quarta-feira, 15 de maio de 2013

As Tarefas das Uniões da Juventude – V. I. Lênin

As Tarefas das Uniões da Juventude

V. I. Lênin

2 de Outubro de 1920

Primeira Edição: Discurso pronunciado por Lenine no III Congresso da Komsomol (União da Juventude Comunista da Rússia), em 2 de Outubro de 1920. O Congresso realizou-se em Moscovo de 2 a 10 de Outubro de 1920 e nele estiveram presentes cerca de 600 delegados, provenientes de todas as regiões do país. Na ordem do dia figuravam as seguintes questões: situação económica e militar da República, a Internacional Comunista da Juventude, o relatório de actividade do Comité Central, a educação socialista da juventude, o programa e os estatutos da Umão da Juventude Comunista da Rússia. O discurso de Lenine foi proferido na primeira sessão do Congresso e publicado na Pravda, n.ºs 221, 222 e 223, de 5, 6 e 7 de Outubro de 1920.
Fonte: Cadernos Cultura Popular nº 6 – Publicações Nova Aurora, Lisboa, 1974.
Tradução: Manuel L. Martins
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo
foto de Mao Tse Tung

(Lenine é acolhido pelo Congresso com uma calorosa ovação)
Camaradas:
Queria falar hoje convosco sobre as tarefas fundamentais da União da Juventude Comunista e, com este tema, do que devem ser as organizações da juventude na República socialista em geral.
Este problema merece tanto mais a nossa atenção porquanto, pode dizer-se, em certo sentido, é precisamente à juventude que incumbe a verdadeira tarefa de criar a sociedade comunista. Porque é evidente que a geração de trabalhadores educada na sociedade capitalista pode, no melhor dos casos, cumprir a tarefa de destruir os alicerces do antigo regime capitalista baseado na exploração. O mais que poderá fazer é resolver os problemas postos pela criação de uma ordem social que ajude o proletariado e as classes trabalhadoras a conservar o poder nas suas mãos e a criar uma sólida base, sobre a qual só poderá verdadeiramente construir a geração que começa a trabalhar já em condições novas, numa situação em que não existem relações de exploração entre os homens.
Pois bem, ao abordar deste ponto de vista a questão das tarefas da juventude, devo dizer que estas tarefas da juventude em geral e das uniões da juventude comunista e outras organizações em particular, poderiam definir-se com uma só palavra: aprender.
É claro que isto não é mais que «uma palavra». E esta palavra não responde às perguntas principais e mais essenciais: que aprender e como aprender? E o essencial neste problema é que, com a transformação da velha sociedade capitalista, o ensino, a educação e a instrução das novas gerações, chamadas a criar a sociedade comunista, não podem continuar a ser o que eram dantes. O ensino, a educação e a instrução da juventude devem partir dos materiais que a antiga sociedade nos legou. Só poderemos edificar o comunismo com a súmula dos conhecimentos, organizações e instituições, com o acervo de meios e forças humanas que herdámos da velha sociedade. Só transformando radicalmente o ensino, a organização e a educação da juventude conseguiremos que os esforços da jovem geração dêem como resultado a criação de uma sociedade que não se pareça com a antiga, quer dizer, da sociedade comunista. Por isso, devemos examinar em detalhe o que temos de ensinar à juventude e como há-de esta aprender se quer merecer realmente o nome de Juventude Comunista e como é necessário prepará-la para que seja capaz de preparar e coroar a obra por nós iniciada.
Devo dizer que a primeira resposta e, ao que parece, a mais natural é que a União da Juventude, e em geral toda a juventude que queira passar ao comunismo tem que aprender o comunismo.
Mas esta resposta, «aprender o comunismo», é demasiado geral. Que é que necessitamos para aprender o comunismo? Que é que devemos escolher, entre o conjunto de conhecimentos gerais, para adquirir a ciência do comunismo? Uma série de perigos nos ameaçam neste terreno, perigos esses que surgem a cada passo quando se expõe mal a tarefa de aprender o comunismo ou se entende esta de uma maneira demasiado unilateral.
A primeira vista, naturalmente, parece que aprender o comunismo é assimilar o conjunto de conhecimentos que se expõem nos manuais, folhetos e obras comunistas. Mas isso seria definir de um modo demasiado grosseiro e insuficiente o estudo do comunismo. Se o estudo do comunismo consistisse unicamente em assimilar o que dizem os trabalhos, livros e folhetos comunistas, isto dar-nos-ia com excessiva facilidade escolásticos ou fanfarrões comunistas, o que muitas vezes nos causaria dano e prejuízo, porque estas pessoas, depois de terem lido muito e aprendido o que se expõe nos livros e folhetos comunistas, seriam incapazes de coordenar todos estes conhecimentos e actuar como realmente exige o comunismo.
Um dos maiores males e calamidades que nos deixou como herança a antiga sociedade capitalista é o completo divórcio entre o livro e a vida prática, pois tínhamos livros nos quais tudo estava escrito numa forma perfeita e a maior parte das vezes esses livros nâo eram senão uma repugnante e hipócrita mentira, que nos pintava um quadro falso da sociedade capitalista.
Por isso, seria um grande equívoco limitarmo-nos a assimilar simplesmente o que dizem os livros do comunismo. Os nossos discursos e artigos de agora não são uma simples repetição do que antes se disse sobre o comunismo; pois estão ligados ao nosso trabalho quotidiano em todos os sectores. Sem este trabalho, sem a luta, o conhecimento livresco do comunismo, adquirido em folhetos e obras comunistas, não tem absolutamente nenhum valor, já que não faria mais do que continuar o antigo divórcio entre a teoria e a prática, «sse mesmo divórcio que constituía o mais repugnante rasgo da velha sociedade burguesa.
Seria, porém, mais perigoso pretendermos aprender somente as consignas comunistas. Se não compreendêssemos a tempo este perigo, se não fizéssemos todo o género de esforços para o evitar, a existência de meio milhão ou de um milhão de jovens de ambos os sexos, que depois de semelhante estudo do comunismo se chamassem comunistas, nâo causaria senão um grande prejuízo à causa do comunismo.
Põe-se-nos, pois, a questão de saber como havemos de coordenar tudo isto para aprender o comunismo. Que devemos tomar da velha escola, da velha ciência? A velha escola declarava que queria criar homens instruídos em todos os domínios e que ensinava as ciências em geral. Sabemos que isso era pura mentira, porque toda a sociedade se baseava e sustentava na divisão dos homens em classes, em exploradores e oprimidos. Como é natural, toda a velha escola, inteiramente impregnada do espirito de classe, não dava conhecimentos senão aos filhos da burguesia. Cada uma das suas palavras era arranjada para favorecer os interesses da burguesia. Nestas escolas, mais que educar os jovens operários e camponeses, preparavam-nos para maior proveito dessa mesma burguesia. Tratavam de preparar servidores úteis, capazes de proporcionar lucros à burguesia, sem perturbar, ao mesmo tempo, a sua ociosidade e sossego. Por isso, ao condenar a antiga escola, propusemos-nos tomar dela unicamente o que nos era necessário para conseguir uma verdadeira educação comunista.
Agora, vou tratar das reprovações, das censuras que correntemente se dirigem à escola antiga e que conduzem muitas vezes a interpretações inteiramente falsas. Diz-se que a velha escola era uma escola livresca, uma escola de adestramento autoritário, uma escola de ensino memorista. Isto é correcto, mas há que saber distinguir o que tinha de mau e de útil para nós a velha escola, há que saber escolher dela o indispensável para o comunismo.
A velha escola era livresca, obrigava a armazenar uma massa de conhecimentos inúteis, supérfluos, mortos, que atulhavam a cabeça e transformavam a geração jovem num exército de funcionários talhados pelo mesmo padrão. Mas se daí tentardes deduzir que se pode ser comunista sem ter assimilado o tesouro de conhecimentos acumulado pela humanidade, cometereis um erro crasso. Seria errado pensar que basta assimilar as palavras de ordem comunistas, as conclusões da ciência comunista, sem adquirir a soma de conhecimentos adquiridos de que o próprio comunismo é um produto. O marxismo é um exemplo que mostra como o comunismo saiu do conjunto dos conhecimentos humanos.
Tereis lido e ouvido que a teoria comunista, a ciência comunista, criada principalmente por Marx, que esta doutrina do marxismo deixou de ser obra de um só socialista — se bem que genial, é verdade— do século XIX para se transformar na doutrina de milhões e dezenas de milhões de proletários do mundo inteiro, que a aplicam na sua luta contra o capitalismo. E se perguntardes por que pôde a doutrina de Marx conquistar o coração de milhões e dezenas de milhões pertencentes à classe mais revolucionária, ser-vos-á dada uma única resposta: porque Marx se apoiava na sólida base dos conhecimentos humanos adquiridos sob o capitalismo. Ao estudar as leis do desenvolvimento da sociedade humana, Marxcompreendeu a inelutabilidade do desenvolvimento do capitalismo, que conduz ao comunismo, e, o que é mais importante, demonstrou-o baseando-se exclusivamente no estudo mais exacto, mais detalhado e mais profundo desta sociedade capitalista, por ter assimilado plenamente tudo o que a ciência tinha produzido até então, Marx analisou de um modo crítico, sem desdenhar um único ponto, tudo o que a sociedade humana tinha criado. Analisou tudo o que o pensamento humano tinha criado, passou-o pelo crivo da crítica, comprovou-o no movimento operário e extraiu daí as conclusões que as pessoas, encerradas nos limites estreitos do quadro burguês, ou atenazadas pelos preconceitos burgueses não podiam extrair.
Há que ter isto em conta quando falamos, por exemplo, da cultura proletária. Sem compreender claramente que só se pode criar esta cultura conhecendo com precisão a cultura que a humanidade criou em todo o seu desenvolvimento e transformando-a, sem compreender isto, não poderemos cumprir esta tarefa. A cultura proletária não surge de fonte desconhecida, não é uma invenção dos que se chamam especialistas em cultura proletária. Isso é pura estupidez. A cultura proletária tem que ser o desenvolvimento lógico do acervo de conhecimentos conquistados pela humanidade sob o jugo da sociedade capitalista, da sociedade dos proprietários de terras, da sociedade burocrática. Todos esses caminhos e carreiros conduziram e continuam a conduzir até à cultura proletária, do mesmo modo que a Economia Política, transformada por Marx, mostrou-nos aonde tem de chegar a sociedade humana, indlcou-nos a passagem para a luta de classes, para o começo da revoluçâo proletária.
Quando ouvimos com frequência tanto a alguns representantes da juventude como a certos defensores dos novos métodos de ensino, atacar a velha escola dizendo que ela só fazia aprender de memória os textos, respondemos-lhes que é necessário tomar dessa velha escola tudo o que ela tem de bom. Não há que imitá-la sobrecarregando a memória dos jovens com a quantidade desmesurada de conhecimentos, dos quais são inúteis as nove décimas partes e o resto é desvirtuado; mas isso não significa que passamos a contentar-nos com conclusões comunistas e limitar-nos a aprender palavras de ordem comunistas. Desse modo não se pode edificar o comunismo. Só se pode chegar a ser comunista quando se enriquece a memória com todo o tesouro da ciência acumulado pela humanidade.
Não queremos um ensino memorista, mas precisamos de desenvolver e aperfeiçoar a memória de cada estudante dando-lhe factos essenciais, porque o comunismo seria uma vacuidade, ficaria reduzido a uma fachada vazia, o comunista não passaria de um fanfarrão se não reelaborasse na sua consciência todos os conhecimentos adquiridos. Não deveis assimilar unicamente estes conhecimentos, deveis assimilá-los com espírito critico para não atulhar o vosso cérebro com um conjunto de coisas mal ordenadas e inúteis, para enriquecê-lo pelo conhecimento de todos os factos sem os quais não ê possível ser um homem moderno e culto. O comunista que se vangloriasse de ser comunista simplesmente por ter decorado umas conclusões já estabelecidas, sem ter realizado um trabalho muito sério, muito difícil e muito grande, sem analisar os factos, frente aos quais é obrigado a adoptar uma atitude crítica, seria um comunista muito lamentável. Semelhante atitude superficial seria funestíssima. Se eu sei que sei pouco, esforçar-me-ei por saber mais; mas se um homem diz que é comunista e que não tem necessidade de conhecimentos sólidos, nunca sairá dele nada que se pareça a um comunista.
A velha escola forjava os dóceis lacaios de que os capitalistas necessitavam; fazia dos homens da ciência pessoas obrigadas a escrever e a falar ao gosto dos capitalistas. Isso quer dizer que devemos suprimi-la. Mas se devemos supriml-la, destruí-la, deduz-se daí que não devamos tormar dela tudo o que a humanidade acumulou e é necessário para o homem? Depreende-se daí que não devamos saber distinguir entre o que necessitava o capitalismo e o que necessita o comunismo?
Em vez do adestramento autoritário que se praticava na sociedade burguesa contra a vontade da maioria, nós colocamos a disciplina consciente dos operários e camponeses, que unem ao seu ódio contra a velha sociedade a decisão, a capacidade e o desejo de unir e organizar as suas forças para esta luta, a fim de criar, com milhões e dezenas de milhões de vontades dispersas, isoladas, fraccionadas e desperdiçadas pela imensa extensão do nosso país, uma vontade única, já que sem ela seremos inevitavelmente vencidos. Sem esta coesão, sem esta disciplina consciente dos operários e dos camponeses, a nossa causa está condenada a fracassar. Sem ela não poderemos derrotar os capitalistas e proprietários de terras de todo o universo. Não só não chegaremos a construir a nova sociedade comunista, como nem sequer chegaremos a assentar solidamente os seus alicerces. Do mesmo modo, apesar de condenarmos a velha escola, apesar de sentirmos contra ela um ódio absolutamente legítimo e necessário, apesar de apreciarmos o desejo de destruí-la, devemos compreender que a velha escola livresca, o velho ensino memorlsta e o velho adestramento autoritário devem ser substituídos pela arte de assimilar todo o conjunto de conhecimentos humanos, e assimilá-los de tal modo que o vosso comunismo não seja algo aprendido de memória, mas algo pensado por vós mesmos, como uma conclusão que se impõe necessariamente do ponto de vista da instrução moderna.
É assim que se devem expor as tarefas fundamentais quando discutimos o problema de aprender o comunismo.
Para vos explicar isto e abordar, ao mesmo tempo, a questão de como estudar, tomarei um exemplo prático. Todos sabeis que agora, imediatamente depois dos problemas militares, dos problemas da defesa da República, surge perante nós o problema económico. Sabemos que é impossível edificar a sociedade comunista sem restaurar a indústria e a agricultura, e não na sua forma antiga, claro está. Há que restaurá-las de acordo com a última palavra da ciência, sobre uma base moderna. Vós sabeis que essa base é a electricidade; que só no dia em que todo o pais, todos os ramos da indústria e da agricultura estiverem electrificados, no dia em que tiverdes realizado esta tarefa, só então, podereis edificar para vós próprios a sociedade comunista que a gemçâo velha não poderá edificar. Levanta-se diante de vós a tarefa de fazer renascer a economia de todo o país, de reorganizar e restaurar a agricultura e a indústria sobre uma base técnica moderna, fundada na ciência e na técnica modernas, na electricidade. Compreendereis perfeitamente que a electrificação não pode ser obra de ignorantes e que para isso faz falta algo mais que noções rudimentares. Não basta compreender o que é a electricidade; há que saber como apllcá-la tecnicamente à indústria, à agricultura e a cada um dos seus ramos. Tudo isso temos que aprendê-lo nós próprios, e devemos ensiná-lo a toda a nova geração trabalhadora. Essa é a tarefa que se coloca a cada comunista consciente, a todo o jovem que se considere comunista e compreenda claramente que, ao ingressar na União da Juventude Comunista, contraiu o compromisso de ajudar o Partido a edificar o comunismo e de ajudar toda a jovem geração a criar a sociedade comunista. Deve compreender que só sobre a base da instrução moderna poderá criar esta sociedade, e que, na falta dessa instrução, o comunismo não será mais que um desejo.
A tarefa da geração precedente consistia em derrubar a burguesia. Criticar a burguesia, fomentar nas massas o sentimento de ódio contra ela, desenvolver a consciência de classe e a habilidade para agrupar as suas forças eram então as armas essenciais. A nova geração tem diante de si uma tarefa mais complexa. Não vos basta unir todas as vossas forças para apoiar o Poder operário e camponês contra a invasão dos capitalistas. Tendes que fazer isso. Que vós o compreendestes, vê-o claramente todo o comunista. Mas isso é insuficiente. Sois vós que deveis edificar a sociedade comunista. A primeira metade do trabalho está já, em muitos sentidos, terminada. O antigo regime foi destruído, como deveria sê-lo; não é mais que um montão de ruínas, que é aquilo a que devia ficar reduzido. O terreno está já desbravado e, sobre este terreno, a nova geração comunista deve edificar a sociedade comunista. A vossa tarefa é edificar, e só a podereis cumprir possuindo todos os coinheclmentos modernos, sabendo transformar o comunismo, em vez de fórmulas feitas, conselhos, receitas, prescrições e programeis aprendidos de cor, em algo vivo que coordene o vosso trabalho imediato, sabendo converter o comunismo em guia do vosso trabalho prático.
Esta é a vossa missão: não deveis perdê-la de vista ao instruir, educar e elevar toda a geração jovem. Deveis ser os primeiros entre os construtores da sociedade comunista, entre os milhões de construtores que devem ser cada rapaz e cada rapariga. Se não incorporais a esta edificação do comunismo toda a massa da juventude operária e camponesa, não construireis a sociedade comunista.
Isto leva-me, como é natural, à questão de como devemos ensinar o comunismo e em que deve consistir a peculiaridade dos nossos métodos.
Deter-me-ei, em primeiro lugar, no problema da moral comunista.
Tendes que fazer, de vós próprios, comunistas. A tarefa da União da Juventude consiste em organizar a sua actividade prática de modo que, estudando, organlzando-se, unlndo-se, lutando, esta juventude faça a sua educação de comunista e a de todos os que a reconhecem como gula. Toda a educação, toda a instrução e todo o ensino da juventude contemporânea devem desenvolver nela a moral comunista.
Mas existe uma moral comunista? Existe uma ética comunista? É evidente que sim. Pretende-se muitas vezes que nós não temos uma moral própria, e a burguesia acusa-nos com frequência de nós, os comunistas, negarmos toda a moral. Isto não é mais que uma manobra para adulterar os conceitos e deitar poelra nos olhos dos operários e dos camponeses.
Em que sentido negamos nós a moral, a ética?
Negamo-la no sentido que lhe dava a burguesia, que punha na base da moralidade os mandamentos divinos. A este respeito dizemos, naturalmente, que não cremos em Deus, e sabemos multo bem que o clero, os proprietários de terras e a burguesia falavam em nome de Deus para defenderem os seus interesses de exploradores. Ou então, em vez de deduzir esta moral dos preceitos da ética, dos mandamentos de Deus, deduziam-na de frases idealistas ou seml-idealistas que, definitivamente, se pareciam sempre muito aos mandamentos de Deus.
