Para o jurista Fábio Konder Comparato,
“a nossa democracia é uma farsa” (Foto: FelipeRousselet/Revista Fórum)
Por Glauco Faria e Renato Rovai
O jurista Fábio Konder Comparato fala à Fórum sobre a necessidade de efetivação dos mecanismos de participação direta, os entraves para a democratização da comunicação no Brasil e o poder das oligarquias na sociedade brasileira. A entrevista foi publicada na edição 88 da revista, de julho de 2010. Releia a íntegra abaixo:
Fábio Konder Comparato – Porque a sociedade nunca se mobiliza para nada. Porque, na verdade, a tradição brasileira, no campo político e social, é a da passividade do povo. A única constante inabalável até agora, na política brasileira, é a oligarquia. Ou seja, um pequeno grupo de poderosos ricos que comanda, que manda, e “quem tem juízo tem que obedecer”. Como diz o ditado. De modo que a própria Constituição do Brasil é, em si, de mera aparência democrática. Na verdade, ela consolida a burocracia, a oligarquia que sempre existiu. Nós precisamos vencer esse obstáculo, e a vitória seria em consequência de duas coisas. Em primeiro lugar, uma mudança institucional, e em segundo, uma mudança de mentalidade social, porque o povo está habituado a isso. O povo, no seu conjunto, respeita o poder, e teme qualquer manifestação de rebeldia considerada desordem. Isto é, em grande, parte fruto de quatro séculos de escravidão. Agora, a mudança de mentalidade de um povo não ocorre em pouco tempo. É preciso um grande trabalho de educação cívica e de educação ética.Fórum – O senhor defendeu, em 2008, no aniversário de 20 anos da Constituição, uma revisão constitucional, que não fosse feita pelo próprio Congresso Nacional, mas por uma assembleia exclusiva. O senhor ainda acha que isso é possível? Por que não existe ainda uma mobilização da sociedade em torno dessa linha?
A minha proposta visava tentar romper o bloqueio oligárquico, mas não tive nenhuma ilusão quanto à possibilidade de ela ser aceita – aliás, até hoje não foi acolhida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), onde apresentei a proposta [hiperlink]. Mas o fundamental não é que uma proposta desse tipo seja imediatamente aceita e sim que ela comece a ser discutida. E aí é que vai um pouco esse trabalho de educação cívica de mudança de mentalidade.
Qual é o maior poder numa sociedade política? Sem dúvida o de ditar a lei maior, a Constituição e de modificá-la. Quem tem esse poder? É o povo. Nenhuma constituição brasileira até hoje foi aprovada pelo povo. Até hoje, todas as constituições republicanas preveem como único órgão legitimado a emendar a constituição o Congresso Nacional, que é um poder exclusivo. Então, obviamente, não é o povo soberano, mas a nossa Constituição tem uma aparência democrática. Por exemplo, ela começa, logo no artigo I, no I parágrafo, que todo o poder emana do povo, que o exerce diretamente, ou por meio de representantes eleitos. Ora, democracia representativa em primeiro lugar sempre foi uma farsa no Brasil, porque o sistema eleitoral não dá uma representação do povo, dá uma representação parcelada, e muito desigual do eleitorado – eleitorado esse que é, como eu disse, fracionado em estados. O povo não pode ser fracionado em estados. O estado em si, a organização estatal, que pode ser dividida em estados. O povo não, o povo é uno e soberano. E além disso, pelo próprio mecanismo do sistema eleitoral, dá-se muito mais força, de um lado, a potentados locais, e de outro lado há figuras de expressão popular, muitas que não têm nenhum compromisso político maior, apenas tomar o poder e gozar dele.
Em segundo lugar, a democracia direta é uma farsa no Brasil. O artigo 14 da Constituição diz que o plebiscito e o referendo são manifestações da soberania popular, mas o povo só tem direito de se manifestar em plebiscitos e referendos mediante autorização e convocação do Congresso Nacional. É o que está no artigo 49, inciso 15 da Constituição. Então veja, nossa inventividade jurídica é extraordinária. Nós criamos uma figura de mandato única no mundo, em que o mandante só pode se manifestar se o mandatário lhe der autorização.
