sábado, 30 de novembro de 2013

As Jornadas de Junho abriram uma situação pré-revolucionária?

Por Valério Arcary
Os camponeses estão votando com os pés.
Vladimir Ilitch Ulianov, alias, Lenin, quando informado que os camponeses estavam desertando em massa do Exército Czarista na Primeira Guerra Mundial.
Em qualquer análise, respeitar o sentido das proporções é indispensável. Quando da interpretação de grandes acontecimentos, no calor da hora, existe sempre o duplo perigo de subestimação ou de sobre-estimação. A grande questão que desafia a compreensão das Jornadas de Junho, em uma análise marxista, é responder em que medida a relação social de forças entre as classes foi alterada. Estamos diante de uma nova realidade nacional? Abriu-se ou não uma situação pré-revolucionária?
Nosso argumento é que a partir do dia 17 de junho aconteceu uma inflexão importante da situação política no Brasil. Nas Jornadas de Junho centenas de milhares de jovens invadiram as ruas de São Paulo e do Rio de Janeiro. Na dimensão nacional pelo menos algo próximo a dois milhões de pessoas saíram às ruas em pelo menos umas quatrocentas cidades. Estavam votando com os pés. As dimensões deste processo remetem à ideia de que um processo revolucionário se iniciou. [1]
Uma revolução não se resume ao momento da insurreição. Uma revolução é um processo. É preciso lembrar, também, que o conceito de situação revolucionária é definido com muita frequência, ao mesmo tempo, de forma restrita ou imprecisa, e confundindo situação revolucionária e crise revolucionária. Para ser mais rigoroso uma dupla confusão é muito comum: se esquece que uma situação revolucionária precede necessariamente uma insurreição e que, portanto, a abertura de uma situação revolucionária não desemboca sempre na abertura de uma crise revolucionária; e se esquece, também, que uma revolução se coloca em marcha antes de que estejam maduras todas as condições para a conquista do poder político. E que, portanto, é precedida por uma situação pré-revolucionária. Uma definição clássica de situação revolucionária é a que Lenin apresentou em A falência da Segunda Internacional, em que é introduzida, pela primeira vez no debate marxista, uma diferenciação entre a hierarquia dos fatores objetivos e subjetivos. O protagonismo das massas é ressaltado como condição sine qua non, acima da profundidade dos elementos mais objetivos, como a gravidade da crise econômica ou de outra catástrofe:
Para um marxista, não há dúvida de que a revolução é impossível sem uma situação revolucionária, mas nem toda situação revolucionária conduz à revolução. Quais são, de ma­neira geral, os indícios de uma situação revolucionária? Estamos certos de não nos enganarmos se indicarmos os três principais pontos que seguem: 1) impossibilidade para as classes domi­nantes manterem sua dominação de forma inalterada; crise da “cúpula”, crise da política da classe dominante, o que cria uma fissura através da qual o descontentamento e a indignação das classes oprimidas abrem caminho. Para que a revolução estoure não basta, normalmente, que “a base não queira mais” viver como outrora, mas é necessário ainda que “a cúpula não o possa mais”; 2) agravamento, além do comum, da miséria e da angústia das classes oprimidas; 3) desenvolvimento acentuado, em virtude das razões indicadas acima, da atividade das massas, que se deixam, nos períodos “pacíficos”, saquear tranquilamente, mas que, em períodos agitados, são empurradas tanto pela crise no seu conjunto como pela própria “cúpula”, para uma ação histó­rica independente.”(grifos nossos)
Uma sequência de quatro protestos de rua contra o aumento das passagens de ônibus em São Paulo, com alguns milhares de jovens, foi uma faísca. Reprimidos pela polícia com uma violência selvagem, detonaram uma reação surpreendente e magnífica. Um conflito que parecia marginal deflagrou uma onda nacional de mobilizações que o país não conhecia há vinte anos. Os próprios manifestantes declararam espontaneamente, aos milhares, ao que vieram: Não é por centavos!
Esta luta por transportes, educação e saúde pública gratuita e de qualidade chocou, frontalmente, com o PT de Fernando Haddad na prefeitura de São Paulo e o PSDB de Alckmin. Sérgio Cabral e Eduardo Paes do PMDB nos governos do Rio não foram poupados. Em Recife o PSB de Eduardo Campos foi, igualmente, atingido. Depois a avalanche de mobilizações se alastrou e expandiu na forma de um tsunami nacional. Muitas cidades viram as maiores passeatas de sua história. Em não poucas delas, mobilizações maiores que as que conheceram quando do Fora Collor de 1992. Algumas até maiores do que as Diretas em 1984.
O apoio ao governo Dilma, que era amplamente majoritário, em menos de um mês, passou a ser minoritário. A força social de choque destas mobilizações deixou as instituições do Estado, por quase uma semana, semiparalisadas. A classe dominante se dividia entre os que exigiam mais repressão, e aqueles que temiam uma completa desmoralização política dos governos, caso a fúria policial descontrolada provocasse um ou mais mortos. O recuo no aumento das passagens não foi o bastante para retirar as massas das ruas. Uma maioria dos setores médios deslocou-se para o apoio aos manifestantes. Por isso, faz sentido trabalhar com a hipótese de que pode ter se aberto uma situação pré-revolucionária.
Sobre os tempos da revolução existe uma ampla esfera de problemas em debate. Consideremos, em primeiro lugar, a questão da diferença entre as revoluções políticas e as revoluções sociais. Parece muito sensato que as diferenças entre elas não possam ser resumidas aos resultados distintos que produziram, e devamos procurar o que as diferenciava, nas suas dinâmicas diferentes antes da conquista do poder. As grandes revoluções políticas do século XX (que, por analogia com o processo russo, Trotsky denominou de Fevereiros), exigiram as duas condições chaves que Lenin fixou, tanto antes como depois de Outubro, para definir uma situação revolucionária: quando os de cima “não podem”, e quando os de baixo “não querem”. Mas Outubro foi uma revolução muito diferente da de Fevereiro e, portanto, é razoável concluir que a situação que a precedeu, foi também uma crise revolucionária muito diferente. Assim, parece ser necessário distinguir as diferenças entre a situação e a crise revolucionária de Fevereiro das de Outubro. Nesse caminho avançou a análise, por exemplo, de Nahuel Moreno. A seguir, uma citação sobre o que seria uma situação pré-revolucionária de Fevereiro. Impressiona como a sumária definição parece útil, como uma luva, para descrever o atual momento político no Brasil:
Essas situações revolucionárias de fevereiro são precedidas por situações pré-revolucionárias que poderíamos denominar de “pré-fevereiros”. Tais situações pré-revolucionárias ocorrem quando o regime burguês entra em crise e o povo rompe com ele, deixando-o sem nenhum apoio social. São pré-revolucionárias porque ainda não está colocado o problema do poder, mas as condições para que esteja colocado já estão maduras. Tornam-se revolucionárias quando as massas populares conseguem unificar seu ódio ao regime em uma grande mobilização unificada à escala nacional fazendo com que a crise do regime se torne total e absoluta. (Grifo nosso.)[2]
Esta questão político-teórica é da maior gravidade. Expliquemo-nos. Esta inflexão mais favorável pode ou não se manter, pode avançar ou retroceder. Ao longo dos próximos meses veremos mudanças de conjuntura, favoráveis ou desfavoráveis às lutas populares. Haverá ou não uma segunda onda quando da aproximação da Copa do Mundo? Ninguém pode afirmar com segurança. Se, entretanto, a evolução da situação política confirmar a inflexão, estará aberta para os socialistas-revolucionários a possibilidade de uma disputa pela consciência de milhões de trabalhadores e jovens em condições imensamente mais favoráveis.
Esta luta pela consciência não é somente uma luta de ideias. Trata-se de um combate político contra a influência de aparelhos muito poderosos que, durante os últimos trinta e cinco anos, foram se organizando em torno da direção lulista-petista. Trata-se uma luta contra as ilusões reformistas, e contra as esperanças na solução concertada dos conflitos, preservando-se as instituições do regime democrático-presidencialista.
O que remete a desafios teórico-políticos muito complexos. Eles são muitos, mas estão centrados na resposta que o marxismo deve ser capaz de oferecer à necessidade estratégica da luta contra os regimes democráticos. O Estado burguês ou capitalista é compatível com os mais esdrúxulos regimes políticos, e pode assumir diferentes formas institucionais: ele conviveu, na sua origem, com monarquias absolutas, com monarquias parlamentares, com repúblicas com uma ou duas câmaras (uma assembleia de deputados, e um senado, por exemplo), com repúblicas com voto censitário ou com sufrágio universal, repúblicas presidencialistas ou semi-presidencialistas (em que o poder da presidência, unindo ao mesmo tempo as funções de chefe de estado e de chefe de governo é limitado por um congresso), com regimes bonapartistas, com repúblicas federalistas ou unitárias, com regimes de Apartheid, com regimes teocráticos, com ditaduras fascistas, ou com ditaduras militares, etc…
As passagens de um regime a outro podem se dar por vias reformistas ou por vias revolucionárias (o que é o mesmo que dizer, dependendo do signo do processo, por vias reacionárias ou contra-revolucionárias). No nosso século, entretanto, de forma frequente, como uma regularidade histórica impressionante, mesmo as mudanças de regime, que não afetam a natureza social do Estado, têm exigido em muitas, embora não em todas as transições, revoluções políticas. Isso demonstra as estreitas margens de manobra da burguesia, mesmo para mudanças limitadas, uma das expressões de sua natureza histórica obsoleta.
Para uma definição mais precisa da crise revolucionária, como o momento no interior da situação revolucionária em que a luta pelo poder é possível, podemos conferir o extrato que transcrevemos em seguida. Foi elaborado em 1920, como parte do esforço de generalização da experiência bolchevique de construção de um partido marxista-revolucionário, na polêmica contra as pressões esquerdistas que se abatiam como uma avalanche, sobre uma boa parte das organizações constituídas depois de Outubro, com um tênuo fio de continuidade com os partidos com influência de massas da Segunda Internacional:
“A revolução é impossível sem uma crise nacional geral (que afete a explorados e exploradores). Por conseguinte, para que estoure a revolução é necessário, em primeiro lugar, conseguir que a maioria dos operários (ou, em todo caso, a maioria dos operários conscientes, reflexivos e politicamente ativos) compreenda a fundo a necessidade da revolução e esteja disposta a sacrificar a vida por ela; em segundo lugar, é preciso que as classes dirigentes sofram uma crise governamental que arraste à política inclusive as massas mais atrasadas (o sintoma de toda revolução verdadeira é a decuplicação ou até a centuplicação do número de pessoas aptas para a luta política pertencentes à massa trabalhadora e oprimida, antes apática), que enfraqueça o governo e torne possível seu rápido derrocamento pelos revolucionários” (grifo e tradução nossos)[3]
Merece ser observado que a formulação de Lênin se adéqua mais à experiência da situação que a Rússia viveu em 1905 ou em Fevereiro de 1917 do que a situação prévia a Outubro. Nela não há referências, por exemplo, ao duplo poder “institucionalizado” como forma mais orgânica da democracia direta da mobilização das massas, ou ao armamento das forças populares.

