Análise das ações de ocupação dos trabalhadores rurais sem terra e a questão agrária no Brasil
Os problemas existentes no meio rural brasileiro são históricos. A suas origens remontam ao processo de colonização portuguesa, onde a deturpação do regime das sesmarias implantado no país deu origem a uma classe privilegiada de pessoas. Elas se beneficiaram da proximidade com o poder para atenderem aos seus próprios interesses, o que resultou na formação de uma estrutura fundiária muito desigual.
A promulgação da Constituição de 1988 foi um passo importante para o enfrentamento da questão, pois se criou, aqui, um ambiente favorável às discussões democráticas, permitindo, por conseguinte, a inclusão da sociedade no debate sobre a redistribuição de terras. Entretanto, do ponto de vista prático, pouca coisa mudou.
Esse cenário de concentração fundiária que foi se consolidando ao longo do tempo, ora pela falta de uma legislação adequada, ora pela falta de sua aplicação, fez surgir um descontentamento entre aqueles que ficaram excluídos do processo de produção. As primeiras manifestações contrárias a essa situação foram feitas pelas Ligas Camponesas que atuavam no Nordeste, mas que acabaram sucumbido, após o golpe militar de 1964, devido a forte repressão.
Após duas décadas de poucas liberdades, a consciência política da população aflorou e acabou servindo de estímulo para a criação, em 1984, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra sob a perspectiva de concentrar a luta campesina em uma organização popular de caráter nacional. Preocupou-se, na sua formação, não se limitar a velha luta de classes que caracterizavam os antigos movimentos sociais, relacionando seus objetivos com a conquista de direitos e a participação democrática nas decisões de interesse da sociedade.
O MST, desde sua gênese, passou a se valer das ocupações de terras improdutivas como seu principal instrumento de luta. Suas ações encontram refúgio no legítimo direito de resistência, já que as vias oficiais de contestação não conseguem dá uma resposta satisfatória às necessidades sociais. Trata-se da ultima ratio diante do estado de opressão ocasionado pela negação de direitos fundamentais.
Não obstante os entendimentos contrários, o direito de resistência referido no parágrafo anterior é compatível com o regime democrático desde que seja usado de forma razoável e proporcional, tendo, por fim, o aperfeiçoamento da ordem jurídico-positiva. Essa hipótese ocorre sempre que os atos assumam a forma de pressão social, a exemplo do que faz o MST. A ausência de dispositivo constitucional expresso nesse sentido não impede que se conclua pela existência desse direito sob a forma implícita, pois o envolvimento de atores sociais nas decisões do Poder Público é uma característica marcante do Estado Democrático de Direito e um dos pontos que o diferencia do Estado Autoritário.
Esse direito de resistência próprio da democracia é exercido pelo MST sob a forma de desobediência civil. Por meio desse instituto, os dissidentes demonstram a sua insatisfação com a lei, ato de autoridade ou política governamental de forma pública e não violenta com o objetivo de sensibilizar a sociedade para a alteração do que entende ser injusto.
Dessa sorte, a adoção das características da desobediência civil em sua estratégia de luta é motivada, externamente, pelo estado de exclusão social vivido por seus membros e, internamente, por postulados morais que obrigam a rejeição dessa realidade social. Suas ações são públicas, uma vez que existe ampla divulgação pela impressa nacional e até mesmo internacional, além de não violentas, considerando que os trabalhadores rurais sem terra se restringem apenas a ocupar propriedades rurais improdutivas. Ações fora desse contexto não são consideradas como desobediência civil e não pertenceram ao objeto de estudo deste trabalho.
Soma-se a isso o fato de que, na democracia, a base para a inserção de temas relevantes para a comunidade na agenda política do governo é o dissenso. Sabendo disso, o MST procura, com seus atos, contribuir para enriquecimento do debate acerca da questão agrária no país sem se esconder do julgamento da opinião pública. Essa foi a forma encontrada pelo movimento social para aproximar o centro de poder do cidadão comum, consubstanciando a ideia de legitimidade da suas condutas com a sua origem na sociedade civil.
Na prática dessas ações, os dissidentes podem ser confundidos com violadores da lei. Contudo, o que ocorre, na verdade, é que o MST age em favor do aperfeiçoamento da ordem jurídica. Quando a sociedade está em crise, urge a aplicação de instrumentos corretivos que suplementem a legalidade dominante. Desse modo, a existência de violação, ou não, da norma jurídica é uma questão de caráter, puramente, interpretativo.
Outros fundamentos de legitimidade para as ações do MST são encontrados no bojo do texto constitucional de 1988. Um deles se refere à inclusão do princípio da função social da propriedade entre os direitos e garantias fundamentais. A defesa da utilização da terra em prol do bem comum não chega a ser uma ideia nova no ordenamento jurídico pátrio, pois tal entendimento já existia em Constituições anteriores. No entanto, a forma como foi consagrada, no texto atual, modificou o próprio instituto da propriedade, alcançando todos os tipos de bens.
Para conseguir efetivar a função social em relação à propriedade rural, a Carta Política de 1988 albergou um conjunto de limitações, dentre as quais se encontra a desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária. A competência para promover essa modalidade de expropriação é da União e deve ser realizada sempre que o imóvel rural não esteja cumprindo o requisito econômico, o ecológico e o trabalhista contidos no art. 186, da Lei Fundamental.