Nós negamos toda a moralidade dessa índole, tomada de concepções à, margem da sociedade humana, à margem das classes. Dizemos que isso é enganar, iludir os operários e camponeses e embolar a sua consciência em proveáto dos proprietários de terras e capitalistas.
Dizemos que a nossa moralidade está por completo subordinada aos interesses da luta de classe do proletariado. A nossa tem por ponto de partida os interesses da luta de classe do proletariado.
A antiga sociedade baseava-se na opressão de todos os operários e de todos os camponeses pelos proprietários de terras e capitalistas. Era necessário destruí-la, era necessário derrubar esses opressores, mas para isso precisávamos de criar a união. E não era Deus que podia criá-la.
Esta união apenas podia vir das fábricas, de um proletariado instruído, despertado do seu velho letargo. Só quando se constituiu esta classe, começou o movimento de massas que conduziu ao que vemos hoje; ao triunfo da revolução proletária num dos países mais débeis, que se defende desde há três anos, frente aos embates da burguesia do mundo inteiro. E vemos como a revolução proletária cresce em todo o globo. Agora dizemos, baseando-nos na experiência, que só o proletariado pôde criar uma força tão coesa, que é seguida pela classe camponesa dispersa e fragmentada e que foi capaz de resistir a todos os ataques dos exploradores. Só esta classe pode ajudar as massas exploradoras a unir-se, a cerrar fileiras, a fazer triunfar e garantir definitivamente a sociedade comunista, a edificá-la por completo.
Por isso dizemos que, para nós, a moralidade tomada à margem da sociedade humana não existe, é um logro. Para nós, a moral está subordinada aos interesses da luta de classe do proletariado.
Ora bem, em que consiste esta luta de classes? Em derrubar o tsar, em derrubar os capitalistas, em aniquilar a classe capitalista.
E que são as classes em geral? É o que permite a uma parte da sociedade apropriar-se do trabalho da outra. Se uma parte da sociedade se apropria de toda a terra, há uma classe de proprietários de terra e uma clàsse de camponeses. Se uma parte da sociedade possui as fábricas, as acções e os capitais, enquanto que a outra trabalha nessas fábricas, temos a classe dos capitalistas e a dos proletários.
Não nos foi difícil desembaraçarmo-nos do tsar: bastaram para isso alguns dias. Não nos foi difícil derrubar os proprietários de terras: conseguimos fazê-lo nalguns meses. Tão-pouco foi muito difícil derrubar os capitalistas. Mas suprimir as classes é incomparavelmente mais difícil; subsiste ainda a divisão entre operários e camponeses. Se um camponês instalado numa parcela de terra se apropria do trigo excedente, quer dizer, do trigo que nem ele nem o seu gado necessitam, enquanto que os demais carecem de pão, converte-se já num explorador. Quanto mais trigo retém, mais ganha, e não lhe importa que os outros passem fome; «Quanto mais fome tiverem, mais caro venderei o meu trigo». É preciso que todos trabalhem de acordo com um plano comum numa terra comum, em fábricas comuns e de acordo com regras comuns. É fácil fazê-lo? Vós próprios vêdes que neste terreno não é possível conseguir soluções com a mesma facilidade que quando derrubámos o tsar, os proprietários de terras e os capitalistas. Para isso é necessário que o proletariado transforme, reeduque uma parte dos camponeses e atraia para o seu lado os camponeses trabalhadores, a fim de quebrar a resistência dos camponeses ricos, que lucram com a miséria dos demais. Por conseguinte, a tarefa da luta do proletariado não terminou com o derrubamento do tsar e a expulsão dos proprietários de terras e capitalistas; levá-la ao termo é, precisamente, a missão do regime que denominamos ditadura do proletariado.
A luta de classes continua, somente mudaram as suas formas. É a luta de classe do proletariado para impedir o regresso dos antigos exploradores, para agrupar numa estreita união a massa dispersa do campesinato ignorante. A luta de classes continua, e a nossa missão é subordinar todos os interesses a esta luta. Por isso, subordinamos a ela a nossa moralidade comunista. Dizemos: é moral tudo aquilo que contribui para destruir a antiga sociedade exploradora e para agrupar todos os trabalhadores em tomo do proletariado, criador da nova sociedade comunista.
A moral comunista é a que serve para esta luta, a que une os trabalhadores contra toda a exploração e contra toda a pequena propriedade, pois a pequena propriedade põe nas mãos de um indivíduo aquilo que foi criado pelo trabalho de toda a sociedade. No nosso país, a terra é considerada propriedade comum.
Mas que acontecerá se tomo uma parte dessa propriedade comum, se cultivo nela duas vezes mais trigo do que necessito, se especulo com o excedente da colheita, se calculo que quanto mais fome padeçam os outros, mais caro me pagarão? Estarei a agir como comunista? Não, estarei a agir como explorador, como proprietário. Temos de lutar contra isso. Se as coisas continuam assim, voltaremos ao passado, cairemos de novo debaixo do Poder dos capitalistas e da burguesia, como ocorreu mais de uma vez em anteriores revoluções. E para evitar que se restaure o Poder dos capitalistas e da burguesia, é preciso proibir o mercantilismo, é preciso impedir que uns indivíduos se enriqueçam à custa dos outros, é preciso que os trabalhadores se unam estreitamente ao proletariado e constituam a sociedade comunista. Consiste nisto, precisamente, o carácter essencial daquilo que constitui a tarefa fundamental da organização da juventude comunista.
A velha sociedade estava baseada no seguinte princípio: ou saqueias o teu próximo ou ele te saqueia a ti, ou trabalhas para outro, ou outro trabalha para tl, ou és esclavagista ou és escravo. E é compreensível que os homens educados em semelhante sociedade assimilem, com o leite materno, por assim dizer, a psicologia, o costume, a ideia de que não há senão senhores ou escravos, ou pequenos proprietários, pequenos empregados, pequenos funcionários, intelectuais, numa palavra, homens que se ocupam exclusivamente de ter o seu sem pensar nos outros.
Se eu exploro a minha parcela de terra, pouco me importam os outros; se alguém tem fome, tanto melhor, venderei o meu trigo mais caro. Se tenho o meu empregozinho de médico, de engenheiro, de professor ou de empregado, que me importam os outros? Pode ser que, à custa de adulações e de complacênclas em relação aos poderosos, eu consiga conservar o meu lugarzinho, ou, na melhor das hipóteses, possa fazer carreira e chegar a burguês. Semelhante psicologia e estado de ânimo não podem existir num comunista. Quando os operários e camponeses demonstraram que, com as nossas próprias forças, somos capazes de defender-nos e de criar uma sociedade nova, nesse mesmo momento começou a nova educação comunista, a educação na luta contra os exploradores, a educação na aliança com o proletariado contra os egoístas e os pequenos proprietários, contra a psicologia e os costumes que dizem: «Procuro o meu próprio benefício e o resto não me interessa».
Tal é a resposta à pergunta de como deve aprender o comunismo a geração jovem.
Esta geração só poderá aprender o comunismo se ligar cada passo da sua instrução, da sua educação e da sua formação à luta incessante dos proletários e dos trabalhadores contra a antiga sociedade baseada na exploração. Quando se nos fala de moralidade, dizemos: para um comunista, toda a moral reside nesta disciplina solidária e unida e nesta luta consciente das massas contra os exploradores. Não cremos na moral eterna e denunciamos o embuste de todas as mentiras acerca da moral. A moral serve para que a sociedade humana se eleve a maior altura, para que se desembarace da exploração do trabalho.
Para o conseguirmos, necessitamos da geração dos jovens que num ambiente de luta disciplinada e encarniçada contra a burguesia começaram a converter-se em homens conscientes. Nesta luta, a juventude forjará verdadeiros comunistas; a esta luta deve vincular e subordinar a todo o momento a sua instrução, a sua educação e a sua formação. A educação da juventude comunista não deve consistir em oferecer-lhe discursos prazenteiros de todo o género e regras de moralidade. Não, a educação não consiste nisso. Quando um liomem viu o seu paí e a sua mãe viver sob o jugo dos proprietários da terras e capitalistas, quando ele próprio participou dos sofrimentos dos primeiros que empreenderam a luta contra os exploradores, quando viu os sacrifícios que custa a continuação desta luta e a defesa do que foi conquistado e quão furiosos inimigos são os proprietários de terras e os capitalistas, esse homem, nesse ambiente, forja-se como comunista. A base da moralidade comunista está na luta para reforçar e levar a cabo a edificação do comunismo. Essa é a base do estudo, da educação e da instrução comunistas. Tal é a resposta à pergunta de como há que aprender o comunismo.
Não acreditaríamos no estudo, na educação e na instrução se estas fossem encerradas nas escolas e separadas da vida agitada. Enquanto os operários e os camponeses estiverem oprimidos pelos proprietários de terras e pelos capitalistas, enquanto as escolas continuarem nas mãos dos proprietários de terras e dos capitalistas, a geração jovem permanecerá cega e ignorante. Mas a nossa escola deve dar aos jovens os fundamentos da ciência, a arte de forjarem por si mesmos uma mentalidade comunista, deve fazer deles homens cultos. No tempo que os jovens passam na escola, esta tem que fazer deles participantes na luta para se libertarem dos exploradores. A União da Juventude Comunista só será digna deste nome, de ser a União da jovem geração comunista, se vincular cada passo da sua instrução, educação e formação á participação na luta comum de todos os trabalhadores contra os exploradores. Porque sabeis perfeitamente que enquanto a Rússia for a única república operária, e no resto do mundo subsistir o antigo regime burguês, seremos mais débeis que eles, que nos ameaçam constantemente novos ataques, e que só aprendendo a manter entre nós a coesão e a unidade triunfaremos na luta ulterior e, uma vez fortalecidos, tornar-nos-emos verdadeiramente invencíveis. Portanto, ser comunista significa organizar e unir toda a geração jovem, dar exemplo de educação e de disciplina nesta luta. Então podereis empreender e levar a cabo a edificação da sociedade comunista.
Para que compreendais mais claramente, darei um exemplo. Nós chamamo-nos comunistas. Que é um comunista? Comunista vem da palavra latina communis, que significa comum. A sociedade comunista significa que tudo é comum: a terra, as fábricas, o trabalho. Isso é o comunlsmo.
Pode ser comum o trabalho se os homens exploram cada um a sua própria parcela? O trabalho comum não se cria da noite para o dia. Isso é impossível. Não cai do céu. Há que consegui-lo após largos esforços e sofrimentos, há que criá-lo. E cria-se no curso da luta. Não se trata aqui de um livro velho, em que ninguém acreditaria. Trata-se da própria experiência da vida.
Quando Koltchak e Denikin avançavam a partir da Sibéria e do Sul, os camponeses estavam ao seu lado. Não gostavam do bolchevismo, já que os bolcheviques lhes ficavam com o trigo ao preço legal. Mas depois de terem sofrido na Sibéria e na Ucrânia o Poder de Koltchak e de Denikin, os camponeses compreenderam que só podiam escolher entre dois caminhos: voltar ao capitalismo, que os submeteria à escravatura dos proprietários de terras, ou seguir os operários, que, se é certo que não prometem o ouro e o mouro e exigem uma disoiplina férrea e uma firmeza indomável na dura luta, os libertam da escravidão dos capitalistas e dos proprietários de terras. Quando até os camponeses mais ignorantes compreenderam e sentiram isto pela sua própria experiência, na dura escola da vida que tinham cursado, tornaram-se partidários conscientes do comunismo. Esta mesma experiência deve ser tomada pela União da Juventude Comunista como base de toda a sua actividade.
Respondi já às perguntas sobre que devemos aprender e que devemos tomar da velha escola e da velha ciência. Tratarei de responder também à pergunta de como devemos aprender isto: só ligando indissoluvelmente à luta de todos os trabalhadores contra os exploradores, cada passo na actividade da escola, cada passo na educação, na instrução e na formação.
Com alguns exemplos, extraídos da experiência do trabalho de algumas organizações da juventude, mostrar-vos-ei concretamente como deve fazer-se a educação do comunismo. Todo o mundo fala de liquidar o analfabetismo. Como sabeis, num país de analfabetos é impossível edificar a sociedade comunista. Não basta que o Poder dos Sovietes dê uma ordem, ou que o Partido lance uma palavra de ordem, ou que determinado contingente dos melhores militantes se consagre a esta tarefa. É preciso que a jovem geração comunista deite ela mesma mãos à obra. O comunismo consiste em que a juventude, os rapazes e as raparigas pertencentes à União da Juventude digam: isso é a nossa missão, unir-nos-emos e marcharemos para as aldeias a fim de liquidarmos o analfabetismo, para que a nossa jovem geração não tenha analfabetos. Nós aspiramos a que a juventude em formação consagre a esta obra a sua iniciativa. Vós sabeis que é impossível transformar rapidamente a Rússia ignorante e analfabeta numa Rússia instruída; mas se a União da Juventude põe nisso o seu empenho, se toda a juventude trabalha para o bem-estar de todos, esta União, que agrupa 400 000 jovens, terá direito a chamar-se União Comunista da Juventude. Outra das suas missões é, ao assimilar um ou outro conhecimento, ajudar os jovens que não conseguiram desembaraçar-se por si mesmos das trevas da ignorância. Ser membro da União da Juventude significa comportar-se de maneira a pôr o seu trabalho e as suas forças ao serviço da causa comum. Só efectuando esse trabalho um rapaz ou uma rapariga se converte num verdadeiro comunista. Só serão comunistas se conseguirem resultados práticos neste trabalho.
Tomai, por exemplo, o trabalho nas hortas suburbanas. Acaso não é um trabalho útil? É uma das tarefas que incumbem à União da Juventude Comunista. O povo passa fome, nas fábricas e empresas há fome. Para nos livrarmos dela há que desenvolver a horticultura, mas os campos continuam a cultivar-se à antiga. É preciso que os elementos mais conscientes metam mãos ã obra, e então vereis crescer o número de hortas, aumentar a sua superfície e melhorar o seu rendimento. Neste trabalho deve participar activamente a União da Juventude Comunista. Cada uma das suas organizações ou células deve considerá-lo assunto seu.
A União da Juventude Comunista deve ser um grupo de choque que dê a sua ajuda e manifeste a sua iniciativa, o seu espírito de empreendimento, em todos os terrenos. A União deve ser tal, que qualquer operário veja nos seus membros pessoas cuja doutrina porventura não lhe seja facilmente compreensível, em cujas ideias talvez não creia imediatamente, mas cujo trabalho real e cuja atenção lhe mostrem que são eles, precisamente, que lhe indicam o caminho certo.
Se a União da Juventude Comunista não sabe organizar assim o seu trabalho em todos os terrenos, significará que se desvia em direcção ao antigo caminho burguês. Necessitamos vincular a nossa educação à luta dos trabalhadores contra os exploradores para ajudar os primeiros a cumprir as tarefas derivadas da doutrina comunista.
Os membros da União devem consagrar todas as suas horas de ócio a melhorar o cultivo nas hortas; ou a organizar numa fábrica qualquer a instrução da juventude, etc. Queremos transformar a Rússia pobre e miserável num país rico. E é preciso que a União da Juventude Comunista una a sua formação, a sua instrução e a sua educação ao trabalho dos operários e dos camponeses, que não se encerre nas suas escolas, nem se limite a ler livros e folhetos comunistas. Só trabalhando com os operários e os camponeses se pode chegar a ser um verdadeiro comunista. E é preciso que todos vejam qua qualquer dos membros da União da Juventude é instruído e, ao mesmo tempo, sabe trabalhar. Quando todos virem que expulsámos da antiga escola o velho adestramento autoritário, substituindo-o por uma disciplina consciente, que todos os nossos jovens participam nos sábados comunistas, que utilizam as hortas suburbanas para ajudar a população, começarão a considerar o trabalho de outro modo.
Compete à União da Juventude Comunista organizar, na sua aldeia, ou no seu bairro, a ajuda numa obra como, por exemplo — tomo um pequeno exemplo — assegurar a limpeza ou a distribuição de víveres. Como se faziam estas coisas na velha sociedade capitalista? Cada qual trabalhava só para si, ninguém se preocupava que houvessem anciãos ou enfermos, ou que todos os trabalhos domésticos recaíssem sobre uma mulher, que, por isso, se encontrava escravizada e oprimida. Quem tem o dever de lutar contra tudo isso? As Uniões da Juventude, que devem dizer: nós transformaremos isto, organizaremos destacamentos de jovens que ajudarão nos trabalhos de limpeza ou na distribuição de víveres, percorrendo sistematicamente as casas, que actuarão organizadamente em proveito da sociedade, repartindo acertadamente as forças e demonstrando que o trabalho deve ser um trabalho organizado.
A geração que tem agora cerca de 50 anos, não pode pensar em ver a sociedade comunista. Terá morrido àntes. Mas a geração que tem hoje 15 anos, verá a sociedade comunista e será ela que a construirá. E deve saber que a edificação desta sociedade é a missão da sua vida. Na velha sociedade, o trabalho fazia-se por famílias isoladas e ninguém o coordenava, exceptuando os proprietários de terras e os capitalistas, que oprimiam as massas populares. Nós devemos organizar todos os trabalhos, por sujos ou duros que sejam, de modo que cada operário e cada camponês diga: eu sou uma pequena parte do grande exército do trabalho livre e saberei organizar a minha vida sem proprietários de terras nem capitalistas, saberei estabelecer o regime comunista. É preciso que a União da Juventude Comunista eduque a todos, desde cedo, no trabalho consciente e disciplinado. Assim, poderemos esperar que sejam cumpridas as tarefas que hoje se apresentam. Devemos ter em conta que farão falta não menos de dez anos para electrificar o país, para que a nossa terra arruinada possa ter ao seu serviço as últimas conquistas da técnica. Pois bem, a geração que tem hoje 15 anos e que dentro de dez ou vinte anos viverá na sociedade comunista, deve organizar a sua instrução de maneira que cada dia, em cada aldeia ou cidade, a juventude cumpra praticamente uma tarefa de trabalho colectivo, por minúsculo e simples que seja. À medida que se realize isto em cada aldeia, à medida que se desenvolva a emolução comunista, à medida que isso ocorra, ficará assegurado o êxito da edificação comunista. Só considerando cada um dos seus actos do ponto de vista deste êxito, só perguntando conscientemente a nós próprios se fizemos o necessário para chegarmos a ser trabalhadores unidos e conscientes, conseguirá a União da Juventude Comunista agrupar o meio milhão dos seus membros no grande exército único do trabalho e granjear o respeito geral.
(Calorosos aplausos).

Socialismo e Religião

Socialismo e Religião

V. I. Lenin

3 de Dezembro de 1905


Primeira Edição: publicado no jornal Nóvaia Jizn, nº 28, 3 de dezembro de 1905.
Fonte: Neste link pode-se ter acesso a uma das inúmeras versões online do texto original em russo.
Tradução de: Erick Fishuk.
HTML de: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: A cópia ou distribuição deste documento é livre e indefinidamente garantida nos termos da GNU Free Documentation License.

