforma diz que ajudas de custo (como auxílio-alimentação, diárias para viagem e prêmios) não farão mais parte do salário, o que afronta dispositivo constitucional que diz que essas verbas serão incorporadas à contribuição previdenciária e ao cálculo do FGTS.
4. Flexibilização da jornada de trabalho
O projeto de lei permite jornadas de trabalho superiores às oito horas diárias, estabelecida por meio de acordos entre empregador e empregado. Há ainda a previsão de que o empregado trabalhe 12 horas e folgue 36, regime que hoje não está em lei, mas já é permitido para algumas profissões pelo Tribunal Superior do Trabalho.
As mudanças, segundo o MPT, violam a jornada constitucional e também vão contra acordos internacionais assinados pelo Brasil, que preveem “que toda pessoa tem o direito de desfrutar de condições justas de trabalho, que garantam o repouso, os lazeres e a limitação razoável do trabalho.” O governo promete estabelecer, por Medida Provisória, que essa flexibilização só será possível a partir de acordo ou convenção coletiva.
5. Redução da responsabilidade do empregador
Para o teletrabalho (o “home-office”), a reforma diz que cabe ao empregador apenas “instruir” o trabalhador sobre os riscos de doenças e acidentes de trabalho. Além disso, afirma que a responsabilidade pela aquisição, manutenção ou fornecimento da infraestrutura necessária à prestação do trabalho remoto (e o reembolso de despesas) será prevista em contrato escrito.
O MPT afirma que é responsabilidade constitucional do empregador cumprir e custear o cumprimento das normas de saúde, higiene e segurança. Além disso, essas disposições transferem parte dos riscos e dos custos ao empregado – o que pode gerar redução salarial, vetado pela Constituição.
6. Negociação individual para quem ganha acima de R$ 11 mil
O projeto de lei permite que empregadores façam acordos individuais com trabalhadores que tenham ensino superior e que ganhem valor igual ou superior a dois tetos do INSS (ou seja, R$ 11.062,62).
Porém, a Constituição não autoriza, em nenhum momento, flexibilização de direitos por meio de acordos individuais e proíbe distinção entre trabalhos (e trabalhadores) manuais, técnicos ou intelectuais.
7. Negociado sobre o legislado
Com a reforma, convenções e acordos coletivos irão prevalecer sobre a lei em diversos temas, exceto quando se relacionar ao pagamento do FGTS, adicional noturno, repouso semanal remunerado, férias, salário-maternidade, entre outros.
Na avaliação do MPT, esses acordos podem extinguir ou reduzir direitos, o que viola a Constituição. Segundo a carta de 1988, a negociação coletiva serve para garantir que os trabalhadores organizados em sindicatos possam conquistar direitos que melhorem sua condição social, o que não está garantido no novo texto.
8. “Representantes dos trabalhadores”
A proposta estabelece que empresas com mais de 200 empregados tenham “representantes dos trabalhadores”, com a finalidade de facilitar o entendimento com empregadores, buscar soluções para conflitos e encaminhar reivindicações.
Segundo o MPT, a Constituição atribui exclusivamente ao sindicato “a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas”. Caso a reforma seja aprovada, o governo promete mudar esse ponto através de uma medida provisória. 
9. Redução das horas de descanso podem aumentar acidentes e doenças
Além de flexibilizar as horas de descanso, que podem ser decididas por acordo coletivo, o texto do projeto de lei afirma que “regras sobre a duração do trabalho e intervalos não são consideradas como normas de saúde, higiene e segurança”.
Segundo o MPT, isso permite que o trabalhador seja submetido a atividade prejudicial à sua saúde em jornada de 12 horas. Mas a Constituição garante como direito do trabalhador a redução dos riscos relacionados ao trabalho. Além disso, o Ministério Público do Trabalho afirma que a maior parte dos acidentes de trabalho acontecem nas últimas duas horas da jornada, justamente devido ao cansaço do trabalhador.
