Por Valério Arcary
Os camponeses estão votando com os pés.
Vladimir Ilitch Ulianov, alias, Lenin, quando informado que os camponeses estavam desertando em massa do Exército Czarista na Primeira Guerra Mundial.
Em qualquer análise, respeitar o sentido das proporções é indispensável. Quando da interpretação de grandes acontecimentos, no calor da hora, existe sempre o duplo perigo de subestimação ou de sobre-estimação. A grande questão que desafia a compreensão das Jornadas de Junho, em uma análise marxista, é responder em que medida a relação social de forças entre as classes foi alterada. Estamos diante de uma nova realidade nacional? Abriu-se ou não uma situação pré-revolucionária?
Nosso argumento é que a partir do dia 17 de junho aconteceu uma inflexão importante da situação política no Brasil. Nas Jornadas de Junho centenas de milhares de jovens invadiram as ruas de São Paulo e do Rio de Janeiro. Na dimensão nacional pelo menos algo próximo a dois milhões de pessoas saíram às ruas em pelo menos umas quatrocentas cidades. Estavam votando com os pés. As dimensões deste processo remetem à ideia de que um processo revolucionário se iniciou. [1]
Uma revolução não se resume ao momento da insurreição. Uma revolução é um processo. É preciso lembrar, também, que o conceito de situação revolucionária é definido com muita frequência, ao mesmo tempo, de forma restrita ou imprecisa, e confundindo situação revolucionária e crise revolucionária. Para ser mais rigoroso uma dupla confusão é muito comum: se esquece que uma situação revolucionária precede necessariamente uma insurreição e que, portanto, a abertura de uma situação revolucionária não desemboca sempre na abertura de uma crise revolucionária; e se esquece, também, que uma revolução se coloca em marcha antes de que estejam maduras todas as condições para a conquista do poder político. E que, portanto, é precedida por uma situação pré-revolucionária. Uma definição clássica de situação revolucionária é a que Lenin apresentou em A falência da Segunda Internacional, em que é introduzida, pela primeira vez no debate marxista, uma diferenciação entre a hierarquia dos fatores objetivos e subjetivos. O protagonismo das massas é ressaltado como condição sine qua non, acima da profundidade dos elementos mais objetivos, como a gravidade da crise econômica ou de outra catástrofe:
“Para um marxista, não há dúvida de que a revolução é impossível sem uma situação revolucionária, mas nem toda situação revolucionária conduz à revolução. Quais são, de maneira geral, os indícios de uma situação revolucionária? Estamos certos de não nos enganarmos se indicarmos os três principais pontos que seguem: 1) impossibilidade para as classes dominantes manterem sua dominação de forma inalterada; crise da “cúpula”, crise da política da classe dominante, o que cria uma fissura através da qual o descontentamento e a indignação das classes oprimidas abrem caminho. Para que a revolução estoure não basta, normalmente, que “a base não queira mais” viver como outrora, mas é necessário ainda que “a cúpula não o possa mais”; 2) agravamento, além do comum, da miséria e da angústia das classes oprimidas; 3) desenvolvimento acentuado, em virtude das razões indicadas acima, da atividade das massas, que se deixam, nos períodos “pacíficos”, saquear tranquilamente, mas que, em períodos agitados, são empurradas tanto pela crise no seu conjunto como pela própria “cúpula”, para uma ação histórica independente.”(grifos nossos)
Uma sequência de quatro protestos de rua contra o aumento das passagens de ônibus em São Paulo, com alguns milhares de jovens, foi uma faísca. Reprimidos pela polícia com uma violência selvagem, detonaram uma reação surpreendente e magnífica. Um conflito que parecia marginal deflagrou uma onda nacional de mobilizações que o país não conhecia há vinte anos. Os próprios manifestantes declararam espontaneamente, aos milhares, ao que vieram: Não é por centavos!
