domingo, 25 de setembro de 2016

Para pensar a “reforma” do Ensino Médio

 

Por Lívia Moraes

   Na data de 22 de setembro de 2016, chegou ao nosso conhecimento o conteúdo da Medida Provisória do Presidente Michel Temer que dispõe sobre a reforma do Ensino Médio[1]. Uma MP editada por decreto, sem diálogo com a sociedade, mostra-se como “moderna” e “flexível”, porém representa um retrocesso gigantesco perante as lutas históricas de educadores e estudantes.
   Ainda que o Ministério da Educação (MEC) tenha publicado uma nota dizendo que não haverá perda de disciplinas obrigatórias[2], ainda não apresentou uma “versão correta” da MP com a dita alteração. E, mesmo que recue nesse ponto, a MP ainda terá enorme impacto sobre a sociedade.
A proposta aqui é problematizar alguns dos principais pontos da MP.
Em primeiro lugar, a alteração do artigo 36 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB)[3], que afirma que “a carga horária destinada ao cumprimento da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) não poderá ser superior a mil e duzentas horas da carga total do ensino médio”, ou seja, a parte básica do Ensino Médio vai ser reduzida para um ano e meio. A segunda metade do curso seria tomada por “itinerários formativos”: linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação técnica e profissional. Consta, nesse mesmo artigo, que “os sistemas de ensino ‘poderão’ compor os seus currículos com base em mais de uma área prevista”. “Poderão” é diferente de “deverão”, de modo que na escola mais próxima da casa do estudante, não necessariamente haverá o “itinerário” que ele escolheu, com isso, há a possibilidade de que quem mora na periferia só tenha acesso facilitado ao profissionalizante, por exemplo;
   Um ano e meio não é tempo suficiente para o estudante ter acesso a um conteúdo mínimo esperado para essa formação de nível médio. Vai na contramão da luta pelo acesso ao conteúdo historicamente produzido pela humanidade, de uma formação ampla e profunda, que contemple arte, matemática, literatura, ciências da natureza, pensamento crítico etc. Obstacularizar ao estudante o acesso a esse conteúdo é expropriar-lhe de seus direitos de apropriação desses conhecimentos;
Nesse mesmo sentido está a retirada da obrigatoriedade dos componentes curriculares de educação física e artes. Na MP a obrigatoriedade se restringe à educação infantil e ao ensino fundamental. Aliás, é sintomática a retirada da educação física logo após o encerramento das olimpíadas e paraolimpíadas no Brasil;
   Componentes curriculares tais como Sociologia e Filosofia, cuja obrigatoriedade foi fruto de uma profunda luta por mais debate crítico na formação dos estudantes, podem ficar de fora, a depender do que se considere primordial na BNCC. Um breve olhar sobre a história da educação no Brasil já nos permite imaginar que não serão incorporadas, ou serão incorporadas “pro forma”;
O artigo 24 da LDB sofre a seguinte alteração: “A carga horária mínima anual […] deverá ser progressivamente ampliada, no ensino médio, para mil e quatrocentas horas”. Hoje, a carga horária é de 800 horas. Essa mudança é, aparentemente, interessante, porque, em tese, implicaria em ensino integral. Contudo, deriva daí um problema, que é solucionado de forma drástica. O primeiro é que só o estudante que não precisa trabalhar (seja trabalho doméstico, seja salarial) poderia ficar tantas horas na escola, o que teria um efeito de evasão enorme sobre a classe trabalhadora. Assim sendo, a própria MP responde ao problema ao permitir que a oferta de formação considerará “a inclusão de experiência prática de trabalho no setor produtivo […] estabelecendo parcerias”, bem como “para efeito de cumprimento de exigências curriculares de ensino médio, os sistemas de ensino poderão reconhecer, mediante regulação própria, conhecimentos, saberes, habilidades e competências, mediante diferentes formas de comprovação, como: I – demonstração prática; II – experiência de trabalho supervisionado ou outra experiência adquirida fora do ambiente escolar; III – atividades de educação técnica oferecidas em outras instituições de ensino; IV – cursos oferecidos por centros ou programas educacionais; V – estudos realizados em instituições de ensino nacionais ou estrangeiras; e VI – educação à distância ou educação presencial mediada por tecnologias”. Ou seja, o aluno não terá que cumprir essa carga horária na escola, ele poderá cumpri-la oferecendo sua força de trabalho a salários baixos ou voluntariamente, como tradicionalmente ocorrem nos estágios. Por outro lado, isso é um enorme incentivo às empresas de serviços educacionais, já que há abertura para que parte dessa formação seja feita em outros estabelecimentos e inclusive à distância, cuja qualidade da aula, em geral, é inferior, porque não estabelece uma relação dialógica entre professores e alunos;