Fórum – Esse sistema com referendos e plebiscitos de certa maneira vem sendo utilizado na América Latina em países como Bolívia, Venezuela e Equador. O senhor acha que onde esses sistemas foram utilizados os avanços foram muito maiores, do ponto de vista institucional, do que no Brasil? Ou que esses mecanismos sozinhos acabam também sendo utilizados, às vezes, para outros fins que não empoderar a população?
Comparato – Bom, é preciso que esses instrumentos sejam modestamente utilizados. Em primeiro lugar, há uma tradição europeia no sentido de que o governante autoritário e ditatorial se legitime mediante plebiscitos. Então o povo aprova não uma medida política, um programa, aprova a pessoa do dirigente. É por isso que na proposta, ou melhor, no anteprojeto de lei que apresentei ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, e que foi transformado em projeto de lei tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado Federal, [hiperlink: na Câmara dos Deputados é o projeto 4718 de 2004, no Senado Federal é o projeto número 1 de 2006] o chefe de Estado não tem o poder de convocar plebiscitos e referendos. A iniciativa não pode ser dele, mas do próprio povo ou então de uma minoria qualificada do Congresso Nacional, 1/3 de deputados, ou 1/3 de senadores.
Fórum – Isso não levaria ao risco de a gente ter uma quantidade enorme de plebiscitos, professor? 1/3 no Congresso simplificaria demais…
Comparato – Em primeiro lugar, a iniciativa popular é um processo demorado, necessariamente. Em segundo lugar, instituído isso no Congresso Nacional, mas com a exigência de que o Congresso apenas decida sob o aspecto formal, ou seja, a regularidade do procedimento não o mérito, isso vai fortalecer enormemente a oposição. E a oposição não percebeu isso, ou melhor, percebeu mas não quis aceitar, porque no Brasil situação e oposição fazem parte do mesmo conjunto oligárquico. O que se quer é que tudo se decida entre eles, políticos lá em cima, perante o povo que assiste a esse debate como se fora um mero espectador do teatro político.
Por que eu digo isso? Porque se a oposição tivesse o poder de iniciativa em matéria de referendos e plebiscitos, haveria muito poucos referendos e plebiscitos assim iniciados. O debate se instalaria no Congresso, e se não houvesse acordo, a oposição ameaçaria recorrer ao soberano, que é o povo. Evidentemente, a maioria recuaria. Só em caso extremo é que ela deixaria que o povo decidisse. E o fato de o povo decidir sobre medidas, sobre programas, é muito mais educativo do que decidir sobre a figura de um candidato, inteiramente fabricada pelos marqueteiros.
O que significa decidir por um candidato? Uma mera simpatia, não mais do que isso. O candidato tem compromisso? Nenhum. Os poucos candidatos que hoje apresentam programas de desempenho político nunca os cumprem. Agora, quando o povo passa a discutir e decidir medidas concretas, ele acaba se autoeducando.
O que significa decidir por um candidato? Uma mera simpatia, não mais do que isso. O candidato tem compromisso? Nenhum. Os poucos candidatos que hoje apresentam programas de desempenho político nunca os cumprem. Agora, quando o povo passa a discutir e decidir medidas concretas, ele acaba se autoeducando.
Fórum – No último referendo que tivemos, sobre a questão do armamento, a decisão teve influência muito direta também do poder econômico. O lado que poderia perder algo do ponto de vista financeiro se organizou muito melhor, contratou os melhores marqueteiros, fez a melhor campanha e impôs uma derrota aos movimentos sociais, principalmente os relacionados aos direitos humanos. Esse risco não é igual? O marqueteiro está aí para tudo, não só para uma eleição entre personagens…
Comparato – Meu caro, a oligarquia é muito mais inteligente do que nós outros, pobres mortais. Por que eles fizeram esse referendo? Tinham certeza absoluta de que iam dominar todo o processo de propaganda. Algum partido político se manifestou contra a venda de armamentos? Nenhum. Como foi feita a propaganda? Quem influenciou a propaganda? A Justiça Eleitoral interveio para manter o mínimo de equilíbrio? Não.
