“Pela flor do proletariado, eu entendo sobretudo esta grande massa, estes milhões de não civilizados, de deserdados, de miseráveis e de analfabetos que o Sr.Engels e o Sr. Marx pretendem submeter ao regime paternal de um governo muito forte… Por flor do proletariado, eu entendo esta carne para governo, esta grande canalha popular que, estando quase virgem de toda civilização burguesa, traz no seu seio, nas suas paixões, nos seus instintos, nas suas aspirações, em todas as necessidades e misérias de sua posição coletiva, todos os germes do socialismo futuro, e que só ela é suficientemente forte para inaugurar e para fazer triunfar a Revolução Social”
Mikhail Bakunin
Uma analise teórica é necessária do presente levante popular. A dimensão e significado que o levante assumiu já o torna um dos eventos mais importantes da história da classe trabalhadora e das lutas sociais no Brasil nos últimos 30 anos.
O que o levante popular explicitou? As contradições de classe e os limites do reformismo como política e do marxismo como teoria. A política apresentada por quase todas as organizações marxistas e socialdemocratas, partidos políticos e sindicatos foi contrarrevolucionária. Alinharam-se ao Governo, à Polícia e a mídia burguesa. A sua análise teórica da realidade foi equivocada. Tomaram como principal uma contradição secundária entre “direita e esquerda”, que há muito perdeu o conteúdo e ignoraram as contradições de classe e sociopolíticas profundas que se manifestaram. No campo socialista e revolucionário, dentre as poucas organizações anarquistas existentes a UNIPA foi à única que apresentou uma análise teórica coerente com uma prática revolucionária diante do levante popular. A teoria não se improvisa. E agora é preciso, mais do que nunca, uma teoria.
A UNIPA vem desenvolvendo desde 2003 uma série de teses e argumentos que apontavam para como as diferentes contradições sociais e políticas levariam, cedo ou tarde, a formação de movimentos espontâneos da classe trabalhadora, reagindo a contradições estruturais e conjunturais. É exatamente esses argumentos que iremos recuperar agora para analisar o presente Levante Popular. Em 2003, as Resoluções do II Congresso da UNIPA apresentavam nossa análise das contradições estruturais da sociedade brasileira e do nosso capitalismo dependente, em que indicávamos 8 contradições estruturais entre as diferentes frações de classe. Além da contradição capital/trabalho materializada em diferentes frações de classe (ex: proletariado industrial x burguesia industrial), colocávamos o seguinte:
“Tomando por base todos os dados apresentados, o II Congresso entendeu que seria preciso qualificar as contradições inerentes ao sistema social capitalista, ou seja, que fazem parte da dinâmica das relações sociais e instituições políticas e econômicas, manifestas no cotidiano do país. As contradições, ou os conflitos estruturais da sociedade brasileira podem ser assim resumidos: 4) Burguesia Rural, Pequena Burguesia Rural X Proletariado Rural e Camponeses – dada pelas relações com a terra, as relações de trabalho e os direitos a elas associados. 6) Estado X Proletariado Marginal – dada pela exclusão das relações de trabalho, tendo objetos diversos de disputa, mas envolvendo principalmente direitos sociais e civis. 7) Estado, Burguesia X camadas populares – dada por fatores diversos (políticos, históricos, culturais), envolvendo principalmente direitos sociais e civis e se dá devido ao racismo e machismo existente na sociedade brasileira.”