A sociedade contemporânea baseia-se toda na exploração das enormes massas operárias por uma minoria insignificante da população, pertencente às classes dos proprietários de terras e dos capitalistas. Essa sociedade é escravista, pois os operários “livres”, que trabalham a vida toda para o capital, “têm direito” apenas aos meios de subsistência indispensáveis para sustentá-los como escravos produtores do lucro e para assegurar e perpetuar a escravidão capitalista.
A opressão econômica dos operários gera inevitavelmente todas as formas de opressão política, de humilhação social, de embrutecimento e obscurecimento da vida espiritual e moral das massas. Os operários podem alcançar uma liberdade política maior ou menor para lutar por sua libertação econômica, mas nenhuma liberdade os livrará da miséria, do desemprego e da opressão enquanto não for derrubado o poder do capital. A religião é uma das formas de opressão espiritual que pesa em toda parte sobre as massas esmagadas por seu perpétuo trabalho para outros, pelas privações e pelo isolamento. A impotência das classes exploradas na luta contra os exploradores gera tão inevitavelmente a fé numa vida melhor após a morte como a impotência dos selvagens na luta contra a natureza gera a fé em deuses, diabos, milagres etc. Àquele que toda a vida trabalha e passa necessidades, a religião ensina a resignação e a paciência na vida terrena, consolando-o com a esperança da recompensa celeste. E àqueles que vivem do trabalho alheio, a religião ensina a filantropia na vida terrena, propondo-lhes uma justificação muito barata para sua existência de exploradores e vendendo-lhes a preço módico bilhetes para a felicidade celestial. A religião é o ópio do povo. A religião é uma espécie de aguardente espiritual ruim na qual os escravos do capital afogam sua imagem humana e suas reivindicações de uma vida minimamente digna.
Mas o escravo que se deu conta de sua escravidão e se ergueu para a luta por sua libertação já deixou pela metade de ser escravo. O operário consciente moderno, formado pela grande indústria fabril e esclarecido pela vida urbana, repele com desprezo os preconceitos religiosos e deixa o céu à disposição dos popes(1) e dos carolas burgueses, conquistando uma vida melhor aqui na terra. O proletariado moderno põe-se ao lado do socialismo, que se vale da ciência na luta contra o nevoeiro religioso e liberta os operários da fé na vida após a morte por meio de sua arregimentação para uma verdadeira luta por uma vida terrena melhor.
A religião deve ser declarada um assunto privado — com essas palavras se exprime habitualmente a atitude dos socialistas perante a religião. Mas é preciso definir com exatidão o significado dessas palavras para que elas não causem nenhum mal-entendido. Exigimos que a religião torne-se um assunto privado em relação ao Estado, mas não podemos de modo algum considerar a religião um assunto privado em relação a nosso próprio partido. O Estado não deve manter conúbio com a religião, e as sociedades religiosas não devem ligar-se ao poder estatal. Cada um deve ser absolutamente livre para professar qualquer religião ou para não reconhecer nenhuma, isto é, para ser ateu, o que todo socialista geralmente é. São absolutamente inadmissíveis quaisquer diferenças entre os cidadãos quanto a seus direitos conforme suas crenças religiosas. Deve ser totalmente eliminada até mesmo qualquer referência à religião dos cidadãos em documentos oficiais. Não deve haver qualquer subvenção a uma Igreja estatal nem qualquer pagamento de somas do Estado a sociedades eclesiásticas e religiosas, que devem tornar-se associações de cidadãos correligionários absolutamente livres e independentes das autoridades. Só a satisfação plena dessas reivindicações pode acabar com aquele passado vergonhoso e maldito em que a Igreja se encontrava numa dependência servil em relação ao Estado e em que os cidadãos russos se encontravam numa dependência servil em relação à Igreja estatal, em que existiam e eram aplicadas leis medievais e inquisitoriais (que ainda hoje permanecem nos nossos códigos e regulamentos penais) que perseguiam pessoas pela sua fé ou descrença, que violavam a consciência do indivíduo e que vinculavam sinecuras e rendimentos públicos à distribuição de uma ou outra “drogas” pela Igreja estatal. Completa separação entre Igreja e Estado — eis a reivindicação que o proletariado socialista apresenta ao Estado e à Igreja atuais.
A revolução russa deve realizar essa reivindicação como um componente indispensável da liberdade política. Nesse aspecto, a revolução russa situa-se em condições particularmente vantajosas, pois o abominável burocratismo da autocracia policial-feudal causou descontentamento, agitação e indignação até mesmo entre o clero. Por mais embrutecido, por mais ignorante que fosse o clero ortodoxo russo, até ele foi agora acordado pelo estrondo da queda da velha ordem medieval na Rússia. Até ele adere à reivindicação de liberdade, protesta contra o burocratismo e a arbitrariedade dos funcionários públicos e contra a fiscalização policial imposta aos “servos de Deus”. Nós, socialistas, devemos apoiar esse movimento, levando a cabo as reivindicações dos membros honestos e sinceros do clero, cumprindo as promessas de liberdade que lhes fizemos e exigindo deles que rompam decididamente todos os laços entre a religião e a polícia. Ou vocês são sinceros, e então devem defender a completa separação entre Igreja e Estado, entre escola e Igreja, e a completa e incondicional declaração da religião como um assunto privado; ou vocês não aceitam essas consequentes reivindicações de liberdade, e então quer dizer que ainda são prisioneiros das tradições da Inquisição, então quer dizer que ainda se encostam às sinecuras e rendimentos públicos, então quer dizer que vocês não acreditam na força espiritual de sua arma, continuam a extorquir o poder estatal – então os operários conscientes de toda a Rússia declarar-lhes-ão uma guerra implacável.
Em relação ao partido do proletariado socialista, a religião não é um assunto privado. Nosso partido é uma associação de combatentes conscientes e de vanguarda pela libertação da classe operária. Essa associação não pode nem deve ser indiferente à inconsciência, à ignorância ou ao obscurantismo das crenças religiosas. Reivindicamos a completa separação entre Igreja e Estado para lutar contra o nevoeiro religioso com armas tão-somente ideológicas, com nossa imprensa e com nossa voz. Mas nós fundamos nosso partido, o POSDR,(2) entre outras coisas, precisamente para essa luta contra o entontecimento religioso dos operários. E para nós a luta ideológica não é um assunto privado, mas um assunto de todo o partido e de todo o proletariado.
Se é assim, por que não declaramos em nosso programa que somos ateus? Por que não proibimos os cristãos e os que acreditam em Deus de entrar em nosso partido? A resposta a essa pergunta deve esclarecer a importantíssima diferença entre a maneira democrático-burguesa e a social-democrata de colocar a questão da religião.
Nosso programa baseia-se todo numa concepção científica, a saber, materialista do mundo. Por isso, o esclarecimento de nosso programa necessariamente inclui também o esclarecimento das verdadeiras raízes históricas e econômicas do nevoeiro religioso. Nossa propaganda também inclui necessariamente a propaganda do ateísmo; a edição da literatura científica correspondente, que o poder estatal autocrático-feudal rigorosamente proibia e perseguia até agora, deve atualmente constituir um dos ramos de nosso trabalho partidário. Teremos agora, provavelmente, de seguir o conselho que Engels deu certa vez aos socialistas alemães: traduzir e difundir maciçamente a literatura iluminista e ateísta francesa do século XVIII.(3)
Mas ao fazê-lo jamais devemos cair no modo abstrato e idealista de colocar a questão religiosa “a partir da razão”, fora da luta de classes, como não raro é feito pelos democratas radicais da burguesia. Seria um absurdo pensar que, numa sociedade baseada na opressão e no embrutecimento infindáveis das massas operárias, pode-se dissipar os preconceitos religiosos unicamente por meio da propaganda. Seria estreiteza burguesa esquecer que o jugo da religião sobre a humanidade é apenas produto e reflexo do jugo econômico que existe dentro da sociedade. Nenhum livrete ou propaganda pode esclarecer o proletariado se sua própria luta contra as forças obscuras do capitalismo não o esclarecer. A unidade dessa luta realmente revolucionária da classe oprimida pela criação do paraíso na terra é mais importante para nós do que a unidade de opiniões dos proletários sobre o paraíso no céu.
Eis por que não declaramos nem devemos declarar nosso ateísmo em nosso programa; eis por que não proibimos nem devemos proibir aos proletários que conservaram vestígios dos velhos preconceitos de aproximar-se de nosso partido. Sempre pregaremos a concepção científica do mundo, e é indispensável que lutemos contra a incoerência dos “cristãos”, mas isso não significa de modo algum que se deva pôr a questão religiosa em primeiro lugar, o qual de maneira alguma lhe pertence, nem que se deva permitir a dispersão das forças da luta econômica e política realmente revolucionária por causa de opiniões ou delírios insignificantes que perdem rapidamente todo significado político e são rapidamente jogados no ferro-velho pelo próprio curso do desenvolvimento econômico.
Em toda parte a burguesia reacionária inquietou-se e começa agora também em nosso país a buscar atiçar a hostilidade religiosa, a fim de desviar para ela a atenção das massas voltadas às questões econômicas e políticas realmente importantes e fundamentais, as quais o proletariado de toda a Rússia, praticamente unido em sua luta revolucionária, está agora resolvendo. Essa política reacionária de dispersão das forças proletárias, que hoje se manifesta principalmente nos pogroms das Centúrias Negras,(4) talvez pense amanhã em outras formas mais refinadas. Nós, em todo caso, opor-lhe-emos uma propaganda tranquila, sóbria e paciente da solidariedade proletária e da concepção científica do mundo, livre de todo atiçamento de divergências secundárias.
O proletariado revolucionário conseguirá tornar a religião um assunto realmente privado para o Estado, e nesse regime político depurado do bolor medieval, travará uma luta forte e aberta pela eliminação da escravidão econômica, verdadeira fonte do entontecimento religioso da humanidade.

Notas de rodapé:
(1) Sacerdotes ortodoxos. (N.T.) (retornar ao texto)
(2) Partido Operário Social-Democrata da Rússia, que futuramente se tornaria o Partido Comunista soviético. (N.T.) (retornar ao texto)
(3) Ver artigo de Friedrich Engels, “Programa dos Refugiados Blanquistas da Comuna” (artigo II da série “Literatura de Refugiados”). [N.T.: O artigo pode ser encontrado em português em Karl Marx e Friedrich Engels, Obras escolhidas em três tomos, tomo II, Lisboa, Avante; Moscou: Progresso, 1983, pp. 411-418. A referência citada está na p. 415. A mesma versão ainda está na rede nesta página.] (retornar ao texto)
(4) Movimento paramilitar ultranacionalista e xenófobo que suportava o regime tsarista contra os movimentos revolucionários de oposição. (N.T.) (retornar ao texto)

Discurso sobre a questão nacional

Discurso Sobre a Questão Nacional

V. I. Lénine

29 de Abril (12 de Maio) de 1917

Transcrição autorizada
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Primeira edição: Publicado pela primeira vez em 1921 nas Obras de N. Lenine (V. Uliánov), t. XIV, parte II.
Fonte: Obras Escolhidas em Três Tomos, 1977, tomo 2, pág: 91 a 97. Edições Avante! – Lisboa, Edições Progresso – Moscovo
Tradução: Edições “Avante!” com base nas Obras Completas de V. I. Lénine,5.ª ed. em russo, t. 31, pp. 432-437.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Editorial “Avante!” – Edições Progresso Lisboa – Moscovo, 1977.
capa

Acta

Desde o ano de 1903, quando o nosso partido adoptou um programa, tropeçamos sempre com a obstinada oposição dos camaradas polacos. Se estudardes as actas do II Congresso, vereis que já então expunham os mesmos argumentos que encontramos agora, e os sociais-democratas polacos abandonaram aquele congresso por considerarem inaceitável para eles que se reconhecesse às nações o direito à autodeterminação. E desde esse momento chocamo-nos sempre com uma e a mesma questão. Em 1903 existia já o imperialismo, mas então no número dos argumentos não se mencionou o imperialismo; tanto então como agora a posição da social-democracia polaca continua sendo um estranho e monstruoso erro: esta gente quer fazer descer a posição do nosso partido até à posição dos chauvinistas.
A política da Polónia é uma política plenamente nacional como consequência dos longos anos de opressão pela Rússia, e todo o povo polaco está dominado por uma ideia: vingar-se dos moscovitas. Ninguém oprimiu tanto os polacos como o povo russo. O povo russo serviu nas mãos dos tsares de carrasco da liberdade polaca. Nenhum povo se impregnou tanto de ódio à Rússia, nenhum povo detesta tanto a Rússia como os polacos, e daí nasce um fenómeno singular. A Polónia é, por causa da burguesia polaca, um obstáculo para o movimento socialista. Que arda o mundo inteiro, desde que a Polónia seja livre. Colocar assim a questão é, naturalmente, zombar do internacionalismo. Naturalmente que a Polónia é actualmente vítima da violência, mas pensar que os nacionalistas polacos possam esperar da Rússia a sua emancipação é trair a Internacional. E os nacionalistas polacos imbuíram a tal ponto com as suas ideias o povo polaco que este vê assim as coisas.
O imenso mérito histórico dos camaradas sociais-democratas polacos consiste em que lançaram a palavra de ordem do internacionalismo, e disseram: o mais importante para nós é concluir uma aliança fraterna com o proletariado de todos os outros países, e jamais nos lançaremos numa guerra pela libertação da Polónia. Este é o seu mérito, e por isso sempre consideramos socialistas unicamente estes camaradas sociais-democratas polacos. Os outros são patriotas, são Plekhánoves polacos. Mas desta posição original, em que houve pessoas que, para salvar o socialismo, se viram obrigadas a lutar contra um nacionalismo furioso e doentio, deriva um fenómeno singular: os camaradas vêm dizer-nos que devemos renunciar à liberdade da Polónia, à sua separação.
Porque é que nós, grão-russos, que oprimimos um número maior de nações que qualquer outro povo, temos de renunciar a reconhecer o direito à separação da Polónia, da Ucrânia, da Finlândia? Propõem-nos que nos convertamos em chauvinistas porque com isso facilitamos a posição dos sociais-democratas da Polónia. Não aspiramos à libertação da Polónia porque o povo polaco vive entre dois Estados capazes de lutar. Mas em vez de dizerem que os operários polacos devem raciocinar assim: só permanecem democratas os sociais-democratas que opinam que o povo polaco deve ser livre, pois nas fileiras do partido socialista não há lugar para os chauvinistas, os sociais-democratas polacos dizem: precisamente porque julgamos vantajosa uma aliança com os operários russos somos contra a separação da Polónia. Estão no seu pleno direito. Mas as pessoas não querem compreender que para reforçar o internacionalismo não é necessário repetir as mesmas palavras, mas que na Rússia deve insistir-se na liberdade de separação das nações oprimidas, enquanto na Polónia deve acentuar-se a liberdade de união. A liberdade de união pressupõe a liberdade de separação. Nós, os russos, devemos sublinhar a liberdade de separação e, na Polónia, a liberdade de união.
Vemos aqui uma série de sofismas que conduzem à renegação total do marxismo. O ponto de vista do camarada Piatakov é uma repetição do ponto de vista de Rosa Luxemburg(1*)(o exemplo da Holanda)…(2*) Assim raciocina o camarada Piatakov, e assim refuta-se a si mesmo, pois em teoria é pela negação da liberdade de separação, mas diz ao povo: quem nega a liberdade de separação não é socialista. Tudo o que disse aqui o camarada Piatakové uma confusão incrível. Na Europa ocidental predominam países nos quais a questão nacional foi resolvida já há muito tempo. Quando se diz que a questão nacional está resolvida tem-se em vista a Europa ocidental. O camarada Piatakov transporta isto para onde isto não se aplica, para a Europa oriental, e caímos assim numa situação ridícula.
Vede que espantosa confusão resulta daqui! Pois temos a Finlândia próxima. O camaradaPiatakov não dá sobre ela uma resposta concreta, e embrulha-se completamente. Lestes ontem no Rabótchaia Gazeta que na Finlândia cresce o separatismo. Os finlandeses vêm e dizem-nos que no seu país cresce o separatismo porque os democratas-constitucionalistasnão dão à Finlândia a plena autonomia. Ali cresce a crise, o descontentamento com o governador geral Róditchev, mas o Rabótchaia Gazeta escreve que os finlandeses devem esperar a Assembleia Constituinte, pois nela se chegará a um acordo entre a Finlândia e a Rússia. Que significa acordo? Os finlandeses devem dizer que podem ter direito a dispor dos seus destinos como julgarem conveniente, e o grão-russo que negar este direito será um chauvinista. Outra coisa seria se disséssemos ao operário finlandês: qual é para ti a decisão mais vantajosa…(3*)
O camarada Piatakov limita-se a rejeitar a nossa palavra de ordem, dizendo que isto significa não dar palavra de ordem para a revolução socialista, mas ele próprio não deu uma palavra de ordem correspondente. O método da revolução socialista sob a palavra de ordem «abaixo as fronteiras» é uma completa confusão. Não pudemos publicar o artigo no qual eu classificava esta ideia de «economismo imperialista»(4*). Que significa isso do «método» da revolução socialista sob a palavra de ordem «abaixo as fronteiras»? Nós defendemos a necessidade do Estado, e o Estado pressupõe fronteiras. O Estado pode, naturalmente, conter um governo burguês, mas nós necessitamos dos Sovietes. Mas também a eles se coloca a questão das fronteiras. Que quer dizer «abaixo as fronteiras»? Aqui começa a anarquia… O «método» da revolução socialista sob a palavra de ordem «abaixo as fronteiras» é simplesmente uma embrulhada. Quando a revolução socialista estiver madura, quando ela eclodir, estender-se-á a outros países, e nós ajudá-la-emos, mas como não sabemos. O «método da revolução socialista» é uma frase sem conteúdo. Visto que existem resíduos de questões não resolvidas pela revolução burguesa, somos partidários de que elas se resolvam. Em face do movimento separatista somos indiferentes, neutrais. Se a Finlândia, se a Polónia e a Ucrânia se separarem da Rússia, não há nenhum mal nisso. Que mal pode haver? Quem o afirmar é um chauvinista. É preciso ter perdido o juízo para continuar a política do tsar Nicolau. A Noruega não se separou da Suécia?… Noutros tempos, Alexandre I e Napoleão trocavam povos entre si, noutros tempos os tsares utilizavam a Polónia como moeda de troca. Devemos nós continuar essa táctica dos tsares? Isso equivaleria a renunciar à táctica do internacionalismo, seria um chauvinismo da pior espécie. Se a Finlândia se separar, que mal haverá? Em ambos os povos, no proletariado da Noruega e da Suécia fortaleceu-se a confiança mútua depois da separação. Os latifundiários suecos quiseram lançar-se numa guerra, mas os operários da Suécia opuseram-se e disseram: não entraremos nessa guerra.
Os finlandeses não querem hoje senão a autonomia. Nós somos por que se dê à Finlândia plena liberdade; então reforçar-se-á a sua confiança na democracia russa, precisamente então, quando isto for levado à prática, eles não se separarão. Quando o senhor Róditchevvai à Finlândia e regateia sobre a autonomia, os camaradas finlandeses vêm dizer-nos:. necessitamos da autonomia. Mas todas as baterias abrem fogo contra eles, dizendo: «esperai pela Assembleia Constituinte!» Mas nós dizemos: «o socialista russo que nega a liberdade da Finlândia é um chauvinista.»
Nós dizemos que as fronteiras se fixam por vontade da população. Rússia, não ouses combater pela Curlândia! Alemanha, retira as tuas tropas da Curlândia! Assim resolvemos nós a questão da separação. O proletariado não pode apelar para a violência, pois não deve pôr obstáculos à liberdade dos povos. A palavra de ordem de «abaixo as fronteiras» será justa quando a revolução socialista for uma realidade e não um método, e então diremos: camaradas, vinde a nós…
Uma coisa muito diferente é a questão da guerra. Em caso de necesssidade não renunciaremos a uma guerra revolucionária. Não somos pacifistas … Quando na Rússia manda Miliukov e envia Róditchev à Finlândia, o qual regateia ali vergonhosamente com o povo finlandês, nós dizemos: não, povo russo, não ouses violentar a Finlândia: não pode ser livre o povo que oprime outros povos[N79]. Na resolução sobre Borgbjerg[N80] dizemos: retirai as tropas e deixai que a nação decida o assunto por sua conta. Mas se o Sovietetomar amanhã o poder nas suas mãos, isso não será um «método da revolução socialista», e então diremos: Alemanha, fora com as tropas da Polónia, Rússia, fora com as tropas da Arménia — de outra maneira será um engano.
O camarada Dzerjínski diz-nos da sua Polónia oprimida que ali todos são chauvinistas. Mas porque não disse nenhum polaco nem uma só palavra sobre o que deve fazer-se com a Finlândia e a Ucrânia? Já se discutiu tanto tudo isto desde 1903, que se torna difícil falar disto. Vai aonde quiseres… Quem não adoptar este ponto de vista será um anexionista, um chauvinista. Queremos uma aliança fraternal de todos os povos. Se existir uma República Ucraniana e uma República Russa, haverá entre elas mais ligação e mais confiança. Se os ucranianos vêem que na Rússia existe a República dos Sovietes, não se separarão, mas se tivermos uma república de Miliukov, separar-se-ão. Quando o camarada Piatakov, em plena contradição com os seus pontos de vista, disse: opomo-nos a que se retenha alguém pela violência dentro das fronteiras, isto é o reconhecimento do direito das nações à autodeterminação. Não queremos de modo algum que o mujique de Khivá viva sob o jugo do Khan de Khivá. Com o desenvolvimento da nossa revolução influiremos sobre as massas oprimidas. Só assim se pode colocar a agitação entre as massas oprimidas.
Mas todo o socialista russo que não reconheça a liberdade da Finlândia e da Ucrânia cairá no chauvinismo. E nenhum sofisma nem referência ao seu «método» pode alguma vez justificá-lo.