10. Indenização por dano moral
O projeto de lei determina faixa de valores para a indenização por danos morais, de acordo com o salário do trabalhador. Atualmente, elas são determinadas pelos juízes. Se a ofensa for de natureza leve, a indenização determinada pelo juiz poderá ser de até três vezes o valor do salário. Se for gravíssima, de até cinquenta vezes.
A norma viola o princípio constitucional de que “todos são iguais perante a lei”, já que o projeto de lei permite valores diferentes para trabalhadores com salários diferentes, e também pode impedir a reparação integral do dano. Esse é outro ponto que o governo federal promete mudar através de uma medida provisória.
11. Acesso à Justiça do Trabalho
A reforma permite que empregados e empregadores assinem um “termo de quitação anual de obrigações trabalhistas”, o que tem potencial de tirar a decisão de questões trabalhistas da mão da Justiça. O projeto também estabelece que o pagamento dos gastos processuais é de responsabilidade do autor da ação, mesmo se tiver direito à justiça gratuita.
O MPT argumenta que isso vai contra o artigo 5º da Constituição, onde está previsto que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Além disso, a Constituição estabelece a gratuidade judiciária para quem comprova não ter recursos para o pagamento das despesas do processo.
12. Limitação da Justiça do Trabalho
O projeto de lei estabelece um rito específico para que a Justiça do Trabalho aprove decisões que criam jurisprudência e aceleram processos semelhantes em instâncias inferiores, as súmulas vinculantes. Segundo a reforma, elas têm que ser aprovadas por pelo menos dois terços dos membros do tribunal, e a mesma matéria tem que ter sido decidida de forma unânime e idêntica em pelo menos dez sessões anteriores, com a realização de uma audiência pública.
De acordo com a Constituição, as súmulas vinculantes hoje podem ser aprovadas por decisão de dois terços dos membros do tribunal superior, mas sem a exigência de decisões anteriores ou de audiências públicas.
Fonte: http://www.carosamigos.com.br

Milton Santos

As frentes de esquerda e a sabedoria das geringonças


Por Reginaldo Moraes*
Em Portugal, duas organizações de esquerda bem ‘duras’, o PCP, de origem estalinista, e o Bloco, de raízes trotskistas, concordaram em apoiar um governo do PSP, centro-esquerda moderada, que já executou políticas de austeridade. Lição para o Brasil?
O brasileiro Ruy Braga (ex-PSTU e atual PSOL) e Elísio Estanque (Bloco de esquerda português) assinam importante artigo no jornal Público, de Lisboa: “Uma geringonça para o Brasil?”. Oportuno, merece muita atenção. Leia aqui a versão digital.
A meu ver, o artigo traz uma enorme contribuição ao debate político brasileiro. Digo “a meu ver” até porque já externei esse ponto de vista. E, deliberadamente, para sugerir tal reflexão, me dei ao trabalho de escrever um livrinho sobre a experiência do Bloco de Esquerda e o Podemos. O artigo dos dois vale desde logo por sua conclusão. Só que a conclusão conflita com algumas afirmações que a precedem. E a conclusão deixa de lado uma premissa fundamental – e que, com certeza, incomoda os autores (Ruy, pelo menos). Vejamos.
O artigo começa reconhecendo as “as inegáveis conquistas alcançadas pelos primeiros governos do PT”. Duas notas sobre essa afirmação. Primeiro, que elas existiram, é certo, mas, como sabem os autores, foram bem pequenas. Ocorre que, dada a enorme desigualdade existente no Brasil, conquistas pequenas como essas são simplesmente fantásticas para o lado de baixo e intoleráveis para o lado de cima. De qualquer modo, é algo positivo ver, na pena de gente que sempre o negou, que nem tudo no governo do PT foi traição de classe. Embora, reconheço, muita coisa me pareça perto disso – ou, pelo menos, foram concessões para lá de dispensáveis.