[1] LENIN, Vladimir Ilitch Ulianov, A Falência da Segunda Internacional, São Paulo, Kairos, 1979, p.27/8.
[2] MORENO, Nahuel. As Revoluções do Século XX, Brasília, Edição da Câmara dos Deputados, 1989, p.66.
[3] LENIN, Vladimir Ilitch Ulianov, La maladie infantile du communisme (Le Gauchisme), Pekin, Editions en langue etrangéres, 1970, parte IX,  p.85.

domingo, 24 de novembro de 2013

O Dia que Durou 21 anos

Em clima de suspense e ação, o documentário apresenta, em três episódios de 26 minutos cada, os bastidores da participação do governo dos Estados Unidos no golpe militar de 1964 que durou até 1985 e instaurou a ditadura no Brasil. Pela primeira vez na televisão, documentos do arquivo norte-americano, classificados durante 46 anos como Top Secret, serão expostos ao público. Textos de telegramas, áudio de conversas telefônicas, depoimentos contundentes e imagens inéditas fazem parte dessa série iconográfica, narrada pelo jornalista Flávio Tavares.
O mundo vivia a Guerra Fria quando os Estados Unidos começaram a arquitetar o golpe para derrubar o governo de João Goulart. As primeiras ações surgem em 1962, pelo então presidente John Kennedy. Os fatos vão se descortinando, através de relatos de políticos, militares, historiadores, diplomatas e estudiosos dos dois países. Depois do assassinato de Kennedy, em novembro de 1963, o texano Lyndon Johnson assume o governo e mantém a estratégia de remover Jango, apelido de Goulart. O temor de que o país se alinharia ao comunismo e influenciaria outros países da América Latina, contrariando assim os interesses dos Estados Unidos, reforçaram os movimentos pró-golpe.
Peter Korneluh - O Dia que durou 21 anos
A série mostra como os Estados Unidos agiram para planejar e criar as condições para o golpe da madrugada de 31 de março. E, depois, para sustentar e reconhecer o regime militar do governo do marechal Humberto Castelo Branco. Envergando uma roupa civil, ele assume o poder em 15 de abril. Castelo era chefe do Estado Maior do Exército de Jango.
O governo norte-americano estava preparado para intervir militarmente, mas não foi necessário, como ressaltam historiadores e militares. O general Ivan Cavalcanti Proença, oficial da guarda presidencial, resume: “Lamento que foi um golpe fácil demais. Ninguém assumiu o comando revolucionário”.

Do Brasil, duas autoridades americanas foram peças-chaves para bloquear as ações de Goulart e apoiar Castelo Branco: o embaixador dos Estados Unidos, Lincoln Gordon; e o general Vernon Walters, adido militar e que já conhecia Castelo Branco. As cartas e o áudio dos diálogos de Gordon com o primeiro escalão do governo americano são expostas. Entre os interlocutores, o presidente Lyndon Johnson, Dean Rusk (secretário de Estado), Robert McNamara (Defesa). Além de conversas telefônicas de Johnson com George Reedy Dean Rusk; Thomas Mann (Subsecretário de Estado para Assuntos Interamericanos) e George Bundy, assessor de segurança nacional da Casa Branca, entre outros.
Foi uma das mais longas ditaduras da América Latina. O general Newton Cruz, que foi chefe da Agência Central do Serviço Nacional de Informações (SNI) e ex-comandante militar do Planalto, conclui: “A revolução era para arrumar a casa. Ninguém passa 20 anos para arrumar uma Casa”.

Em 1967, quem assume o Planalto é o general Costa e Silva, então ministro da Guerra de Castelo. Da linha dura, seu governo consolida a repressão. As conseqüências deste período da ditadura, seus meandros políticos e ideológicos estarão na tela. Mortes, torturas, assassinatos, violação de direitos democráticos e prisões arbitrárias fazem parte desse período dramático da história.
O jornalista Flávio Tavares, participou da luta armada, foi preso, torturado e exilado político. Através da série, dirigida por seu filho Camilo Tavares, ele explora suas vivências e lembranças. E mais: abre uma nova oportunidade de reflexão sobre o passado.
O Dia que durou 21 anos é uma coprodução da TV Brasil com a Pequi Filmes, com direção de Camilo Tavares. Roteiro e entrevistas de Flávio e Camilo.


Série de 3 episódios revela imagens e depoimentos históricos sobre o Golpe de 64
Robert Bentley, assistente de embaixador Lincoln Gordon, dá depoimento exclusivoRobert Bentley, assistente de embaixador Lincoln Gordon, dá depoimento exclusivo
Os que viveram a ditadura militar brasileira, os que passaram por ela em brancas nuvens e os que nasceram depois que ela acabou. Todos podem conhecer melhor e refletir sobre esse período, a partir da nova série "O Dia que durou 21 anos", que a TV Brasil exibe nos dias 4, 5 e 6 de abril, às 22 h.
Em clima de suspense e ação, o documentário apresenta, em três episódios de 26 minutos cada, os bastidores da participação do governo dos Estados Unidos no golpe militar de 1964 que durou até 1985 e instaurou a ditadura no Brasil. Pela primeira vez na televisão, documentos do arquivo norte-americano, classificados durante 46 anos comoTop Secret, serão expostos ao público. Textos de telegramas, áudio de conversas telefônicas, depoimentos contundentes e imagens inéditas fazem parte dessa série iconográfica, narrada pelo jornalista Flávio Tavares.
O mundo vivia a Guerra Fria quando os Estados Unidos começaram a arquitetar o golpe para derrubar o governo de João Goulart. As primeiras ações surgem em 1962, pelo então presidente John Kennedy. Os fatos vão se descortinando, através de relatos de políticos, militares, historiadores, diplomatas e estudiosos dos dois países. Depois do assassinato de Kennedy, em novembro de 1963, o texano Lyndon Johnson assume o governo e mantém a estratégia de remover Jango, apelido de Goulart. O temor de que o país se alinharia ao comunismo e influenciaria outros países da América Latina, contrariando assim os interesses dos Estados Unidos, reforçaram os movimentos pró-golpe.
Peter Korneluh - O Dia que durou 21 anosPeter Korneluh - O Dia que durou 21 anos
A série mostra como os Estados Unidos agiram para planejar e criar as condições para o golpe da madrugada de 31 de março. E, depois, para sustentar e reconhecer o regime militar do governo do marechal Humberto Castelo Branco. Envergando uma roupa civil, ele assume o poder em 15 de abril. Castelo era chefe do Estado Maior do Exército de Jango.
O governo norte-americano estava preparado para intervir militarmente, mas não foi necessário, como ressaltam historiadores e militares. O general Ivan Cavalcanti Proença, oficial da guarda presidencial, resume: "Lamento que foi um golpe fácil demais. Ninguém assumiu o comando revolucionário".
Do Brasil, duas autoridades americanas foram peças-chaves para bloquear as ações de Goulart e apoiar Castelo Branco: o embaixador dos Estados Unidos, Lincoln Gordon; e o general Vernon Walters, adido militar e que já conhecia Castelo Branco. As cartas e o áudio dos diálogos de Gordon com o primeiro escalão do governo americano são expostas. Entre os interlocutores, o presidente Lyndon Johnson, Dean Rusk (secretário de Estado), Robert McNamara (Defesa). Além de conversas telefônicas de Johnson com George Reedy Dean Rusk; Thomas Mann (Subsecretário de Estado para Assuntos Interamericanos) e George Bundy, assessor de segurança nacional da Casa Branca, entre outros.
Foi uma das mais longas ditaduras da América Latina. O general Newton Cruz, que foi chefe da Agência Central do Serviço Nacional de Informações (SNI) e ex-comandante militar do Planalto, conclui: "A revolução era para arrumar a casa. Ninguém passa 20 anos para arrumar uma Casa".
Em 1967, quem assume o Planalto é o general Costa e Silva, então ministro da Guerra de Castelo. Da linha dura, seu governo consolida a repressão. As conseqüências deste período da ditadura, seus meandros políticos e ideológicos estarão na tela. Mortes, torturas, assassinatos, violação de direitos democráticos e prisões arbitrárias fazem parte desse período dramático da história.
O jornalista Flávio Tavares, participou da luta armada, foi preso, torturado e exilado político. Através da série, dirigida por seu filho Camilo Tavares, ele explora suas vivências e lembranças. E mais: abre uma nova oportunidade de reflexão sobre o passado.
O Dia que durou 21 anos é uma coprodução da TV Brasil com a Pequi Filmes, com direção de Camilo Tavares. Roteiro e entrevistas de Flávio e Camilo.
Plínio de Arruda SampaioPlínio de Arruda Sampaio
Primeiro Episódio:
As ações do embaixador dos Estados Unidos, Lincoln Gordon, ainda no governo Kennedy, são expostas neste primeiro capítulo. O discurso do presidente João Goulart pregando reformas sociais torna-se uma ameaça e é interpretado pelos militares como uma provocação. Nos quartéis temia-se uma movimentação de esquerda e a adoção do comunismo, que poderia se espalhar por outros países latinos. Entrevistas e reportagens da CBS são reproduzidas, bem como diálogos entre Gordon e Kennedy.
O documentário expõe a efervescência da sociedade brasileira naquele período. Para evitar que Goulart chegasse forte às eleições de 1965, foi criado o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), que teria dado cobertura às ações dos Estudos Unidos para derrubar João Goulart.
Segundo Episódio:
Cenas da morte de John Kennedy e a posse de Lyndon Johnson abrem este capítulo, dando sequência à estratégia dos Estados Unidos de impedir ao que o ex-presidente americano chamou de "um outro regime comunista no hemisfério ocidental". "Vamos ficar em cima de Goulart e nos expor se for preciso", diria Jonhson.
Imagens focam no discurso de Jango na Central do Brasil, em 13 de março de 1964, que foi considerado uma provocação pelos arquitetos do golpe. Os americanos já preparavam o esquema, enviando suas forças militares para o "controle das massas", como se refere um dos entrevistados. Paralelamente, articulações para levar Castelo Branco ao poder estavam sendo engendradas.
As forças americanas não precisaram entrar em campo. João Goulart pegou o avião, foi para Brasília e depois para o sul do país. Por que Jango não reagiu"? É uma questão posta na tela. O general Cavalcanti, oficial da guarda presidencial, resume: "Lamento que foi um golpe fácil demais. Ninguém assumiu o comando revolucionário".
Os Estados Unidos estavam mobilizados para, em caso de resistência, fazer a intervenção militar pela costa e assim ajudar os militares. As correspondências de Lincoln Gordon com o primeiro escalão da Casa Branca são mostradas ao público, explorando as ações secretas junto às Forças Armadas, a reação da imprensa e dos grupos católicos no Brasil. Os Estados Unidos reconhecem o novo governo e imagens da vitória e manifestações de rua entram em cenas.
James GreenJames Green
Terceiro Episódio:
O cargo de presidente é declarado vago pelo presidente do Senado, Auro Moura de Andrade. O presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, é empossado.
No dia 15 de abril, o chefe das Forças Armadas, marechal Castelo Branco, toma posse.
Castelo tinha relações amistosas com Vernon Walters, adido da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil. Depois de suas conversas com Castelo, ele se ocupava em enviar telegramas para os Estados Unidos, relatando o teor da conversa. Os textos dos telegramas são revelados no episódio.
O governo Castelo Branco recrudesce e dá início aos atos institucionais. O de número 2 extingue os partidos políticos e torna as eleições indiretas. E mais: prorroga o seu mandato. Em 1967, ele é substituído pelo general Costa e Silva, da chamada linha dura do Exército. O AI 5 é decretado no ano seguinte, e o Brasil entra no caos, "O AI5 foi uma revolução dentro da revolução", declara o general Newton Cruz.
A repressão e a tortura dominavam o país. Militares e estudiosos falam desse período. O brigadeiro Rui Moreira Lima, da Força Aérea Brasileira, declara: "Eu conheci um coronel, filho de um general, que veio de um curso de tortura no Panamá. Ele chegou e disse: agora estou tinindo na tortura, pega aí um cara pra eu torturar".
Os Estados Unidos continuam em campo e Lincoln Gordon pede para o governo fortalecer ao máximo o regime militar brasileiro. O orçamento da embaixada cresce, como registra o historiador Carlos Fico, da UFRJ, um dos entrevistados de Flávio Tavares.