Essa análise de classes visava exatamente traçar o papel das diferentes frações da classe trabalhadora e camadas populares num processo revolucionário e na luta de classe s no Brasil
“Quais serão então as forças principais da revolução brasileira? O II Congresso, levando em consideração os elementos de nossa teoria, entendeu que no Brasil, existem duas frações proletárias que serão as forças principais: 1) o proletariado marginal: 2) o campesinato. Eles constituem uma massa de pelo menos 47 milhões de pessoas (mais que o dobro das demais frações proletárias da sociedade brasileira). São também a parcela da população em que os níveis de pobreza sãos maiores e as condições de vida são mais precárias. Não que as demais frações do proletariado gozem de condições muito superiores, mas nestas frações, elas têm graus realmente absurdos. É preciso também definir o que chamamos de força principal. Por força principal, entendemos as principais frações a serem mobilizadas devido: 1) ao antagonismo potencial de seus interesses, expresso pelas condições materiais de existência (pobreza, violência, injustiça) sob que vivem; 2) a quantidade demográfica destas frações, que faz com elas tenham um peso específico pelo fato de serem muito volumosas, logo, poderem mobilizar grandes efetivos e ter um grande potencial político. Segundo nosso entendimento, as forças principais da revolução social no Brasil serão compostas pelo proletariado marginal e o campesinato. O proletariado marginal, ao contrário dos segmentos sociais mais instruídos, engajados na economia formal e auferindo rendimentos elevados, é aquela fração que proporcionalmente menos se engaja em atividades políticas e associativas. Justamente por isso que devemos empenhar nossos esforços no sentido de sua organização e mobilização (Resoluções do II Congresso da UNIPA, Março de 2004)
De maneira geral, o conceito de proletariado marginal abrangia trabalhadores informais e subempregados. No nosso III Congresso em 2007 ampliamos esse conceito para abranger todos os trabalhadores super-explorados. De maneira geral, esses trabalhadores marginais no sistema econômico o são também no sistema político. São marginalizados num duplo sentido. Ao mesmo tempo, são os trabalhadores que são mais vitimados pela repressão e violência policial. Logo, não somente eles são marginais na economia e na vida política, eles são marginalizados legalmente e obrigados a viver no limiar da clandestinidade.
O acumulo teórico nos permitiu situar essa analise de classes numa teoria do desenvolvimento capitalista. No III Congresso apontamos que o atual período histórico, das reformas neoliberais e reestruturações produtivas, podem ser consideradas como o capitalismo ultramonopolista. Apontamos que a polarização entre neoliberalismo e neodesenvolvimentismo era falsa. Ao mesmo tempo faziam avançar as reformas neoliberais, a reestruturação produtiva e o papel do Estado, especialmente policial. Como podemos ver pelo trecho abaixo:
“Assim, a reestruturação produtiva e as reformas do Estado, presentes na atual etapa do imperialismo, levam a mudanças nas relações do centro com a periferia e a semi-periferia, e acentua ainda mais a importância da depreciação da taxa de salários como formula de resolver a crise do capital e retomar o crescimento e o desenvolvimento da acumulação de capital. Isso significa que, mais do que nunca, o imperialismo opera especialmente pela super-exploração do trabalho e não pelas trocas desiguais. Mas o traço principal do período ultra-monopolista do capitalismo, é que ele estende mecanismos que estavam presentes na estrutura do imperialismo na época do capitalismo monopolista de Estado, especialmente o “duplo mercado de trabalho” que é um dos principais mecanismos de ação do imperialismo. O duplo mercado permitiu uma segmentação do proletariado por condição socioeconômica, criando um mercado de trabalho relativamente protegido e bem remunerado que correspondia de maneira geral à divisão entre países de centro e periferia (incluída aqui a semi-periferia), ou dentro do centro e da periferia, em um mercado de ocupações bem remuneradas, qualificadas, com garantias jurídicas e socialmente valorizadas, e outras ocupações desprovidas disso. Um dos principais efeitos dessas mudanças em escala internacional é a extensão do proletariado marginal (pelos trabalhadores submetidos à esfera inferior do duplo mercado e formas de acumulação primária). Se o sindicalismo não se colocar a necessidade de organizar a fração do proletariado marginal (terceirizado, precarizado, desempregado, etc.) continuarão reduzidas as possibilidades de avanços na luta da classe como um todo, isso porque a nova fase do capitalismo coloca uma nova estrutura de classe, onde essa fração tem um papel central na acumulação de capital. 74) Podemos dizer que o capitalismo ultra-monopolista se caracteriza pela: 1) Flexibilização (comercial, tributária, trabalhista), o que significa eliminar ou diminuir os regulamentos legais que impedem as empresas de obter o lucro; 2) Internacionalização e concentração de capitais, os setores que até duas décadas eram controlados por monopólios estatais ou empresas nacionais, passam para o controle de multinacionais; 3) Volatilidade – os investimentos realizados podem em razão da flexibilização podem ser retirados pelas empresas a qualquer momento; 4) desestruturação do mundo do trabalho através da terceirização, da precarização e do desemprego estrutural”. (Resoluções do III Congresso da UNIPA, 2007)
Esse duplo mercado de trabalho também gera uma contradição geracional e ocupacional. As reformas neoliberais e reformas do Estado com precarização das condições de trabalho e estudo atingem especialmente a juventude. Ou seja, os estudantes e a juventude não tem e não terão a mesma proteção que certas categorias de trabalhadores têm hoje. Por outro lado, a massa dos trabalhadores super-explorados e precarizados é vista apenas como alvo de políticas compensatórias pelo sistema político. A aristocracia sindical e partidária quer defender seus interesses econômico-corporativos e sua posição no sistema político e entra em antagonismo tanto com o proletariado marginal, quanto com diferentes categorias como a juventude e os estudantes, que não são e não serão detentores dos privilégios da aristocracia sindical e partidária. Daí as contradições entre as burocracias sindicais e partidárias e os diferentes setores mobilizados nos protestos.
Dessa maneira, tínhamos apontado muito claramente que a sociedade brasileira vivia uma contradição estrutural, entre um proletariado marginal e o campesinato x Estado e a burguesia rural. O neoliberalismo e o desenvolvimentismo eram duas políticas econômicas não antagônicas, eram dois instrumentos do imperialismo dentro da sua fase ultra-monopolista. O Governo do PT tinha construído um bloco ou coalizão partidária e de classes sociais, e sua principal missão era realizar a transição plena de um regime político intervencionista (legado pelo varguismo e pelos militares) a um regime neoliberal, como argumentamos em 2005 no comunicado “As Reformas do Governo Lula e as Tarefas do Proletariado”. Assim, a polarização PT (intervencionismo) x PSDB (neoliberalismo) era falsa. A luta anti-capitalista deveria ser contra os projetos neoliberais e neodesenvolvimentistas que estavam colocando como contradições sociais principais aquelas do proletariado marginal e do campesinato (o que continua acontecendo).
Apesar do PT ter a hegemonia da maioria das organizações sindicais e de trabalhadores, sempre apontamos que essa hegemonia não anulava as contradições dos setores não–organizados e a possibilidade de movimentos espontâneos e imprevistos. A nossa análise das eleições já vinha apontando como os dados do “Não Voto” indicavam uma profunda marginalização voluntária das massas em relação ao processo político e também um profundo potencial anti-hegemônico e anti-sistêmico existente nas reivindicações econômicas e políticas derivadas das contradições estruturais apontadas acima.