Fórum – Nesse caso, o plebiscito também pode ser instrumentalizado pelo poder econômico.
Comparato – Mas é claro. Aí foi como os tais plebiscitos da era napoleônica. É uma maneira distorcida de se fazer com que o povo aceite uma proposta que vem de cima. Se nós fizéssemos uma campanha eleitoral, com todos os seus defeitos, da mesma maneira que foi feita a campanha do referendo, teríamos resultados infinitamente piores do que os atuais. E por que tudo isso, na verdade? Aí é o ponto fundamental: um elemento central da oligarquia são os meios de comunicação de massa, cuja história ilustra de maneira muito clara a passagem de um contra-poder a um membro da oligarquia, a um poder efetivo no campo político.
Queria, rapidamente, mostrar a vocês como evoluiu isso. Na época da independência do Brasil, havia tantos periódicos – jornais e revistas – que se falou numa “praga periodiqueira”. Só no Rio de Janeiro, em 1821/22, havia 20 periódicos. No período de reação autoritária, com a dissolução da Constituinte em 1823, houve uma drástica redução nesse número. Ou seja, nós começamos com a imprensa sendo um contra-poder, uma espécie de controle daqueles que exerciam o poder. Na primeira metade do 2° Reinado, houve uma multiplicação de periódicos em todo o país. Como o poder, ou seja, os diferentes governos – era um regime parlamentar – tinham medo da imprensa, estabeleceu-se a prática de se subsidiarem, por baixo dos panos, determinados jornalistas. No seu livro famoso, que é a autobiografia do pai, um estadista do Império, Joaquim Nabuco comenta o caso paradigmático de um grande jornalista do 2° Reinado, Justiniano José da Rocha. Ele reconheceu, em um debate na Câmara dos Deputados, que havia recebido, regularmente, subsídios, propina, por parte dos governantes. Então o poder público temia a imprensa livre.
Quando começou a campanha abolicionista, ela foi feita, sobretudo, nos periódicos. Luís Gama, José do Patrocínio, o jornal O Abolicionista, da Sociedade Brasileira contra a Escravidão. A mesma coisa quando se começou a discutir a República. Ou seja, a imprensa era, no Brasil, um fórum de debate sobre a vida política, e o jornal A República, do Rio de Janeiro, chegou a uma tiragem inédita para a época. Em 1870, ele tinha 10 mil exemplares. Na primeira República continua essa agitação política do final do Império, até o Estado Novo getulista. Aí estabeleceu-se a censura oficial e severa, não só de jornais, mas também de telefones. Filinto Müller foi encarregado de fazer essa censura.
Quando chegamos ao período intermediário entre dois autoritarismos, ou seja, a Constituição de 1946, que vigorou até 64, teve início, começou a ser formado o oligopólio empresarial dos meios de comunicação de massa. Oligopólio privado, portanto, e que acabou se consolidando no regime militar. Então, todos os jornais foram enquadrados, o único que se revoltou claramente foi o Correio da Manhã, no Rio de Janeiro. O Estado de São Paulo pregou o golpe, mas no fim a família Mesquita acabou se indispondo com os militares e tentou resistir à censura, como todos sabem.
A televisão passou a ser o grande veículo de propaganda do regime. Qual era essa propaganda? Era a democracia – no Brasil as palavras têm sempre um sentido oposto àquele que consta no dicionário –, democracia contra o terror comunista. Mas, um outro elemento fundamental desse oligopólio empresarial dos meios de comunicação de massa, é um instrumento de apoio ao capitalismo pela propaganda consumista. Nós temos hoje, seguramente, o exemplo mais aberrante de abuso na propaganda consumista em todo o mundo. Não existe nenhum programa, fora alguns de televisões públicas ou educativas, e hoje cada vez menos, que não seja interrompido pela propaganda.