Todavia, o texto constitucional, por meio do art. 185, II, tornou o imóvel produtivo insuscetível de desapropriação para fins de reforma agrária, ainda que não respeite as demais exigências que caracterizam o cumprimento da função social da propriedade rural. Essa exceção é objeto de acalorados debates doutrinários, haja vista o seu aparente descompasso com os demais dispositivos que tratam da matéria.
Em que pese a força dos argumentos avessos a sua aplicação com fundamento em uma interpretação sistemática da Constituição, não seria razoável, na hipótese, desrespeitar a vontade do legislador constituinte.
Com efeito, a função social não se manifesta sempre da mesma forma. Ela se encontra na propriedade produtiva em virtude da contribuição que a mesma dá para o desenvolvimento da sociedade, reduzindo os custos de vida e ampliando o acesso aos bens de consumo pela população. O mesmo raciocínio se aplica ao caso das pequenas e médias propriedades rurais que possuem uma função social independente da produtividade por serem uma garantia de proteção do núcleo familiar.
Por outro lado, acrescenta-se que a questão agrária não será resolvida com a simples autorização para expropriar imóveis que desrespeitam qualquer requisito do art. 186, da Constituição. O problema está na falta de efetividade dos instrumentos dispostos ao alcance do Poder Público.
A própria noção de produtividade não corresponde à realidade. A Lei nº 8.629/93 alocou o seu conceito, levando em conta apenas os aspectos econômicos atestados por meio do Grau de Utilização da Terra – GUT e do Grau de Eficiência na Exploração – GEE. Todavia, os índices de rendimento usados para aferir a produtividade do imóvel rural foram retirados do Censo Agropecuário de 1975, contrariando a obrigatória atualização periódica exigida pelo diploma legal.
Como resultado, o processo de democratização da terra fica mais lento, uma vez que são desprezados os avanços tecnológicos conquistados nas últimas décadas. Ou seja, uma propriedade só será considerada improdutiva se, de tão mal cuidada, não consiga obter os rendimentos médios de um imóvel rural em 1975. Nessa esteira, a omissão do Estado em atualizar os índices de rendimento provoca uma redução significativa no número de propriedades rurais passíveis de desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrária.
É nessa situação que se encontra, portanto, um dos motivos pelo qual o MST busca chamar a atenção do Estado. Outras razões estão relacionadas com própria realidade social. A Lei Maior insere como fundamentos do Estado brasileiro a cidadania e a dignidade da pessoa humana e assegura, como direitos fundamentais, o direito à terra, à vida, à moradia, ao trabalho, dentre outros. A pouca efetividade desses dispositivos constitucionais é determinante para que famílias inteiras decidam ocupar terras não utilizadas pelos seus proprietários.
Devido às divergências com interesses econômicos e políticos poderosos, o MST é frequentemente associado a um grupo de desordeiros. Os que tercem críticas às suas ações ignoram completamente o estado de penúria em que vive o trabalhador rural sem terra para protegerem a manutenção do status quo em respeito a uma suposta ordem que traria benefícios a toda sociedade.
Contudo, a realidade não dá razão a esse argumento. A ordem vigente apenas serve para perpetuar o estado de injustiça e exclusão no campo, o que gera, por conseguinte, algumas reações em defesa de um projeto de mundo diferente do que existe atualmente. Assim, quando os movimentos sociais procuram defender os direitos responsáveis por garantir a própria dignidade de seus membros, não estão trazendo a desordem para o país, mas agindo com o fim de construir uma ordem socialmente mais justa.
Nessa tentativa de transformação da sociedade, o Poder Judiciário assume uma posição de destaque quando abandona a velha cultura jurídica fundada na crença da lei como verdade absoluta. Isso é necessário porque a norma albergada em um comando legal é abstrata e imperfeita para prever todas as particularidades contidas no caso concreto, exigindo, do interprete, sensibilidade diante da dura realidade social.
Dessarte, o magistrado pode ser o indutor do progresso, caso se afaste do legalismo instituído que impede o alcance da verdadeira justiça. Um passo nesse sentido diz respeito ao reconhecimento dos novos direitos conquistados na luta popular e reiteradamente afirmado pelo MST para a solução de conflitos agrários.
Ao invés de condenar o movimento, o magistrado deve reconhecer a importância do MST para o bom funcionamento do corpo social, pois, é na luta pela reforma agrária e efetivação de direitos que essa organização popular consegue expor as mazelas escondidas no interior do país e que historicamente foram ignoradas pelo Poder Público. Nessa esteira, quando os tribunais dispensam um tratamento mais humano à matéria, estão, na verdade, promovendo a justiça social.
Todavia, não basta apenas reservar maior preocupação para os anseios populares ou ser compreensivo diante dos métodos não oficiais empregados pelos movimentos sociais para a efetivação de direitos. O magistrado deve ser, antes de tudo, um conciliador do jogo de interesses. Ao mesmo tempo em que assegura o exercício de direito fundamentais pelos trabalhadores rurais sem terra, deve conter os excessos provocados pela radicalização do movimento.
A proposta mencionada no parágrafo anterior não é algo inalcançável, pois os tribunais já abriram vários precedentes que adotam esse novo paradigma. Embora não sejam tão comuns, decisões nesse sentido parecem ser a melhor saída para conflitos coletivos que envolvem a posse da terra.
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