“Podemos afirmar, ironicamente, que a outra tendência de crescimento nas eleições, além do crescimento petista, é o crescimento do não voto, ou seja, das abstenções, do voto nulo e do voto em branco. Já temos elementos para afirmar que o não voto é uma variável estrutural do processo eleitoral e consequentemente, da luta de classes no Brasil. (…) O Brasil possui cerca de 138,5 milhões de eleitores segundo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). No primeiro turno das eleições municipais de 2012, 23milhões de brasileiros se abstiveram do processo eleitoral, o que representa 16,6% do total de eleitores. Os votos nulos foram 9,1 milhões e os votos brancos 3,8 milhões. Ou seja, o “não voto” representou 35,9 milhões de brasileiros, cerca de 25,9% do total de eleitores. (…) Os números do não voto são ainda mais significativos quando analisamos alguns casos específicos. No primeiro turno das eleições na cidade de São Paulo, o não voto totalizou 2,3 milhões de paulistanos, superando os dois candidatos que foram para o segundo turno (…)Na capital fluminense o totalizou 1,4 milhões dos eleitores. O prefeito reeleito no primeiro turno, Eduardo Paes (PMDB), recebeu 2 milhões de votos e o segundo colocado, Marcelo Freixo (PSOL), recebeu pouco mais de 900 mil votos. Em Fortaleza o não voto chegou a 353 mil eleitores, contra 318 mil votos de Elmano (PT) e 291 mil de Roberto Claudio (PSB). Poderíamos dar outros exemplos e o resultado seria o mesmo: o crescimento significativo do não voto nas eleições. (…) Os comentaristas políticos da mídia burguesa também abordaram o tema, procurando explicações a partir de perspectivas liberais e idealistas, afirmam que o abstencionismo é resultado do desencantamento da população com a política. Setores reformistas e marxistas qualificam o não voto como sendo “alienado”, ou seja, ou como resultado da ignorância ou do apoliticismo. (…) Para a teoria bakuninista, um fenômeno social e político não podem ser explicados de maneira tão simplista e a partir de pressupostos idealistas. Ainda não existem condições para uma análise mais profunda do fenômeno do não voto, mas com os dados disponíveis é possível tecer considerações e chegar a algumas conclusões preliminares. Em primeiro lugar, como já afirmamos, a recorrência do não voto e o seu crescimento nos permitem afirmar que estamos diante de um fenômeno estrutural, ou seja, é parte integrante da luta de classes no Brasil contemporâneo. Em segundo lugar, o não voto está longe de ser uma expressão da alienação política ou o simples resultado da despolitização. Antes, é uma expressão difusa de contestação da ordem instituída; um questionamento da legitimidade do poder político estatal. Trata-se de um potencial antiestatista, fruto do atual contexto da luta de classes no Brasil marcada pela crise do governismo”. (Comunicado No 36, Dezembro de 2012)
Ou seja, os dados acima ajudam a mostrar como existia uma recusa das massas a política burguesa e ao sistema político estatal. Também tínhamos desenvolvido o argumento de que o Governo do PT e a coalizão partidária e social estavam perdendo os instrumentos de cooptação. Desde 2010 no nosso IV Congresso apontávamos claramente nessa direção.
“As perspectivas de médio prazo indicariam (caso a crise econômica se confirme e os demais fatores políticos e econômicos se mantenham inalterados) que um futuro e provável Governo Dilma terão condições menos favoráveis que as atuais. E terá de assumir o confronto contra os interesses dos trabalhadores, reduzindo o déficit fiscal que tenderá a crescer e protegendo os interesses dos latifundiários e do próprio capital associado. Mas a questão é que isso pode acontecer em um ano ou em quatro, cinco, dependendo da evolução dos fatores econômicos e políticos. Temos então dois cenários distintos dentro do atual contexto de crise, o de curto prazo e o de médio prazo. No curto prazo o setor reformista e governista (PT e PCdoB) sairá fortalecido na conjuntura de crise. No médio prazo, é possível que mais uma vez o bloco governista tenha que coordenar um ataque à classe trabalhadora (como foi na ocasião das reformas de 2003). E essa seria uma ocasião para a criação de uma alternativa nacional de sindicalismo, um sindicalismo de tipo revolucionário de massas” (Resoluções do IV Congresso, Março de 2010)
