domingo, 25 de setembro de 2016

“Notório saber”: vire professor em 5 semanas

Se você fez Física e está desempregado, chegou a oportunidade que você esperava. Agora, você pode dar aulas de Matemática, por exemplo, passando por um treinamento inicial de apenas cinco semanas. Sim… eu disse cinco. Começou a operar no Brasil uma organização social “sem fins lucrativos” de formação de professores chamada “Ensina Brasil”.
Em cinco semanas, toda a teoria necessária para o exercício da profissão está dada e o “professor” já pode ir para um “governo-parceiro” cuidar de nossas crianças, sendo contratado como “professor temporário”, ganhando o inicial da carreira, e acaba sua formação “em serviço” no período de apenas dois anos.
A experiência desta organização nos Estados Unidos é nefasta (veja abaixo). Criou em cada escola uma porta giratória em que professores temporários estão entrando e saindo o tempo todo, pois converteram a profissão em “bico” de estudante universitário desempregado. Tão logo se localizam no mercado em sua profissão de origem abandonam a escola. Além disso, convertem nossas crianças em “cobaias” de professores mal formados e vão aprender com elas a dar aula durante dois anos de suposto “treinamento em serviço”.
Financiada pela Fundação Lemann e Itau Social, entre outras, esta empresa é ligada à Teach For All e está atuando no recrutamento e preparação de professores temporários para os governos.
A Teach For All é a internacionalização de uma ONG americana chamada Teach For América. A TFA forma professores em seis semanas e é sustentada com dinheiro que inclui financiamento privado oriundo de Fundações da Família Walton e de Bill Gates. Foi uma forma improvisada de aumentar os quadros de professores para atender a demanda por mais professores. Lança no mercado profissional da educação 8 a 10 mil professores por ano. Segundo Eric Westervelt:
“O grupo [TFA], que tem procurado transformar a educação em estreito alinhamento com o movimento das escolas charters, alertou as escolas que o tamanho de seu corpo docente poderia cair em até um quarto e fechou dois dos seus oito centros de formação nacional de verão, situados em Nova York e Los Angeles.” (Grifos meus)
“Este ano, a TFA enviou 8.000 jovens às escolas de alto risco; eles concordam em ficar lá por dois anos, alguns permanecem por mais tempo, mas a maioria terá desaparecido no prazo de três anos. (…)
Precisamos de um corpo docente estável, não uma porta giratória. Nós precisamos recrutar novos professores, que planejem permanecer no ensino e fazer uma carreira. Os novos professores devem ter uma formação sólida e uma forte preparação para o trabalho. Eles devem ter mentores e o apoio que precisam para sobreviver aos julgamentos dos primeiros anos de vida e melhorar continuamente.”
No Brasil, a ideia é a mesma, ou seja, preparar professores temporários, procedentes de quaisquer cursos superiores, para fornecê-los aos “governos-parceiros” ganhando o salário inicial da carreira. Passam por cinco semanas de treinamento e pronto, já são despachados para um período de dois anos de “treinamento em serviço”.
Esta é a nova modalidade de formação de professores que vem por aqui. Nada de perder tempo com teoria. Com a MP do ensino médio, fica aberta a possibilidade de que isso se generalize como estratégia de formação. Os critérios para participar do programa são:
Ser brasileiro(a) nato(a) ou naturalizado(a)
Possuir português fluente
Ter curso superior completo ou previsão de graduação até dezembro de 2016 (Você ainda pode se inscrever caso sua data de graduação tenha sido postergada para o primeiro semestre de 2017 em função de greve na sua universidade. Estes casos serão analisados posteriormente)
Ter diploma de graduação reconhecido pelo MEC
Ter disponibilidade para participar da formação inicial de 5 semanas em janeiro de 2017
Ter disponibilidade para participar do programa de fevereiro de 2017 até dezembro de 2018 (trabalho remunerado)
Ter disponibilidade para morar fora de sua cidade por 2 anos, a partir de fevereiro de 2017″
O recrutamento está acontecendo nas Universidades que estão distribuindo o seguinte convite aos estudantes:
“Prezados (as),
 É com muita alegria e satisfação que venho divulgar o Processo seletivo, segue mais informações no nosso site http://ensinabrasil.org/.
Para os que não conhecem, o Ensina faz parte do Teach for all, uma rede presente em mais de 40 países que melhora a educação desses países a vários anos.
POR QUE PARTICIPAR DO PROGRAMA?
Impacto social: você contribui com o desenvolvimento do seu país, enfrentando um desafio dos grandes
Rede de agentes de transformação: você fará parte de uma rede global de jovens talentosos e com vontade de botar a mão na massa e fazer a diferença
Desenvolvimento profissional: durante os 2 anos do programa, você passará por uma formação que te auxiliará a como dar aulas e a desenvolver habilidades cruciais em qualquer carreira
Desenvolvimento pessoal: enriqueça como cidadão através da experiência incomparável de estar na sala de aula
Apoio após o programa: apoio de mentores e acesso exclusivo a parceiros do Ensina Brasil, com aceleração do seu impacto independente da sua área de atuação.”
No site desta “empresa sem fins lucrativos” você pode ler:
Eu serei um funcionário do Ensina Brasil? Não. O participante será um funcionário dos governos parceiros do Ensina Brasil mas contará com todo nosso apoio, acompanhamento e formação.
Por que o programa dura 2 anos? Esse tempo foi definido de acordo com experiências prévias de programas similares conduzidos em outros países por organizações parceiras da rede Teach for All. O prazo de dois anos mostrou-se como o tempo mínimo para que o participante consiga assimilar o conteúdo das formações e aplicar esse conhecimento de forma efetiva em sala de aula, gerando o impacto desejado em seus alunos e consolidando em si mesmo as habilidades necessárias para continuar impactando a sociedade ao sair do programa. Ao mesmo tempo, esse prazo é suficientemente curto para atrair talentos de diversas áreas que talvez não considerariam uma carreira em educação.
Qual será o meu salário? Como o participante é contratado diretamente pelos governos parceiros, o salário irá variar de acordo com a sua alocação no programa, mas será sempre igual ao salário de um professor em início de carreira com a mesma carga horária da localidade de alocação.”
Fonte: https://avaliacaoeducacional.com/