Edgar Morin - Roda Viva

18/12/2000

Um dos principais expoentes do pensamento mundial, Edgar Morin defende a desfragmentação do conhecimento e a união entre a ciência e o humanismo


     
     
Heródoto Barbeiro: Olá, boa noite. Ele diz que o sistema de educação não produz apenas conhecimento e elucidação. Produz também ignorância e cegueira. A educação dominante troca o todo pela parte, separa os objetos do conhecimento de seu contexto, fragmentando o mundo, fracionando os problemas e impedindo as pessoas que tenham uma compreensão melhor da realidade. São idéias do filósofo, sociólogo, antropólogo e historiador francês, Edgar Morin, que o Roda Viva entrevista esta noite. Nascido em Paris, onde cresceu e estudou e construiu uma rica carreira acadêmica, Edgar Morin, um dos mais importantes e polêmicos intelectuais europeus, é diretor do Centro Nacional de Pesquisa Científica de Paris, é também fundador do Centro de Estudos Transdisciplinares da Escola de Altos Estudos Sociais de Paris, presidente da Agência Européia para a Cultura junto à Unesco, em Paris, e presidente da Associação para o Pensamento Complexo. Em sua obra, que já passa de meia centena de livros, Edgar Morin insiste que a reforma do pensamento é uma necessidade-chave da sociedade. É a reforma do pensamento que permitiria o pleno emprego da inteligência, de forma que os cidadãos possam realmente entender e enfrentar os problemas contemporâneos. É a idéia de um pensamento não-fragmentado. A idéias de que o homem, ao analisar a vida e o mundo, perceba tudo o que está a sua volta e assim construa um entendimento melhor e mais abrangente a respeito dos problemas da humanidade. Para entrevistar Edgar Morin, nós convidamos Carlos Haag, o editor do caderno de cultura do jornal Valor [Valor Econômico]; o médico psicoterapeuta Humberto Mariotti, coordenador do grupo de complexidade e pensamento sistêmico da Associação Palas Athena, de São Paulo; a crítica literária Nely Novaes Coelho, do suplemento de Cultura do jornal O Estado de S. Paulo e professora de pós-graduação em literatura portuguesa e brasileira da USP; a jornalista Neide Duarte, do programa Caminhos e Parcerias, da TV Cultura, de São Paulo; o sociólogo Danilo Miranda, diretor regional do Sesc/SP; o jornalista Manoel da Costa Pinto, editor da revista Cult e o antropólogo Edgard de Assis Carvalho, da PUC/SP. Como o programa está sendo gravado, não será possível a participação dos telespectadores. Dr. Morin, boa noite.

Edgar Morin: Boa noite.

Heródoto Barbeiro: Dr. Morin, eu gostaria que, inicialmente, o senhor fizesse um comentário a respeito de um artigo que o senhor escreveu na imprensa francesa - provavelmente no jornal Le Monde - em que o senhor saudava uma série de manifestações que aconteceram em Seattle, nos Estados Unidos, quando os países ricos lá se reuniram. E o senhor dizia que, nesta manifestação, a reação ao globalismo não se faz com parte dos políticos, não se faz com sindicatos, mas se faz com as ONGs, as organizações não-governamentais. Eu gostaria que o senhor nos dissesse qual a importância, nesse mundo global, das organizações não-governamentais. São elas que vão representar o cidadão, na opinião do senhor?

Edgar Morin: Eu acho que muitas organizações não-governamentais são, por assim dizer, a vanguarda de uma cidadania terrestre. Porque a tomada de consciência dos problemas universais é algo que se impõe, sobretudo, porque há uma tendência no mundo que leva cada nação, cada província a se fechar em seus próprios pontos de vista. As organizações não-governamentais como a Anistia Internacional, que defende os direitos humanos, seja qual for o regime do país, organizações como a Greenpeace, defensoras da biosfera em todo lugar, organizações como a Survival International, defensoras dos povos menores ameaçados em todo lugar, não só na Amazônia, mas na Ásia e outras regiões, associações de mulheres, associações diversas desempenham um papel extremamente útil. Não sou contra partidos políticos ou sindicatos, mas hoje existem formas de ação espontânea que revelaram sua eficiência, particularmente, em Seattle. Acho que o que aconteceu em Seattle é que, com relação ao desenfreio, digamos, o desenfreio desta economia guiada por multinacionais e que tende a homogeneizar o mundo tende a desagradar não somente à natureza, mas também às culturas locais e regionais, a resposta não podia ser apenas local, de reclusão. Era preciso que as diversas culturas ameaçadas se encontrassem e se unissem. E, para mim, Seattle foi interessante, pois, pela primeira vez, entendeu-se que um problema mundial pedia uma resposta mundial. É claro, os que se reuniram tanto na conferência oficial tinham divergências profundas entre asiáticos, europeus e americanos, como os que estavam na reunião não-oficial não tinham exatamente os mesmos pontos de vista. De fato, é muito difícil conciliar os interesses dos africanos, dos agricultores americanos, dos... franceses, que criam cabras e fazem queijo Roquefort, mas eles compreenderam que deviam, juntos, defender as culturas. Na minha opinião, a ligação entre o regional e o mundial é importante. O mundo não pode ser algo que comporte uma civilização homogênea para todos. E na minha opinião é, ao mesmo tempo, uma defesa da qualidade de vida. A qualidade de vida é ameaçada por... Vimos isto com doença da vaca louca, que significa que um certo alimento feito com resíduos de ossadas é uma doença que contamina e provocou esse mal. Temos o mesmo problema em outros campos. E acho que a defesa conjunta da vida... porque a política é uma coisa importante, mas, digamos, para a sobrevivência. Quando há fome, pobreza, é preciso ajudar os seres humanos a sobreviver. Mas não basta sobreviver, é preciso viver. São duas coisas diferentes. Viver é poder gozar a vida. Gozar a vida não é apenas gozar da liberdade, do amor, da amizade, das festas, jogos, mas também gozar da comida, do bom vinho, das caipirinhas [risos]. Mas, na minha opinião, sabemos que, doravante, a defesa da qualidade de vida é também ligada à defesa das culturas e, ao mesmo tempo, à idéia de uma globalização, não apenas econômica, e sim de outra globalização.

Danilo Miranda: Professor Morin, nós podemos falar vários temas, que eu sei da sua versatilidade de lidar com várias questões, mas ficando nessa questão da centralização das ações humanas ou da preocupação da organização do mundo inteiro em torno do econômico, o senhor acha que nós não estamos experimentando, no contexto atual, um certo desequilíbrio entre as várias dimensões do humano? Nós temos - o senhor mesmo menciona com bastante intensidade - essa consideração de que o Homo sapiens só... O homem da inteligência não é só o Homo sapiens [homem sábio]indissoluvelmente. Ele é o Homo demens [homem louco], o Homo faber, que trabalha; o que brinca [Homo ludens]; o Homo economicus [homem econômico], o Homo poeticus[homem poético]Homo mitológico, etc [Um dos temas abordados por Morin em Os sete saberes necessários à Educação do futuro (UNESCO, 1999) é o de que o homem não deve ser definido apenas em sua racionalidade, mas em toda sua complexidade, por trazer em si caracteres antagonistas como sapiens/demens, faber/ludens,empiricus/imaginarius, economicus/consumans, prosaicus/poeticus] .Essa preponderância dos valores de produção, consumo, acumulação não estaria colocando esse Homo economicus no centro desse projeto de existência de cada um de nós, de sorte a sufocar, estrangular e a coagir a expressão dos valores éticos, culturais e de solidariedade?

Edgar Morin: De fato, este é o grande perigo, um dos grandes perigos da nossa época, porque a economia, o cálculo econômico... A economia é baseada em cálculos e tudo que foge ao cálculo é eliminado do pensamento econômico. Isto faz com que, infelizmente ou felizmente... o que foge ao cálculo é a emoção, a vida, o sentimento, a natureza humana. Então, temos um conhecimento abstrato. O conhecimento da sociedade não pode ser somente baseado no cálculo. Os problemas sociais não podem ser reduzidos a cálculos. Não podemos dizer que só o desenvolvimento da economia resolve todos os demais problemas humanos. E temos de reagir contra esta idéia simplista e redutora. Acho que você teve razão de mostrar e apontar que tudo isso diz respeito à definição do ser humano. Por muito tempo, acreditou-se que o ser humano era chamado o Homo sapiens, isto é, o homem racional, e o Homo faber, o homem que fabrica ferramentas. Bem, de fato, somos Homo faber. Eu também sou, através da caneta ou do computador. Homo sapiens, a racionalidade, é excelente. Só que é sabido que a racionalidade só abstrata deixa de ser racional. Você sabe que não há pensamento racional sem emoção. Até mesmo o matemático tem paixão pela matemática, ou seja, não podemos pensar... A razão fria são unicamente os computadores. Eles é que têm a razão fria. Não têm sentimentos, nem vida. Se os deixássemos governar a humanidade seria um perigo. Portanto, somos seres capazes de emoções e de loucuras também. E, no fundo, a dificuldade da vida é navegar, não é? Nunca perder a racionalidade, mas, também, nunca perder o sentimento, sobretudo o amor. Do mesmo modo, como você disse, somos homens de economia. É claro, temos interesses econômicos, mas somos Homo ludens [homem lúdico] também. Gostamos de jogo. Não são só os jogos infantis. Os adultos adoram jogar. E não só jogar baralho ou ir ver uma partida de futebol. O jogo faz parte da vida. Do mesmo modo, a prosa. De fato, ela faz parte da vida porque são as coisas obrigatórias e necessárias que fazemos, mas que não nos interessam. Mas o importante eu disse há pouco: a prosa serve para sobreviver. Mas a poesia é viver, é o próprio desabrochar. É a comunicação, a comunhão. Se tivermos essa definição aberta do ser humano, levaremos em conta toda a dimensão humana. Mas se ela for fechada e econômica, a perderemos.

[...] Professor, um outro tema que o senhor toca muito, a respeito do Homo sapiens, é a relação dele com a ciência. Nós vimos agora nessa semana, alguns dias atrás, fizeram uma experiência, no cruzamento do DNA de uma aranha com o DNA de uma cobra - de uma cabra, perdão - para fazer um tipo de... outra espécie, que possa ser utilizada economicamente. Algumas pessoas vêem nisso uma possibilidade boa para o futuro, ou seja, de que a gente possa usar esse conhecimento científico de manipulação de DNA para ajudar o homem. Mas, o senhor vê alguns perigos nesse trabalho da ciência. Como o senhor vê essa experiência e quais são os perigos que podem nos aguardar com coisas como essa?