Notas de rodapé:
(1*) Há uma lacuna na acta. (N. Ed.)
(2*) Há uma lacuna na acta. (N. Ed.)
(3*) Há uma lacuna na acta. (N. Ed.)
Notas de fim de tomo:
[N79] Ver F. Engels, A Literatura dos Emigrados, I. Uma Proclamação Polaca. (In Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 18, S. 527.)
[N80] Trata-se da resolução da VII Conferência (de Abril) do POSDR(b) «Acerca da Proposta de Borgbjerg». F. Borgbjerg, social-democrata dinamarquês ligado aos sociais-chauvinistas da Alemanha, chegou em Abril de 1917 a Petrogrado e, em nome do Comité Unificado dos partidos operários da Dinamarca, Noruega e Suécia, convidou os partidos socialistas da Rússia a participarem numa chamada «Conferência de paz dos socialistas em Estocolmo», que se efectuaria em Maio de 1917. A Conferência de Abril dos bolcheviques, por proposta de Lenine, pronunciou-se categoricamente contra a participação na Conferência de Estocolmo convocada pelos sociais-chauvinistas e desmascarou o seu carácter imperialista e o próprio Borgbjerg como um agente do imperialismo alemão.
Na reunião do Comité Executivo do Soviete de deputados operários e soldados de Petrogrado em que se discutiu esta questão, os mencheviques e os socialistas-revolucionários aceitaram a proposta de Borgbjerg e decidiram responsabilizar-se pela convocação da conferência e criar para isso uma comissão especial. O plenário do Sovieteapoiou esta decisão. A Conferência de Estocolmo não chegou a efectuar-se.
capa
Fonte: MIA

Resolução sobre a questão nacional

Resolução Sobre a Questão Nacional

V. I. Lénine

16 (3) de Maio de 1917

Transcrição autorizada
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Primeira edição: Publicado a 16 (3) de Maio dc 1917 como anexo ao n.° 13 do Soldátskaia Pravda.
Fonte: Obras Escolhidas em Três Tomos, 1977, tomo 2, pág: 95 a 96. Edições Avante! – Lisboa, Edições Progresso – Moscovo
Tradução: Edições “Avante!” com base nas Obras Completas de V. I. Lénine,5.ª ed. em russo, t. 3 1, pp. 439-440.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Editorial “Avante!” – Edições Progresso Lisboa – Moscovo, 1977.
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A política de opressão nacional, herança da autocracia e da monarquia, é apoiada pelos latifundiários, pelos capitalistas e pela pequena burguesia no interesse da protecção dos seus privilégios de classe e da desunião dos operários dos diferentes povos. O imperialismo contemporâneo, ao reforçar a tendência para submeter os povos fracos, é um novo factor de intensificação da opressão nacional.
A supressão da opressão nacional, na medida em que é realizável na sociedade capitalista, só é possível num regime republicano consequentemente democrático e num governo do Estado que garanta a plena igualdade de direitos de todas as nações e línguas.
Deve ser reconhecido a todas as nações componentes da Rússia o direito de separar-se livremente e formar Estados independentes. A negação deste direito e a não adopção de medidas destinadas a garantir a sua realização prática equivalem a apoiar a política de conquistas ou anexações. Só o reconhecimento pelo proletariado do direito das nações à separação garante a plena solidariedade dos operários das diferentes nações e permite uma aproximação verdadeiramente democrática das nações.
O conflito surgido actualmente entre a Finlândia e o Governo Provisório russo mostra com particular nitidez que negar o direito à livre separação leva a continuar directamente a política do tsarismo.
É inadmissível confundir a questão do direito das nações à livre separação com a questão da conveniência da separação desta ou daquela nação neste ou naquele momento. O partido do proletariado deverá resolver esta última questão de modo absolutamente independente em cada caso particular, do ponto de vista dos interesses de todo o desenvolvimento social e dos interesses da luta de classe do proletariado pelo socialismo.
O partido exige uma ampla autonomia regional, a supressão da fiscalização de cima, a supressão de uma língua estatal obrigatória e a determinação das fronteiras das regiões autogovernadas e autónomas na base das condições económicas e de vida apreciadas pela própria população local, da composição nacional da população, etc.
O partido do proletariado rejeita resolutamente a chamada «autonomia cultural-nacional», isto é, a exclusão da competência do Estado dos assuntos escolares, etc, e a sua passagem para as mãos de uma espécie de dietas nacionais. A autonomia cultural-nacional divide artificialmente os operários que vivem na mesma localidade e que inclusive trabalham na mesma empresa, segundo pertençam uma ou a outra «cultura nacional», isto é, reforça os laços entre os operários e a cultura burguesa de cada nação em separado, ao passo que a tarefa da social-democracia consiste em fortalecer a cultura internacional do proletariado do mundo inteiro.
O partido exige que se inclua na Constituição uma lei fundamental que anule quaisquer privilégios a favor de uma das nações e quaisquer violações dos direitos das minorias nacionais.
Os interesses da classe operária exigem a fusão dos operários de todas as nacionalidades da Rússia em organizações proletárias únicas, políticas, sindicais, cooperativas, educativas, etc. Só esta fusão dos operários das diferentes nacionalidades em organizações únicas dá ao proletariado a possibilidade de empreender uma luta vitoriosa contra o capital internacional e contra o nacionalismo burguês.

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Fonte: MIA

Resolução sobre o momento actual – V. I. Lénine

Resolução Sobre o Momento Actual

V. I. Lénine

16 (3) de Maio de 1917

Transcrição autorizada
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Primeira edição: Publicado em 16 (3) de Maio de 1917 como anexo ao n.º 13 do Soldátskaia Pravda..
Fonte: Obras Escolhidas em Três Tomos, 1977, tomo 2, pág: 97 a 99. Edições Avante! – Lisboa, Edições Progresso – Moscovo
Tradução: Edições “Avante!” com base nas Obras Completas de V. I. Lénine,5.ª ed. em russo, t. 31, pp. 449-452.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Editorial “Avante!” – Edições Progresso Lisboa – Moscovo, 1977.
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A guerra mundial, gerada pela luta dos trusts mundiais e do capital bancário pela dominação do mercado mundial, conduziu já à destruição em massa de valores materiais, ao esgotamento das forças produtivas e a uma expansão tal da indústria de guerra que até a produção do mínimo imprescindível de artigos de consumo e meios de produção se torna impossível.
Deste modo, a guerra actual conduziu a humanidade a uma situação sem saída e colocou-a à beira da ruína.
As premissas objectivas da revolução socialista, que indubitavelmente existiam já antes da guerra nos países mais avançados e desenvolvidos, continuaram a amadurecer em consequência da guerra com vertiginosa rapidez. A eliminação e a ruína das empresas pequenas e médias aceleram-se cada vez mais. A concentração e internacionalização do capital assume proporções gigantescas. O capitalismo monopolista converte-se em capitalismo monopolista de Estado, a regulação social da produção e da distribuição, devido à pressão das circunstâncias, é introduzida numa série de países, alguns dos quais passam ao trabalho geral obrigatório.
Sendo mantida a propriedade privada dos meios de produção, todos esses passos para uma maior monopolização e uma maior estatização da produção são acompanhados inevitavelmente de um reforço da exploração das massas trabalhadoras, do reforço da opressão, de uma dificuldade crescente na resistência aos exploradores, do reforço da reacção e do despotismo militar e ao mesmo tempo conduzem inevitavelmente a um incrível aumento dos lucros dos grandes capitalistas à custa de todas as outras camadas da população, à escravização por muitos decénios das massas trabalhadoras, impondo-lhes tributos a pagar aos capitalistas sob a forma de milhares de milhões de juros pelos empréstimos. Mas, uma vez abolida a propriedade privada sobre os meios de produção, e com a passagem de todo o poder de Estado para as mãos do proletariado, essas mesmas condições garantirão o triunfo de uma transformação social que porá fim à exploração do homem pelo homem e assegurará o bem-estar de todos e cada um.
* * *
Por outro lado, a previsão dos socialistas do mundo inteiro, que, no Manifesto de Basileia de 1912, assinalaram unanimemente a inevitabilidade da revolução proletária em relação precisamente com a guerra imperialista que então se aproximava e hoje lavra, foi claramente confirmada pelo curso dos acontecimentos.
A revolução russa é apenas a primeira etapa da primeira das revoluções proletárias geradas inevitavelmente pela guerra.
Em todos os países cresce a indignação das amplas massas populares contra a classe dos capitalistas e a consciência do proletariado de que só a passagem do poder para suas mãos e a abolição da propriedade privada sobre os meios de produção salvarão a humanidade da destruição.
Em todos os países, particularmente nos mais avançados, na Inglaterra e na Alemanha, centenas de socialistas que não se inclinaram para o lado da «sua» burguesia nacional foram lançados para as prisões pelos governos dos capitalistas que, com estas perseguições, apenas demonstraram o seu receio da revolução proletária que vai crescendo no seio das massas populares. O seu amadurecimento na Alemanha nota-se tanto nas greves de massas, que se intensificaram particularmente nas últimas semanas, como no crescimento da confraternização dos soldados alemães com os russos na frente.
A confiança fraternal e a união fraternal entre os operários dos diferentes países, operários que hoje se exterminam uns aos outros pelos interesses dos capitalistas, começam deste modo a restabelecer-se pouco a pouco, e isto cria, por sua vez, as premissas para organizar acções revolucionárias unânimes dos operários dos diferentes países. Só estas acções podem garantir o desenvolvimento mais sistemático e o êxito mais seguro possível da revolução socialista mundial.
* * *
O proletariado da Rússia, que actua num dos países mais atrasados da Europa, no meio de uma imensa população de pequenos camponeses, não pode propor-se como fim a realização imediata de transformações socialistas.
Mas seria o maior dos erros, e na prática equivaleria a passar completamente para o campo da burguesia, deduzir daqui a necessidade do apoio à burguesia por parte da classe operária ou a necessidade de limitar a sua actividade ao quadro do aceitável para a pequena burguesia, ou a renúncia ao papel dirigente do proletariado na tarefa de explicar ao povo a urgência de uma série de passos praticamente maduros em direcção ao socialismo.
Tais passos são, em primeiro lugar, a nacionalização da terra. Tal medida, que não ultrapassa directamente os limites do regime burguês, seria ao mesmo tempo um forte golpe contra a propriedade privada sobre os meios de produção e reforçaria por isso mesmo a influência do proletariado socialista sobre os semiproletários do campo.
Tais medidas são, além disso, o estabelecimento do controlo do Estado sobre todos os bancos e a sua fusão num banco central único, e também sobre as instituições de seguros e os maiores consórcios capitalistas (por exemplo, o consórcio dos fabricantes de açúcar, o Prodúgol, o Prodamet(1*), etc), com a transição gradual para um sistema mais justo de impostos progressivos sobre os rendimentos e os bens. Tais medidas estão completamente maduras do ponto de vista económico, são absolutamente realizáveis de imediato do ponto de vista técnico, e podem contar politicamente com o apoio da maioria esmagadora dos camponeses, que ganham com estas transformações em todos os aspectos.
Os Sovietes de deputados operários, soldados, camponeses, etc, que hoje cobrem a Rússia com uma rede cada vez mais densa, poderiam também, juntamente ccom as citadas medidas, passar à aplicação do trabalho geral obrigatório, pois o carácter dessas instituições assegura, por um lado, a passagem a todas essas novas transformações somente na medida em que a sua necessidade prática seja reconhecida, consciente e firmemente, pela imensa maioria do povo, e, por outro lado, o carácter dessas instituições garante a realização de tais transformações, não pela via policial-burocrática, mas pela participação voluntária das massas organizadas e armadas do proletariado e do campesinato na regulação da sua própria economia.
Todas essas medidas e outras semelhantes podem e devem não só ser discutidas e preparadas para serem aplicadas à escala de todo o país com a condição de que todo o poder passe para os proletários e os semiproletários, como também ser realizadas pelos órgãos revolucionários locais do poder de todo o povo quando se apresentar a possibilidade disso.
Na aplicação destas medidas é necessária uma extraordinária prudência e precaução, é preciso conquistar uma sólida maioria da população e conseguir a sua convicção consciente na preparação prática desta ou daquela medida, e é precisamente para este aspecto que devem orientar-se a atenção e os esforços da vanguarda consciente das massas operárias, que deve ajudar as massas camponesas a encontrar uma saída para a ruína actual.

Notas de rodapé:
(1*) Prodúgol: consórcio do carvão; Prodamet: consórcio metalúrgico. (N. do Ed.)
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Fonte: MIA

Projecto de decreto do CCP sobre a evacuação do governo

Projecto de Decreto do CCP (Conselho de Comissários do Povo) Sobre a Evacuação do Governo

V. I. Lénine

26 de Fevereiro de 1918

Transcrição autorizada
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Escrito:a 26 de Fevereiro de 1918.Primeira edição: em 1929, na Colectânea Leninista, t. XI.
Fonte: Obras Escolhidas em Três Tomos, 1977, tomo 2, pág: Edições Avante! – Lisboa, Edições Progresso – Moscovo
Tradução: Edições “Avante!” com base nas Obras Completas de V. I. Lénine,5.ª ed. em russo, t. 35, p. 398.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo
Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Editorial “Avante!” – Edições Progresso Lisboa – Moscovo, 1977.
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  1. Escolher Moscovo como sede.
  2. Cada departamento deverá evacuar apenas o mínimo de dirigentes do aparelho administrativo central, não mais de duas ou três dezenas de pessoas (mais as famílias).
  3. Retirar imediatamente, custe o que custar, o Banco de Estado, o ouro e a Expedição de preparação de papéis do Estado.
  4. Iniciar a transferência dos valores de Moscovo.

Notas de fim de Tomo:
[N256] A questão da evacuação do governo e das instituições governamentais de Petrogrado para Moscovo face à ofensiva das tropas alemãs contra a cidade de Pskov foi discutida na reunião do Conselho de Comissários do Povo de 26 de Fevereiro de 1918. Nessa reunião foi aprovado, com pequenas alterações, o projecto de resolução redigido por Lenine. A resolução definitiva em relação à transferência da capital da República Soviética para Moscovo foi aprovada pelo IV Congresso Extraordinário dos Sovietes de Toda a Rússia, efectuado em Março de 1918.
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Fonte: MIA

Processo de trabalho e eficiência produtiva: Smith, Marx, Taylor e Lênin

Processo de trabalho e eficiência produtiva: Smith, Marx, Taylor e Lênin
Benedito Rodrigues de Moraes Neto*
Departamento de Economia – UNESP/Araraquara

RESUMO
A partir de reflexão sobre uma hipotética transição do capitalismo em sua natureza manufatureira ao socialismo, procura-se deixar marcada a razão pela qual, seguindo a proposta de Marx, essa transição exige que a produção se realize sob a égide da maquinaria. Consegue-se, como parte dessa reflexão, identificar, para o caso da manufatura, um trade-off entre eficiência produtiva e humanização das atividades de trabalho. Procura-se esclarecer que, dada a natureza do taylorismo-fordismo como “reinvenção da manufatura”, o exercício de início especulativo passa a ter sentido histórico. Busca-se argumentar que a ampla assimilação do taylorismo-fordismo pela experiência de implantação do socialismo na União Soviética a aprisionou ao mencionado trade-off , fazendo com que a primeira experiência de superação do capitalismo se impregnasse perversamente da mediocridade imanente ao taylorismo-fordismo. Finalmente, são feitos rápidos comentários acerca dos desdobramentos da recente automação de base microeletrônica sobre a natureza de um projeto socialista.
Palavras-chave: processo de trabalho, manufatura, eficiência produtiva, socialismo, taylorismo-fordismo, maquinaria

ABSTRACT
From an analysis of a hypothetical transition from manufacture capitalism to socialism, we intend to stress the reason why, according to Marx´s proposition, it is demanded that this transition takes place under machinery´s domain. In the case of manufacture it is possible to identify a trade-off between the productive efficiency and the humanization of the labor activities. We then intend to clarify that the initially hypothetical speculation acquires a historic sense in as much as taylorism-fordism´s nature can be understood as a “reinvention of the manufacturing system”. We shall then argue that the wide assimilation of taylorism-fordism in the Soviet Union´s experience of socialism implementation imprisoned it within the mentioned trade-off, which caused the first experience of capitalism´s surmount to be perversely impregnated with the immanent mediocrity of taylorism-fordism. Finally, we shall comment briefly on the developments that the recent automation of microelectronic base might take in a socialist project.
Keywords: labor process, manufacturing system, socialism, Taylorism-Fordism, machinery