Mas as conquistas existiram – e certamente em parte explicam porque, ao contrário de certas análises mais apressadas, o “ciclo do PT” não é tão claramente “passado”. Recentes pesquisas de opinião (mais de uma) apontam não apenas o apelo popular (e eleitoral) de Lula, mas, também, o crescimento da preferência pelo PT, pelo partido. E tudo isso depois de uma guerra midiática anti-PT. Qualquer plano político sério tem que levar isso em conta.
Mas o uso do cachimbo entorta a boca, como se dizia antigamente. Falo de Ruy, mais diretamente, porque está muito mais ligado ao tema do que Estanque, por suposto. Assim, Ruy lamenta “certa reticência por parte da principal liderança popular da história brasileira: Luiz Inácio Lula da Silva”. É mais do que um lamento, é uma insinuação, que mais adiante se revela uma acusação. Não descarto que haja tal resistência – creio que existe – e ela seria menor, claro, em alguém como eu ou Ruy, que não temos as condições do ex-presidente. Não temos o eco (e, portanto, a responsabilidade) que ele tem. Nem temos a condição de cidadão à beira de uma condenação e, até, no limite, encarceramento. Se estivéssemos em tal condição, creio, teríamos algumas reticências.
Mais adiante, há outras afirmações indevidas ou carentes de comprovação factual. O artigo menciona a existência de negociações entre a direção do PT e o deputado golpista Rodrigo Maia para obter o afastamento de Temer. Seria bom comprová-las, até porque, explícita e enfaticamente, tanto Lula quanto a presidente do PT rejeitaram essa via. Se os autores têm informação relevante a respeito, seria bom expor ao público (e no Público…). Que haja petistas (e até grão-petistas) com essa inclinação, não duvido. Mas há em outros partidos de esquerda gente grossa que parece sonhar com Moro ou Dallagnol em sua chapa. Ou não? Mas, é relevante?
A dita reticência e o cultivo das negociações de gabinete à direita seriam, segundo o artigo, uma explicação para o arrefecimento das frentes de massa influenciadas pelo partido (como a CUT e a Frente Brasil Popular). O argumento poderia ter algum sentido, acho que tem, só que é um pouco arriscado dizer que “a desmarcação da greve geral inicialmente prevista para o dia 30 de junho aponta nesse sentido”. Os fatos – e certamente Ruy os acompanhou bem de perto – mostram que nas duas semanas que precederam a greve houve recuos claros e fortes de duas centrais que controlam setores relevantes para o sucesso da paralisação (transporte ferroviário, metrô, ônibus).  No caso do Metrô de São Paulo, por exemplo, o próprio PSOL se dividiu – e uma parte optou pela não adesão à greve. O mundo é um pouco mais cinzento.
De qualquer modo, não daria tanta importância a tais desacordos com os autores. São menores, em vista da mais do que relevante (e surpreendente) conclusão: “O país necessita de uma ‘saída portuguesa’. Precisa de uma geringonça”.
O que é a geringonça?
Para ver o tamanho da dificuldade e os caminhos tortuosos que ela nos indica, é preciso explicar ao leitor brasileiro o que quer dizer a “geringonça” portuguesa. Elisio Estanque, que viveu essa história, pode corrigir ou completar minha descrição.
A geringonça é, fundamentalmente, um acordo pelo qual duas organizações de esquerda bem “duras” (o PCP, de origem estalinista, e o Bloco, de raízes trotskistas) concordaram em apoiar um governo do PSP, uma centro-esquerda para lá de moderada. Afinal, o PSP fora, anteriormente, executor de políticas de “austeridade” neoliberais. E seus “barões” são claramente aparelhistas, fisiológicos. PCP e BE tinham 21% dos votos no parlamento. Com isso, se apoiassem o PSP (com 30%), este poderia formar o gabinete, isto é, o governo do país. Bom, um governo de coalizão? Não exatamente, porque PCP e BE não participam do gabinete, não indicam ministros, secretários, nada disso.