Ou seja, o desgaste do PT, da sua coalizão social e política e da capacidade do reformismo partidário e sindical em responderem ou gerirem as contradições sociais já estavam se acumulando e demonstrando seus limites. A eclosão de um movimento espontâneo sempre figurou como uma variável na nossa análise como podemos ver nas Resoluções da II Assembleia Nacional (Fevereiro de 2012) em que apontamos o seguinte:
“Ao mesmo tempo, o novo ciclo de luta de classes na Europa (2008-2011) e na África (2011-2012) serve também para mostrar as limitações dos movimentos de massa e possíveis questões para a luta de classes no Brasil. No caso da Europa, os heroicos protestos dos insurrecionalistas gregos são uma lição para todos os trabalhadores do mundo (…) O mesmo acontece na Espanha (com os protestos da juventude desempregada) e França (com a população da periferia e imigrante). Os ciclos de luta têm levado a um avanço da reação e nazi-fascismo: o ataque nazista na Dinamarca contra o Partido Socialista acobertado pelo Governo e o crescimento do nazismo no leste europeu provam isso. Assim, o avanço da crise gera uma dialética ascendente de revolução/reação. É preciso levar a sério essa situação, pois elas sempre tenderam a se mundializar. (…) O Governo Dilma está aprofundando o abismo com os movimentos sociais. Estão se criando as condições para uma segunda crise do governismo, só que essa mais profunda. Pois dessa crise ou irá surgir uma ofensiva burguesa avassaladora que contará com o apoio explicito da CUT e CTB ou desencadeará movimentos espontâneos que sofrerão a pressão dessas forças. (2ª Assembleia Nacional, fevereiro-março de 2012)
Foram exatamente essas contradições que se explicitaram no Levante Popular de Junho de 2013 em várias regiões do país. A espontaneidade do levante está diretamente ligada às contradições sociais e econômicas estruturais que o produziram e uma serie de fatores sociológicos que explicam como esse levante começa com mobilizações estudantis que expressavam uma cisão entre entidades governistas ou ligadas a forças governistas (explicitando as tensões geracionais entre a juventude e aristocracia sindical e partidária) e rapidamente é transformada num movimento de massas depois das brutais repressões policiais (explicitando as contradições latentes entre o Proletariado marginal x Estado). Os Fóruns de Luta pelo Transporte (RJ) e o Movimento Passe-Livre (SP) expressaram assim a crise dentro do governismo. Muitas entidades estudantis ligadas ao governismo convocaram as mobilizações. Mas foi a repressão estatal que deu ao movimento um caráter de massas e de confronto que não tínhamos testemunhado no Brasil.
Depois da repressão policial em São Paulo o eixo dos atos e sua forma de ação se modificaram. A massa radicalizou e apresentou a contradição com o Estado. São Paulo, Rio de Janeiro e Fortaleza rapidamente assumiram destaque exatamente porque acumularam contradições estruturais e conjunturais: 1) as contradições estruturais, entre os interesses do proletariado marginal e das camadas populares x Estado, já que essas cidades estão entre aquelas com maiores índices de violência policial do Brasil, desigualdade e racismo; 2) como vimos, são cidades também em que a marginalidade em relação ao sistema político é extremamente significativa, expressa pelo “Não Voto” como um componente difuso da consciência popular; 3) conjunturalmente, são cidades Sedes da Copa das Confederações e da Copa do Mundo em que o custo de vida e do transporte aumentou significativamente, de maneira que a massa sabe que sua qualidade de vida diminui na proporção em que os investimentos públicos na Copa do Mundo aumentam. Ou seja, o Levante é espontâneo. Mas as contradições que o produziram já vinham se acumulando e nós apontamos por diversas vezes que essa situação estava se delineando de forma cada vez mais clara. Assim, a contradição Estado X Proletariado Marginal dá um caráter de classe e anti-estatista que pudemos observar em grandes setores da massa e por suas palavras de ordem anti-militaristas e contra a polícia. O mesmo se deu pela ação direta de resistência e confronto com os símbolos e as forças policiais do poder de Estado.