Para pensar a “reforma” do Ensino Médio

 

Por Lívia Moraes

   Na data de 22 de setembro de 2016, chegou ao nosso conhecimento o conteúdo da Medida Provisória do Presidente Michel Temer que dispõe sobre a reforma do Ensino Médio[1]. Uma MP editada por decreto, sem diálogo com a sociedade, mostra-se como “moderna” e “flexível”, porém representa um retrocesso gigantesco perante as lutas históricas de educadores e estudantes.
   Ainda que o Ministério da Educação (MEC) tenha publicado uma nota dizendo que não haverá perda de disciplinas obrigatórias[2], ainda não apresentou uma “versão correta” da MP com a dita alteração. E, mesmo que recue nesse ponto, a MP ainda terá enorme impacto sobre a sociedade.
A proposta aqui é problematizar alguns dos principais pontos da MP.
Em primeiro lugar, a alteração do artigo 36 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB)[3], que afirma que “a carga horária destinada ao cumprimento da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) não poderá ser superior a mil e duzentas horas da carga total do ensino médio”, ou seja, a parte básica do Ensino Médio vai ser reduzida para um ano e meio. A segunda metade do curso seria tomada por “itinerários formativos”: linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação técnica e profissional. Consta, nesse mesmo artigo, que “os sistemas de ensino ‘poderão’ compor os seus currículos com base em mais de uma área prevista”. “Poderão” é diferente de “deverão”, de modo que na escola mais próxima da casa do estudante, não necessariamente haverá o “itinerário” que ele escolheu, com isso, há a possibilidade de que quem mora na periferia só tenha acesso facilitado ao profissionalizante, por exemplo;
   Um ano e meio não é tempo suficiente para o estudante ter acesso a um conteúdo mínimo esperado para essa formação de nível médio. Vai na contramão da luta pelo acesso ao conteúdo historicamente produzido pela humanidade, de uma formação ampla e profunda, que contemple arte, matemática, literatura, ciências da natureza, pensamento crítico etc. Obstacularizar ao estudante o acesso a esse conteúdo é expropriar-lhe de seus direitos de apropriação desses conhecimentos;
Nesse mesmo sentido está a retirada da obrigatoriedade dos componentes curriculares de educação física e artes. Na MP a obrigatoriedade se restringe à educação infantil e ao ensino fundamental. Aliás, é sintomática a retirada da educação física logo após o encerramento das olimpíadas e paraolimpíadas no Brasil;
   Componentes curriculares tais como Sociologia e Filosofia, cuja obrigatoriedade foi fruto de uma profunda luta por mais debate crítico na formação dos estudantes, podem ficar de fora, a depender do que se considere primordial na BNCC. Um breve olhar sobre a história da educação no Brasil já nos permite imaginar que não serão incorporadas, ou serão incorporadas “pro forma”;
O artigo 24 da LDB sofre a seguinte alteração: “A carga horária mínima anual […] deverá ser progressivamente ampliada, no ensino médio, para mil e quatrocentas horas”. Hoje, a carga horária é de 800 horas. Essa mudança é, aparentemente, interessante, porque, em tese, implicaria em ensino integral. Contudo, deriva daí um problema, que é solucionado de forma drástica. O primeiro é que só o estudante que não precisa trabalhar (seja trabalho doméstico, seja salarial) poderia ficar tantas horas na escola, o que teria um efeito de evasão enorme sobre a classe trabalhadora. Assim sendo, a própria MP responde ao problema ao permitir que a oferta de formação considerará “a inclusão de experiência prática de trabalho no setor produtivo […] estabelecendo parcerias”, bem como “para efeito de cumprimento de exigências curriculares de ensino médio, os sistemas de ensino poderão reconhecer, mediante regulação própria, conhecimentos, saberes, habilidades e competências, mediante diferentes formas de comprovação, como: I – demonstração prática; II – experiência de trabalho supervisionado ou outra experiência adquirida fora do ambiente escolar; III – atividades de educação técnica oferecidas em outras instituições de ensino; IV – cursos oferecidos por centros ou programas educacionais; V – estudos realizados em instituições de ensino nacionais ou estrangeiras; e VI – educação à distância ou educação presencial mediada por tecnologias”. Ou seja, o aluno não terá que cumprir essa carga horária na escola, ele poderá cumpri-la oferecendo sua força de trabalho a salários baixos ou voluntariamente, como tradicionalmente ocorrem nos estágios. Por outro lado, isso é um enorme incentivo às empresas de serviços educacionais, já que há abertura para que parte dessa formação seja feita em outros estabelecimentos e inclusive à distância, cuja qualidade da aula, em geral, é inferior, porque não estabelece uma relação dialógica entre professores e alunos;
