Por Lívia Moraes
Na data de 22 de setembro de 2016,
chegou ao nosso conhecimento o conteúdo da Medida Provisória do
Presidente Michel Temer que dispõe sobre a reforma do Ensino Médio[1].
Uma MP editada por decreto, sem diálogo com a sociedade, mostra-se como
“moderna” e “flexível”, porém representa um retrocesso gigantesco
perante as lutas históricas de educadores e estudantes.
Ainda que o Ministério da Educação (MEC) tenha publicado uma nota dizendo que não haverá perda de disciplinas obrigatórias[2],
ainda não apresentou uma “versão correta” da MP com a dita alteração.
E, mesmo que recue nesse ponto, a MP ainda terá enorme impacto sobre a
sociedade.
A proposta aqui é problematizar alguns dos principais pontos da MP.
Em primeiro lugar, a alteração do artigo 36 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB)[3],
que afirma que “a carga horária destinada ao cumprimento da Base
Nacional Comum Curricular (BNCC) não poderá ser superior a mil e
duzentas horas da carga total do ensino médio”, ou seja, a parte básica
do Ensino Médio vai ser reduzida para um ano e meio. A segunda metade do
curso seria tomada por “itinerários formativos”: linguagens,
matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação técnica e
profissional. Consta, nesse mesmo artigo, que “os sistemas de ensino
‘poderão’ compor os seus currículos com base em mais de uma área
prevista”. “Poderão” é diferente de “deverão”, de modo que na escola
mais próxima da casa do estudante, não necessariamente haverá o
“itinerário” que ele escolheu, com isso, há a possibilidade de que quem
mora na periferia só tenha acesso facilitado ao profissionalizante, por
exemplo;
Um ano e meio não é tempo suficiente
para o estudante ter acesso a um conteúdo mínimo esperado para essa
formação de nível médio. Vai na contramão da luta pelo acesso ao
conteúdo historicamente produzido pela humanidade, de uma formação ampla
e profunda, que contemple arte, matemática, literatura, ciências da
natureza, pensamento crítico etc. Obstacularizar ao estudante o acesso a
esse conteúdo é expropriar-lhe de seus direitos de apropriação desses
conhecimentos;
Nesse mesmo sentido está a retirada da
obrigatoriedade dos componentes curriculares de educação física e artes.
Na MP a obrigatoriedade se restringe à educação infantil e ao ensino
fundamental. Aliás, é sintomática a retirada da educação física logo
após o encerramento das olimpíadas e paraolimpíadas no Brasil;
Componentes curriculares tais como
Sociologia e Filosofia, cuja obrigatoriedade foi fruto de uma profunda
luta por mais debate crítico na formação dos estudantes, podem ficar de
fora, a depender do que se considere primordial na BNCC. Um breve olhar
sobre a história da educação no Brasil já nos permite imaginar que não
serão incorporadas, ou serão incorporadas “pro forma”;
O artigo 24 da LDB sofre a seguinte
alteração: “A carga horária mínima anual […] deverá ser progressivamente
ampliada, no ensino médio, para mil e quatrocentas horas”. Hoje, a
carga horária é de 800 horas. Essa mudança é, aparentemente,
interessante, porque, em tese, implicaria em ensino integral. Contudo,
deriva daí um problema, que é solucionado de forma drástica. O primeiro é
que só o estudante que não precisa trabalhar (seja trabalho doméstico,
seja salarial) poderia ficar tantas horas na escola, o que teria um
efeito de evasão enorme sobre a classe trabalhadora. Assim sendo, a
própria MP responde ao problema ao permitir que a oferta de formação
considerará “a inclusão de experiência prática de trabalho no setor
produtivo […] estabelecendo parcerias”, bem como “para efeito de
cumprimento de exigências curriculares de ensino médio, os sistemas de
ensino poderão reconhecer, mediante regulação própria, conhecimentos,
saberes, habilidades e competências, mediante diferentes formas de
comprovação, como: I – demonstração prática; II – experiência de
trabalho supervisionado ou outra experiência adquirida fora do ambiente
escolar; III – atividades de educação técnica oferecidas em outras
instituições de ensino; IV – cursos oferecidos por centros ou programas
educacionais; V – estudos realizados em instituições de ensino nacionais
ou estrangeiras; e VI – educação à distância ou educação presencial
mediada por tecnologias”. Ou seja, o aluno não terá que cumprir essa
carga horária na escola, ele poderá cumpri-la oferecendo sua força de
trabalho a salários baixos ou voluntariamente, como tradicionalmente
ocorrem nos estágios. Por outro lado, isso é um enorme incentivo às
empresas de serviços educacionais, já que há abertura para que parte
dessa formação seja feita em outros estabelecimentos e inclusive à