   O ponto anterior citado é possibilitado porque “o ensino médio poderá ser organizado em módulos e adotar o sistema de créditos”;
   É ainda mais assustador o fato de que “os conteúdos cursados durante o ensino médio poderão ser convalidados para aproveitamento de créditos no ensino superior”, o que corresponde ao aligeiramento da formação em ambos os graus, para entregá-los ao mercado mais rapidamente;
Esse aligeiramento também aparece com a “possibilidade de concessão de certificados intermediários de qualificação para o trabalho”;
   Ainda, sobre o componente curricular “os currículos de ensino médio incluirão, obrigatoriamente, o estudo da língua inglesa”, uma clara demanda do empresariado. O Brasil, como parte integrante da América Latina, tem retirada a obrigatoriedade do espanhol, que havia resultado de outra grande luta dos educadores e pensadores sociais da realidade latino-americana. Tal decisão tem implicação também sobre estudantes indígenas, quilombolas, comunidades pomeranas, italianas, dentre outras, que deverão privilegiar o inglês em detrimento das línguas que compõem a sua história. Ou seja, desrespeita a diversidade cultural brasileira tão celebrada nos recentes megaeventos realizados no Brasil;
   Um dos pontos mais graves da MP diz respeito ao fato de que não será mais necessário ter formação em licenciatura para lecionar. Poderão ministrar conteúdos “profissionais com notório saber reconhecido pelos respectivos sistemas de ensino”. Isso implica que os ideários empresariais e religiosos, por exemplo, poderão adentrar as escolas pela porta da frente e ocupar boa parte da grade curricular. Tais profissionais que não têm formação para lidar com as diferenças e não foram preparados para conduzir uma aula como espaço formativo. Isso ainda tem um impacto tremendo nos cursos de licenciatura, nos quais se encontram a camada mais pobre de estudantes das universidades públicas;
   Por fora e em paralelo à MP, corre um PL no Senado (PL 772/2015[4]) para incluir na educação básica o tema de empreendedorismo, o que ideologicamente reforça a autoculpabilização do fracasso e autorresponsabilização pelo sucesso do estudante, e que corrobora com a ideia de meritocracia;
   Tem relação direta também com a PEC 241/2016[5] que impõe um teto de gasto com educação para os próximos 20 anos, já que a formação seria flexibilizada, de modo a que parte dos custos fosse arcada pelo próprio estudante ou pelo empresariado em parceria com o público;
   Responde à demanda por parcerias público-privadas (PPP); por gestão da educação por Organizações Sociais (as quais podem contratar empresas terceirizadas sem licitação), por mais mensalidades para empresas educacionais etc.;
Desemprega e precariza ainda mais o trabalho docente, dada a retirada da obrigatoriedade de vários componentes curriculares, a não obrigatoriedade de formação em licenciatura, a redução da carga-horária da formação básica e os demais pontos aqui elencados;
   Pode aproximar-se (ou até substituir) o Projeto Escola Sem Partido, porque responde a várias de suas proposições, em especial, a um ensino que instrui ao invés de educar.
Enfim, trata-se de um ataque brutal à educação, especialmente à educação pública, porque as escolas privadas da elite continuarão proporcionando acesso a esses conhecimentos a seus estudantes, enquanto a escola pública oferecerá força de trabalho a preços irrisórios no mercado. Resta-nos fazer resistência a este decreto, que impõe uma reforma estrutural da educação brasileira, elaborada hierarquicamente, de cima para baixo, sem qualquer diálogo com a sociedade. Para virar lei em definitivo, a MP precisa ser analisada em comissão especial do Congresso e depois aprovada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, em até 120 dias, para não perder a validade. Portanto, temos 120 dias para organizar uma forte resistência e lutar em todas as frentes possíveis para barrar esse projeto empresarial de educação, o qual se caracteriza por ser mais um ataque frontal e autoritário à classe trabalhadora.

Notas
[1]https://nova-escola-producao.s3.amazonaws.com/sXtYABnV2wxHKtAT49Ge4TjtZUnhxeBezK7pM3Va6aHfsNzF3GMBG74UTRan/mp-novo-ensino-medio.pdf
[2]http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=39581
[3]http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm
[4]https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/124353
[5]http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2088351

Fonte:http://blogjunho.com.br/para-pensar-a-reforma-do-ensino-medio/#_ftn1

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