Ora, esses grandes veículos só diferem entre si sob o aspecto da concorrência empresarial, porque eles querem ganhar dinheiro. Eles têm exatamente a mesma orientação, rígida quanto à manutenção da oligarquia. Quando era jovem, e lá se vão várias décadas, se dizia: “para ser bem informado é preciso ler todos os jornais”, ou pelo menos vários jornais. Hoje, quanto ao conteúdo, eles são idênticos, só mudam no estilo e, ainda assim, essas mudanças vão se tornando cada vez mais reduzidas.
Fórum – Sobre os grandes meios de comunicação e educação, pode-se dizer hoje que a televisão é o grande educador do país?
Comparato – Embora o público tenha uma percepção pouco crítica dessa propaganda oligárquica e capitalista, existe de certa forma uma mudança. Por exemplo, 80% da nossa população ouve rádio pelo menos 15 minutos por dia. O consumo médio diário de televisão aberta entre nós é de 4 horas e 42 minutos por pessoa, de acordo com levantamento feito em 2008. Pois bem, 83% dos entrevistados em uma pesquisa de opinião pública realizada em 2009, 83% declaram confiar nos jornais, na televisão e no rádio, contra apenas 17% que reconheceram não ter neles confiança alguma, ou quase nenhuma.
Mas, ainda aí, nota-se uma evolução, ou seja, essa maioria extraordinária, que confia globalmente no rádio e na televisão, e não tem a mesma confiança no que diz respeito à parte política dos jornais, da televisão e do rádio. Estou aqui com uma pesquisa de opinião pública feita em 2009 pelo Instituto de Pesquisas Sociais Políticas e Econômicas, o IPESP. Qual é o resultado dessa pesquisa? A pergunta é “Confia no noticiário político dos jornais?”, 46% disseram não, e 44% disseram sim. “Confia no noticiário político da televisão?”, 60% disseram não, e 30% sim. “Confia no noticiário político do rádio?”, 61% disseram não, e 25% disseram sim. Isso já está começando a mudar. Eis por que é preciso continuar a difundir, talvez pela internet, ou pelos jornais e revistas do tipo Fórum, essas ideias, para formar, organizar o povo, e mudar essa mentalidade.
Fórum – Falando em veículos de comunicação, o senhor viveu uma experiência desagradável no episódio da “ditabranda”, da Folha de São Paulo. Como o senhor, hoje, analisa o que aconteceu? Até porque o senhor era um colaborador eventual do jornal…
Comparato – Era.
Fórum – Como foi essa mudança, essa guinada que os veículos de comunicação, principalmente impressos, deram para a direita nos últimos anos? E qual sua opinião quanto à questão do direito de resposta e à falta de segurança jurídica para que esse direito seja exercido?
Comparato – Os jornais hoje se queixam, cada vez mais, de uma propalada censura que é feita contra eles, mas o público leitor não tem ideia da censura efetiva que todos os jornais fazem em relação a certas ideias, a certas propostas e a certas personalidades. Eu poderia ficar muito orgulhoso pelo fato de os dois maiores jornais de São Paulo censurarem a minha pessoa, não publicam meu nome em momento algum. Por quê? Não é porque, precisamente, eu defenda a reforma política mediante a introdução de mecanismos de democracia direta ou participativa, mas é porque, há vários anos, venho denunciando o oligopólio empresarial dos meios de comunicação de massa.
No caso do jornal, e eu vou usar o estilo deles e prefiro não dar o nome, o episódio foi marcante, porque, em primeiro lugar, minha manifestação contrária ao jornal deu-se a respeito de um editorial que refletia, portanto, o pensamento dos donos do jornal sobre o regime militar. Dizer que o regime militar no Brasil foi uma “ditabranda” porque houve muito menos mortes do que em outros países da América Latina é um escárnio.
Bastaria que houvesse uma só morte não sancionada, como o Supremo Tribunal Federal acabou decidindo, para que esse regime fosse ignóbil. Mas, em segundo lugar, quando o diretor de redação retrucou a minha carta, e a da professora Maria Vitória de Mesquita Benevides – duas cartas separadas, nós não assinamos nada em conjunto, e é estranho que nós tivéssemos sido escolhidos ambos juntos, pela direção –, qual foi a tentativa de explicação do diretor da redação? Não tinha nada a ver com a questão que foi por nós levantada, disseram que éramos condescendentes com regimes ditatoriais, notadamente o regime cubano, com tanto azar que, alguns dias depois, o ombudsman declarou que a carta do diretor de redação continha um erro de fato, porque eu havia enviado ao jornal recentemente uma carta na qual atacava o regime cubano.
