As crescentes burocratização e mercantilização do mundo acadêmico são facilitadas pelo fato de os objetos de conhecimento e os ambientes de trabalho predominantes de várias das ciências sociais terem sempre sido o Estado e o mercado capitalista e não os movimentos sociais e suas organizações.
[Pode ser lida aqui a primeira parte deste artigo.]
A burocratização e a mercantilização têm propiciado as condições ideais para que os “inovadores” se vejam, cada vez mais, acuados por “burocratas” e “(micro)empresários”. Ao mesmo tempo, a impressão que se tem é de que cresce a quantidade destes em comparação com a quantidade de “inovadores” e mesmo de bons “disseminadores”. Na realidade, o que ocorre é que se multiplicam as recompensas para “inovadores” que, candidatos a “caciques”, aceitem absorver algumas das técnicas e artimanhas de “burocratas” e “(micro)empresários”.
Em tempo, para evitar um mal-entendido: “inovador” não é sinônimo de “gênio”. Não se parte do pressuposto delirante de que, para atuar e ser reconhecido por seus pares como um “inovador”, cada professor universitário deve revolucionar sua área de conhecimento, ter livros traduzidos para uma dúzia de línguas estrangeiras ou colecionar prêmios nacionais e internacionais – da mesma forma como não se deve imaginar que, para disseminar competentemente o saber e comunicar-se bem com os pares, os estudantes e o público leigo, seja preciso que o professor possua um incomum talento retórico e uma vocação para “celebridade” midiática. A única premissa é aquela que, inclusive, está embutida nas exigências institucionais mais corriqueiras: que o professor universitário seja, também, um pesquisador, e que, do mesmo modo como se espera que ele, enquanto docente, ministre boas aulas, possa ele, na qualidade de pesquisador, gerar (criar) conhecimento novo.
Ademais, não é o caso de, hipocritamente, negar que é geralmente muito bom que um ou outro colega com talento e capacidade administrativos revele interesse em assumir cargos na administração acadêmica. O princípio da administração da universidade por ela própria, tão deformado no Brasil (porque, ao mesmo tempo em que falta uma genuína autonomia, escasseia a infraestrutura de suporte), implica que as funções de direção, nos diversos níveis, devem ser exercidas por quadros docentes, e não por funcionários que nada tenham a ver diretamente com o ensino e a pesquisa. Além disso, quando as condições materiais e institucionais propiciam o respeito e a cooperação necessários, a administração acadêmica pode, inclusive, assumir traços de atividade de formulador de políticas e estratégias acadêmico-institucionais, exigindo do ocupante do cargo qualidades como arrojo, senso de oportunidade (o que é diferente de oportunismo), vontade de inovação, etc. Nessasmeramente burocrática; exige-se uma certa “representatividade”, um certo prestígio acadêmico para estar à frente, formalmente, como um “primeiro entre pares”. (Nem é preciso dizer que há, sem dúvida, “panelinhas” e interesses extra-acadêmicos em jogo mesmo nos ambientes acadêmicos de melhor nível. Apenas trata-se de reconhecer, aqui, o grande peso dos fatores propriamente vinculados à referida “representatividade”.) Não é isto, lamentavelmente, que o processo de burocratização nas condições de um país semiperiférico como o Brasil costuma engendrar como resultado. Pelo contrário: enquanto cargos de direção são geralmente evitados pela maioria por serem um fardo pouco ou nada compensador em matéria de reconhecimento público, há os que se “especializam” em fazer desses cargos o seu “nicho ecológico” básico, sem que, entretanto, necessariamente tenham a capacidade ou mesmo a vontade de inovar administrativamente ou nem sequer reformar o que quer que seja de modo consistente. condições, exercer um cargo acadêmico pode ser, até mesmo do ponto de vista intelectual (para não falar no “prestígio”, nos marcos de uma sociedade heterônoma que reproduz hierarquias), algo compensador. Não é à toa que, nos institutos e departamentos daquelas que são consideradas as melhores universidades do mundo, os cargos de direção mais diretamente vinculados ao quotidiano dos institutos e departamentos geralmente não são confiados a alguém por conta de sua capacidade
Dificilmente um “burocrata” ou um “disseminador” se transforma, de estalo, em um “inovador”. Torna-se cada vez mais provável, entretanto, que “inovadores”, exaustos ou desapontados com a escassez de estímulos materiais e imateriais, joguem cada vez mais cedo a toalha no ringue – mesmo que isso se dê sob a forma de um processo gradual, e não subitamente –, convertendo-se em “burocratas” ou “disseminadores” (ou, em alguns casos, em “(micro)empresários”). Do ponto de vista das relações de poder, particularmente grave é quando os “caciques” tornam-se “caciques” em grande parte por seu poder de influência como “burocratas” ou “(micro)empresários” (ou “disseminadores”), sendo o seu papel como “inovadores” pequeno ou inconsistente.