   O ponto anterior citado é possibilitado porque “o ensino médio poderá ser organizado em módulos e adotar o sistema de créditos”;
   É ainda mais assustador o fato de que “os conteúdos cursados durante o ensino médio poderão ser convalidados para aproveitamento de créditos no ensino superior”, o que corresponde ao aligeiramento da formação em ambos os graus, para entregá-los ao mercado mais rapidamente;
Esse aligeiramento também aparece com a “possibilidade de concessão de certificados intermediários de qualificação para o trabalho”;
   Ainda, sobre o componente curricular “os currículos de ensino médio incluirão, obrigatoriamente, o estudo da língua inglesa”, uma clara demanda do empresariado. O Brasil, como parte integrante da América Latina, tem retirada a obrigatoriedade do espanhol, que havia resultado de outra grande luta dos educadores e pensadores sociais da realidade latino-americana. Tal decisão tem implicação também sobre estudantes indígenas, quilombolas, comunidades pomeranas, italianas, dentre outras, que deverão privilegiar o inglês em detrimento das línguas que compõem a sua história. Ou seja, desrespeita a diversidade cultural brasileira tão celebrada nos recentes megaeventos realizados no Brasil;
   Um dos pontos mais graves da MP diz respeito ao fato de que não será mais necessário ter formação em licenciatura para lecionar. Poderão ministrar conteúdos “profissionais com notório saber reconhecido pelos respectivos sistemas de ensino”. Isso implica que os ideários empresariais e religiosos, por exemplo, poderão adentrar as escolas pela porta da frente e ocupar boa parte da grade curricular. Tais profissionais que não têm formação para lidar com as diferenças e não foram preparados para conduzir uma aula como espaço formativo. Isso ainda tem um impacto tremendo nos cursos de licenciatura, nos quais se encontram a camada mais pobre de estudantes das universidades públicas;
   Por fora e em paralelo à MP, corre um PL no Senado (PL 772/2015[4]) para incluir na educação básica o tema de empreendedorismo, o que ideologicamente reforça a autoculpabilização do fracasso e autorresponsabilização pelo sucesso do estudante, e que corrobora com a ideia de meritocracia;
   Tem relação direta também com a PEC 241/2016[5] que impõe um teto de gasto com educação para os próximos 20 anos, já que a formação seria flexibilizada, de modo a que parte dos custos fosse arcada pelo próprio estudante ou pelo empresariado em parceria com o público;
   Responde à demanda por parcerias público-privadas (PPP); por gestão da educação por Organizações Sociais (as quais podem contratar empresas terceirizadas sem licitação), por mais mensalidades para empresas educacionais etc.;
Desemprega e precariza ainda mais o trabalho docente, dada a retirada da obrigatoriedade de vários componentes curriculares, a não obrigatoriedade de formação em licenciatura, a redução da carga-horária da formação básica e os demais pontos aqui elencados;
   Pode aproximar-se (ou até substituir) o Projeto Escola Sem Partido, porque responde a várias de suas proposições, em especial, a um ensino que instrui ao invés de educar.
Enfim, trata-se de um ataque brutal à educação, especialmente à educação pública, porque as escolas privadas da elite continuarão proporcionando acesso a esses conhecimentos a seus estudantes, enquanto a escola pública oferecerá força de trabalho a preços irrisórios no mercado. Resta-nos fazer resistência a este decreto, que impõe uma reforma estrutural da educação brasileira, elaborada hierarquicamente, de cima para baixo, sem qualquer diálogo com a sociedade. Para virar lei em definitivo, a MP precisa ser analisada em comissão especial do Congresso e depois aprovada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, em até 120 dias, para não perder a validade. Portanto, temos 120 dias para organizar uma forte resistência e lutar em todas as frentes possíveis para barrar esse projeto empresarial de educação, o qual se caracteriza por ser mais um ataque frontal e autoritário à classe trabalhadora.

Notas
[1]https://nova-escola-producao.s3.amazonaws.com/sXtYABnV2wxHKtAT49Ge4TjtZUnhxeBezK7pM3Va6aHfsNzF3GMBG74UTRan/mp-novo-ensino-medio.pdf
[2]http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=39581
[3]http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm
[4]https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/124353
[5]http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2088351

Fonte:http://blogjunho.com.br/para-pensar-a-reforma-do-ensino-medio/#_ftn1