distância, cuja qualidade da aula, em geral, é inferior, porque não
estabelece uma relação dialógica entre professores e alunos;
O ponto anterior citado é possibilitado porque “o ensino médio poderá ser organizado em módulos e adotar o sistema de créditos”;
É ainda mais assustador o fato de que
“os conteúdos cursados durante o ensino médio poderão ser convalidados
para aproveitamento de créditos no ensino superior”, o que corresponde
ao aligeiramento da formação em ambos os graus, para entregá-los ao
mercado mais rapidamente;
Esse aligeiramento também aparece com a
“possibilidade de concessão de certificados intermediários de
qualificação para o trabalho”;
Ainda, sobre o componente curricular “os
currículos de ensino médio incluirão, obrigatoriamente, o estudo da
língua inglesa”, uma clara demanda do empresariado. O Brasil, como parte
integrante da América Latina, tem retirada a obrigatoriedade do
espanhol, que havia resultado de outra grande luta dos educadores e
pensadores sociais da realidade latino-americana. Tal decisão tem
implicação também sobre estudantes indígenas, quilombolas, comunidades
pomeranas, italianas, dentre outras, que deverão privilegiar o inglês em
detrimento das línguas que compõem a sua história. Ou seja, desrespeita
a diversidade cultural brasileira tão celebrada nos recentes
megaeventos realizados no Brasil;
Um dos pontos mais graves da MP diz
respeito ao fato de que não será mais necessário ter formação em
licenciatura para lecionar. Poderão ministrar conteúdos “profissionais
com notório saber reconhecido pelos respectivos sistemas de ensino”.
Isso implica que os ideários empresariais e religiosos, por exemplo,
poderão adentrar as escolas pela porta da frente e ocupar boa parte da
grade curricular. Tais profissionais que não têm formação para lidar com
as diferenças e não foram preparados para conduzir uma aula como espaço
formativo. Isso ainda tem um impacto tremendo nos cursos de
licenciatura, nos quais se encontram a camada mais pobre de estudantes
das universidades públicas;
Por fora e em paralelo à MP, corre um PL no Senado (PL 772/2015[4])
para incluir na educação básica o tema de empreendedorismo, o que
ideologicamente reforça a autoculpabilização do fracasso e
autorresponsabilização pelo sucesso do estudante, e que corrobora com a
ideia de meritocracia;
Tem relação direta também com a PEC 241/2016[5]
que impõe um teto de gasto com educação para os próximos 20 anos, já
que a formação seria flexibilizada, de modo a que parte dos custos fosse
arcada pelo próprio estudante ou pelo empresariado em parceria com o
público;
Responde à demanda por parcerias
público-privadas (PPP); por gestão da educação por Organizações Sociais
(as quais podem contratar empresas terceirizadas sem licitação), por
mais mensalidades para empresas educacionais etc.;
Desemprega e precariza ainda mais o
trabalho docente, dada a retirada da obrigatoriedade de vários
componentes curriculares, a não obrigatoriedade de formação em
licenciatura, a redução da carga-horária da formação básica e os demais
pontos aqui elencados;
Pode aproximar-se (ou até substituir) o
Projeto Escola Sem Partido, porque responde a várias de suas
proposições, em especial, a um ensino que instrui ao invés de educar.
Enfim, trata-se de um ataque brutal à
educação, especialmente à educação pública, porque as escolas privadas
da elite continuarão proporcionando acesso a esses conhecimentos a seus
estudantes, enquanto a escola pública oferecerá força de trabalho a
preços irrisórios no mercado. Resta-nos fazer resistência a este
decreto, que impõe uma reforma estrutural da educação brasileira,
elaborada hierarquicamente, de cima para baixo, sem qualquer diálogo com
a sociedade. Para virar lei em definitivo, a MP precisa ser analisada
em comissão especial do Congresso e depois aprovada pela Câmara dos
Deputados e pelo Senado, em até 120 dias, para não perder a validade.
Portanto, temos 120 dias para organizar uma forte resistência e lutar em
todas as frentes possíveis para barrar esse projeto empresarial de
educação, o qual se caracteriza por ser mais um ataque frontal e
autoritário à classe trabalhadora.
Notas
[1]https://nova-escola-producao.s3.amazonaws.com/sXtYABnV2wxHKtAT49Ge4TjtZUnhxeBezK7pM3Va6aHfsNzF3GMBG74UTRan/mp-novo-ensino-medio.pdf
[2]http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=39581
[3]http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm
[4]https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/124353
[5]http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2088351
Fonte:http://blogjunho.com.br/para-pensar-a-reforma-do-ensino-medio/#_ftn1
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