1 INTRODUÇÃO
Este texto nasceu de um exercício proposto para efeito pedagógico, qual seja, uma reflexão sobre os desdobramentos de uma transição direta da manufatura para o socialismo. O estudo das limitações postas pela forma manufatureira para o estabelecimento de uma formação social superior permitiria identificar a necessidade da maquinaria para a transcendência do capitalismo, o que nos levaria na direção de Marx. Numa primeira aproximação, este exercício, ainda que interessante, possuiria caráter exclusivamente hipotético, pois a forma manufatureira foi superada historicamente pela maquinaria, e a primeira tentativa de superação do capitalismo ocorreu, evidentemente, após essa superação. Todavia, as surpresas pregadas pelo século 20 no que se refere aos processos de trabalho irão permitir que o exercício proposto passe a tratar de aspectos históricos de grande importância. Por mais paradoxal que possa parecer, o século 20 permitirá esclarecer definitivamente a necessidade da máquina para a superação do capitalismo.
2 AS LIMITAÇÕES DA MANUFATURA E O PROJETO SOCIALISTA
O ponto de partida para a reflexão sobre os desdobramentos de uma eventual transição direta manufatura-socialismo vem a ser aquilo que pode ser denominado angústia smithiana, “consistente na inexorável vinculação estabelecida por Adam Smith entre eficiência produtiva e desumanização das atividades de trabalho”.. (MORAES NETO, 2004, p. 8), também conhecido como dilema smithiano (WEISS, 1976, p.106; PALMA, 1971, p. 15) Para Smith, se por um lado a elevação da eficiência produtiva, obtida exclusivamente pela via de incremento da divisão do trabalho (aqui divisão manufatureira do trabalho), possui um desdobramento extremamente positivo em função do incremento da riqueza material, por outro seus efeitos sobre a natureza das atividades de trabalho seriam extremamente perversos, como se depreende da conhecida frase enfática:
Com o avanço da divisão do trabalho, a ocupação da maior parte daqueles que vivem do trabalho, isto é, da maioria da população, acaba restringindo-se a algumas operações extremamente simples, muitas vezes a uma ou duas. Ora, a compreensão da maior parte das pessoas é formada pelas suas ocupações normais. O homem que gasta toda sua vida executando algumas operações simples, cujos efeitos também são, talvez, sempre os mesmos ou mais ou menos os mesmos, não tem nenhuma oportunidade para exercitar sua compreensão ou para exercer seu espírito inventivo no sentido de encontrar meios para eliminar dificuldades que nunca ocorrem. Ele perde naturalmente o hábito de fazer isso, tornando-se geralmente tão embotado e ignorante quanto o possa ser uma criatura humana…. Este tipo de vida corrompe até mesmo sua atividade corporal, tornando-o incapaz de utilizar sua força física com vigor e perseverança em alguma ocupação para a qual foi criado. Assim, a habilidade que ele adquiriu em sua ocupação específica parece ter sido adquirida às custas de suas virtudes intelectuais, sociais e marciais. Ora, em toda sociedade evoluída e civilizada, este é o estado em que inevitavelmente caem os trabalhadores pobres – isto é, a grande massa da população…( SMITH, 1983, p. 213-214 ).
Vale lembrar um elemento fundamental para o esclarecimento da posição de Adam Smith, qual seja, a noção de que a forma manufatureira seria a mais avançada possível. Em função disso, e como não se colocaria para ele uma regressão histórica (WEISS, 1976), então não haveria como fugir do “mal necessário”.
Lembremos que aquilo que estamos creditando a Smith, por influência de Ferguson, é assumido integralmente por Marx, que observa com clareza a razão maior da “angústia smithiana”: o fato de que a forma manufatureira está inteiramente lastreada no ser humano como instrumento de produção.
Da natureza do trabalho sob a manufatura é possível, portanto, extrair um inexorável trade-off entre produtividade do trabalho e humanização das atividades de trabalho (implícito na formulação da angústia smithiana): caso se caminhe na direção da elevação da eficiência produtiva, então se terá que suportar o mal necessário, qual seja, a crescente desumanização do trabalho. Caso se opte por fornecer ao trabalho humano um grau mais elevado de humanização, ou seja, de apropriação subjetiva do trabalho pelos trabalhadores, de maior qualificação por parte do trabalhador, de maior conteúdo do trabalho, então se terá que sacrificar eficiência produtiva, caminhando-se na direção de um trabalho cada vez mais impregnado de caráter artesanal.
Vejamos agora quais seriam os desdobramentos de um processo de trabalho tão limitado quanto o manufatureiro para a implantação de relações de produção de natureza socialista. O ponto de partida para essa reflexão está, a nosso juízo, determinado desde logo pelo desafio da produção em massa, ou seja, da obtenção de elevados volumes de produção e de elevada eficiência produtiva, com vistas à satisfação das necessidades materiais de toda uma grande população. Pensando no sugerido trade-off, não se imaginaria um caminho para o socialismo trocando produtividade por humanização de corte artesanal, dados os óbvios efeitos deletérios dessa opção em termos da satisfação das imensas necessidades materiais da sociedade. Caminhar-se-ia, portanto, e de forma inexorável, na direção da desumanização das atividades de trabalho, e a sociedade socialista teria então que conviver com esse mal necessário. Tratemos um pouco mais de perto desse ponto. Trata-se, como já observamos, de incrementar a eficiência produtiva através de utilização mais produtiva do instrumento de produção por excelência da manufatura, o trabalho vivo. Todavia, como notou Marx de forma feliz, “o homem é um instrumento muito imperfeito de produção quando se trata de conseguir movimentos uniformes e contínuos” (MARX, 1973, p. 306) Seria necessário, então, buscar alargar os limites inerentes àquilo que Marx chama de “barreira orgânica” tipicamente colocada pela forma manufatureira à expansão da produtividade do trabalho. Charles Babbage é extremamente claro ao observar os desafios postos por essa forma de expansão da eficiência produtiva:
A fadiga produzida nos músculos do corpo humano não depende completamente da força efetivamente empregada em cada esforço, mas parcialmente da freqüência através da qual ela é exercida. O esforço necessário para realizar cada operação consiste de duas partes: uma delas é o gasto de força que é necessário para guiar a ferramenta ou instrumento; e a outra é o esforço requerido para a movimentação de algum membro do animal que produz a ação. Ao pregar um prego num pedaço de madeira, uma delas é erguer o martelo e impelir sua cabeça contra o prego; a outra é levantar o próprio braço, e movimentá-lo no sentido de usar o martelo. Se o peso do martelo é considerável, a primeira parte irá causar a maior porção do esforço. Se o martelo é leve, o esforço de levantar o braço irá produzir a maior parte da fadiga. Acontece portanto que aquelas operações que requerem uma força muito insignificante, se freqüentemente repetidas, irão cansar de modo mais efetivo do que o mais laborioso trabalho. Existe também um grau de rapidez além do qual não se pode forçar a ação dos músculos. (…) A proporção entre a velocidade através da qual homens ou animais se movem, e os pesos que carregam, é uma matéria de importância considerável, principalmente em assuntos militares. É também de grande importância para a gestão do trabalho fazer o ajuste entre o peso daquela parte do corpo do animal que se movimenta, o peso da ferramenta, e a freqüência de repetição desses esforços, de modo a produzir o melhor efeito. (…) Sempre que o trabalho é leve, torna-se necessário, de modo a economizar tempo, incrementar a velocidade. (BABBAGE, 1971, p. 30-32).
Em suma, é necessário, para efeito da conquista de incrementos na produtividade do trabalho, aperfeiçoar o conhecimento e a aplicação do ser humano como instrumento de produção, permitindo que o mesmo, de forma sempre aperfeiçoada, trabalhe com a “regularidade de uma peça de maquinaria” (MARX, 1973, p. 284). A questão que se coloca, portanto, para efeito de nosso exercício, é a de como conseguir esse efeito nos marcos de uma sociedade socialista, e analisar seus desdobramentos. Uma alternativa seria apelar para aemulação socialista, ou seja, para a apropriação subjetiva por parte dos trabalhadores da necessidade e da importância de trabalharem com a «regularidade de uma peça de maquinaria», desempenhando com firme disposição as tarefas parciais, repetitivas, de ciclo extremamente curto, a eles designadas pela expansão sempre buscada na divisão parcelar do trabalho. Essa alternativa implicaria, é óbvio, um socialismo hipervalorizador do trabalho manual, magnificador da condição operária imposta inexoravelmente pela natureza dos processos de trabalho eficientes. Tratar-se-ia de um projeto socialista prisioneiro da angústia smithiana, de natureza bastante medíocre, posto que assentado em medíocres forças produtivas. Não é difícil esclarecer essa afirmação: imaginemos um mundo smithiano, no qual a forma mais avançada possível das forças produtivas seja encontrada na manufatura e sua divisão parcelar do trabalho. Essa eternização da manufatura seria, em nosso exercício, carregada para o interior do socialismo, num radical “fim da História” das forças produtivas. Ter-se-ia então que eternizar a emulação socialista para garantir a conquista de elevada eficiência produtiva, coisa que, ademais de impossível, seria absolutamente indesejável, pois a sociedade jamais chegaria a uma efetiva condição de superioridade vis-à-vis o capitalismo. O que se conseguiria, na melhor das hipóteses, seria um socialismo magnificador da condição operária. E essa seria a melhor das hipóteses, pois uma outra não pode ser esquecida: a conquista de elevada produtividade do trabalho de forma amplamente autoritária. Nos dois casos, nosso «socialismo manufatureiro» apresentaria todas as condições para ser caracterizado como grosseiro, para usar expressão de Marx nos Manuscritos de 44. O fato de que Marx observava claramente a impossibilidade de uma hipotética transição direta manufatura-socialismo – marcando assim a necessidade da maquinaria – nos é revelado claramente pela forma irônica com que tratou a proposta de Proudhon de rodízio de tarefas entre trabalhadores parciais com vistas a amenizar os efeitos deletérios da divisão do trabalho. (MARX, 1976, p. 114).
Qual a razão fundamental pela qual Marx despreza a possibilidade de transitar do capitalismo para o socialismo nos marcos de uma base técnica manufatureira? Pelo fato de que este seria um socialismo reforçador do trabalho manual sem conteúdo, antítese da visão extremamente ambiciosa de Marx de um socialismo que teria como característica fundamental a de caminhar no sentido da «abolição do trabalho»:
Apenas nesta fase [após a revolução] a auto-atividade coincide com a vida material, o que corresponde à transformação dos indivíduos em indivíduos totais e ao despojamento de todo seu caráter natural. A transformação do trabalho em auto-atividade corresponde à transformação do limitado intercâmbio anterior em intercâmbio entre indivíduos enquanto tais. Com a apropriação das forças produtivas totais pelos indivíduos unidos, termina a propriedade privada. (MARX; ENGELS, 1991, p. 106-107).
Em todas as revoluções anteriores o modo de atividade permanecia intacto, e tratava-se apenas de conseguir uma outra forma de distribuição dessa atividade, uma nova distribuição do trabalho entre outras pessoas, enquanto que a revolução comunista é dirigida contra o modo anterior de atividade, suprime o trabalho e supera a dominação de todas as classes ao superar as próprias classes, porque esta revolução é feita pela classe que não é mais reconhecida como tal, e que já é em si mesma a expressão da dissolução de todas as classes, de todas as nacionalidades , etc., no interior da sociedade atual. (ibidem, p. 108).
Para Marx, portanto, a abolição da sociedade de classes exige a transcendência do trabalho alienado, ou seja, a abolição do trabalho. À primeira vista, um «socialismo-manufatureiro» impregnado de emulação socialista estaria superando a alienação do trabalho. Todavia, tratar-se-ia de visão superficial, pois a eternização do homem como instrumento fundamental de produção trataria de repor historicamente a sociedade de classes. Afinal, nos ensina Marx, “uma análise do conceito de trabalho estranhado mostra que, muito embora a propriedade privada pareça ser a razão, a causa do trabalho alienado, ela é, ao invés disso, sua conseqüência.” (MARX, 1974, p. 116) Pode-se, então, entender a razão mais profunda pela qual, para Marx, o capitalismo não seria apenas mais uma, mas a última sociedade de classes: por ter superado historicamente a dependência do ser humano como instrumento de produção, ou seja, por ter feito surgir a produção sob a égide da maquinaria.
3 A NECESSIDADE DA MÁQUINA: A SUPERAÇÃO DO TRADE-OFF IMPLÍCITO NA «ANGÚSTIA SMITHIANA»
Marquemos a necessidade, em Marx, da produção inteiramente dominada pela maquinaria para que se possa transitar do capitalismo para o socialismo:
Trabalharás com o suor de teu rosto ! , foi a maldição que Jeová lançou a Adão, e é desta maneira, como maldição, que Adam Smith concebe o trabalho. O ‘repouso’ aparece como o estado adequado, como idêntico à ‘liberdade’ e à ‘fortuna’. Parece estar muito longe de seu pensamento que o indivíduo, ‘em seu estado normal de saúde, vigor, atividade, habilidade e destreza’ tenha também a necessidade de sua porção normal de trabalho e da supressão do repouso. (…) Tem razão, sem dúvida, Adam Smith, na medida em que as formas históricas de trabalho – como trabalho escravo, servil, assalariado – sempre se apresentaram como trabalho forçado, imposto exteriormente, frente ao qual o não-trabalho aparece como ‘liberdade e fortuna’. Isto é duplamente verdadeiro: é verdadeiro com relação a este trabalho antitético ['quer dizer, condicionado por uma antítese de classe' (ROSDOLSKY, 1985, p. 474)], e , em conexão com ele, ao trabalho para o qual ainda não se criaram as condições subjetivas e objetivas para que se torne trabalho atraente, auto-realização do indivíduo, o que de modo algum significa que seja mera diversão, mero entretenimento, como concebia Fourier. Precisamente, os trabalhos realmente livres, como por exemplo a composição musical, são ao mesmo tempo terrivelmente sérios e exigem o mais intenso dos esforços. O trabalho da produção material só pode adquirir esse caráter ( de trabalho realmente livre, emancipado ) : 1) Se o seu conteúdo se tornar diretamente social; 2) Se se revestir de um caráter científico e surgir diretamente como tempo de trabalho geral. Por outras palavras se deixar de ser o esforço do homem, simples força de trabalho natural no estado bruto tendo sofrido um determinado treinamento, para se tornar a atividade do sujeito que regula todas as forças da natureza no seio do processo de produção. (MARX, 1978, p. 119-120).
Como afirmamos anteriormente, toda a reflexão realizada até aqui parece ter um caráter puramente especulativo, na medida em que Marx realizava sua análise a partir do revolucionamento causado pela introdução da maquinaria. Na medida em que esta teria superado radicalmente a forma manufatureira, a ideia de uma transição da manufatura para o socialismo não teria qualquer sentido histórico. Todavia, como também já afirmamos, as surpresas pregadas pelo século XX vão permitir que o exercício feito até aqui possa conter importantes elementos histórico-concretos. A responsabilidade integral por isso deve ser debitada à emergência histórica do taylorismo-fordismo, pelas razões que se seguem.
4 A NATUREZA CONCEITUAL DO TAYLORISMO-FORDISMO
Demarquemos, neste momento, a natureza conceitual do taylorismo-fordismo:
… taylorismo caracteriza-se como uma forma avançada de controle do capital (com o objetivo de elevar a produtividade do trabalho) sobre processos de trabalho nos quais o capital dependia da habilidade do trabalhador… De que forma? Através do controle de todos os tempos e movimentos do trabalhador; ou seja, do controle de todos os passos do trabalho vivo. Estamos bastante distantes da forma descrita por Marx do ajustamento da base técnica às determinações do capital: num momento mais avançado do desenvolvimento do capitalismo, à questão historicamente recolocada de sua dependência frente ao trabalho vivo, o capital reage de uma forma diferente: ao invés de subordinar o trabalho vivo através do trabalho morto, pelo lado dos elementos objetivos do processo de trabalho, o capital lança-se para dominar o elemento subjetivo em si mesmo. Esta ‘façanha’ do capital significa, em uma palavra, a busca da transformação do homem em máquina. (MORAES NETO, 1989, p. 34).
O fordismo caracteriza o que poderíamos chamar de socialização da proposta de Taylor, pois, enquanto este procurava administrar a forma de execução de cada trabalho individual, o fordismo realiza isso de forma coletiva, pela via da esteira. (ibidem, p. 36-37).
Pode-se aplicar sem restrições para a linha de montagem a colocação feita por Marx para a manufatura: ‘A maquinaria específica do período da manufatura é, desde logo, o próprio trabalhador coletivo, produto da combinação de muitos trabalhadores parciais’. (ibidem, p. 51).
Após essas considerações, chegamos à seguinte conclusão: o fordismo, a linha de montagem, é um desenvolvimento da manufatura, e não da maquinaria. A linha de montagem leva ao limite as possibilidades de aumento de produtividade pela via da manufatura, do trabalho parcelar. (ibidem, p. 33).
O desdobramento evidente dessa concepção teórica é que o trade-off implícito na “angústia smithiana” irá assombrar o século 20, na medida em que vai repor todas as limitações imanentes à forma manufatureira. Tentaremos a seguir ilustrar essa assertiva dentro do contexto da busca de superação do capitalismo.
5 SOCIALISMO E EFICIÊNCIA PRODUTIVA: O CASO DA UNIÃO SOVIÉTICA
Sendo o taylorismo-fordismo uma “reinvenção da manufatura”, a conhecida e polêmica incorporação ampla do taylorismo-fordismo pela experiência socialista encetada na União Soviética a levaria a aprisionar-se aotrade-off implícito na «angústia smithiana» e, consequentemente, a trazer para a História os limites anteriormente apontados para a transição direta manufatura-socialismo.
É bastante conhecida a diretriz lançada por Lênin logo após 1917, em relação à aplicação dos princípios tayloristas pela nascente experiência socialista:
Em comparação com o pessoal das nações avançadas, o russo é um mau trabalhador. E não podia ser de outro modo sob o regime tzarista, e em virtude da persistência dos resquícios do sistema feudal. Aprender a trabalhar, eis a tarefa que o poder soviético deve colocar ao povo em toda sua extensão. A última palavra do capitalismo neste terreno – o sistema Taylor – , do mesmo modo que todos os avanços do capitalismo, reúne em si toda a ferocidade refinada da exploração burguesa e uma série das maiores conquistas científicas referentes ao estudo dos movimentos mecânicos durante o trabalho, a supressão dos movimentos supérfluos e torpes, a elaboração de métodos de trabalho mais racionais, a implantação de melhores sistemas de registro e de controle, etc. A República Soviética deve adotar, a qualquer custo, as conquistas mais valiosas da ciência e da técnica neste domínio. A possibilidade de se construir o socialismo depende precisamente do êxito que logremos, ao combinar o poder soviético e a organização soviética da direção com as últimas conquistas do capitalismo. Devemos organizar na Rússia o estudo e o ensino do sistema Taylor, experimentá-lo e adaptá-lo sistematicamente aos nossos próprios fins. (LÊNIN, 1988b, p. 164).
Como já deixa claro a frase acima, e se trata de fato bastante conhecido, há uma ambivalência na posição de Lênin, pois admite-se o taylorismo como possuidor de caráter de “arma antiproletária, de ‘crueldade refinada da exploração burguesa’ (…), mas também se enfatiza com grande vigor seu aspecto de avanço técnico-científico” (FINZI, 1986, p.140) Existe já nessa ambivalência uma pista importante, seguida por vários estudiosos, para perscrutar o que haveria de conceitual em Lênin sobre o taylorismo. O início de seu percurso sobre o tema situa-se no lado contundentemente crítico: em artigo de 1913 afirma tratar-se o taylorismo de um “método científico de extorsão de suor”, e que,
Como resultado desse método, três vezes mais trabalho é extraído do trabalhador nas mesmas nove a dez horas de trabalho diário; toda a força do trabalhador é incitada de maneira inclemente, cada pedaço de nervos e músculos é exaurido do trabalhador escravo a um ritmo três vezes maior (…) (LÊNIN, 1972, p. 594-595,apud TRAUB, 1978, p. 82).
Todavia, em artigo de março de 1914, o lado crítico permanece, mas o lado positivo, tendo em conta o projeto socialista, começa a surgir [este artigo constitui, para Devinatz, a "ponte" que nos permite caminhar do ponto inicial, em 1913, para o tratamento pós-revolucionário (DEVINATZ, 2003, p. 515)]:
O sistema Taylor – sem que seus autores o saibam e contra sua vontade – prepara o tempo em que o proletariado tomará nas mãos toda a produção social (…), (à medida que) as comissões operárias, com a ajuda dos sindicatos, saberão aplicar estes princípios de distribuição racional do trabalho social, quando ele estiver emancipado de sua submissão ao capital. (LÊNIN, 1914, apud FINZI, 1986, p. 139).
Observa-se que “Tão cedo como 1914, Lênin argumentou que o taylorismo era ao mesmo tempo uma forma de extrair a última gota de suor do trabalhador e de conseguir ‘um enorme ganho em termos de produtividade do trabalho‘.” (SOCHOR, 1981, p. 248).
Com o objetivo de estudar a ligação de Lênin com o taylorismo, perseguindo a pista já aberta pelo artigo de 1914, os estudiosos têm dado grande ênfase ao tratamento dado a esse tema no material preparatório para O Imperialismo, cuja confecção se atribui aos anos 1915-1916 (FINZI, 1986, p. 140-142; LINHART, 1977, p. 97-98) O caminho aí perseguido por Lênin, que vai permitir entender sua posição pós-17, deve-se inteiramente ao fato de que, para ele, o taylorismo ilustrava à perfeição o estágio mais avançado das forças produtivas alcançado pelo capitalismo:
O famoso sistema Taylor, muito difundido na América do Norte, é célebre porque constitui a última palavra da mais desenfreada exploração capitalista. É natural, então, que esse sistema tenha provocado tanto ódio e indignação entre as massas operárias. Mas ao mesmo tempo, não se deve esquecer um só instante que o sistema Taylor implica num enorme progresso da ciência, que analisa sistematicamente o processo de produção e abre caminho para um grande aumento da produtividade do trabalho humano. As investigações científicas iniciadas na América do Norte à raiz da implantação do sistema Taylor, em particular o estudo dos movimentos, como dizem os norte-americanos, deram como resultado um rico material que permitiu ensinar à população trabalhadora métodos muitíssimo mais elevados de trabalho em geral e de organização do trabalho em particular. (LÊNIN, 1988a, p. 120).
Sobre esse ponto, são felizes as observações abaixo:
(…) para Lênin, o taylorismo estava vinculado com o avanço geral do capitalismo, o qual era positivamente interpretado na medida em que pavimentava o caminho para o socialismo. A questão essencial para Lênin tornou-se política: quem iria controlar e usar o taylorismo. (SOCHOR, 1981, p. 248).Não há dúvida de que, no taylorismo, Lênin vê um aspecto científico num sentido, por assim dizer, próprio e estrito: de progresso dos conhecimentos naturais, de maior penetração nos segredos da natureza, de avanço da capacidade humana de submeter a si o mundo natural. Daí sua constante ênfase na importância das conquistas tayloristas no estudo dos movimentos. (FINZI, 1986, p. 144).