A geringonça, no plano do governo nacional, começou, de fato, com experimentos similares em governos locais, como em Lisboa. A geringonça foi uma decisão nada fácil para o BE, por exemplo. O partido tinha uma tradição de política bem à esquerda, não fazia acordos com partidos “reformistas” ou “social-liberais”. A decisão de ir para a geringonça não foi fácil e sem sequelas. E as políticas do governo geringonça estão longe de constituir um “novo projeto de desenvolvimento” ou uma ruptura com o capital. Contudo, com todas essas limitações, trouxeram ganhos significativos para os trabalhadores e recuperaram a qualidade das políticas públicas (saúde, educação, previdência). Uma geringonça para o Brasil, como querem os autores, deveria partir da avaliação dessa experiência, de suas premissas e de suas dificuldades.
Uma ideia no contrafluxo?
Como disse, creio que a ideia faz muito sentido. E, como disse, venho apontando isso faz tempo – com o pouco que minha voz pode ecoar. Mas esta ocorrência é surpreendente por vários motivos. Primeiro, porque introduz pelo menos uma dissonância (se não uma mudança de tom) no artigo – aquilo que vem antes enfraquece a proposta, quase a impede. Segundo, porque conflita com toda a trajetória dos grupos que os autores chamam para o acordo (sobretudo o grupo a que pertence Ruy, nem falar daquele que abandonou). O PSOL rejeitou até mesmo o apoio eleitoral do PT na segunda volta das eleições municipais, no Rio e em Belém (onde, aliás, aceitou e abraçou efusivamente a adesão de direitistas renomados, uma geringonça singular). Estaria agora disposto a um governo conjunto com o PT?
Mas vou um pouco adiante. Certa vez, em conversa, disse a um amigo português que o Bloco havia feito um acordo com um partido que está à direita do PT, eu diria mesmo que o PS português está mais próximo de um PMDB, pela fisiologia de boa parte de seus dirigentes e pelas políticas que executou quando governo. E as políticas do atual governo-geringonça são mais do que moderadas, são reformas pontuais num ajuste (a tal austeridade) que a direita lhe deixou como herança.
Dito isto, só me resta concordar com a conclusão, mas lembrar essas ressalvas para apontar as dificuldades. Um movimento dessa natureza – a confluência rumo a uma geringonça tropical – não provoca apenas “mau humor” em Lula, como vazou a mídia liberal. Sei (e os autores também) que gerou bem mais do que isso em boa parte do PSOL. São obstáculos a superar – e é bom reconhecer onde estão, não onde a nossa antiga crença nos diz que estão.
Braga e Estanque dão uma enorme contribuição a esse debate. É preciso que siga adiante.
**Professor da Unicamp, pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-Ineu) e colaborador da Fundação Perseu Abramo. É colunista do Brasil Debate
Fonte: http://jornalggn.com.br

O impasse brasileiro e a alternativa portuguesa

O recado do sindicalismo lulista parece claro: 2018 aproxima-se e não é hora de apostar na mobilização popular. Todavia, essa posição elide o problema nevrálgico de um eventual terceiro mandato do líder petista: com qual agenda social e econômica Lula iria governar?
Luiz Inácio Lula da Silva e Gleisi Hoffmann na reunião do Diretório Nacional do PT realizada em Brasília na última quinta-feira, dia 6 de julho de 2017. Foto: Ricardo Stuckert

Por Ruy Braga.

Com míseros 7% de aprovação do governo golpista, o índice mais baixo em três décadas, é difícil acreditar que a campanha pelas eleições diretas não tenha decolado no país. Naturalmente, existem muitas razões para isso. No entanto, e apesar do esforço dos movimentos sociais, em especial, da Frente Povo Sem Medo, coalização liderada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), e de alguns partidos políticos esquerdistas, caso do PSOL, por exemplo, a verdade é que a mobilização popular contra Temer tem esbarrado numa certa reticência por parte da principal liderança popular da história brasileira, Luiz Inácio Lula da Silva.