Os “caciques”, a propósito, são uma “espécie” politicamente crucial, ao mesmo tempo em que possui traços muito peculiares. Ao ingressar na carreira acadêmica, o jovem docente demonstrará, não raro desde o princípio, se seu perfil fundamental é o de um “inovador”, de um “disseminador” ou de um “burocrata”. O estabelecimento como um “(micro)empresário”, ao menos por enquanto, é coisa que exige mais tempo (uma vez que se leva algum tempo até poder mobilizar os recursos necessários à atuação como consultor – prestígio, contatos, formação de equipe etc.), e mais tempo ainda se requer para que se atinja a condição de “cacique”. Se, em condições “ideais”, seria de esperar que um “cacique”, por ser muitas vezes uma figura pública influente, ou mesmo uma “estrela”, deveria chegar a essa condição com base em seus méritos e em sua contribuição sobretudo (ainda que não exclusivamente) como “inovador”, o que se observa no Brasil é que isso cada vez menos parece corresponder à realidade.
O problema não é somente o de que “caciques” nem sempre são “inovadores” consistentes, sendo, isso sim, algumas vezes, “pseudoinovadores”: ou seja, alguém que, vítima em certos casos de autoengano, pensa que está verdadeiramente inovando, mas está, na realidade, reinventando a roda (tornando-se, com isso, apenas um tipo sofisticado de “disseminador”). Em um ambiente em que nem sempre se conhece e acompanha direito a literatura de sua área como seria desejável (nem mesmo aquela em português, o que dirá aquela em línguas estrangeiras), esse tipo de deformação é um importante e constante risco. O problema é ainda mais sério quando a capacidade de falar o idioma do poder acadêmico-burocrático prepondera nitidamente, como fonte de prestígio, sobre a capacidade de criar e transmitir ideias. Nessas circunstâncias, está-se diante de um “paradoxo astronômico”: o “cacique” é uma “estrela” que brilha… sem possuir luz própria.
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As crescentes burocratização do mundo acadêmico e mercantilização da produção intelectual são grandemente facilitadas pelo fato de que os “loci de referência discursiva” (= os objetos reais com referência aos quais se definem e constroem os objetos de conhecimento) e os “loci de construção discursiva” (= os ambientes concretos nos e a partir dos quais o trabalho intelectual é elaborado) predominantes de várias das ciências sociais sempre foram o Estado e o mercado capitalista, e não os movimentos sociais e suas organizações. Quanto a isso, os casos mais “didáticos” têm sido, provavelmente, a Economia e a Ciência Política, mas a Geografia Humana também deve ser lembrada – por exemplo, por conta de seu envolvimento, que frequentemente passa ao largo de qualquer senso crítico, com o planejamento urbano e regional promovido pelo Estado.
É uma triste e preocupante realidade, além disso, que a burocratização não implica somente o aumento da população daqueles que são, acima de tudo, “burocratas”. Praticamente todos os pesquisadores têm sido submetidos a diferentes pressões “burocratizantes” (por parte de agências de fomento, das universidades, etc.), as quais têm levado a que se gaste cada vez mais tempo elaborando e avaliando projetos, havendo, por outro lado, cada vez menos tempo e tranqüilidade para gerar conhecimento novo.
Diante de todo esse quadro, quem mais se vê comprometido com o risco de incoerência são os docentes e pesquisadores que, à luz de suas biografias e autodefinições, representariam alguma modalidade de pensamento socialmente crítico. O “olhar de longe e do alto” nas ciências sociais, bastante típico da Economia e da Ciência Política, mas também da Geografia Humana, pode, eventualmente, até ser considerado como perfeitamente legítimo do ângulo do pensamento crítico, em uma circunstância: caso seja realizado com a finalidade de se ganhar visão de conjunto e apreender fenômenos somente apreensíveis nas escalas de representação dos grandes espaços, e não por distanciamento em relação aos “mundos da vida”, ao quotidiano dos atores sociais concretos. Mas, se for valorizado com exclusividade ou nítida prioridade, será uma “visão de sobrevôo” similar àquela que é própria do Estado, a qual serve à classificação e ao controle sociais. Essa “visão de sobrevôo” hipervalorizada pode ser compatível ou compatibilizável com a burocratização do mundo acadêmico e a mercantilização da produção intelectual. Entretanto, a disposição de abraçar ou manter um compromisso ético-político com a mudança sócio-espacial vai sendo minada ou dificultada no longo prazo pela burocratização e pela mercantilização, que levam a uma tendência de distanciamento crescente dos ambientes acadêmicos relativamente às circunstâncias espaço-temporais em que é possível observar as contradições e os conflitos sociais “de perto” e mesmo “de dentro” (o que pressupõe incorporar a perspectiva do insider, do “mundo da vida”).
[*] Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Ilustrações: gravuras de Goya.
Fonte: http://passapalavra.info/?p=23469
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