Do ponto de vista sociológico, um movimento de massas de milhões de pessoas nunca é homogêneo. Mas podemos dizer que eles se dividem em pelo menos três grandes formas de abordagem: 1º) do ponto de vista da composição de classe, o levante popular reuniu especialmente o proletariado marginal, e todas as demais frações de classe (proletariado industrial, proletariado dos serviços e também setores da pequena burguesia urbana e aristocracia operária); 2º) do ponto de vista da composição ocupacional, o movimento estudantil e os trabalhadores não-organizados estiveram na vanguarda das mobilizações e compuseram a grande massa nas ruas; 3º) do ponto de vista das reivindicações e programa, predominaram as reivindicações por transporte, saúde e educação pública, o que mostra como as reivindicações econômicas de natureza coletiva predominam sobre a de natureza corporativa.
Esse conjunto de fatores marca que desde o ponto de vista da composição de classe, das contradições estruturais e conjunturais e das reivindicações existe um potencial antagonismo anti-hegemônico e anti-sistêmico no levante popular. Pois questionam a privatização dos serviços públicos e sua subordinação ao capital, anulando os direitos sociais dos trabalhadores. O anti-partidarismo (que tem diversas bases, inclusive uma tentativa de grupos de direita de fortalecer o Estado e negar os “partidos”) não foi expressão de uma percepção “conservadora”, mas sim das contradições de classe e estruturais da sociedade brasileira e da condição de marginalidade em relação ao sistema político. As massas são heterogêneas. Mas o maior contingente mobilizado, excetuando a pequena burguesia e setores reformistas das demais frações e categorias, estão em contradição estrutural com “a direita e a esquerda”, com o sistema político, o regime econômico e as decisões e pacotes de política econômica. Uma entrevista realizada com um manifestante que participou das ações de resistência e do “quebra-quebra” em Porto Alegre ilustra perfeitamente nossos argumentos.
CMA – Queremos saber mais sobre a tua vida. Tu é de onde?João – Tenho 23 anos e nasci na região metropolitana de Porto Alegre. Mano, terminei os estudos faz um tempinho. Nunca nem pensei em ir pra faculdade porque tive que trabalhar cedo. Nunca tive um emprego decente.CMA – O que tu faz pra viver?João - Vivo de bico. Já vendi DVD, entreguei água e fui balconista em papelaria. Trabalho e não tenho grana para nada. Tudo está cada vez mais caro, e a gente vai ficando cada vez mais pobre. Enquanto isso no lado rico da cidade, os políticos enchem os bolsos e andam de namoro com os empresários graúdos, dono de empresa de ônibus, empreiteiro… obra superfaturada, suborno, e a gente de baixo cada vez mais fodida. Isso é injustiça! Isso é violência! Quem se dá conta da sacanagem, começa a ficar indignado.CMA – Tu é filiado a algum partido ou organização? Está ligado a algum grupo de contracultura?João – Não sou de partido nenhum. Detesto todos os partidos do mesmo jeito. São todos um bando de safados competindo entre si para nos enganar. Eles não me representam. Também não tenho organização, tenho uns amigos que são punk e também gosto de hip-hop. Se vou para as manifestações vou junto com amigos e vizinhos. A gente fecha uma galera e vai. A gente se cuida, e cuida para não ser reconhecido nem pego.CMA – Por que você tu preferiu a forma de manifestação violenta ao invés de se manifestar pacificamente, como os jornais e a maior parte das pessoas defende?João – Se eu to me sentindo violentado pela forma como sou tratado, se to sendo atacado por que eu que to em baixo, sou eu que tenho que ser o pacífico? Ninguém tem cancha para dizer como eu tenho que me manifestar, porque ninguém aprende pela minha pele. Só eu sei pelo que tenho passado pela falta de grana. Com a passagem subindo eu perco meu direito de ir e vir, e não tem lei que proíba a gente de passar fome. (Entrevista realizada pelo Centro de Mídia Autônoma –http://www.midiaindependente. org/pt/blue/2013/06/520365. shtml)
A contradição desses protestos é também com a política reformista e social-democrata, seus métodos de ação parlamentaristas e suas reivindicações corporativistas. O levante popular questionou ao mesmo tempo o fundamento dessas organizações e explicitou todas suas contradições e limites. Nesse sentido, toda tentativa de qualificar os protestos e o levante popular como um todo de estar sendo ganho pela “direita” só mostra a incapacidade do marxismo e reformismo brasileiro. Por outro lado, a burguesia tenta se apropriar de um movimento que ela ajuda a produzir. E isso será ineficaz. Ou seja, esse movimento tende a se reproduzir na marginalidade em que ele surgiu até se formar uma força revolucionária capaz de potencializar sua expressão.