Edgar Morin: Eu acho que as possibilidades ambivalentes do conhecimento e do conhecimento científico são possibilidades que hoje em dia explodem cada vez mais. Vimos que a ciência física permite a utilização de energia nuclear, mas também a fabricação de bombas atômicas. E hoje entramos em um domínio em que podemos controlar e manipular os genes. E acho que é um problema extremamente ambivalente. Por exemplo, se podemos utilizar, trabalhar genes humanos, substituir genes deficientes que geram doenças como a Síndrome de Down [a Síndrome de Down trata-se de uma aberração cromossômica, e não de uma mutação gênica, como pode ficar subentendido na oração. Morin pode ter se referido ao distúrbio genético de uma mutação cromossômica, causado pelo aumento do número de genes], é ótimo. Do mesmo modo, eu diria que coisas que a Inglaterra e os Estados Unidos autorizam, como criar culturas de origem [culturas celulares], a partir das quais serão desenvolvidos órgãos como fígado, baço, coração, que possam substituir... por que não? Mas o perigo reside no fato de que hoje a biologia, que era uma ciência desinteressada, uma ciência de laboratório... E fazem com que esses laboratórios e essa ciência entrem em uma comunicação muito forte com a indústria. Uma indústria que procura, evidentemente, um lucro. Cria-se uma indústria genética que visa a seu interesse. Isso abre caminho a todas as manipulações. Veja, hoje... e isto existe há algum tempo, o problema dos organismos geneticamente modificados. Hoje, há uma grande parte de milho e de soja feita com plantas modificadas. Ora, podemos pensar que é útil, pois essa alteração genética permite evitar os pesticidas, mas há um outro perigo. Alguns genes podem se difundir e modificar profundamente o ecossistema. Se pensarmos que, por causa do desenvolvimento técnico e industrial, há uma degradação geral da biosfera do meio vivo, temos de ser muito cautelosos. Não sou contra o princípio de modificação. Sou contra os perigos e é preciso tomar precauções. Acho que, na França, fazem bem em proibir essas... culturas. Aliás, averiguou-se o perigo em outro plano. Empresas enormes se apossam de algo que não era propriedade de ninguém e que é a vida. Aconteceu até que a Monsanto, aquela grande empresa, durante um tempo, quis vender genes que continham, quero dizer, grãos que continham um gene chamadoTerminator [tecnologia de restrição no uso genético, tachada de exterminadora pelos oponentes dos transgênicos, que torna estéreis as sementes de segunda geração das plantas cultivadas, a não ser que o produtor compre uma substância, vendida pela empresa que comercializa as sementes transgênicas], que permitia... impedia a reprodução dos grãos das novas plantas, ou seja, eles se tornavam proprietários da reprodução. Ora, eu acho que — e hoje é um problema mundial — um problema que requer uma ação mundial. Acho muito perigoso permitir a apropriação da vida, em geral, e da vida humana, em especial. Nós temos um futuro extraordinário, isto é, tonificante ou reconfortante. Qual é o futuro terrificante? É podermos selecionar, a partir do conhecimento genético, crianças sob encomenda, com olhos azuis, cabelos pretos, toda uma série de caracteres. Bem, isto ainda não é tão grave assim. Mas suponhamos que um Estado, um governo, como já houve no passado... a eugenia, que eliminava as pessoas diferentes, possa normalizar a fabricação dos seres humanos. E sabem que, na história humana, todos os grandes gênios eram anormais, loucos. Nas sociedades arcaicas, os xamãs, com poder de adivinhação, nós os consideramos loucos, mas, na verdade, tinham sábios conhecimentos. Todos os grandes artistas, Van Gogh, que ficou louco, Nietzsche também... não podemos dizer se eram normais ou loucos. Acho a normalização da vida humana um grande perigo. A humanidade está diante de um problema terrível. Porque... por outro lado, o que conforta é que podemos, através de um certo controle dos genes, impedir o envelhecimento. Poderemos, no futuro. Podemos, através dos órgãos de cultura, substituir os nossos. Podemos, portanto, imaginar que os seres humanos poderão viver 150 ou 200 anos mantendo a juventude, sem senilidade. Esta é a nova perspectiva. Mas, por outro lado, e todos esses poderes? E chego a pensar que hoje não há nenhum empenho nem em um país nem, é claro, no planeta que leve à consciência da necessidade de regulamentar e controlar o desenvolvimento desenfreado da ciência, da tecnologia e da indústria.

Neide Duarte: Professor, o senhor já veio várias vezes ao Brasil, o que para a gente é uma grande alegria, mas eu gostaria de saber o que o senhor enxerga no nosso país, se o senhor busca alguma coisa especial no nosso país ou se o senhor vem encontrando alguma coisa especial no Brasil, que chama sua atenção?

Edgar Morin: Sabe, não procurei e não procuro algo especial. Eu encontrei. E encontrei no Brasil. Meus primeiros encontros no Brasil foram para mim... eu diria um encanto. Por quê? Porque você sabe que as nacionalidades são muito fechadas na Europa e, no fundo, encontro no Brasil... encontrei uma civilização mestiça, vinda de contribuições diversas. Não é só de negros e portugueses e, infelizmente não o bastante, de índios, mas para onde vieram outras etnias, outros povos da Europa e da Ásia, como os japoneses. Achei que, justamente, criava-se alguma coisa que já era o primeiro esboço das virtudes da mestiçagem. A mestiçagem é criativa. E encontrei no Brasil essa civilização. Encontrei, é claro, um país de uma grande diversidade, mas um país que me encantava porque o que caracterizava, por exemplo, Rio e São Paulo era diferente do que caracterizava Natal e Belém. Eu sempre vi esta diversidade. E também é um país onde encontrei, pessoalmente, uma acolhida mais agradável ainda por não se limitar à minha pessoa, mas pelas idéias que defendo. Há um entendimento das minhas idéias... no Brasil. Portanto, evidentemente, fiz muitas amizades, amizades muito queridas e profundas. E, se me permite, considero o Brasil uma segunda pátria, se ele quiser me acolher.

Nelly Novaes Coelho: Eu começo dizendo que é um privilégio poder estar falando pessoalmente com uma personalidade com quem eu convivo há quase quarenta anos pelo espírito. Agradeço, então, tudo quanto a sua sabedoria nos trouxe. E escolhi, para esse nosso primeiro contato, uma frase sua publicada recentemente, onde eu vejo que sintetizou o núcleo do seu pensamento e da problemática que hoje nós enfrentamos. Apocalipse ou gênese, eu vou ler rapidamente, que é para o telespectador também se situar no seu pensamento. Diz você: "Uma cultura cyber, cibernética, está em vias de se expandir, mesmo que só possa ser alcançada por alguns privilegiados. Trata-se de uma revolução radical, que marca o surgimento da sociedade pós-industrial e que implica o nascimento de um novo pensamento. A cultura cyber é, simultaneamente, destruição e gênese." E termina com uma pergunta:"Essa cultura se unirá com o mito fundador da árvore do conhecimento?" Então, é neste momento que nós estamos e eu gostaria de ouvir a sua opinião, se é um momento de destruição ou de gênese.

Edgar Morin: Em primeiro lugar, posso dizer que, muitas vezes, os momentos de gênese ou metamorfose são momentos que comportam destruição. A gênese de uma borboleta começa na crisálida, com a autodestruição da lagarta que entrou nessa crisálida, e essa autodestruição é inseparável da autocriação do ser totalmente novo, que, no entanto, é o mesmo, mas que terá asas e poderá voar. Então, tomemos o caso desta cybercultura em que estamos no começo e cujos desenvolvimentos ainda não podemos avaliar. Há apenas dois ou três anos não podíamos imaginar até que ponto a economia, o mercado iriam se apoderar dessa cibercultura. No começo era uma cultura de intercâmbio, comunicação intelectual, audiovisual. Portanto, é algo que está aparecendo e que talvez tente monopolizar as outras culturas às vezes até a serviço de outras culturas... eu não sei. Vejam o caso do livro. Vemos que hoje livros podem ser colocados na Internet e a partir daí, as pessoas podem, é claro, ter o livro em casa. Isto é ótimo. Mas será que os livros como tais, as editoras que os editam não correm riscos de ameaça? Temos de ser muito vigilantes com relação às vantagens que isso pode trazer e às ameaças que isso pode acarretar. Estamos, mais uma vez, em um processo ambivalente, como os processos técnicos que dependem de suas utilizações. As positivas são mais relevantes que as negativas? Isto ainda não o sabemos. Também acho que temos de acompanhar de perto, mas faço votos de que... E, aliás, não acredito que essa cultura será uma cultura que vai... que pode destruir a escrita, já que ela mesma comporta muita escrita. Acho que será... poderá ser um meio de comunicação, já é um meio de comunicação entre as pessoas e, é claro, pode ser um meio de utilização das mesma potências anônimas e dominantes que ameaçam o mundo de hoje.

Edgard de Assis Carvalho: Edgar, você é considerado, melhor do que ninguém, um pensador inclassificável. Muitas vezes o chamam de sociólogo, antropólogo, filósofo. Às vezes, te chamam simplesmente de pensador. Acho que define um pouco melhor esta ambivalência em que você se situa. Há uma frase de um de seus livros em que você diz o seguinte: a simplicidade é a barbárie do pensamento e a complexidade é a civilização das idéias. Se não me engano, é uma epígrafe de um dos Ciência com consciência. Como é que você vê esta civilização das idéias no século XXI, quer dizer, este século que está sendo apregoado como a sociedade do conhecimento, que será dominada pela robótica, pela nanotecnologia, pela bioengenharia? Como é que essa civilização das idéias pode se disseminar e proliferar no século XXI?

Edgar Morin: Em primeiro lugar, devemos ter uma concepção complexa das idéias. Consideramos as idéias instrumentos conceituais para conhecer o mundo. Isto é verdade. Temos idéias que são usadas por nosso conhecimento. Mas é preciso ver também que existem idéias, grandes idéias que, alimentadas por nossos espíritos e pelos de uma comunidade, adquirem uma força autônoma e se autonomizam relativamente. É claro que se autonomizam na medida... relativamente, como eu disse, pois as alimentamos com a fé. É como os deuses. Os deuses para um religioso. O deus do religioso existe, fala com ele, lhe pede coisas. Espera dele favores. As idéias... as idéias existem, já que podemos morrer por uma idéia, matar por uma idéia, viver por uma idéia. Então as idéias adquirem um poder sobre nós. Então o que eu acho é que o reconhecimento dessa complexidade nos mostra que temos de tentar não ser esmagados por nossas idéias e ter um diálogo com elas, pois não podemos abrir mão delas, mas temos de criticar as idéias onipotentes com outras idéias que têm de ser críticas e reflexivas. Em outras palavras, poder, hoje, fugir do controle de todas as forças que nossos espíritos forjaram e que nos desarmam. Isto vale para a tecnologia. Os espíritos humanos criaram a tecnologia. E hoje é ela que nos ameaça e que, em muitos casos, provém de nós. A complexidade começa a reencontrar um diálogo entre o ser e sua idéia, entre nós e nossa tecnologia. É claro que... Eu dizia... nessa fórmula que as idéias simples são mortais. Por quê? Porque, hoje, considerando a complexidade de nosso mundo e de nossos problemas, se pensarmos em resolver com um idéia simples, por exemplo, a economia resolverá tudo ou a educação resolverá tudo. Isto não leva a nada, pois sabemos bem que, antes, é preciso entender como se relacionam os diferentes problemas, como se determinam entre si. Antes, devemos ter uma visão não-fragmentada e não-separada do mundo. É bem o sentido da minha frase que foi citada há pouco. Portanto, acho que o pensamento complexo é vital para evitar a cegueira que, na época atual, pode ser muito perigosa para a humanidade.