Esta luta por transportes, educação e saúde pública gratuita e de qualidade chocou, frontalmente, com o PT de Fernando Haddad na prefeitura de São Paulo e o PSDB de Alckmin. Sérgio Cabral e Eduardo Paes do PMDB nos governos do Rio não foram poupados. Em Recife o PSB de Eduardo Campos foi, igualmente, atingido. Depois a avalanche de mobilizações se alastrou e expandiu na forma de um tsunami nacional. Muitas cidades viram as maiores passeatas de sua história. Em não poucas delas, mobilizações maiores que as que conheceram quando do Fora Collor de 1992. Algumas até maiores do que as Diretas em 1984.
O apoio ao governo Dilma, que era amplamente majoritário, em menos de um mês, passou a ser minoritário. A força social de choque destas mobilizações deixou as instituições do Estado, por quase uma semana, semiparalisadas. A classe dominante se dividia entre os que exigiam mais repressão, e aqueles que temiam uma completa desmoralização política dos governos, caso a fúria policial descontrolada provocasse um ou mais mortos. O recuo no aumento das passagens não foi o bastante para retirar as massas das ruas. Uma maioria dos setores médios deslocou-se para o apoio aos manifestantes. Por isso, faz sentido trabalhar com a hipótese de que pode ter se aberto uma situação pré-revolucionária.
Sobre os tempos da revolução existe uma ampla esfera de problemas em debate. Consideremos, em primeiro lugar, a questão da diferença entre as revoluções políticas e as revoluções sociais. Parece muito sensato que as diferenças entre elas não possam ser resumidas aos resultados distintos que produziram, e devamos procurar o que as diferenciava, nas suas dinâmicas diferentes antes da conquista do poder. As grandes revoluções políticas do século XX (que, por analogia com o processo russo, Trotsky denominou de Fevereiros), exigiram as duas condições chaves que Lenin fixou, tanto antes como depois de Outubro, para definir uma situação revolucionária: quando os de cima “não podem”, e quando os de baixo “não querem”. Mas Outubro foi uma revolução muito diferente da de Fevereiro e, portanto, é razoável concluir que a situação que a precedeu, foi também uma crise revolucionária muito diferente. Assim, parece ser necessário distinguir as diferenças entre a situação e a crise revolucionária de Fevereiro das de Outubro. Nesse caminho avançou a análise, por exemplo, de Nahuel Moreno. A seguir, uma citação sobre o que seria uma situação pré-revolucionária de Fevereiro. Impressiona como a sumária definição parece útil, como uma luva, para descrever o atual momento político no Brasil:
“Essas situações revolucionárias de fevereiro são precedidas por situações pré-revolucionárias que poderíamos denominar de “pré-fevereiros”. Tais situações pré-revolucionárias ocorrem quando o regime burguês entra em crise e o povo rompe com ele, deixando-o sem nenhum apoio social. São pré-revolucionárias porque ainda não está colocado o problema do poder, mas as condições para que esteja colocado já estão maduras. Tornam-se revolucionárias quando as massas populares conseguem unificar seu ódio ao regime em uma grande mobilização unificada à escala nacional fazendo com que a crise do regime se torne total e absoluta. (Grifo nosso.)[2]
Esta questão político-teórica é da maior gravidade. Expliquemo-nos. Esta inflexão mais favorável pode ou não se manter, pode avançar ou retroceder. Ao longo dos próximos meses veremos mudanças de conjuntura, favoráveis ou desfavoráveis às lutas populares. Haverá ou não uma segunda onda quando da aproximação da Copa do Mundo? Ninguém pode afirmar com segurança. Se, entretanto, a evolução da situação política confirmar a inflexão, estará aberta para os socialistas-revolucionários a possibilidade de uma disputa pela consciência de milhões de trabalhadores e jovens em condições imensamente mais favoráveis.