Lênin efetua, portanto, uma equivocada aliança entre taylorismo e cientificização dos processos produtivos, entre taylorismo e produção à base de maquinaria. Esta aliança já existia no artigo crítico de 1913, no qual se afirma que o taylorismo “levava ao extremo a escravização da humanidade à máquina” e permitia observar que “avanços nas esferas da tecnologia e da ciência na sociedade capitalista são todavia avanços na arte de extorsão de suor” (LÊNIN, 1972, p.595, apud TRAUB, 1978, p.82) Também é muito significativa a visão de Lênin, no momento imediatamente pós-revolucionário, de que o taylorismo poderia “facilitar o processo de trabalho e oferecer algum alívio ao trabalhador através da transferência do penoso trabalho físico para a máquina (grifo nosso). (TRAUB, 1978, p.84) Sendo assim, o passo seguinte – o da proposta de aceitação, em alguns momentos até entusiasmada, do taylorismo pelo projeto socialista – passa a ser inteiramente justificado à luz de Marx. Como já enfatizamos, para Marx, a produção sob a égide da máquina, transformada em “aplicação tecnológica da ciência”, é a grande contribuição histórica do modo de produção capitalista e a base produtiva sobre a qual se deve erigir uma sociedade que transcenda o capitalismo. Se o taylorismo se encaixa perfeitamente dentro dessa contribuição do capital, então sua assunção pelo socialismo é não só inexorável como benfazeja, pois assim se poderia eliminar seu lado negativo e preservar seu lado positivo.1O problema surge quando se considera o taylorismo (mais especificamente, o taylorismo-fordismo) como algo que não se encaixa de forma alguma dentro dessa positividade das forças produtivas capitalistas, caracterizando-se, isto sim, como uma forma imanentemente medíocre de organização produtiva, inteiramente prisioneira da tão milenar noção de que produzir é utilizar da mais eficiente forma possível o ser humano em sua corporalidade como instrumento por excelência de produção.2 Caso este fosse o entendimento de Lênin sobre o taylorismo, então se teria uma base conceitual para justificar a afirmação de Devinatz de que “Lênin via o taylorismo apenas como uma medida temporária (…)” (DEVINATZ, 2003, p.514), à qual o autor não consegue dar sustentação, sendo obrigado a concluir sua argumentação dentro do terreno das possibilidades.3 Aliás, nada melhor para ilustrar o caráter imanentemente medíocre do taylorismo do que uma referência a comentários de Alexei Gastev, grande ideólogo-professor-divulgador do sistema Taylor na Rússia Soviética na fase imediatamente pós-revolucionária. Vale lembrar que Gastev foi fundador e diretor do Instituto Central do Trabalho, instituição que contou com o crucial apoio de Lênin, e foi também o grande vencedor da forte polêmica sobre taylorismo que culminou na Segunda Conferência sobre Organização Científica do Trabalho, ocorrida em março de 1924.4 Vejamos então algumas colocações esclarecedoras de (e sobre) Gastev:
Na visão romântica de Gastev do fenômeno industrial, homens e máquinas se fundiam: as máquinas eram vistas como extensões do corpo humano, ao mesmo tempo em que as pessoas assumiam a velocidade e a eficiência de suas criações, adquirindo ‘nervos e músculos de aço’.(BAILES, 1977, p. 374).
Precisamos agora dirigir nossos esforços, não na direção de uma prolixa ciência geral, mas sim na direção da criação, o mais rápido possível, de um determinado número de máquinas de trabalho vivo qualificadas, excepcionalmente disciplinadas, prontamente disponíveis para serem postas em circulação geral.(GASTEV, 1924, apud BAILES, 1977, p. 387, grifo nosso).
Gastev afirmava que os próprios trabalhadores se tornariam crescentemente mecanizados, como dentes de engrenagem em uma enorme máquina. (BAILES, 1977, p. 378)
A organização do Instituto Central do Trabalho numa série de laboratórios de bio-mecânica, fisiologia e psico-fisiologia se ajustava à ênfase de Gastev no fator humano como a dimensão desconhecida na organização científica do trabalho (…) (Gastev estava) preocupado em desenvolver uma ‘ciência exata da organização de uma planta recheada de gente‘. O homem era o fator crítico a ser estudado e a ser transformado pela aplicação dos princípios da Organização Científica do Trabalho. Muito embora a ‘máquina humana‘ fosse capaz de produzir milagres, não mais do que um décimo dessa máquina viva era conhecido, lamentava Gastev. Por essa razão, o Instituto Central do Trabalho se dedicava a examinar ‘os mecanismos separados (da máquina humana) em operação’. (SOCHOR, 1981, p. 254-255, grifos nossos)
De acordo com um visitante do Instituto Central do Trabalho, ‘qualquer um que cruze a porta da frente desse instituto como um ser humano normal, sairá pela porta de trás, depois de ter passado por incontáveis laboratórios, como uma perfeitamáquina de trabalho. (ibidem, p. 264, grifo nosso).
Não há dúvida de que Gastev entendeu perfeitamente a essência do taylorismo, qual seja, a tentativa de transformar o homem em máquina, e a explicitou várias vezes de forma crua: “Muitos acham repugnante que nós queiramos tratar o ser humano como um parafuso, uma porca, uma máquina. Mas nós precisamos fazer isso tão tranqüilamente como aceitamos o crescimento das árvores ou a expansão da rede ferroviária.”(apud TRAUB, 1978, p. 88) Em poema escrito para a leitura do proletariado russo ao final dos anos 20, afirmou: “Eu desenvolvo braços e ombros de aço – eu me fundo com a forma do aço.” (apud TRAUB, 1978, p. 87) Todavia, a despeito do esforço das colocações e da prática de Gastev para demonstrar (de forma involuntária, é claro) o caráter extremamente atrasado e medíocre do taylorismo relativamente ao conceito de máquina exposto por Marx, potencialmente libertador do homem do trabalho, ele não teve sucesso: a despeito da polêmica em torno do tema, o taylorismo foi assumido pelos dirigentes do projeto socialista na União Soviética como uma contribuição do capitalismo para o avanço das forças produtivas, cuja incorporação pela experiência socialista seria indispensável e positiva.
A esse ponto de partida conceitual sobre taylorismo e forças produtivas deve-se acrescentar um aspecto histórico específico da experiência soviética, qual seja, a necessidade extrema de elevação rápida da produtividade do trabalho. Essa urgência, que adquiriu tons dramáticos em função de vicissitudes do período pós-revolucionário, irá reforçar a necessidade da incorporação rápida do taylorismo-fordismo, e moldar o formato dessa incorporação. Este ponto já pode ser visualizado em frase de Lênin já em 1918, a respeito de decreto proposto sobre disciplina no trabalho:
No decreto, nós precisamos definitivamente nos reportar à introdução do Sistema Taylor; em outras palavras, do uso de todos os métodos científicos de trabalho, com seus sistemas avançados. Sem isso, será impossível elevar a produtividade, coisa que, se não conseguirmos, não nos conduziremos ao socialismo. (LÊNIN, 1918,apud BAILES, 1977, p. 376).
Para nós, o entendimento do taylorismo por Lênin e sua assunção para elevar substancial e rapidamente a produtividade do trabalho irá jogar a experiência socialista nascente na armadilha do trade-off implícito na “angústia smithiana”. O taylorismo-fordismo irá trazer para o concreto histórico aquilo que vimos hipoteticamente na transição direta manufatura-socialismo. Ainda que não esclareça suas determinações, Kendall Bailes explicita com clareza esse trade-off:
As resoluções da Conferência de março de 1924 moldaram as diretrizes básicas para o esforço soviético em termos de racionalização do trabalho humano durante os anos seguintes de rápida industrialização. (…) A Conferência atenuou a tensão que normalmente existe, em qualquer economia, entre incrementar a eficiência humana, por um lado, e, por outro, proteger a saúde e os interesses monetários do trabalhador individual. (BAILES, 1977, p. 392).
Interessante é observar que, num primeiro momento pós-revolucionário, Lênin pareceu não se esquecer dos aspectos negativos do taylorismo que enfatizara nos artigos dos anos 1913 e 1914.5 Na primeira versão deAs tarefas imediatas … existem considerações que embasam essa afirmação, as quais foram eliminadas da versão definitiva do texto:
O negativo no sistema Taylor é que foi aplicado na escravidão capitalista e serviu de meio para extrair dos operários uma quantidade dupla ou tripla de trabalho com o mesmo salário, desprezando qualquer consideração acerca da capacidade dos operários assalariados para render, sem prejuízo para seu organismo, essa quantidade dupla ou tripla de trabalho em igual número de horas. A República Socialista Soviética enfrenta uma tarefa que pode ser formulada em poucas palavras, do seguinte modo: devemos implantar em toda a Rússia o sistema Taylor e a elevação científica da produtividade do trabalho conseguida pelos norte-americanos, conjugando este sistema com a redução do tempo de trabalho, com o emprego de novos métodos de produção e de organização do trabalho, sem prejudicar por mínimo que seja a força de trabalho da população trabalhadora. Ao contrário, a aplicação do sistema Taylor, corretamente dirigida pelos próprios trabalhadores se estes são bastante conscientes, será a melhor garantia para que no futuro se possa reduzir enormemente a jornada obrigatória de toda a população trabalhadora, será a melhor garantia para que num período bastante breve realizemos o objetivo que pode-se expressar aproximadamente da seguinte maneira: seis horas de trabalho físico para cada cidadão adulto e quatro horas de trabalho para a administração do Estado. (LÊNIN, 1988a, p. 120-121).
Como afirma Linhart, “o sonho das ‘seis horas-quatro horas’ não sobreviveu à urgência da situação. O texto final de As tarefas imediatas…recuou bastante.” (LINHART, 1977, p. 123). Ou seja, as circunstâncias históricas foram dissipando, da ambivalência leninista sobre Taylor, o lado negativo, fazendo com que o lado positivo preponderasse. Ficavam assim postas todas as condições para que a experiência socialista nascente fosse capturada pela armadilha do trade-off eficiência produtiva versus humanização do trabalho. Esse movimento leva a que a elevada produtividade do trabalho possa ser alcançada, como já mencionamos na hipotética transição direta manufatura-socialismo, através de duas alternativas de interferência sobre o rendimento do homem enquanto instrumento de produção: a emulação socialista-revolucionária ou o mais aberto autoritarismo. Segundo Linhart, logo após a superação da proposta de redução da jornada de trabalho pela necessidade de elevar rapidamente a produção e a produtividade, Lênin foi imensamente atraído pela emulação revolucionária como arma fundamental para a incorporação do taylorismo, fato que pode ser visualizado pela forma entusiasta com que acolheu a experiência dos «sábados comunistas», nos quais operários deslocados para tarefas ligadas às mais prementes necessidades postas pela Guerra Civil retomavam seu contato com o trabalho produtivo (LINHART, 1977, p. 158). Linhart também nos lembra que as vicissitudes da Guerra Civil empurraram a maior fatia do proletariado urbano, envolvido com as lutas revolucionárias, para as tarefas ligadas mais imediatamente ao esforço de guerra, causando sua substituição por um contingente em nada comprometido com o esforço revolucionário. Este fenômeno – que levou Lênin em 1921 a explicitar a noção do “desaparecimento do proletariado” – ocasionou a necessidade da troca da “emulação revolucionária” pelo aberto autoritarismo como forma de conquistar um padrão mínimo de produtividade do trabalho. Mantemo-nos, portanto, dentro das opções postas pelo aprisionamento ao trade-off implícito na “angústia smithiana” para a conquista de elevada eficiência produtiva em um projeto socialista: emulação socialista-revolucionária ou autoritarismo. O interessante é marcar que a determinação última da opção tomada encontra-se em aspecto fundamental da forma fordista de organizar o processo de trabalho, exposta com felicidade por Gramsci quando afirma que “os novos métodos de trabalho (fordistas) são indissolúveis de um determinado modo de viver, de pensar e de sentir a vida.” (GRAMSCI, 1978, p. 328) Em outras palavras, na medida em que o taylorismo-fordismo fundamenta-se no uso massivo de trabalho vivo imediato (como muito bem lembrou Gastev), então sua eficiência depende fundamentalmente do que se passa nas mentes desses instrumentos humanos de produção. No caso que nos interessa aqui, a experiência soviética, isso permitirá, como veremos a seguir, que a arma da “emulação revolucionária” volte a ocupar o centro do palco, com o advento do famigerado stakhanovismo em 1935, movimento que ajuda sobremaneira na caracterização do taylorismo-fordismo como imanentemente medíocre, não sendo portanto nada surpreendente a grande confluência entre o stakhanovismo e Gastev:
Em janeiro de 1936, Ordzhonikidze, Comissário da Indústria Pesada, incumbiu Gastev da preparação de quadros para o movimento stakhanovista. Em 1938, de acordo com uma recente estimativa soviética, aproximadamente um milhão de trabalhadores industriais haviam sido preparados pelos métodos e instrutores do Instituto de Gastev – um indicador da dimensão que sua influência adquiriu naqueles anos. (BAILES, 1977, p. 393).
Sobre a importância adquirida pelo stakhanovismo na prática produtiva, e também sobre a ligação deste movimento com Gastev, consultemos também Wren e Bedeian:
Em julho de 1938, 29% de todos os membros de sindicato na União Soviética tinham sido qualificados como Stakhanovistas. Em 1939, esse número cresceu para 34% de todos os membros de sindicato (que compreendiam 80% da força de trabalho). (…) V.M.Molotov falou na primeira Conferência dos Stakhanovistas de Todos os Sindicatos, em 1936, e Joseph Stalin continuou a exaltá-los como o modelo soviético de trabalhadores. Os stakhanovistas traziam uma nova retórica de gestão, reforçando a altruísmo do trabalho duro e da devoção ao Estado. (…) O que Alexei Stakhanov iniciou tornou-se uma norma nacional. G.K. Ordzhonikidze, Presidente do Conselho Supremo da Economia Nacional, colocou Gastev na função de treinar stakhanovistas. No Instituto de Gastev, quadros de trabalhadores seriam treinados para se tornarem ‘rate-busters’, e irem para as fábricas como um exemplo para os demais. (WREN; BEDEIAN, 2004, p. 294).
Para deixar marcada a grande influência do stakhanovismo, ou seja, da assunção do taylorismo-fordismo sob o manto da “emulação socialista” sobre toda a História posterior da experiência soviética, lembremos Stalin:
Stalin disse na primeira conferência stakhanovista (Novembro de 1935): ‘(…) este movimento começou (…) quase espontaneamente, de baixo, sem que nenhuma pressão tenha sido exercida pela administração das nossas empresas. Mais, este movimento nasceu e desenvolveu-se, em certa medida, contra a vontade da administração das nossas empresas, e até mesmo numa luta contra ela.” Stalin apresenta o movimento stakhanovista como uma espécie de revolução cultural, um salto em frente no sentido da supressão da diferença trabalho manual-trabalho intelectual: ‘Não há dúvida que só este avanço cultural e técnico da classe operária pode minar as bases da oposição entre o trabalho intelectual e o trabalho manual (…) O movimento stakhanovista (…) contém os primeiros germes (…) deste avanço cultural e técnico da classe operária do nosso país.‘ (LINHART, 1977, p. 122).
É interessante notar que a vinculação entre stakhanovismo e taylorismo não é aceita por Wren e Bedeian, para quem “Com os ‘shock-workers’ e os stakhanovistas, os preceitos da gerência científica sobre estudos cuidadosos e análise dos métodos de trabalho e ferramentas apropriados foram violados.” (WREN; BEDEIAN, 2004, p.294) Para esses autores, o taylorismo caracteriza-se por ser científico e objetivo, o que o afastaria de algo como o stakhanovismo, amplamente vinculado à emulação revolucionária:
O gráfico de Gantt era neutro ideologicamente, e constituiu a base para os planos quinquenais e o planejamento fabril. Em outras técnicas, os preceitos de Taylor foram violados. Onde ele propôs estabelecimento de padrões baseados no estudo e na análise, os ‘shock-workers’ e os stakhanovistas se tornaram os modelos soviéticos; e onde ele propôs cooperação, a disciplina se tornou mais rígida. (WREN; BEDEIAN, 2004, p. 297).
É essa uma visão do taylorismo como possuidor de natureza “científica e objetiva” (além de não autoritária, mas “cooperativa”), coisa impossível de ser alcançada, na medida em que ele mantém o ser humano como o instrumento de produção por excelência. (MORAES NETO, 1989) Também se encontra na literatura, a partir da mesma visão sobre a natureza do taylorismo, uma verdadeira oposição entre este movimento e o stakhanovismo: “Os métodos bárbaros do stakhanovismo e do trabalho forçado eram incompatíveis com qualquer forma de ‘scientific management” (TRAUB, 1978, p. 92) Também em Bedeian e Phillips se observa, se não uma oposição, pelo menos uma diferença de fundo entre a scientific management e o stakhanovismo, não muito bem caracterizada; ela parece surgir quando são colocados os problemas de eficiência produtiva gerados pelos excessos do stakhanovismo: a gerência científica seria objetiva e racional, enquanto o stakhanovismo apresentaria uma considerável dose de irracionalismo. Se superarmos essa visão do taylorismo como algo impregnado de cientificidade, de objetividade, coisa que nos parece necessária, podemos então visualizar o stakhanovismo como uma forma histórica do taylorismo, um neotaylorismo, quando o projeto de utilização ao paroxismo do homem como instrumento de produção é internalizado pelo homem trabalhador pela via da “emulação revolucionária”. Pode-se inclusive traçar uma analogia entre este neotaylorismo e o neotaylorismo-fordismo representado pelo ohnoísmo (ou toyotismo), no qual o capital mantém as atividades de trabalho desprovidas de conteúdo e conquista um elevado grau de envolvimento dos trabalhadores com a empresa e o trabalho.6
Não devemos nos esquecer, todavia, que, no caso de arrefecimento da “emulação socialista-revolucionária”, o autoritarismo sempre estaria à mão como alternativa para tentar obter eficiência produtiva. A História acabou mostrando, todavia, os estreitos limites colocados pela utilização, num prazo mais longo, dessas alternativas postas à disposição do socialismo de base taylorista-fordista. Em poucas palavras, o desvio mediocrizante representado pelo taylorismo-fordismo – e a dificuldade de compreendê-lo – acabou por impactar perversamente a primeira tentativa histórica de superação do regime capitalista, contribuindo fortemente para seu caráter e, acreditamos, para seu fracasso. Isto porque, quando a emulação revolucionária desaparece, e o autoritarismo se burocratiza, o sistema caminha inexoravelmente pela senda da ineficiência e do desalento.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Procuramos assentar até aqui o fato de que, sendo o taylorismo-fordismo uma reinvenção da manufatura, sua assimilação pela experiência de implantação do socialismo na União Soviética acabou por ilustrar concretamente os limites postos pela manufatura para a implantação de uma forma social progressiva em relação ao capitalismo. Ocorre que, no final do século 20, no capitalismo desenvolvido – e não no interior da experiência socialista7 -, pela via do revolucionamento tecnológico proveniente da automação de base microeletrônica, a planta taylorista-fordista foi “explodida”:
(…) a nova automação, de base microeletrônica, ‘explode’ a forma taylorista-fordista de produção, não genérica, mas localizada principalmente na grande indústria metal-mecânica (…). Essa nova automação significa uma abrupta, concentrada no tempo, recuperação do capital de seu brilhantismo quanto ao desenvolvimento das forças produtivas. (…) a ‘explosão’ da grande indústria taylor-fordista(…) significa o renascimento da análise marxista. Isto porque chegaremos, de forma genérica, homogênea a toda atividade industrial, a um elevadíssimo grau de cientificização dos processos produtivos. A produção será, então, em todas as esferas da indústria, uma ‘aplicação tecnológica da ciência’, exatamente como afirmara Marx. Isto implica na volta triunfal da questão crucial para Marx da contradição entre forças produtivas e relações de produção, posta pelo desenvolvimento do modo de produção capitalista. (MORAES NETO, 2000, p. 11)8
Este processo significa, de forma inequívoca, uma superação radical da “angústia smithiana”, permitindo que se instaure em definitivo aquilo que Marx coloca com clareza nos Grundrisse, quando afirma que
o trabalho da produção material só pode adquirir o caráter livre e emancipado se seu conteúdo se tornar diretamente social (obs: quando se superar a forma social fundada na produção mercantil) e se se revestir de um caráter científico (…), se deixar de ser o esforço do homem, simples força de trabalho natural no estado bruto tendo sofrido um determinado treinamento, para se tornar a atividade do sujeito que regula todas as forças da natureza no seio do processo de produção. (MARX, 1978, p. 119-120).
Chegamos, a partir do final do século 20, a um mundo inteiramente “grundrissizado”, ou seja, plenamente ajustado à natureza explicitada por Marx nos Grundrisse para o processo de trabalho capitalista (MORAES NETO, 2005), permitindo finalmente que se efetive aquilo que Simone Weill (1983) – também por culpa do taylorismo-fordismo – considerava uma impossibilidade material, qual seja, um processo produtivo altamente eficiente comandado por um pequeno contingente de trabalhadores altamente envolvidos com seu trabalho, envolvimento esse inteiramente determinado pelo conteúdo pleno de sentido das atividades de trabalho. São essas as forças produtivas que, desenvolvidas pelo capitalismo, permitem à sociedade a propositura e a eventual conquista histórica de uma superação efetiva desse regime. Fica claro, então, que a História pôs fim à impregnação do projeto socialista da mediocridade imanente ao taylorismo-fordismo, coisa que marcou de forma perversa a experiência socialista do século 20. De agora em diante, só tem sentido histórico dotar o projeto socialista de extrema ambição, posto que inteiramente impregnado da ideia fundamental da superação radical do trabalho alienado.
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(Recebido em novembro de 2007. Aceito para publicação em julho de 2008).
* Endereço para contato: Av. Caetano Mirabelli, 120 – São Carlos – SP. E-mail: brmneto@gmail.com.
1 A ligação estreita entre Taylor e a ciência, na forma de “ciência do trabalho”, e o papel da ciência em Marx são, para James Scoville, elemento fundamental da compreensão da aceitação do taylorismo por Lênin, a qual antecede, como já vimos, o momento pós-revolucionário e suas exigências de elevação da produtividade: “Nós precisamos focalizar nosso olhar na importância do conceito de ‘ciência’ na estrutura intelectual do marxismo. Marx realizou a análise científica do capitalismo; os marxistas desenvolveram as bases para o ‘socialismo científico’. Quando ‘a ciência do trabalho’ apareceu, ela foi adotada sem rodeios como uma parte natural do esquema geral. Para colocar de forma alternativa, a gerência não-científica do trabalho seria não-marxista. A gerência científica, tão repreensível sob o capitalismo, não é abrupta e inconsistentemente aceitável para o socialismo, mas de fato uma característica necessária desse tipo de Estado” (SCOVILLE, 2001, p. 625).
2 Esta é uma crítica à incorporação de Taylor por Lênin bastante diferente da formulada pelos “comunistas de esquerda” no período pós-revolucionário, que se reproduziu bem mais recentemente na chamada “crítica às forças produtivas capitalistas”, que ainda possui importante presença. (DEVINATZ, 2003) Para uma “crítica à crítica das forças produtivas capitalistas”, ver MORAES NETO (1989).
3 “Se Lênin apoiaria a implementação da gerência científica sob o socialismo é uma questão em aberto; é bastante possível que Lênin não teria advogado o uso do taylorismo sob o socialismo.” (DEVINATZ, 2003, p. 519).
4 Para Wren e Bedeian, o apoio de Lênin foi determinante para essa vitória: “Em virtude do fato de que Lênin, que presidiu a conferência, era pró-Taylor, o Instituto Central do Trabalho de Gastev recebeu a chancela da conferência.” (2004, p. 291).
5 Este ponto é realçado por Rainer Traub: “O taylorismo deveria ser sistematicamente testado e avaliado. Lênin ainda rejeitava fortemente o chamado lado negativo do taylorismo: a intensificação do processo de trabalho às custas da saúde e do bem-estar do trabalhador. Ele acreditava, todavia, que o seu lado ‘positivo’, a saber, crescente produtividade, acompanhada de uma organização do trabalho aperfeiçoada, poderia ser extraído do uso capitalista do taylorismo e empregado de uma forma socialista.” (TRAUB, 1978, p. 84).
6 Sobre essa visualização do ohnoísmo (ou toyotismo) como um sistema de produção que mantém no fundamental as características do trabalho sob o taylorismo-fordismo – um neofordismo – , ver Wood (1991; 1993) e Moraes Neto (1998).
7 É bastante provável que uma correta visualização da natureza imanentemente medíocre do taylorismo-fordismo pudesse ter atuado positivamente no sentido de que sua superação se tivesse efetivado no interior da experiência socialista. Sua aceitação como forma de produção avançada (um “fim da História”) pode ter contribuído para que o desenvolvimento científico-tecnológico tivesse ocorrido longe dos processos de trabalho.
8 Sobre os desdobramentos desse processo recente de desenvolvimento científico-tecnológico, especialmente da radicalização da automação dos processos produtivos pela microeletrônica (e a consequente superação do fordismo), ver Fausto (1989), Moraes Neto (2005; 2006) e Prado (2005).
Fonte: Revista Estudos Econômicos (São Paulo)