Heródoto Barbeiro: Nós vamos fazer um pequeno intervalo aqui no Roda Viva. Hoje, nós estamos conversando aqui com o filósofo Edgar Morin. Daqui a pouco nós voltamos, até já.

[intervalo]

Heródoto Barbeiro
: Nós voltamos com o nosso Roda Viva. Hoje nós estamos entrevistando o filósofo, sociólogo, antropólogo e historiador francês Edgar Morin. Lembramos que neste programa você não pode fazer pergunta, como normalmente você faz aqui no Roda Viva, porque ele está gravado. Morin, agora há pouco, durante a primeira parte do programa, vários entrevistadores aqui perguntaram para o senhor a respeito do futuro, do século XXI, de como é que esse século deverá se organizar, tanto no plano material quanto no plano das idéias.  Eu tenho, também, uma pergunta nessa direção ao senhor. Quando um jovem nos perguntar como é que o universo se construiu, que resposta eu devo dar a ele? Devo dizer a ele que foi construído por Deus? O senhor acredita em Deus?

Edgar Morin: Não posso acreditar em uma divindade exterior ao mundo e que o cria como um objeto. Mas acho que há uma força criadora dentro do mundo. É um pouco o que pensava no século XVII o filósofo Espinosa, que rejeitou a idéia de um Deus externo, mas que dizia haver uma força criativa divina. Essa força criativa manifestou-se no universo. Este universo nasceu do nada, não sabemos, e comportou muitas destruições e criações. E, mesmo em nosso planeta, houve a criação de espécies muito diversas. E depois, na humanidade, houve grandes criadores, como Mozart e Beethoven. Bem, em outras palavras, não posso negar que a força criadora acontece aqui e acolá. Não posso chamar isso de "Deus". Agora, posso passar à pergunta sobre o futuro. Primeiro, não podemos ser profetizados. Depois, eu diria que o futuro é muito incerto, pois forças de destruição terríveis ameaçam a humanidade. Mas há também forças de evolução enormes, das quais falei há pouco. Mas o que acho que podemos dizer é que será preciso uma grande explicação entre a humanidade, a ciência, a tecnologia e a economia. Por quê? Eu vou repetir. Nós temos apenas o poder das manipulações biológicas das quais falamos. Nós teremos o desenvolvimento de computadores sempre mais inteligentes. Eles não terão a inteligência humana, mas farão operações que não fazem hoje. E teremos o desenvolvimento do que chamamos hoje a nanotecnologia. Isto é, pequenos robôs-anões, e esses robôs-anões terão a capacidade de se multiplicar. Os computadores, talvez, tenham a capacidade de se duplicar e se multiplicar também. E, na vida... vocês sabem, a propriedade da vida é poder se reproduzir. Então, se tivermos esses robôs, essa tecnologia, essas coisas que se multiplicam, estaremos diante de um poder terrível. Estaremos ameaçados. O problema do controle da tecnologia, da ciência, pela humanidade, isto é, através da ética e da política, é algo que doravante parece-me totalmente vital para nosso século. Quando isto irá acontecer? Eu não sei. Mas é o problema do futuro.

Manoel da Costa Pinto: Professor Morin, o senhor falou a propósito das ONGs, de uma cidadania terrestre, da idéia de uma cidadania terrestre. Ao mesmo tempo, o senhor é fundador, membro fundador da Academia da Latinidade, que reúne povos e culturas de línguas latinas. Essa Academia da Latinidade não seria um tipo de organização cultural que vai contra a idéia de uma mundialização de interesses e... a academia não seria o espaço de criação de uma identidade local e não de uma identidade universal?

Edgar Morin: Acredito nas identidades múltiplas e concêntricas. Por exemplo, sou defensor da idéia européia. Ela não significa para mim o desaparecimento das nações, da França nem do Estado. Significa que os problemas mais importantes já fogem à possibilidade de controle dos Estados e que urge criar algo mais amplo para tais problemas. Assim como, no plano mundial, há problemas fundamentais, como o da biosfera, da economia, dos armamentos, que devem ser controlados. Então, dito isto, faço parte também, é verdade, dessa Academia da Latinidade e me sinto muito solidário, como mediterrâneo, com ascendentes de diversos países mediterrâneos, com tudo que é... qualquer lugar onde se falem as línguas latinas. Eu sou até um militante. Sou um militante, digamos, do que vulgarmente podemos chamar de sul. Por quê? Porque no sul, muitas vezes, tido como atrasado em relação ao norte, pois o norte desenvolveu a tecnologia, a ciência... E acho que o sul deve usar a tecnologia do norte. Mas o norte acabou esquecendo o que eu dizia há pouco, a qualidade de vida. E no sul há culturas que defendem isso, uma arte de viver. Creio que as culturas latinas, por mais diferentes que sejam, têm algo em comum. Uma mensagem que é também válida para o norte. Isto é, não se trata apenas de desenvolver quantidade. É preciso desenvolver qualidade. Por isso, acho muito bom que se desenvolva uma latinosfera, se ouso dizer, pois está se desenvolvendo uma anglosfera no mundo. E essas duas esferas, é claro, têm pontos divergentes, como, por exemplo, há um risco de hegemonia da anglosfera, mas a latinosfera deve se defender. E há coisas comuns, pois são comuns à humanidade. Em outras palavras, vejo a necessidade de unir tudo que... em todo lugar onde houver uma língua latina e culturas com cunho latino. Mas não deve ser união de negação de outras uniões e fazer uma superunião em nível superior.

Humberto Mariotti: Edgar, num dos seus primeiros livros publicados no Brasil, que apareceu com o título dePara sair do século XXI, você fala bastante de uma coisa que a gente percebe no cotidiano e você chama isso de componente alucinatório da percepção. Quer dizer, entre o que a gente vê e o mundo real há uma distância e a mídia, em especial, revela muito essa distância. Você, que conhece bem o Brasil, e seu conhecimento do Brasil não é restrito ao Rio e a São Paulo, talvez tenha se dado conta de que, no Brasil, esta distância alucinatória entre o que a gente vê e o que o mundo é, tal como revelado pela mídia, está atingindo realmente situações surrealistas. O que você acha disso?

Edgar Morin: Meu conhecimento não é tão profundo e complexo como você supõe. Mas é importante não só insistir sobre o fato de que nós, enquanto indivíduos, podemos achar que percebemos quando, na realidade, temos um erro de percepção, o que me aconteceu e acontece muitas vezes. Mas pensar que todo conhecimento é uma tradução, uma reconstrução através das palavras, é uma retradução. Mas a mídia... a arte da mídia é uma arte em que uma realidade pode parecer objetiva. Montagem, enquadramento, uma série de técnicas nos mostram, de fato, uma suposta realidade que, é claro, é trabalhada e manipulada. Então, o verdadeiro problema, eu acho, é... creio que também seja um problema de ensino. Lamento que no ensino, sobretudo nas séries menores, em que as crianças gostam muito de TV, não lhes mostrem como isso funciona, como certos procedimentos de montagem podem causar uma falsa impressão. Vou dar um exemplo elementar. Quando, em um filme vemos um tigre perseguido uma corça... Muito bem, na realidade, existe um plano do tigre, um plano da corça, o tigre correndo, a corça. E o espectador tem a impressão de que vê o tigre perseguindo a corça quando, na realidade, não é nada disso. Portanto, pode-se fabricar realidades. E a trucagem existe, infelizmente. Existiu na União Soviética, onde os dirigentes executados desapareciam. Existe um pouco menos, mas temos procedimentos hoje... Você viu aquele filme americano cujo nome não lembro - Forrest Gump - em que vemos o herói apertando a mão do presidente Kennedy. Hoje, pode-se fabricar uma impressão de realidade com meios ilusórios. E acho que as crianças, os cidadãos precisam de uma educação aprofundada para serem capazes de ter essas reflexão crítica.

Neide Duarte: Professor, quando o senhor citou os índios brasileiros, na hora que o senhor falou da mestiçagem do nosso povo, eu gostaria de saber se o senhor acredita que os índios brasileiros vivem, de alguma forma, essa integração de que o senhor fala. E eu gostaria também dissesse como seria possível se a gente pudesse incorporar, ainda mais na nossa cultura, a cultura de nosso índios.

Edgar Morin: Sim, é um problema que acredito seja também... trágico porque... uma integração não deve significar a desintegração da própria cultura. Bem... darei exemplos que conheço, no caso de índios do norte do Canadá, pois são casos que conheço bem. São os índios Crees, de quem uma empresa... uma empresa de exploração de energia hidráulica, a Hydro-Québec, comprou um território, pagou o território para construir uma central elétrica... uma barragem. A princípio, os índios receberam o dinheiro e se tornaram sedentários. Mas sabe o que aconteceu? Criou-se um lago artificial com emanações de mercúrio, de modo que os peixes não eram mais comestíveis. O lago cortou a estrada dos caribus [ou renas, cervídeos de grande porte que vive, em manadas, nas terras frias das altas latitudes], o objeto da caça deles... para sua alimentação. Nas cidades, no começo, as mulheres ficaram felizes. Havia o conforto, geladeiras e... tudo mais. Mas muito rapidamente tornaram-se obesas, pois a nova alimentação não lhes convinha. Crianças bebendo cerveja e se embriagando, jovens se acidentando, embriagados, ou seja, eis uma integração que é uma desintegração. Com relação ao Brasil, há casos em que se trata do desejo de exploração, seja mineira, seja outra, que faz com que não sejam respeitados os territórios e os índios sejam expulsos. Acho que, primeiro, temos de respeitar os territórios e, se possível, restituir os que foram tomados. Este é um ponto. O segundo problema é muito importante. Porque... repito: integrar sem desintegrar. Muitos índios entraram na civilização brasileira e depois perderam suas raízes. Como salvar uma cultura? É muito difícil no caso de povos pequenos. Darei novamente o exemplo dos índios da América do Norte e particularmente do Canadá, que, de certa forma, existe no Brasil. Todos esses pequenos povos dispersos se uniram. E essa união lhes permite, primeiro, criar um tipo de nação indígena global, embora no começo falassem línguas diferentes, e também melhor se defender.  E aqui também, no Brasil, há representantes dos diferentes grupos e, a partir dessa associação, acho que podemos deixar os grupos indígenas entrar no circuito de regalias da civilização brasileira, mas respeitando sua cultura, suas tradições e seu conhecimento. A tragédia que se deu em vários países... Na África, por exemplo, acharam que levariam o conhecimento através da alfabetização. Mas, na realidade, não lutaram apenas contra o analfabetismo. Lutaram contra os chamados analfabetos, isto é, pessoas que tinham uma cultura oral, de milhares e milhares de anos, uma cultura de conhecimentos, de sabedoria sobre plantas e animais. No Brasil, sabemos que, sobretudo na Amazônia, os índios têm conhecimentos múltiplos. Hoje há universidades em que se estuda a etnofarmacologia, como em João Pessoa, nas quais começa-se a usar esses conhecimentos. O guaraná, por exemplo, vem da cultura indígena. É um processo que deve ser feito pela união dos índios e por uma colaboração entre os brasileiros e a opinião pública. A opinião pública deve desempenhar um papel muito importante. A opinião pública brasileira se interessa por problemas importantes como o Nordeste, como as favelas, a pobreza urbana. Mas é preciso também se interessar pelas minorias, porque uma democracia precisa de diversidade. A riqueza do Brasil é o encontro de culturas diversas. O processo talvez termine com índios aprendendo a língua portuguesa, entrando nas escolas, mas o processo tem de ser lento. Dentro dele, eles mesmos vão escolher a cultura brasileira mantendo como recordação, ritual, uso folclórico, a sua própria cultura. Ainda mais porque muitos já perderam sua religião por serem forçados à conversão ao cristianismo.