Em seguida, um diretor do jornal, pressionado pelo seu amigo íntimo, resolveu voltar atrás e disse que realmente o editorial que qualificava o regime ditatorial como “ditabranda” foi um erro. Então veja, o editorial foi desmentido pelo próprio jornal, a acusação contra mim e a professora Maria Vitória, foi desmentida pelo ombudsman, mas eu continuei sendo cínico e mentiroso. Tirem as consequências disso aí.
Fórum – Professor, passando da questão dos meios de comunicação para o sistema político brasileiro, o senhor disse que o sistema eleitoral divide o país em estados quando o povo é uno. É o caso de discutirmos também a representatividade e o sistema bicameral?
Comparato – O sistema é aberrante, nós copiamos dos Estados Unidos, tornando ainda pior do que é nos Estados Unidos. Por que lá o Congresso tem o Senado e a Câmara dos Representantes? Porque a independência dos EUA foi uma rebelião confederativa, e a autonomia das antigas colônias inglesas sempre foi uma espécie de princípio fundamental do país. Eles, com muita dificuldade, conseguiram transformar uma confederação em federação. Mas, até hoje, as prerrogativas de autonomia local são muito fortes.
Ora, no Brasil o caminho foi exatamente o inverso. Durante todo o Império, nossa organização política foi centralizadora. Claro que havia núcleos políticos locais, que representavam, de certa forma, uma ligação de coronéis locais, mas a decisão local sempre ficou com o centro do poder na Corte. Quando se falou em República, o que se tinha em mente era sem dúvida a descentralização do poder político, porque na época havia o domínio do café no Sudeste brasileiro, e o principal imposto era o imposto de exportação, de modo que os grandes fazendeiros e os políticos a eles ligados queriam que houvesse uma descentralização não só política, mas financeira.
Ora, no Brasil o caminho foi exatamente o inverso. Durante todo o Império, nossa organização política foi centralizadora. Claro que havia núcleos políticos locais, que representavam, de certa forma, uma ligação de coronéis locais, mas a decisão local sempre ficou com o centro do poder na Corte. Quando se falou em República, o que se tinha em mente era sem dúvida a descentralização do poder político, porque na época havia o domínio do café no Sudeste brasileiro, e o principal imposto era o imposto de exportação, de modo que os grandes fazendeiros e os políticos a eles ligados queriam que houvesse uma descentralização não só política, mas financeira.
Então, nós não instauramos propriamente uma República em 15 de novembro de 1889, nós instauramos um regime de descentralização oligárquica. Na verdade, nós nunca tivemos a supremacia do bem comum do povo sobre os interesses particulares, que é a definição de República. Já no começo do século XVII, Frei Vicente de Salvador, que é o primeiro historiador do Brasil, dizia, numa frase emblemática, “nenhum homem nesta terra é rei público, nem zela e trata do bem comum, se não cada um do bem particular”. E isso, no caso da mudança do regime político em 1889, foi mais do que evidente. Tratava-se de defender os interesses econômicos do Sudeste, sobretudo, mas também os interesses locais de dominação coronelista nos outros estados.
O que acontece é que, com isso, todo o sistema eleitoral foi falseado. Em primeiro lugar porque a Câmara dos Deputados não é um órgão de representação do povo brasileiro. Se as eleições para deputado federal são feitas em circunscrições estaduais, é evidente que há uma deformação flagrante no sistema de representação do povo. Em segundo lugar, como nós aceitamos o sistema proporcional de eleições, que exige a existência de partidos políticos e nacionais – os partidos da República Velha eram estaduais – essa tradição local permaneceu até hoje. Todos os partidos políticos do país acabam se deteriorando, perdendo a substância e a autenticidade, e se tornam grandes conchavos, também aí oligárquicos. O espírito oligárquico, ou seja, a dominação da minoria, permeia todas as associações e grupos organizados no Brasil. O sindicato é oligárquico, o partido, obviamente, é oligárquico, as universidades são oligárquicas, todas as grandes associações de classe são oligárquicas.