O levante popular tem suas raízes nas contradições de classe, nas contradições com o Estado e nos efeitos que o modelo de desenvolvimento capitalista e a crise mundial começam a produzir. Por outro lado, o levante parece marcar o nascimento de um novo sujeito sociopolítico: o proletariado marginal se constituindo na ação coletiva e de massas, marcando assim a emergência de um novo sujeito histórico com potencial revolucionário. Mesmo que a aristocracia sindical e partidária consigam desmobilizar os protestos agora e aprofundar o caráter policial do Estado, eles não eliminarão essas contradições estruturais e, logo, outras explosões serão questão de tempo e lugar.
Diante do Levante Popular, consolidou-se a ruptura desse sujeito sociopolítico e suas manifestações concretas com a aristocracia sindical e partidária e o sistema político burguês. Também marcou a emergência do anarquismo como referencia para as massas, seja através da ação direta anarquista, seja através da luta da burguesia contra o anarquismo (através da campanha de criminalização). Além disso, esse processo está possivelmente marcando o início de um novo ciclo histórico. A emergência das lutas, dessas formas de ação e organização são estruturais. Mesmo com um refluxo temporário, essas questões irão marcar a dinâmica da luta de classes no Brasil.
É importante situar também esse Levante, quase que essencialmente urbano e metropolitano, dentro das demais lutas. Porém
“Em primeiro lugar temos de situar historicamente os protestos. Podemos dizer que o Governo Lula teve instrumentos de contenção dos movimentos sociais. Tanto macroeconômicos quanto políticos, de cooptação. A partir da posse de Dilma esses instrumentos entraram em processo de deterioração. As lutas dos operários das grandes obras, as lutas dos indígenas. Depois a grande greve do funcionalismo público e das universidades de 2012. A greve das universidades e a participação do movimento estudantil na luta contra o Governo Dilma preparou em parte o terreno para as lutas que eclodiriam em 2013. Muitos militantes de hoje foram formados nessas jornadas (…) Os atos foram direcionados para dois alvos principais: os megaeventos, ou seja, o modelo desenvolvimentista do PT e contra os núcleos do poder estatal. Devemos fazer uma análise dos acontecimentos e questionar a campanha burguesa de criminalização da ação direta popular. Devemos situar a eclosão dos protestos violentos no quadro histórico recente. (Viva o Levante Popular, 20/06/2013)
Logo, não podemos esquecer que as lutas no campo já estavam se dando, opondo um campesinato indígena e o proletariado rural aos efeitos do modelo de desenvolvimento capitalista no campo. O modelo de desenvolvimento capitalista está colocando assim as contradições no campo e na cidade, criando as condições para um novo tipo de aliança operário-camponesa. O levante popular somado as contradições e lutas no campo marcam o início de um novo ciclo histórico e de lutas sociais, em que as contradições de classe colocarão em rota de colisão o proletariado marginal, o campesinato e o Estado e seu modelo de desenvolvimento capitalista.