Danilo Miranda: Professor Morin, eu gostaria que o senhor falasse um pouco da sua trajetória de formação, ou seja, o fato de o senhor ter tido uma experiência muito interessante no sentido de ter buscado muitas informações nas artes, se interessado por cinema, por literatura, pela música e ao mesmo tempo ter procurado, naturalmente, uma formação com bases no ensino regular, que é necessário também. E um pouco, digamos, esse paralelismo, essas duas fontes, digamos, de informação necessária para se transformar em conhecimento. E ao lado disso, uma reflexão também, sobre o fato de que, nos últimos anos, muitos pensadores, entre eles o sociólogo Joffre Dumazedier [1915-2002], francês, Domenico de Masi, que esteve conosco aqui também em umRoda Viva alguns anos atrás, têm apontado a redução do tempo de trabalho e o aumento do período de lazer e tempo livre. Muitos vêem nesse tempo livre o provável aliado para o desenvolvimento cultural, social das pessoas e advogam mesmo a necessidade de estabelecer políticas públicas culturais que possam atender também a esse lado. E eu perguntaria que modificações o senhor tem observado no trabalho, no tempo livre, que podem de alguma forma afetar a vida social, cultural das pessoas, inclusive considerando isto também na sua experiência pessoal.

Edgar Morin: Bem, com relação à minha experiência pessoal, devo dizer que os grandes impactos de minha adolescência foram as descobertas de alguns livros que me marcaram, comoveram e me revelaram verdades que estavam em meu inconsciente. Foi a descoberta da música através de... sei lá... a nona sinfonia [sinfonia n. 9, a última composta por Beethoven] de Beethoven [Ludwig van Beethoven, 1770-1827, compositor erudito alemão da transição do Classicismo para o Romantismo. É considerado o músico mais influente do século XIX e um dos maiores músicos da história da humanidade]. Foi a descoberta da pintura. Ou seja, são descobertas que felizmente fiz sozinho. E acho que essa cultura me marcou. Particularmente, através dos romances, dos ensaios, foi uma cultura... fundamental. Quando entrei na universidade, minha idéia não foi escolher um curso visando à carreira, mas satisfazer uma curiosidade referente à humanidade e à sociedade humana. Eu tinha ouvido falar de Marx [Karl Marx, 1818-1883, economista alemão, criador do materialismo histórico-dialético e da utopia comunista] e achava que o marxismo era uma forma de conceber a realidade humana não como ciência isolada, como psicologia, sociologia, história, religião etc, mas como algo que pudesse abranger o todo. Então eu me inscrevi em ciências políticas, economia, sociologia, filosofia, história. Evidentemente, era muito, mas aproveitei para fazer também inúmeras leituras e comecei a me instruir em ciências sociais. Depois, a curiosidade, ou até mesmo a necessidade, levou-me além das ciências sociais. Meu primeiro livro importante, O homem e a morte, é um estudo de sociologia histórico e psicológico das atitudes humanas frente à morte. Isto me levou a sondar as crenças das sociedades arcaicas, das religiões etc... E tive de questionar o que era a morte do ponto de vista biológico. Os homens, bem como os outros animais, morrem. Portanto, eu fui levado a ver o que nos diz a biologia sobre a morte. E, na época, eu me servi da biologia contemporânea, que era anterior à revolução biológica dos anos 50 e 60. Todavia, quando voltei, eu fora convidado por um Instituto de Biologia, em 1970, na Califórnia, e estudei biologia. E percebi que... a vida... a vida é... biólogos e físicos haviam colocado um problema. Eles diziam que, segundo a termodinâmica, esta ciência física, qualquer organização tende à degradação. Ela trabalha, produz calor, o calor é a degradação da energia, no fim, tudo se degrada e se desintegra. Muitos questionavam por que o ser vivo que, é claro, acaba se desintegrando, morre, mas por que ele podia se desenvolver e justamente... em resistência à morte. Isso me levou a novas investigações e o que me ajudou muito foi a fórmula do antigo pensador Heráclito, de 2500 anos atrás, que dizia: "viver de morte, morrer de viver". O que significa que a vida? Luta contra a morte usando a morte de suas células para se regenerar. Naquele momento, a idéia da regeneração me pareceu importantíssima em todos os campos. Por exemplo, no amor, Alberoni [Francesco Alberoni (1929- ), sociólogo e escritor italiano] disse: "Nada é mais belo que o amor que nasce. Pois, com o tempo, ele tende a esmorecer". Mas acho que certos amores podem se regenerar, isto é, permanecer nascentes por muito tempo, manter as virtudes nascentes. Tudo isso me levou a muitas investigações. E pensei o seguinte, pensei que, hoje, ser culto é poder unir as duas culturas. Por quê? Porque a nossa cultura, a tradicional, humanista, a da filosofia, das artes, das letras, é uma cultura fundamental, pois, sobretudo em literatura e filosofia, são discutidos problemas fundamentais. A literatura francesa, desde Montaigne [Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592), político, filósofo e escritor humanista da Renascença, pioneiro na elaboração de ensaios, os quais o tornaram célebre. Atuou como mediador nas guerras de religião que, à época, opunham católicos e protestantes na França], La Bruyère, Rousseau [Jean-Jacques Rousseau, 1712-1778, um dos mais importantes pensadores do século XVIII], traz os mesmos problemas. O que é o homem? A sociedade? O que devemos fazer? Onde está a justiça? No caso, as ciências tratam de forma separada, seccionada, muitos problemas. Mas nos dão informações muito importantes para esses problemas fundamentais. O que é o universo? Hoje, se não soubermos o que a cosmologia nos traz e que o universo é mais gigantesco do que achávamos, não somos cultos. Se não soubermos o que é a vida, como ela nasceu, apesar de nossa incerteza, o que foi a evolução biológica... Nós precisamos... ou seja, os humanistas têm um moinho, mas ele precisa de grãos. E quem traz o grão são as ciências. A intercomunicação da cultura científica com a humanista é, portanto, importante. Muitos dizem que hoje isto é impossível. Mas eu acho que sim, e mostro a possibilidade. Como um indivíduo qualquer e comum, sem talento especial, eu mesmo faço isso. Mas outros exemplos me mostram que é possível. Este é meu ponto de vista quanto à formação. Agora, esta questão do lazer... é muito importante porque nas sociedades tradicionais a alternância é o cotidiano e, depois, a festa. Nas sociedades arcaicas, a festa é um grande momento de transgressão, gastos, jogos e delírio. Então, em nossas sociedades modernas acreditou-se em fazer uma separação. O trabalho e depois o lazer. Ora, o lazer é a possibilidade de festa, não é? Felizmente! Mas é um espaço vazio. Então, como as pessoas preenchem esse espaço? Algumas estão cansadas e descansam, outras fazem serviços caseiros, ou seja, alguns serviços domésticos, como cuidar do jardim. Outras viajam nos fins de semana e assim por diante. O lazer, portanto, é uma possibilidade de cultura. O que falta é o incentivo para desenvolver tal cultura. O que falta talvez sejam universidades permanentes, em que qualquer um possa lecionar. Hoje o que irá se desenvolver é a TV cultural, e isto é o tipo de coisa útil. Mas, por outro lado, percebemos também a necessidade de festa, em nossa civilização, que leva grupos de jovens, de forma quase clandestina, a viver momentos de êxtase com drogas alucinógenas. Há uma necessidade de festa, de vida, de poesia de vida. Este é um ponto de vista. O segundo - e eu noto isto na França - é que existe, por exemplo, um processo lento da democratização da música. Antigamente a chamada grande música era um privilégio das castas superiores. E muitos iam a concertos por esnobismo e se entediavam. Mas hoje vemos cada vez mais uma juventude musicalmente culta. Mas não penso apenas na cultura da grande música que se tornou universal, mas também em músicas regionais, folclóricas, e que têm muito sucesso. Como o flamenco português, o samba... Temos tudo isso. Acho que também é um esforço permanente para oferecer cultura. Ela não pode ser imposta. Não devemos impô-la, mas oferecer possibilidades. Oferecer as possibilidades à juventude. Saint-Exupéry [Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944), aviador e escritor francês cujo livro mais conhecido é O pequeno príncipe] disse em um de seus livros [Terra dos homens], ao ver as crianças refugiadas da guerra espanhola, transportadas em um trem: "entre essas crianças, há tantos pequenos Mozart assassinados" [Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), compositor erudito austríaco, foi uma criança-prodígio, começou a compor com 5 anos, e é considerado por muitos o maior gênio musical da história da humanidade]. Tantas crianças com tantas possibilidades, tão ricas e não podemos explorá-las. São jogadas no trabalho, no cotidiano e na burocracia. O verdadeiro problema é este. E atualmente o quanto o lazer tem de se expandir, já que cabe às máquinas os trabalhos pesados e, inclusive, o controle! Hoje esse espaço não deve mais ser chamado lazer, mas sim o espaço da vida vivida.

Carlos Haag: Professor, o senhor estava justamente falando a respeito da morte. Hoje em dia nós ligamos a televisão e podemos assistir à morte com grandes diferenças. Mortes em massa, com praticamente grande diferença. Mas ao mesmo tempo o homem tem uma certa necessidade de se comover com tragédias, como foi essa agora do submarino [nuclear] russo. Qual é a nossa relação, diante, agora, da mídia, qual é a relação do homem com a morte? Hoje?

Edgar Morin: Qual a relação do homem com a morte hoje? Desculpe, não ouvi bem o começo, por causa do fone... mas eu... Sabe, é uma questão... Antes devo dizer que a relação humana com a morte é uma dupla relação. Quanto mais individualismo, individualização, mais o indivíduo teme a morte ou tem horror a ela. Ele tem horror à morte porque ele sabe que é a perda do seu "eu", de seu jogo, de seu ser. Mas quando um indivíduo está em uma comunidade, quando se sente participante de um núcleo coletivo, é capaz de dar a vida por essa coletividade. É capaz de se sacrificar. Bem... então nos tempos de hoje, em nossas civilizações é a época do desenvolvimento do individualismo, isto é, da atomização dos indivíduos. E contra esta... atomização, pois há a decadência dos vínculos tradicionais, a grande família, a aldeia, o bairro. Nesta atomização, há como uma reação em busca do outro, dos amigos, confraternizações. Mas a atomização cria a angústia da morte. E acho que essa angústia da morte pode corroer os indivíduos e ser extremamente nociva para a própria civilização. Mas não posso dizer que devemos ou podemos extinguir a angústia da morte. Creio que a condição humana consiste em aceitar o fato de que temos de morrer, mas não devemos nos deixar intoxicar por essa angústia. Existe uma resposta à morte e que não é absolutamente uma forma de suprimi-la. Mas essa resposta existe no título de um romance de Guy de Maupassant [1850-1893], o escritor francês, chamado Forte como a morte. E o que é forte como a morte? É o amor, é claro. É o amor pelo próximo, por uma causa, o amor pela... É tudo que nos dá... o que nos faz viver. E é a única resposta à morte. Em nossa sociedade, é claro, podemos achar nas religiões, houve um renascimento do espiritismo porque, é claro, podemos pensar que há... vivemos sob a forma de fantasmas, como nas... como era a crença nas sociedades arcaicas. Por exemplo, há tudo que se refere à NDE, a Near Death Experiment, ou seja, a pessoas tidas como mortas e que foram... quase que ressuscitadas. Então alguns acham que, como tais pessoas contam que se desprenderam do corpo, atravessaram um subterrâneo e foram em direção à luz, que é uma indicação de que podemos ter outra vida após a morte. Ou seja, há inevitavelmente a ressurreição de crenças que pregam a vida além da morte. E as grandes religiões o dizem. O cristianismo diz. Mas para alguém que dificilmente acredita nisso, como eu, acho que a resposta é conviver com a morte sem se deixar esmagar por essa possibilidade da morte. Posso citar uma recordação pessoal. Eu tive... o problema quando adolescente. Eu tinha 20 anos, foi durante a ocupação da França, eu queria entrar para a resistência, mas tinha medo de arriscar a vida. Eu pensei: tenho 20 anos, não vivi e vou morrer? Mas, refletindo melhor, eu pensei: se eu não entrar para a resistência, sobreviverei, sim, mas não terei vivido. Para aceitar, para viver, é preciso correr o risco da morte. E em certas circunstâncias não podemos não correr esse risco. Se não houver a oportunidade não devemos fazê-lo. Quero dizer que a morte é um problema permanente. O ser humano não pode eliminá-lo, mas não deve se deixar dominar por ele.