Fórum – O senhor diria que nós não vivemos numa democracia.
Comparato – Óbvio que não vivemos numa democracia. Democracia é, sobretudo, soberania popular. Soberania significa controle. Poder de controle significa tomar grandes decisões e fiscalizar, responsabilizar e destituir os representantes. O empresário que controla uma empresa não tem um poder meramente retórico ou simbólico. É ele que decide se vai continuar ou não com a empresa, os programas para o futuro. O povo brasileiro tem um poder semelhante? É óbvio que não, nós temos uma aparência democrática, mas a aparência é muito importante. É a mesma coisa que aconteceu durante a escravidão…
Fórum – Da mesma forma, essa democracia com esse tipo de representação, nesse caso, não é uma invenção brasileira, ela é o mesmo tipo de representação utilizada em muitos países…
Comparato – Não é uma invenção brasileira, mas a deformação aqui é muito maior do que a da grande maioria dos países. Muito maior, mas nunca atacada porque, para nós, sobretudo no exterior, é preciso manter as aparências.
Fórum – Remetendo a uma pergunta feita anteriormente, o senhor vê expressão de democracia direta, ou também um falseamento, nas experiências da Venezuela, da Bolívia, do Equador? Podemos dizer que eles têm um grau de democracia mais avançado que no Brasil?
Comparato – Eles têm uma possibilidade de mudança maior do que no Brasil. Repete-se aqui um trágico episódio do regime militar. Os regimes militares no Chile, na Argentina e no Uruguai tiveram resultados muito mais trágicos do que no Brasil. O número de pessoas mortas e desaparecidas, por exemplo, foi muito maior, mas eles mudaram muito mais rapidamente do que nós. Ainda não mudamos.
Hoje, na Argentina, todos os presidentes do regime militar foram levados ao tribunal, foram condenados, estão cumprindo pena. No Chile, o ditador Pinochet foi perseguido até mesmo no exterior, e as leis de autoanistia foram anuladas. No Brasil não, nós tivemos, como diz aquele jornal, uma “ditabranda”, mas impedimos que sejam processados os assassinos, torturadores e estupradores oficiais, que tinham poder oficial para fazer isso, e todo mundo no governo sabia que eles faziam isso. De modo que, de certa maneira, nós somos politicamente piores do que esses outros países. Nós somos, exteriormente, mais civilizados, compassivos, mais democratas, mas somos, na verdade, irredutivelmente oligárquicos, e de uma crueldade sem remissão. Depois de quatro séculos de escravidão, nós viramos a página e não queremos saber de nada, até queimamos os arquivos de escravidão. Depois de 20 anos de regime militar, o governo promulgou uma lei de autoanistia e o Supremo Tribunal Federal diz que é isso mesmo.
Fórum – Mas, insistindo. O senhor acha que esses países estão vivendo experiências mais ricas do ponto de vista da participação popular ou também tem uma liderança forte que, para se manter no cargo, para se manter no poder apela para esses plebiscitos, para esse tipo de consulta popular?
Comparato – Acho que é uma evolução positiva. É claro que, no início, há sempre um caráter plebiscitário pessoal, mas, aos poucos, a consciência pública começa a evoluir, a se abrir, e no Brasil também, embora com muita dificuldade porque, repito, os meios de comunicação de massa estão fechados com o poder oligárquico. Claro que não concordo com tudo o que diz o Chávez na Venezuela, mas ele deu início a um processo de denúncia do poder empresarial, sobretudo nos meios de comunicação de massa, iniciou um sistema de decisões populares sobre assuntos locais, problemas do dia a dia, e isso não tem volta. Claro que houve uma tentativa de uso desses mecanismos para endeusar um chefe de estado, mas isso, de certa forma, acaba sendo revelado ao povo, e a tendência, repito, é num sentido positivo.