Isso aumenta nossa responsabilidade histórica. Qual a tarefa dos anarquistas revolucionários ante essa nova conjuntura? A nossa linha foi traçada desde 2010:
“Será justamente o trabalho das oposições, orientadas corretamente por uma linha de massas combativa e classista, desgastando o governismo e o reformismo, que construirá as condições necessárias para a conformação de um movimento nacional de oposições sindicais-populares- estudantis. A constituição de tal movimento é tarefa importante para unificar os militantes combativos e aplicar corretamente uma política de reorganização das lutas proletárias. O primeiro poder que os trabalhadores têm que conquistar é o poder sobre suas próprias organizações, isso é autonomia. Essa organização visa impulsionar as lutas e dar um direcionamento especifico por meio de um programa de reivindicações e táticas diferenciadas de ação e organização; a ação direta no local de trabalho, a greve geral e as organizações intercategorias de base. Esse tipo de organização assumirá a forma de oposições, mantendo sua forma de organização diferenciada das entidades representativas dos trabalhadores.Para isso devemos ter clareza que as centrais e a maioria dos sindicatos serão possivelmente veículos para paralisar e combater a luta dos trabalhadores. (…) Mas a critica não se transforma em niilismo e imobilismo. Transforma-se numa linha de ação alternativa. Como os Sindicatos e demais organizações de trabalhadores se encontram sob tutela do Estado e controlados pela burocracia, uma palavra de ordem fundamental será a convocação de Comissões de Base. Essas Comissões devem ser criadas em cada local (empresa, unidade produtiva, unidade de ensino, unidade de trabalho rural) para juntar o que o capitalismo fragmentou: as diferentes categorias ocupacionais e ofícios, os trabalhadores temporários e permanentes, precarizados e integrados. O objetivo único dessa forma organizativa é o de realizar a luta por meio da Greve, Boicote e demais formas de Ação Direta. Coordenando todos os trabalhadores e/ou estudantes na Base. Essas Comissões de Base devem convocar assembleias e reuniões de todos os trabalhadores sempre que o sindicato ou associação de representação se apresentar inoperante ou abertamente contrários à luta de classes. Essas comissões são formas temporárias, irão representar uma forma de ginástica de sindicalismo revolucionário, ou seja, exercitar e fortalecer nos trabalhadores a estrutura de consciência de classe e o corpo organizativo por meios de organização informal. Esse caráter temporário reflete um momento do desenvolvimento da força coletiva do proletariado, já que o objetivo é fazer com que essas organizações tornem-se perante os trabalhadores expressão do seu poder organizacional e consequentemente expressão permanente de sua representação. Mas isso não se dará artificialmente, mas a partir de recorrentes experiências de luta através dessas formas organizativas. A convocação das Comissões de Base será assim o a tática para o próximo período, como forma de criar focos de resistência e oposição nos sindicatos dominados pela burocracia pelega e oficialista ou então totalmente tutelados pelo Estado. Levantar as Barricadas! É a palavra de ordem da tática antiestatista e anti-neoliberal para agrupar os trabalhadores em torno do programa econômico-reivindicativo e político-organizativo. E a Barricada é construção das oposições e das Comissões de Base, como alternativa à capitulação das centrais sindicais e dos movimentos sociais e estudantis. (Resoluções do IV Congresso, 2010)
O combate ao reformismo através das oposições, impulsionando a auto-organização da classe é essencial. Deixar que a massa fique à mercê dos reformistas e do aparelho repressivo de Estado, da ofensiva burguesa é um crime. A espontaneidade não está em contradição com a organização. A auto-organização é o prolongamento da espontaneidade sob formas mais elaboradas e duradouras. Nesse sentido, a tarefa de todos os revolucionários é se lançar nesse trabalho de construção de uma alternativa de organização de massas classista e internacionalista.
Dessa maneira, a tarefa imediata é a construção pela base, a única saída classista e combativa dentro dessa conjuntura. A luta não começou agora, mas foi elevada a um novo patamar. As massas avançaram. Agora nossa tarefa é nos elevarmos até seu nível e conseguir enriquecer sua experiência com uma teoria e um programa que esteja à altura dessas lutas. No futuro, construir a aliança entre o proletariado marginal e o campesinato. Nesse momento a tarefa é aprofundar a auto-organização dos trabalhadores.
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