[intervalo]

Heródoto Barbeiro: Nós voltamos com nosso convidado de hoje aqui de hoje, que é o sociólogo, filósofo e antropólogo francês Edgar Morin. Ele também representa a Agência Européia para a Cultura junto à Unesco, em Paris, e a Associação para o Pensamento Complexo. Dr. Morin, ainda no capítulo das provocações ao senhor e sabendo que o senhor, na sua juventude, fez parte do Partido Comunista francês e dizendo, agora, numa época de pós-industrial, eu gostaria que o senhor nos dissesse qual é a utopia que vai substituir o socialismo? Na opinião do senhor, o socialismo morreu com a queda do Muro de Berlim ou são coisas absolutamente dissociáveis uma da outra?

Edgar Morin: Bem... Antes de mais nada é preciso lembrar que a palavra socialismo encobriu mercadorias extremamente diferentes. Foram chamados de socialismo o regime da União Soviética e o da China maoísta. Chamam de socialista o Partido Social-Democrata Alemão ou o Partido Socialista Francês. Como sabe, não há muita coisa em comum entre eles a não ser, é claro, um fundador comum, que foi Marx. Mas sabemos que o marxismo da União Soviética não tinha muito a ver com o pensamento de Karl Marx. A palavra socialismo pouco importa. O que podemos dizer é que a fórmula chamada socialista da União Soviética morreu e não poderá ressurgir. E o socialismo dos países ocidentais envelheceu muito e esgotou um pouco a sua fertilidade. Sua fertilidade era o chamado welfare state, ou seja, um Estado com muita segurança e garantias para o trabalhador. Então, dito isto, não sei se a palavra vai encobrir outra coisa, mas você tem razão de dizer que não podemos viver sem objetivos. Então, a palavra utopia... Para mim, há duas utopias, que chamarei de utopia positiva e negativa. O que é a utopia negativa? É a utopia que promete um mundo perfeito, em que todos se reconciliam. Um mundo sem conflitos, um mundo de harmonia. Ora, esse mundo é impossível e o desejo de realizá-lo é atroz. No fundo, o sistema stalinista quis suprimir as diferenças, mas não conseguiu suprimir nada. Aliás, um amigo russo me disse: conseguimos realizar a utopia do socialismo de quartel. A utopia negativa é a idéia de perfeição. Não há perfeição na terra. Mas se não há o mundo admirável de Aldous Huxley [referência ao livro Admirável mundo novo, publicado por Huxley no início da década de 1930, uma das mais famosas "anti-utopias" (distopia) da cultura ocidental], o mundo perfeito, podemos esperar por um mundo melhor. Então, há utopias positivas. O que é uma utopia positiva? É uma utopia que diz que algo pode se realizar, mas que, atualmente, parece impossível. Por exemplo, a paz na Terra. Na minha opinião, é totalmente possível. Temos meios técnicos e materiais para realizar isso. Só que os conflitos se multiplicam. Ou seja, não pudemos superar tais conflitos. Mas, assim como países como a França, entregues a guerras feudais, superaram tais conflitos através da união da nação, o mundo também poderia superar. A utopia é um mundo sem fome. É uma utopia positiva. Temos meios técnicos para produzir alimentos para todos. Um mundo no qual se tente reduzir as desigualdades. Mas, é claro, é uma utopia positiva. É algo factível. O que falta é o estado de desenvolvimento da consciência do pensamento que permite a realização. É que existem forças extremamente negativas. Quando damos, por exemplo, ajuda alimentar a um país que sofre de inanição, essa ajuda é desviada pela corrupção e pela burocracia. Portanto, o grande problema que fica é: por que será que não podemos realizar o que sintetizou muito bem o tema da República francesa: liberdade, igualdade, fraternidade? Primeiro, temos de entender que tal tema é complexo. Pois só com a liberdade mata-se a igualdade e não se gera a fraternidade. Impondo a igualdade, mata-se a liberdade e não se gera a fraternidade. A fraternidade deve vir dos cidadãos, deve vir dos indivíduos, mas é preciso achar um meio de unir igualdade... liberdade, igualdade, fraternidade. Há épocas em que a fraternidade é mais importante, como hoje. E a fraternidade pode diminuir a desigualdade. Mas onde falta a liberdade é preciso estabelecê-la. Tudo isso é complexo e não pode ser feito ao mesmo tempo. Há possibilidades de futuro, mas elas não são irreversíveis. Não temos mais essa idéia de que o progresso era inevitável e necessário. E sabemos que, se houver progresso será a obra da vontade dos seres humanos, de sua consciência e, sobretudo, todo progresso deve ser regenerado. Não há progresso irreversível. Por exemplo, na Europa, no fim do século 19, a tortura foi abolida. Na mesma Europa, 100 anos depois, houve tortura na Alemanha, na União Soviética, a tortura exercida pelos franceses na Argélia. Nenhum progresso é irreversível. É preciso regenerar. Retomo esta palavra-chave do meu pensamento. Tudo que não é... tudo que não se regenera é condenado.

Edgard de Assis Carvalho: Edgar, eu vou continuar nesse terreno da utopia. Bom, em 1968 você publicou, com dois grandes amigos seus, Cornelius Castoriadis [1922-1997, filósofo e psicanalista francês de origem grega que, nos anos 1940, criou o grupo político "Socialismo ou barbárie"], infelizmente morto, e Claude Lefort [(1924- ), filósofo segundo o qual a democracia é um "lugar vazio", sempre por construir] um livro chamado Maio 68: a brecha, que foi lido por muitos de nós, aqui no Brasil, como uma forma de resistência a essa ditadura militar que estava aqui instalada, que se instalou no país entre 64 e 79. Bom, essa idéia de brecha, que você dizia tão claramente nesse livro, ela continua viva no seu pensamento, eu suponho isso. Será que foi por isso que você aceitou esse desafio que o governo francês lhe propôs, de repensar a educação do futuro e colocar à disposição, numa edição brasileira, inclusive, já, esses sete saberes para a educação do futuro? Ou seja, seria pela educação do futuro que essa brecha poderia se explicitar, no sentido de juntar de uma vez por todas a reforma do pensamento com a reforma da democracia?

Edgar Morin: Devo dizer que... esta idéia de brecha mostrava a meus amigos e a mim que, nessa sociedade que parecia tão segura de si, tão feita para durar, havia algo minado. É como uma brecha sob a linha de flutuação de um navio de guerra. E acho que nossa sociedade tem muitas brechas. Mas o que me importava e era importante é a idéia da não-aceitação, isto é, a idéia de que aspirações trazidas pelos adolescentes podiam ser expressas. Eu penso o seguinte: no fundo, sempre relacionei a esperança à resistência. Quando eu fiz parte da resistência contra o nazismo havia a esperança de me sair bem, embora fosse pouco provável. Depois... porque fui um comunista de guerra, pois, na época, eu achava que só havia duas forças: o fascismo e o comunismo. Mas depois, quando percebi meu erro, eu era resistente ao comunista stalinista, fiquei feliz com a queda do império que coincidiu com a do Muro de Berlim. Mas hoje há uma outra resistência, mais difícil e mais sombria. É que entre as duas barbáries que se uniram, a barbárie dos tempos remotos - morte, assassinatos, massacres, ódio, desprezo, que grassava por toda parte - e a barbárie fria, gelada, técnica, que nossa civilização produziu. Portanto, somos condenados a resistir. Mas, voltando à educação, fiquei cada vez mais impressionado com a necessidade de reforma do pensamento. Pois, com relação ao pensamento que nos é transmitido... e que ensina a separar, precisamos de um pensamento que saiba juntar. Mas não basta dizer isso. É preciso criar ferramentas conceituais, métodos. E foi o que eu quis fazer em meus livros. Uma vez que eu soube que era preciso retomar o pensamento, pensei automaticamente na reforma de ensino. E aí, foi obra do destino, isto é, o ministro da Educação, Claude Allegre, me propôs a presidência de um comitê científico para algo mais modesto, o de rever o conteúdo do ensino colegial. Fiz o trabalho sem me iludir. Não surtiu nenhum resultado concreto. Mas, para mim, foi muito produtivo. Pude organizar minhas idéias pela primeira vez em um livro. Em A cabeça bem feitadesenvolvi o relatório que enviei ao ministro. Mas, sobretudo depois, graças à Unesco, entendi melhor o que podia ser feito. São Os sete saberes necessários para a educação do futuro. A educação deve ter um papel importante. Mas sei muito bem, pois passei por Marx. E Marx disse: quem vai educar os educadores? É evidente que eles tem de ser educados pela vida que levam, pela sociedade, pelos alunos e por eles mesmos. Eles devem se auto-reeducar. É preciso criar experiências-piloto, colégios e universidades pilotos. E depois, dou os objetivos que creio necessários. Pois, em os sete saberes... são os sete pontos negros, os sete buracos negros, que são absolutamente indispensáveis ao conhecimento e que nosso ensino não dá. Então, é claro, sim, já que o programa tem difusão internacional graças à Unesco, em idiomas diferentes, haverá brechas. Já existem países, em Portugal, na Colômbia, onde instâncias ministeriais estão interessadas... Talvez, graças a essas brechas, poderemos empreender uma corrida de ritmo bem forte contra as forças da cegueira que, infelizmente, ainda predominam.

Humberto Mariotti: Você sempre destaca a complexidade e a diversidade daqui do Brasil. E acredito que tem motivos para isso. Mas a gente sabe também que, no momento, a globalização neoliberal ou mundialização, como se chama na França, está promovendo uma uniformização da mente coletiva, que tem sido chamado de “mcdonaldização” da sociedade [risos]. Isso, evidentemente, corresponde a uma tentativa de abolir as diferenças e é uma forma de autoritarismo e tem sido chamado também, de novo, de autoritarismo. Numa sociedade tão diversificada e tão grande quanto a brasileira, até que ponto você acha que essa "mcdonaldização", vamos dizer assim, vai ser bem sucedida?