Franco favorito às eleições presidenciais marcadas para o próximo ano, Lula da Silva parece se sentir desconfortável com as implicações da derrubada do governo ilegítimo de Temer por um massivo movimento popular impulsionado por forças políticas radicais. Quais seriam as implicações políticas de um movimento dessa natureza para a “governabilidade” do país, leia-se, para os acordos com os eventuais aliados no congresso, na formação de um novo governo liderado pelo PT? “– De que adianta Temer cair pela pressão popular se não houver uma mudança na composição do Congresso Nacional?”, parece perguntar Lula da Silva.
Além disso, o PT está muito mais preocupado em defender Lula da Silva das acusações da operação Lava-Jato, assegurando sua participação na eleição agendada para o próximo ano, do que investir da mobilização de suas bases a fim de derrubar o atual governo. O relativo malogro da greve geral do dia 30 de maio aponta nesta direção. Apenas os movimentos sociais, a exemplo do MTST, sustentaram – sobretudo na parte da manhã – bloqueios de rodovias e avenidas. No geral, todavia, o clima foi, em contraste com o que ocorreu no último dia 28 de abril, marcado por uma flagrante normalidade no país.
Mesmo considerando os conflitos no interior do movimento sindical e o afastamento das centrais pelegas, preocupadas com a negociação com o governo federal em torno da permanência do imposto sindical, o recado do sindicalismo lulista parece claro: 2018 aproxima-se e não é hora de apostar na mobilização popular. Todavia, essa posição, além de arriscada do ponto de vista jurídico – afinal, Lula da Silva pode muito bem ser condenado nas duas primeiras instâncias, situação que inviabilizaria sua candidatura em 2018 –, elide o problema nevrálgico de um eventual terceiro mandato do líder petista: com qual agenda social e econômica Lula iria governar?
Aparentemente a resposta é simples. Lula da Silva está prometendo uma versão atualizada dos “PACs”, Programas de Aceleração do Crescimento, já testados em seus mandatos. Trata-se de um plano de investimentos em infraestrutura associado a estímulos ao agronegócio, às mineradoras e ao setor de petróleo, encimado pela oferta de crédito para os consumidores adquirirem carro e casa própria. Uma repetição dos anos 2006-2014, como é possível perceber. Além dos limites impostos ao sucesso desse modelo de desenvolvimento pelo fim do superciclo das commodities e pela crise da globalização iniciada em 2008, a verdade é que esse “sonho fordista” não foi capaz de produzir empregos de qualidade capazes de apoiar um movimento consistente de progresso ocupacional para a classe trabalhadora no país ou mesmo reverter a desindustrialização promovida pela globalização.
Na realidade, esse modelo multiplicou o trabalho precário e o endividamento das famílias trabalhadoras. Além disso, trata-se de uma política comprometida com a “neoliberalização” da estrutura social brasileira. Em poucas palavras, além da manutenção do tripé formado pela independência operacional do Banco Central, da prática da taxa de juros elevados e da manutenção do câmbio flutuante, a financeirização das empresas, da moradia popular e das poupanças das famílias trabalhadoras agravou a vulnerabilidade das classes subalternas às flutuações do mercado. Assim, as formas de precariedade produzidas pela neoliberalização do regime de acumulação brasileiro durante os governos petistas aprofundaram-se depois do golpe parlamentar, mas, não foram criadas pela atual crise.
Os efeitos do neoliberalismo no âmbito tanto do desmanche das formas de solidariedade popular características do período fordista quanto da promoção de movimentos insurgentes protagonizados por jovens, trabalhadores precários, negros, mulheres, LGBTs, etc., tendem a potencializar a fragmentação da agenda política das classes subalternas, dificultando a unidade necessária à criação de um projeto hegemônico alternativo. O grande desafio para as forças sociais progressistas contemporâneas é o de como aproximar a universalidade da regulação do trabalho da particularidade das exigências dos diferentes setores dominados da sociedade. Para usarmos um termo caro a Antonio Gramsci, como “traduzir” reciprocamente regulação e emancipação?