Esta luta pela consciência não é somente uma luta de ideias. Trata-se de um combate político contra a influência de aparelhos muito poderosos que, durante os últimos trinta e cinco anos, foram se organizando em torno da direção lulista-petista. Trata-se uma luta contra as ilusões reformistas, e contra as esperanças na solução concertada dos conflitos, preservando-se as instituições do regime democrático-presidencialista.
O que remete a desafios teórico-políticos muito complexos. Eles são muitos, mas estão centrados na resposta que o marxismo deve ser capaz de oferecer à necessidade estratégica da luta contra os regimes democráticos. O Estado burguês ou capitalista é compatível com os mais esdrúxulos regimes políticos, e pode assumir diferentes formas institucionais: ele conviveu, na sua origem, com monarquias absolutas, com monarquias parlamentares, com repúblicas com uma ou duas câmaras (uma assembleia de deputados, e um senado, por exemplo), com repúblicas com voto censitário ou com sufrágio universal, repúblicas presidencialistas ou semi-presidencialistas (em que o poder da presidência, unindo ao mesmo tempo as funções de chefe de estado e de chefe de governo é limitado por um congresso), com regimes bonapartistas, com repúblicas federalistas ou unitárias, com regimes de Apartheid, com regimes teocráticos, com ditaduras fascistas, ou com ditaduras militares, etc…
As passagens de um regime a outro podem se dar por vias reformistas ou por vias revolucionárias (o que é o mesmo que dizer, dependendo do signo do processo, por vias reacionárias ou contra-revolucionárias). No nosso século, entretanto, de forma frequente, como uma regularidade histórica impressionante, mesmo as mudanças de regime, que não afetam a natureza social do Estado, têm exigido em muitas, embora não em todas as transições, revoluções políticas. Isso demonstra as estreitas margens de manobra da burguesia, mesmo para mudanças limitadas, uma das expressões de sua natureza histórica obsoleta.
Para uma definição mais precisa da crise revolucionária, como o momento no interior da situação revolucionária em que a luta pelo poder é possível, podemos conferir o extrato que transcrevemos em seguida. Foi elaborado em 1920, como parte do esforço de generalização da experiência bolchevique de construção de um partido marxista-revolucionário, na polêmica contra as pressões esquerdistas que se abatiam como uma avalanche, sobre uma boa parte das organizações constituídas depois de Outubro, com um tênuo fio de continuidade com os partidos com influência de massas da Segunda Internacional:
“A revolução é impossível sem uma crise nacional geral (que afete a explorados e exploradores). Por conseguinte, para que estoure a revolução é necessário, em primeiro lugar, conseguir que a maioria dos operários (ou, em todo caso, a maioria dos operários conscientes, reflexivos e politicamente ativos) compreenda a fundo a necessidade da revolução e esteja disposta a sacrificar a vida por ela; em segundo lugar, é preciso que as classes dirigentes sofram uma crise governamental que arraste à política inclusive as massas mais atrasadas (o sintoma de toda revolução verdadeira é a decuplicação ou até a centuplicação do número de pessoas aptas para a luta política pertencentes à massa trabalhadora e oprimida, antes apática), que enfraqueça o governo e torne possível seu rápido derrocamento pelos revolucionários” (grifo e tradução nossos)[3]
Merece ser observado que a formulação de Lênin se adéqua mais à experiência da situação que a Rússia viveu em 1905 ou em Fevereiro de 1917 do que a situação prévia a Outubro. Nela não há referências, por exemplo, ao duplo poder “institucionalizado” como forma mais orgânica da democracia direta da mobilização das massas, ou ao armamento das forças populares.
[1] LENIN, Vladimir Ilitch Ulianov, A Falência da Segunda Internacional, São Paulo, Kairos, 1979, p.27/8.
[2] MORENO, Nahuel. As Revoluções do Século XX, Brasília, Edição da Câmara dos Deputados, 1989, p.66.
[3] LENIN, Vladimir Ilitch Ulianov, La maladie infantile du communisme (Le Gauchisme), Pekin, Editions en langue etrangéres, 1970, parte IX, p.85.
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