As invasões Bárbaras e Adeus, Lênin! A (des)construção do sonho no cinema atual

As invasões Bárbaras e Adeus, Lênin! A (des)construção do sonho no cinema atual
Gisela G. S. Castro
Doutora em Comunicação e Cultura (ECO/UFRJ), pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Comunicação e Práticas de Consumo ESPM-SP. Email: gcastro@espm.br

RESUMO
O artigo propõe uma reflexão sobre dois filmes recém-lançados em DVD, As Invasões Bárbaras, de Denys Arcand, e Adeus, Lênin!, de Wolfgang Becker, exibidos anteriormente nas salas brasileiras de cinema e que tematizam de maneiras distintas as transformações experimentadas com a queda do muro de Berlim, o desmantelamento da União Soviética e a ascensão hegemônica do capitalismo globalizado. Os filmes têm ainda em comum o fato de terem como protagonistas filhos lidando com seus respectivos pai e mãe gravemente enfermos. A presença das duas gerações marca metaforicamente a passagem de um estágio a outro da história recente. A autora observa a pertinência da temática na cultura contemporânea e a relativa escassez de obras cinematográficas a respeito. Por remeterem a questões fulcrais do momento em que vivemos, não obstante, o tempo da recepção é lento e requer a elaboração de complexos processos cognitivos que ocorrem em ritmo próprio, alheios à aceleração dos fluxos do capitalismo pós-industrial que parecem estar a reconfigurar os ritmos da existência nesta modernidade tardia. Para a autora, os filmes analisados afirmam o afeto e a cultura como antídotos contra o niilismo e a indiferença para com o que se passa à nossa volta.
Palavras-chave: hegemonia, modernidade, história, capitalismo pós-industrial, recepção.

ABSTRACT
This article proposes a reflection on two motion pictures recently launched in DVD, The Barbarian Invasions, by Denys Arcand, and Goodbye, Lenin!, by Wolfgang Becker, exhibited previously in Brazilian movie theaters and that, in different manners, have as subject the changes experimented with the fall of the Berlin Wall, the dismantling of the Soviet Union and the hegemonic raise of globalized capitalism. Both films still have in common protagonists dealing with seriously ill parents, and the passage from one stage to another in recent history marked metaphorically by the presence of two generations. The author observes the pertinence of this topic in contemporaneous culture and the relative lack of cinematographic works on this subject. Although they remind basic issues of the moment we live, the time of reception is slow and requires the elaboration of complex cognitive processes which happen in their own rhythm, that ignore fluxes acceleration in post-industrial capitalism which seem to reconfigure the rhythms of existence in this late modernity. For the author, the analyzed motion pictures confirm that affection and culture are antidotes to nihilism and apathy.
Keywords: hegemony, modernity, history, post-industrial capitalism, reception.         