Não alcançaremos nenhum progresso nessa direção caso um eventual governo petista reproduza aquilo que, em essência, já demonstrou seus estreitos limites. Não precisamos de mais neoliberalismo temperado por esquemas corruptos com empresas como a Odebrecht ou a JBS. Precisamos resgatar a capacidade da esquerda traduzir avanços na proteção do trabalho em medidas capazes de fortalecer as lutas dos setores dominados das classes subalternas. Para tanto, é necessário alinhar os movimentos sociais tradicionais, como os sindicatos, por exemplo, aos novos movimentos sociais que se multiplicam na esteira da mercantilização dos corpos, das terras urbanas, do meio ambiente e dos direitos sociais.

A alternativa portuguesa

No contexto da crise da globalização e do recrudescimento do conservadorismo em larga escala, cabe mencionar o caso português como exemplo raro de um passo na direção certa. Nas eleições portuguesas de 4 de outubro de 2015, a coligação dos partidos de direita (Partido Social-Democrata – PSD e Centro Democrático Social – CDS), que estava no poder desde 2011, obteve 38,5% dos votos, o que não lhe garantiu a maioria parlamentar necessária à formação do governo. O PS obteve 32,3% dos votos e, numa ação sem precedentes na história política de Portugal, o PCP, que alcançara 8,3% dos votos, e o Bloco de Esquerda, que obtivera 10,2% dos votos, decidiram apoiar um governo liderado pelo PS.
Tal apoio estava condicionado a uma agenda centrada em medidas contrárias à política austericida implementada pelo governo anterior de Passos Coelho. Além disso, o PCP e o Bloco de Esquerda decidiram não assumir cargos no governo socialista de Antonio Costa, limitando-se a assegurar sua sustentação parlamentar. Pode parecer pouco, mas a formação da “Geringonça” portuguesa, com a aliança entre o Bloco o PCP e o Partido Ecologista “Os Verdes” (PEV), em apoio ao governo do Partido Socialista (PS), não apenas tem conseguido reverter muitas medidas austericidas, como impulsionar um ciclo de crescimento econômico que, até o momento, aproximou Portugal do desempenho das economias mais dinâmicas da Europa.
Nas palavras do sociólogo português, Boaventura de Sousa Santos:
“É um pacto de governo mas que teve este efeito. É que fizemos exatamente o oposto ao que diz a receita neoliberal. E o resultado que estamos a ter é exatamente o oposto ao que eles diziam: o país nunca teve tão pouco desemprego, estamos em 9%; é um dos países que mais cresce na Europa, estando acima dos 10%; o déficit público está a diminuir; a dívida pública se mantém porque é impossível diminuir de um ano para o outro, e o país está exatamente fazendo o contrário do que diz a receita neoliberal, e está a erguer-se de novo.”
Maria Carolina Trevisan e Gustavo Aranda, “Um chá com Boaventura” (entrevista).Brasileiros, 19.06.2017.
O caso português serve para demonstrar que uma alternativa política de esquerda não apenas é possível como desejável do ponto de vista do próprio crescimento econômico. Trata-se de um exemplo ainda frágil. No entanto, aponta na direção correta. Além disso, a formação da coalizão parlamentar que garante a sustentação do gabinete de Antonio Costa alimenta-se da aproximação entre os sindicatos e os novos movimentos protagonizados por jovens trabalhadores precários, algo pouco usual nos dias atuais. Tudo somado, é importante estar atento à Geringonça portuguesa quando as esquerdas brasileiras começam a discutir qual o futuro da atual crise política.
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Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (Xama, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu mais novo livro, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. É também um dos autores dos livros de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, Carta Maior, 2013) e Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil (Boitempo, 2016). A Boitempo prepara para 2017 o lançamento de mais novo livro A rebeldia do precariadoColabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.
Fonte: https://www.blogger.com/