Edgar Morin: Acho que... a "mcdonaldização", a acepção literal da palavra, da alimentação, não terá êxito. É claro que vejo o exemplo da França, há McDonald's em todo lugar, as crianças adoram ir lá, e não só as crianças, mas há também não somente a diversidade da gastronomia francesa como também há, cada vez mais, cafés onde se tomam vinhos de qualidade. Há o retorno ao reconhecimento dos produtos de qualidade. Há os progressos da agricultura biológica - portanto, alimentos biológicos. Há uma luta entre as forças de homogeneização e a resistência que vem. E, do ponto de vista da alimentação, no Brasil, há aspectos positivos. E a diversidade interessante de cozinha que existe, não só a cozinha regional - como a de Minas, que eu adoro - apesar de meio pesada, mas enfim... me agrada muito. A cozinha do mar, baseada em frutos do mar, e cozinhas que vieram de fora... a japonesa, que entrou na cozinha do Brasil. Mas pensando mais alto, sabe que uma corrente muito forte provoca contracorrentes. Resta saber se serão fortes ou suficientes para impedir essas correntes excessivas e controlá-las. Este é o desafio do futuro. Acho que devemos ter uma idéia... complexa de... eu diria... do mundo. Diria até... da unidade humana. Quando pensamos no que é humano, temos de pensar em unidade e diversidade. Somos seres com coisas em comum do ponto de vista cerebral, genético, sentimental e há uma grande diversidade individual e cultural. E sempre a riqueza... a diversidade foi a riqueza. A riqueza de uma sociedade e da humanidade é essa diversidade. Qualquer destruição da diversidade é algo extremamente grave. Mas é preciso dizer também que novas diversidades nascem com a mestiçagem. A mestiçagem não é, em nada, homogeneização. É uma forma criativa nova também nas artes. Hoje temos na World Music mestiçagens que podem ser belíssimas e outras péssimas. Portanto, o verdadeiro problema é aquilo que homogeniza, aquilo que mecaniza, que torna abstrato, aquilo que cronometra e tudo aquilo que maltrata os seres humanos. Então, o que acontece? Eu acho que, no plano econômico, houve por um tempo a ilusão de que havia uma alternativa. Havia a economia capitalista, a de mercado, o liberalismo econômico, mas, do outro lado, uma economia dita socialista. Ora, esse tipo de economia burocrática e autoritária mostrou sua incapacidade e finalmente se autodestruiu. Infelizmente para a Rússia ela logo foi substituída pelos Chicago Boys [referência à Escola de Chicago. Entre os intelectuais que compõem essa escola de pensamento econômico que, defendendo o livre mercado, criou o neoliberalismo, estão Milton Friedman e George Stigler, que foram laureados com o Nobel de Economia], que acreditavam dar a receita de liberdade econômica e não criaram o mercado. Desenvolveram a máfia, porque, um mercado... um mercado é a concorrência. Um mercado deve ter regras, leis, juristas. Não basta dar liberdade. É preciso ter regras. O que falta ao mercado internacional são as regras. Temos de criar regras para ele. Então, infelizmente, o outro modelo não existe. É isso que tem de ser feito. A terceira via, o desenvolvimento de uma economia pluralista, na qual o mercado teria seu papel, é claro, mas o mercado internacional seria controlado e surgiriam nos países formas de desenvolvimento econômico mutualistas, cooperativas, associativas e outras. Evidentemente, estamos apenas começando. Por isso, é muito importante que nas diversas nações se manifestem movimentos de resistência, não através do fechamento em si mesmas, mas da convergência para a outra globalização. Mas quero dizer que há uma globalização que começou desde a conquista da América com Bartolomeu de Las Casas [1474-1566, frade dominicano considerado o primeiro sacerdote ordenado das Américas]. Esse padre dizia que os índios eram seres humanos como os espanhóis, o que os teólogos negavam. Continuou com Montaigne, com a democracia, com os direitos humanos. E hoje continua com a idéia das ONGs. É esta segunda globalização que vai permitir salvaguardar a diversidade cultural. Estamos no começo de uma luta dificílima. E é preciso muita vontade para que ela aconteça.

Neide Duarte: Professor, eu gostaria de saber para quem o senhor escreve os seus livros. Quais são as pessoas que o senhor gostaria que lessem seus livros e descobrissem o seu pensamento?

Edgar Morin: Bem... Em primeiro lugar, posso dizer como Nietzsche... ele dizia: "Escrevo para todos e para ninguém". Isto é, ele não sabia a quem ele se dirigia. Posso acrescentar que escrevo para todos e escrevo também para mim mesmo. Isto é, para melhor aclarar minhas idéias, desenvolvê-las melhor. Mas eu acrescentaria algo que é mais importante. Eu percebo que meus livros atingem aqueles que já tinham dentro de si: a virtualidade de pensar aquilo que penso. Em outras palavras, não atinjo especialistas... ou melhor, atinjo pessoas das áreas literária ou científica, outras que são pessoas cultas... Infelizmente, meus livros têm uma difusão limitada. Um livro... a difusão de idéias através de livros é como a difusão de grãos a partir de uma árvore. O vento os leva e não sabemos onde irão crescer. Mas eles crescem bem onde há pessoas que sentem que expresso suas verdades interiores. Acho isso maravilhoso, porque eu mesmo no fundo descobri minhas verdades através de escritores. Portanto, eu gostaria de que essas pessoas com idades, sexos diferentes e de países diferentes fiquem realmente muito comovidas e que essa espécie de comunidade se instaure. Quando leitoras ou leitores me escreveram dizendo: "Graças ao senhor, assumi minhas contradições, quando eu achava péssimo tê-las." Fico muito feliz. Portanto, digamos que... eu me dirijo a todos, mas sei que muitos desses não serão receptivos por sofrerem talvez a influência das normas culturais dominantes.
Danilo Miranda: Professor, o senhor tem dado mostras freqüentes de um certo fascínio pelo Brasil, pela mistura brasileira, pelas características, pela diversidade, enfim, pela nossa multiculturalidade, de uma maneira bastante intensa. Mas, numa entrevista recente, o senhor menciona que isso é considerado realmente... mas, de alguma forma, tem um pequeno problema, que seria um certo complexo de inferioridade cultural, que o senhor observa no país. A que o senhor atribui, como o senhor analisa, quais são as fontes, que tipo de dados o senhor mencionaria a propósito disso e quais seriam as condições necessárias para a superação disso?

Edgar Morin: Acho que, por muito tempo, a elite cultural brasileira nutria-se culturalmente primeiro na cultura francesa, depois, na anglo-saxônica ou, então, conhecia a literatura européia, as coisas européias. E, talvez, enquanto representante de um país novo, subestimava a sua própria capacidade. Acho que na origem existe isso. Aliás, verifiquei isto também na Argentina, que também é um país civilizado como o Brasil. Por muito tempo, acreditaram que os escritores argentinos que ficaram famosos devem sua fama a Paris. Havia uma edição feita na Gallimard [grande e tradicional editora francesa] por Roger Caillois que vivia na Argentina e traduziu Jorge Luis Borges. E só então Borges ficou famoso.  E, no Brasil, Jorge Amado foi traduzido na França. Era preciso passar por intermédio de um país europeu, de um reconhecimento europeu. Acho que essa síndrome marcou muitas culturas latino-americanas e, além do mais, é totalmente injustificada. Porque há uma criatividade nova na mistura de realismo e imaginação existente nessas literaturas. Há uma beleza poética, uma arte florescente. Então, acho que... é preciso... é preciso ter confiança em si, sem vaidade, nem orgulho, e perder essa síndrome de inferioridade que não se justifica.

Nelly Novaes Coelho: Minha pergunta é uma questão que se liga, mais ou menos, à resposta dada ao Edgard. É a sua atração recente pela educação e, principalmente, pela literatura. Quer dizer, dentro de uma obra onde a pesquisa se desenvolveu, basicamente, na área das ciências exatas e humanas - biologia, cosmologia - recentemente a sua atenção tem se voltado para a literatura. Inclusive, há um livro recente seu, que é Sabedoria[Amor, poesia, sabedoria], ligado a poesia e amor. Quer dizer, qual o papel que está, agora, desempenhando a literatura no seu pensamento?

Edgar Morin: É, foi com o tempo que eu percebi o que eu já sabia e que estava adormecido em minha mente. É que a Literatura é uma escola de vida, uma escola do entendimento humano, e, eu diria, a escola da complexidade humana. Os romances... levemos em conta os romances históricos do século passado (XIX), bem como os de nossa época. Eles têm essa superioridade sobre as ciências humanas por nos mostrarem seres que são sujeitos... sujeitos que sentem, pensam e vivem. Enquanto as ciências humanas destroem o sujeito, a individualidade. Vemos indivíduos em seu meio, seu ambiente. Às vezes, na história, como em Guerra e Paz, de Tolstói [Liev NikolaievichTolstói (1828-1910), um dos principais escritores russos], adquirimos um conhecimento do mundo. E aprendemos que esses seres são complexos, pois possuem vários aspectos. E talvez seja esta a grande contribuição de Dostoiévski [Fiódor Mikhailovich Dostoiévski (1821-1881), escritor russo]: ter mostrado a complexidade da alma humana. Proust [Marcel Proust (1871-1922) escritor francês cuja obra é reconhecida como fundamental na literatura mundial. Entre suas obras destaca-se Em busca do tempo perdido], também, mostrou que podíamos ter... essa frase de Proust que, durante cinco anos, acha que ama e adora uma mulher e aí percebe que não gostava e que não era seu tipo. E acho que a poesia é uma escola para a qualidade poética da vida, que me parece algo tão importante. E a escola do entendimento, porque quando temos nos jornais notícias do dia-a-dia, quando lemos notícias criminais, para nós, criminosos são criminosos e os rejeitamos. Mas ao vermos esses personagens nos romances, como o Raskolnikóv [protagonista de Crime e Castigo, é um estudante miserável que mora em São Petersburgo, num pequeno quarto alugado, e um dia mata sua avarenta senhoria], em Crime e Castigo, de Dostoiévski, nos damos conta de que é algo complexo e que esse indivíduo pode se redimir se encontrar as pessoas que o ajudem. Portanto, acho que é a escola do entendimento, da vida é algo muito importante e, aliada às outras... chamadas ciências humanas. Na minha opinião, é um erro limitar a literatura unicamente a estruturas narrativas, à semiologia, técnicas. Hoje, nos colégios franceses ensina-se uma obra só através de um trecho que é dissecado como uma radiografia que mostra apenas o esqueleto. É preciso reabilitar a literatura. E é preciso acabar com esse conflito dizendo: educação literária contra a científica ou esta contra... Uma é necessária à outra. E depois... e eu redescubro... Talvez seja isso, voltamos aos amores da juventude. Releio romances de que gostei quando adolescente e redescubro neles virtudes sempre novas. E o prazer da releitura é uma das mais belas alegrias da vida. E acho que todos deviam poder ter esse prazer.

[...]: Eu fico muito contente com essa sua nova via.
Heródoto Barbeiro: Professor Morin, merci beaucoup [muito obrigado]! Nós estamos chegando, então, aqui, ao fim do programa Roda Viva. Vamos agradecer então ao professor Morin pela sua entrevista, àqueles que participaram conosco aqui da nossa bancada, e dizer que o Roda Viva volta na próxima semana, na próxima segunda-feira a partir das 22h30. Muito obrigado pela sua atenção, pela sua audiência, uma boa semana e boa noite.