Tendo chegado quase que simultaneamente às telas brasileiras e recém-lançados em DVD, As Invasões Bárbaras1 e Adeus, Lênin!2 tematizam de maneiras bastante distintas as transformações experimentadas com a queda do muro de Berlim, o desmantelamento da União Soviética e a ascensão hegemônica do capitalismo globalizado. Os filmes têm ainda em comum o fato de trazerem como protagonistas filhos lidando com seus respectivos pai e mãe gravemente enfermos. A presença das duas gerações marca metaforicamente a passagem de um estágio a outro da história recente.
A pertinência dessa temática na cultura contemporânea e a relativa escassez de obras cinematográficas a respeito me levam a tomar os dois filmes em conjunto. Ao tecer comparações entre uma e outra obra, pretendo analisar diferentes abordagens da experiência cultural em questão.
Sucesso de bilheteria, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro em 2004, além de premiado em Cannes (melhor atriz/2003, Marie-Josée Croze), o filme canadense retrata em tom niilista um mundo em que a cultura parece não fazer mais sentido.
Já o filme alemão, erroneamente rotulado como comédia ligeira, oferece um tocante relato sobre os acontecimentos que marcaram o fim da República Democrática Alemã, narrado com leveza através de uma fábula metafórica.
Os filmes divergem radicalmente quanto ao tratamento dado aos personagens e às referências históricas. Examinando com mais detalhe cada obra, espero poder justificar minha posição a respeito.
AS INVASÕES BÁRBARAS
Arcand reúne em As Invasões Bárbaras o elenco de seu filme anterior, O Declínio do Império Americano3, para retratar em tom híbrido, que mescla o ficcional e o documental, o percurso final de Rémy, agora como paciente terminal de câncer, e os diversos enfrentamentos com a morte que tal situação origina. O filme, bastante narrativo e linear, tem como drama central a problemática relação entre esse intelectual à beira da morte e seu jovem filho, um bem-sucedido operador do mercado financeiro internacional. No pano de fundo, o ocaso do sonho libertário de esquerda e a hegemonia neoliberal.
Ao longo da trama, vemos o filho, Sébastien, utilizar um aporte aparentemente inesgotável de recursos financeiros para sustentar o que seriam algumas das ilusões de seu pai, tais como o companheirismo, seu próprio valor acadêmico, a cultura como valor. São discutidos por Rémy e seus amigos os ideais, valores e crenças que balizaram suas vidas, revistos agora com explícito cinismo. Os personagens são tratados como uma caricatura bufa de uma geração, talvez para indicar que a discussão entre eles, narrada apenas através do viés pragmático, acrítico e apolítico do personagem Sébastien, reduz-se àquelas meras lembranças dos arroubos de uma juventude inconseqüente e leviana.
O filme questiona uma série de valores que foram bandeiras da geração de 1968: a amizade (não fica claro se os antigos amigos acabam sendo “comprados” para se reunirem com Rémy em seus derradeiros dias), a liberação sexual (aqui sinônimo de promiscuidade e vulgaridade), o movimento sindical e a socialização das instituições, em particular a medicina socializada (retratados como inerentemente corruptos ou ao menos corruptíveis; máfias que só funcionam mediante fartas doses de propinas), o propósito da religião (como, por exemplo, no jogo de cenas em que a Igreja Católica é retratada decadente por meio da figura de um sacerdote que tenta vender no mercado internacional objetos sacros – imagens, ornamentos – e, não conseguindo, fica decepcionado, impotente e amargurado por não poder converter a sacralidade dos objetos em dinheiro), o papel do intelectual e do conhecimento acadêmico (reduzidos a nada) e ainda o próprio sentido das relações de afeto.
Sébastien e Graëlle, sua mulher, os quais se mostram ressentidos com a criação que tiveram e que, segundo eles, destruiu-os, voltam-se contra o afeto. Em certo momento do filme, Graëlle expõe sua decisão racional de esconjurar o amor de sua vida para não repetir com os filhos os mesmos erros de seus pais.
Por outro lado, instado por sua mãe, que lhe relembra o grande afeto e desprendimento de Rémy ao criar seus filhos, Sébastien concede estar ao lado do pai e tornar mais amena e confortável sua agonia final. Como o produtor de um ritual de morte anunciada, em seu onipotente pragmatismo, ele toma todas as providências, sempre distribuindo dinheiro “a rodo”, literalmente realizando a morte conforme o desejo do pai. Simultaneamente, continua a operar no mercado, mantendo-se frio diante dos acontecimentos, o que o diretor tenta sublinhar pelo uso constante do celular e de um inglês impecável nas transações. Um autêntico modelo atual de perfeição; o afeto fica de fora, sendo demonstrado pelo exercício do poder aquisitivo.
Como contraste, temos a personagem Nathalie, a junkie interpretada por Marie-Josée Croze. Essa personagem, que não é suficientemente aprofundada, encontra sua redenção no final do filme, sem que fiquem claras suas motivações, propósitos e inquietações. De um modo geral, as caracterizações deste filme parecem ter sido inspiradas em tipificações rasas, sem consistência. Assim, temos Claude, homossexual de meia-idade, corrupto e cínico, adepto dos prazeres da boa mesa; Diane, ninfomaníaca que despreza os homens, transformando-os em meros objetos de prazer; Dominique, a intelectual, mulher liberada transformada em solteirona solitária e amargurada; Pierre, especialista em História e solteirão convicto, agora pai de meia-idade, às voltas com crianças pequenas e uma esposa inconseqüente e burra, que cumpre o papel de proporcionar-lhe a ilusão de continuidade de uma vida sexual ativa. Como se todo o sonho de uma geração estivesse inexoravelmente fadado a tornar-se medíocre caricatura, mentira sem conseqüências, amargura, cinismo e frustração.
Rémy, desesperado com a morte iminente, sente-se fracassado por não ter conseguido apreender o sentido da vida.
Há alguns personagens que fogem ao tom niilista que tinge a tipificação proposta no filme, como ocorre com a jovem universitária que, constrangida, não aceita o dinheiro oferecido por Sébastien para que, com outros ex-alunos de Rémy, visitem o hospital, simulando admiração e apreço pelo professor. Em contraste com os colegas, todos indiferentes ao que passa e dispostos a cumprir o acordo apenas por motivos pecuniários, a presença dessa personagem parece de certa maneira querer demonstrar que pode haver diversidade em nível individual, mas quando tomados em grupo, essa geração de estudantes revela-se apática, medíocre e desprovida de valores éticos.
A angelical freira missionária que atende os pacientes terminais no hospital onde Rémy se encontra internado também parece ser uma dessas personagens através das quais o diretor e roteirista expõe sua crença de que indivíduos podem fazer diferença, mesmo nos sistemas em que o coletivo se sobrepõe ao individual, tornando as relações assépticas e meramente funcionais. Se, de um lado, a Igreja é retratada no filme como sendo uma instituição esvaziada, falida e destituída de sentido, por outro lado a personagem da freira parece redimir a religiosidade, a bondade e, de certa maneira, a fé.
Cabe a ela, ao despedir-se de Rémy, denunciar ao filho sua frieza com o pai, conclamando-o quase didaticamente a tocá-lo com carinho e a dizer-lhe de modo explícito que o ama. Cumpre a ela ainda convencer Rémy que todas as providências tomadas por seu filho, além de sua própria presença ali a seu lado, deveriam ser entendidas como demonstrações de afeto. Incapaz de convertê-lo, a freira não obstante oferece-lhe o conforto de atenuar as arestas da conturbada relação entre pai e filho.
Há ainda a personagem da enfermeira que, mesmo sobrecarregada e correndo risco de ser punida, concede em aplicar em Rémy uma injeção de heroína, concordando ainda em trazer-lhe equipamento de soro em seus momentos finais. Destoando do modo indiscriminadamente frio, negligente e indiferente com o qual são tratados os pacientes por médicos e enfermeiros daquele hospital, e mesmo considerando a hipótese bastante plausível de ter sido ela devidamente subornada por Sébastien para fazer o “serviço extra”, sua postura parece reforçar o também caricatural, didático contraponto entre indivíduo e instituição.
Importa ainda examinar a amoral referência à eutanásia e às drogas, questões delicadíssimas enfocadas nesta trama apenas sob o matiz pragmático-funcional que dá o tom do filme. Um médico amigo informa a Sébastien sobre a existência de um antigo programa experimental em que eram ministradas doses de heroína como sedativo a doentes terminais. Não se discute se o programa foi ou não descontinuado e por quê, nem muito menos quais os resultados obtidos. Passando ao largo dessas questões, Sébastien parte em busca da droga, tendo como primeiro contato a própria polícia.
Essa jogada aparentemente ingênua de um negociador profissional, esperto e experiente, parece ter como objetivo explicitar de antemão suas motivações, enfatizando a inoperância da polícia e a pressuposta falência da lei. Importa ainda nessa negociação enfatizar o decisivo papel desempenhado por Nathalie, a qual não é apenas paga para comprar a droga para si própria e para Rémy, como também para administrá-la ao paciente, livrando Sébastien de qualquer envolvimento mais direto com o tráfico e com a droga propriamente dita.
Mesmo na cena em que a overdose é aplicada através do soro por uma Nathalie visivelmente perturbada com sua atuação como anjo da morte, não parece haver qualquer indício de compaixão por parte de Sébastien ou dos demais personagens. Nathalie cumpre seu papel e é premiada com o empréstimo da casa de Rémy, povoada de muitos livros. Revisora, portanto de certa forma envolvida com a cultura, em nível pragmático, Nathalie, agora em tratamento para livrar-se da dependência química, parece ser agraciada com a oportunidade de um promissor recomeço de vida e até um improvável e, portanto, mais que artificial flerte com Sébastien. Como dito antes, este complexo personagem fica a dever por conta de sua construção estereotipada e superficial.
Arcand acredita que convivemos com um longo ocaso da inteligência humana, daí o caráter ressentido e niilista de seu filme. Ao longo da narrativa, são enaltecidos grandes nomes do passado distante, quase remoto, como Sócrates, Platão, Michelangelo, Da Vinci, Jefferson e Lincoln, sendo mencionados como “invasões bárbaras” – sinais do declínio da civilização, este já prenunciado em seu filme anterior – o ataque terrorista às torres gêmeas, a proliferação dos cartéis internacionais do tráfico e o pragmatismo neoliberal globalizante que triunfa em nossos dias, em que a cultura nada significa diante do poder do capital. Dentre os novos bárbaros, Sébastien, segundo Rémy, personifica o príncipe. Talvez por tal razão, a aparente humanização deste personagem-chavão ao longo do filme, culminando nos momentos finais, não convença.
Mais uma vez, ao fazer o contraponto maniqueísta entre a posição individual como única resposta à mediocridade e corrupção do grupo, o autor artificializa sua argumentação, conseqüentemente artificializando seus personagens, tornando-os porta-vozes esvaziados de existência, manipulados canhestramente de modo a expressarem os preconceitos do diretor/roteirista.
É verdade que não há como não amar o personagem moribundo, interpretado por excelente ator, mas por meio de um amor piegas, quase caridoso, o que me parece mal colocado e mesmo um tanto perverso ao ser atribuído metaforicamente ao legado de toda uma festejada e também sofrida geração, marco na cultura ocidental contemporânea. Dignidade parece ser algo desconhecido nessa óptica pós-queda do muro com a qual o filme parece se identificar. É lamentável constatar que é esse o viés que ganha a chancela dos maiores prêmios do cinema atual.
ADEUS, LÊNIN!
Em que pese a dignidade4, Adeus, Lênin!, acusado de ingênuo e erroneamente apresentado como uma comédia ligeira, mostra um tratamento dignificante e profundo ao difícil tema da reunificação alemã. Delicado, sem abrir concessões à banalização do riso fácil (como no caso de outro premiado com o Oscar de filme estrangeiro, o pastelão A Vida é Bela5, de Roberto Benigni), o filme de Wolfgang Becker utiliza uma trama aparentemente simples para tratar das complexas passagens da história alemã recente, com a vitória do modelo capitalista sobre o socialismo soviético.
Christiane tem um enfarte ao ver seu filho ser levado preso e presenciar cenas de brutalidade policial em repressão a uma passeata popular, enquanto estava a caminho de receber uma comenda nos 40 anos da República Democrática Alemã. Em coma, a personagem-mãe não se apercebe da queda do muro e suas conseqüências mais imediatas6. Ao despertar, oito meses depois, uma outra realidade já se impõe. Para poupá-la do choque que poderia levá-la à morte, seu filho Alex procura de todas as maneiras fabricar um congelamento de tempo, reconstruir agora o que há pouco tempo atrás era sua realidade segura e familiar. Em meio a tudo isso, ele se apaixona pela enfermeira soviética que cuidou de sua mãe no hospital, e o jovem casal participa dos muitos acontecimentos reais que tornaram lendário aquele verão em Berlim.
Vemos então uma crítica sutil aos processos que balizavam o regime da República Democrática Alemã, bem como ao atropelamento que marcou as primeiras horas da alardeada reunificação. A invasão do estilo de vida capitalista é retratada, por exemplo, através da súbita proliferação de artefatos que explicitam e atestam o consumismo: antenas parabólicas de TV, a implantação de marcas como Coca-cola, Ikea e Burger King, com o concomitante desaparecimento das habituais referências socialistas. Retrata-se ainda o papel do futebol como elemento de união nacional, o esvaziamento existencial e demográfico com a debandada de muitos dos antigos moradores da cidade e o estranhamento causado pela chegada de novos vizinhos, tão esdrúxulos aos olhos dos ossies7, desacostumados do contato com punksravers e outros “alternativos” vindos do lado ocidental.
Mais do que qualquer outra cidade, Berlim funcionou durante décadas como ícone da tensão leste/oeste. Enclave ocidental em pleno coração da Alemanha Oriental, o estrepitante modernismo da parte ocidental da cidade oferecia forte contraste com a antiga Berlim oriental, que parecia parada no tempo imediatamente pós-guerra.
Neste filme, mostrando-se ao mesmo tempo atônitos e deslumbrados, os alemães orientais participam da desconstrução de seu antigo estilo de vida e do desaparecimento dos sistemas públicos de emprego, assistência e proteção ao cidadão, enquanto, despreparados, tentam se integrar ao regime da livre iniciativa, sob a égide da nova moeda, o marco ocidental.
Em uma das cenas mais candentes, vemos Alex, o protagonista, espalhar ao vento as economias amealhadas pela mãe durante os últimos quarenta anos. O dinheiro que subitamente perdeu o valor devido à implacável implementação de um sistema monetário unificado no país, funciona agora apenas como mero confete em meio às muitas comemorações que pontuam a vitória da Alemanha na Copa do Mundo de 1990.
Marcante, tal cena admite múltiplas interpretações, sendo uma delas aquela na qual, juntamente com o valor de troca do marco oriental, todo um sistema de valores deixa de ter sentido na nova Alemanha unificada. Convencidos da superioridade de seu sistema, os alemães ocidentais retratados no filme parecem não se dar conta da trágica vivência de esvaziamento subjetivo experimentada pelos orientais. Como flagrante dessa desatenção ao lado trágico da vivência da reunificação, Rainer, natural de Berlim ocidental e novo namorado de Arianne, irmã de Alex, comenta em relação ao irmão dela e aos demais ossies: “Vocês nunca estão satisfeitos. Vivem reclamando de tudo”.
Certamente, cada personagem retratado no filme vive a experiência de forma distinta. No que tange à família de Christiane, sua filha Arianne parece mais disposta a aderir abertamente ao novo sistema, enquanto Alex, em sua tenaz luta para recuperar vestígios do antigo regime de modo a mantê-lo vivo para sua mãe, dá a impressão de estar fazendo um bem também a si próprio. Perplexo diante das transformações que vivencia, ao carinhosamente proteger a mãe do choque fatal com a nova realidade, cria também para si o conforto efêmero e ilusório de que uma reconstrução ainda é possível.
Percebendo que outros personagens aceitam voluntariamente tomar parte em seu estratagema, e não à custa de suborno ou propina, ele se dá conta de que também eles provavelmente sentem uma perda de significado nessa abrupta reconfiguração social a que todos estão submetidos.
Com o desenrolar da trama, as artimanhas de Alex para manter a mãe na ilusão de que nada havia mudado vão se tornando cada vez mais mirabolantes e ironicamente similares à propaganda política. Em uma cena do noticiário fictício criado especialmente pelo amigo Dennis, cineasta amador, anuncia-se que a multinacional Coca-Cola havia sido finalmente convencida a admitir que sua fórmula fora originalmente desenvolvida por cientistas socialistas nos anos de 1950, e contrabandeada para o Ocidente. Um novo acordo comercial entre a empresa e a RDA explicaria a presença da gigantesca imagem do produto estampada na fachada do prédio vizinho, que havia causado espanto a Christiane.
Mais adiante no filme, ao ver a neta dando seus primeiros passos, Christiane sai da cama pela primeira vez, enquanto Alex, exausto, dorme na cadeira ao lado. Animada, Christiane decide sair de casa e caminhar. Na rua, sentindo-se ainda frágil e desorientada, observa, aturdida, a presença de cartazes publicitários de marcas desconhecidas, carros ocidentais estacionados, pilhas de móveis antigos como sucata e, de repente, numa cena épica que estabelece paralelos com cena similar em A Doce Vida8, de Fellini, um helicóptero cruza a cidade levando embora a miticamente gigantesca imagem de Lênin. Mesmerizada, ela segue a imagem com o olhar, sem perceber que caminha a esmo, quase sendo atropelada. Os filhos acorrem e a levam de volta para o quarto, oásis onde tudo parece ser como antes. Esta seqüência memorável, ponto alto da interpretação da premiada Katrin Sass neste filme, está literalmente carregada de simbologia.
À noite, o noticiário particular torna-se ainda mais estapafúrdio. São mostradas cenas de multidões pulando o Muro, enquanto o locutor anuncia a criação de um Fundo de Solidariedade após a fuga em massa de cidadãos da República Federativa Alemã que, descontentes com seu regime, buscam asilo na pacata e próspera RDA. Nessa empreitada, invertendo o fluxo dos acontecimentos, Alex admite para si mesmo estar construindo para a mãe a pátria de seus sonhos em meio à desconstrução capitalista. Sua irmã Arianne, farta de tomar parte naquela farsa, anuncia estar grávida e por isso decidida a mudar-se com a nova família para um apartamento mais confortável.
Comovida pelo desejo de contribuir com o Fundo Nacional de Solidariedade, Christiane decide visitar a dacha9da família, onde alega que poderiam abrigar cidadãos ocidentais necessitados. Lá chegando, Alex e sua irmã estão a ponto de revelar-lhe toda a verdade quando descobrem também ter sido vítimas de algumas mentiras. Criados pela mãe após a fuga do pai para o Ocidente, convencidos de que este os teria abandonado por causa da paixão por uma mulher ocidental e que jamais os teria tentado procurar, os dois irmãos, ainda crianças, acompanharam o longo e terrível sofrimento de sua mãe, deprimida com a ausência do marido.
Após sua recuperação, Christiane, nas palavras de seu filho que também é o narrador da história, “casa-se com a pátria”, tornando-se um modelo de cidadã socialista. Não obstante, em conversa com o antigo diretor da escola onde sua mãe trabalhou durante muitos anos, este revela que Christiane havia sido rebaixada de suas funções por ter recebido uma avaliação dos colegas como alguém que padecia de um constrangedor excesso de idealismo, o que deixa Alex revoltado e confuso.
Somente na dacha, depois que sua mãe conta a verdade sobre a fuga do pai, é que se torna claro o sentido desse seu orgulho socialista. O plano da fuga teria sido arquitetado por ambos, já que o marido, médico, vinha sofrendo ameaças veladas por jamais ter-se filiado ao Partido. Aproveitando a oportunidade de um Congresso em Berlim ocidental, ele escapa e aguarda a vinda de sua mulher e filhos, como combinado.
Procurada pelas autoridades para dar explicações sobre o desaparecimento do marido, sem coragem de seguir-lhe os passos, receosa de perder a guarda dos filhos pequenos, Christiane é vencida pela depressão e, como forma de reação, decide tornar-se uma cidadã socialista exemplar, de modo a evitar quaisquer suspeitas.
Arrependida, diz que para proteger os filhos ela havia decidido ocultar-lhes a verdade sobre seu pai. As cartas que o marido enviava com regularidade estavam escondidas. Finalmente encontradas, são lidas por Arianne, com lágrimas nos olhos, numa das poucas concessões ao sentimentalismo explícito presente no filme.
Em cena anterior, Arianne havia narrado ao irmão episódio em que acreditava ter visto o pai na lanchonete onde trabalha. Perturbada, não teria conseguido identificar-se, e o encontro casual terminou sem ser consumado. Como Christine tem uma recaída na dacha e volta para o hospital em estado grave, Arianne convence seu irmão a atender ao último desejo da mãe, indo buscar o pai para revê-la. Pelas cartas, eles agora sabem onde encontrá-lo.
Comovente, a cena da chegada de Alex na casa do pai, em meio a uma festa, pode ser interpretada como um momento decisivo em toda a trama do filme. Para além da relação pai-filho, estão em jogo múltiplos níveis afetivos, uma miríade de estranhamentos e identificações, como metáforas da própria (im)possibilidade de uma apaziguadora reunificação do país.
Nesse sentido, este filme me parece extremamente bem-sucedido em sua relação com o espectador e com o próprio enredo da história. Sempre comedido e extremamente respeitoso com seus personagens, Becker nos mostra seus dramas, desejos, angústias e afetos, sem carregar nas tintas que pudessem comover o público despertando sua piedade. São evitados ainda maniqueísmos ou explicações que, de maneira inevitável, pareceriam excessivamente simplórias diante da magnitude dos acontecimentos narrados.
Mostrando as transformações vividas, o filme enfatiza a esperança, metaforicamente marcada pela presença do novo bebê de Arianne, metade alemão oriental e metade ocidental, e que irá nascer já na Alemanha unificada. Convincente, o personagem de Alex, muito bem interpretado por Daniel Bhühl, acredita que sua amada mãe-pátria teve o final digno que merecia, enquanto ele próprio, visivelmente mais amadurecido e sereno, parece enfim poder olhar o presente com alegria.
O CINEMA COMO JANELA PARA O MUNDO
O cinema tem o poder de oferecer uma janela através da qual podemos travar contato com outras realidades, estilos, existências. Ele também pode servir para enquadrar contextos e pontos de vista que, embora familiares, oferecem-se ao espectador de forma por vezes surpreendentemente renovada. A responsabilidade do artista-criador é grande. Sua visão de mundo está sendo desnudada a cada obra.
Sabendo que a recepção de qualquer produto midiático está longe de ser passiva, percebe-se que também é grande a responsabilidade do espectador, leitor último ao qual cabe compor com o (con)texto sua sensibilidade, doando-lhe sentido. Arrisco dizer que a pior coisa que pode acontecer nesse jogo semiótico entre obra e fruidor é a indiferença. Não obstante, em razão do verdadeiro bombardeamento midiático ao qual somos submetidos cotidianamente, fica difícil viabilizar o recolhimento necessário para metabolizar a plêiade de imagens às quais somos expostos. Estou convencida de que filmes como estes merecem atenção, por remeterem a questões fulcrais do momento em que vivemos. Apesar de o tempo da recepção ser lento, requer a elaboração de complexos processos cognitivos que se processam em ritmo próprio, alheios à aceleração dos fluxos do capitalismo pós-industrial que parecem estar a reconfigurar os ritmos da existência nesta modernidade tardia. Em meio à cacofonia urbana contemporânea, mais vale emitir do que decodificar mensagens, o que desloca o papel do interlocutor ao de reles consumidor de informações. Não é à toa que, como já foi dito, vivemos em uma época pouco afeita à comunicação. Acreditando na potencialidade desta, trata-se de afirmar o afeto e a cultura como antídotos contra o niilismo e a indiferença para com o que se passa à nossa volta.
 Bibliografia
1 AS INVASÕES bárbaras (Les Invasions Barbares). Direção: Denys Arcand. Canadá, 2003. 1 DVD (99 min.).         [ Links ]
2 ADEUS, Lênin! (Good-bye, Lenin!). Direção: Wolfgang Becker. Alemanha, 2003. 1 DVD (118 min).         [ Links ]
3 O DECLÍNIO do império americano (Le Déclin de l’Empire Américain). Direção: Denys Arcand. Canadá, 1986. 1 DVD (101 min).         [ Links ]
4 Em uma conexão irônica, veja tomada do helicóptero abordada mais adiante.
5 A VIDA é bela (La Vita è Bella). Direção: Roberto Benigni. Itália, 1997. 1 DVD (116 min.).         [ Links ]
6 Não posso deixar de fazer um paralelo aqui com a letra de uma antiga canção de Chico Buarque: “Dormia, a nossa pátria-mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída em nebulosas transações…” (“Vai passar”, 1979).
7 Cidadãos que vieram do Leste (chamados de ossies) e do Oeste (os wessies).
8. A DOCE vida. (La Dolce Vita). Direção: Federico Fellini. Itália, 1960. 1 videocassete (167 min.), P&B.         [ Links ]
9 Casa de campo.
Fonte: Cadernos de Educação USP

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