Fórum – O senhor citou também, na questão da transição para a democracia, ou para a falsa democracia, a corporação militar junto com o poder judiciário, inclusive nessa questão da decisão do STF. O senhor acha hoje o poder judiciário o menos transparente dos três poderes?
Comparato – O poder judiciário sempre foi o menos transparente, mas ainda temos ultimamente tido uma evolução muito positiva. A partir da instalação do Conselho Nacional de Justiça, que não é um órgão de controle externo, porque a maioria absoluta dos seus componentes é de magistrados, acabamos abrindo a caixa preta e percebemos algo que os advogados já sabiam há muito tempo: o grau de corrupção do judiciário é enorme. E não se trata apenas de corrupção no segundo escalão. A corrupção atinge também os magistrados, veja os últimos fatos que foram revelados pelo Conselho Nacional de Justiça.
Há um duplo caráter no brasileiro, um dualismo, uma duplicidade lamentável. Para efeitos exteriores, nós somos sempre modernos, avançados, civilizados, mas é só a indumentária exterior, a indumentária de gala. Em casa, evidentemente, nós usamos trajes mais cômodos e adequados ao ambiente doméstico, ou seja, nós somos exatamente o contrário daquilo que nós aparentamos no exterior. É por isso que as mudanças no Brasil são mais lentas e mais penosas.
Há um duplo caráter no brasileiro, um dualismo, uma duplicidade lamentável. Para efeitos exteriores, nós somos sempre modernos, avançados, civilizados, mas é só a indumentária exterior, a indumentária de gala. Em casa, evidentemente, nós usamos trajes mais cômodos e adequados ao ambiente doméstico, ou seja, nós somos exatamente o contrário daquilo que nós aparentamos no exterior. É por isso que as mudanças no Brasil são mais lentas e mais penosas.
Fórum – Mas essas mudanças já são perceptíveis?
Comparato – Acho que elas são cada vez mais claras. Todo o problema agora é não errar na ação política. Nós não modificaremos o Brasil através de eleições no sistema atual e militância em partidos. Nós temos que educar o povo para que, desde a esfera local até o âmbito nacional, ele se organize e exerça a sua soberania e a defesa dos seus direitos fundamentais. Para começar, o povo brasileiro em geral não sabe o que é o direito, acha que direito é um favor, uma vantagem, e não uma exigência. Então nós temos que começar, e é por isso que, juntamente com outros professores, fundei em São Paulo, a escola de governo, que já tem 20 anos, nós temos que começar educando o povo, o povo mais pobre, em algo que é uma evidência patente.
]Ou seja, você tem direito, não só à educação e à saúde, mas você tem o direito a não morrer de fome. Esse é um direito, não é uma vantagem que o governo te dá, através de Bolsa Família, ou outras coisas. É um direito seu. Oras, pra você defender o seu direito, você precisa se organizar com outros. Política se faz coletivamente, não individualmente. E a função do partido político do futuro, ou de organização política que tenha esse nome ou outro, não é de querer se servir do povo para conquistar o poder. É de educar e formar a consciência popular para que o povo, diretamente, exerça o poder de controle. Isso não significa que o povo vá governar, mas significa que ele vai controlar todos aqueles que governam.
Nesse sentido, por exemplo, tive a ocasião de propor à Ordem dos Advogados do Brasil de se introduzir no Brasil o recall, o referendo revocatório de mandatos eletivos. Ou seja, o povo elege e pode destituir, substituindo o velho impeachment. O que está hoje em discussão no Senado Federal é a proposta de emenda constitucional número 73, de 2005. Ainda aí, não tenho ilusões, porque é muito difícil de conseguir aprovação. Mas a discussão já entrou na agenda política. É claro que nós não vamos poder contar com o apoio de nenhum setor da oligarquia. Mas a grande vitória não consiste em ter, amanhã, de um dia para o outro, digamos assim, a introdução do recall no país, consiste em pôr o assunto na ordem do dia, isso tem que ser discutido.
Fonte: http://revistaforum.com.br/
Nenhum comentário:
Postar um comentário