Por Michael Löwy.*
Algumas
palavras pessoais, a título de introdução. Descobri Rosa Luxemburgo por
volta de 1955, aos 17 anos, graças ao amigo Paulo Singer. Paulo me
explicou longamente a teoria do imperialismo, mas o que me atraiu mesmo
foram os textos políticos que ele me passou, a crítica do centralismo, a
visão revolucionária e democrática de Rosa Luxemburgo. Aderimos juntos a
uma pequena organização “luxemburguista”, a Liga Socialista
Independente, da qual também faziam parte Maurício Tragtenberg, Hermínio
Sacchetta e, alguns anos depois, os irmãos Sader. Tínhamos um local de
reuniões no centro de São Paulo que media 2 x 5 metros e cuja única
ornamentação era um quadro com um desenho que representava Rosa
Luxemburgo. Nessa época, recebi de minha mãe um exemplar das cartas de
prisão1 que ela havia trazido de Viena quando emigrou para o
Brasil, o que me permitiu apreciar melhor a dimensão humana e generosa
da revolucionária intransigente. Anos mais tarde, escrevi, sob a
orientação de Lucien Goldmann, uma tese sobre o jovem Marx, apresentada na Sorbonne em 19642, toda inspirada no marxismo de Rosa Luxemburgo. É uma paixão que dura até hoje.
MARXISMO E FILOSOFIA DA PRÁXIS
Quando publicou as Teses sobre Feuerbach [Em A ideologia alemã,
Boitempo 2007] de Marx, em 1888, Engels qualificou-as de “primeiro
documento em que está depositado o germe genial de uma nova concepção do
mundo”. Com efeito, nesse texto Marx supera dialeticamente – a famosa Aufhebung,
negação/conservação/superação – o materialismo e o idealismo anteriores
e formula uma nova teoria, que se poderia designar como filosofia da práxis.
Enquanto os materialistas franceses insistiam que é necessário mudar as
circunstâncias para que os seres humanos se transformem, os idealistas
alemães acreditavam que, ao promover uma nova consciência nos
indivíduos, modifica-se em seguida a sociedade. Contra essas duas
percepções unilaterais, que conduziam ao impasse – e à busca de um
“Grande Educador” ou Salvador Supremo – Marx afirma na Tese III: “A
coincidência da mudança das circunstâncias e da atividade humana, ou
mudança de si mesmo [Selbstveränderung], pode ser apreendida e racionalmente compreendida apenas enquanto práxis revolucionária”.
Em outros termos: na prática revolucionária, na ação coletiva
emancipadora, o sujeito histórico – as classes oprimidas – transforma ao
mesmo tempo as circunstâncias materiais e sua própria consciência. Marx
volta a essa problemática na Ideologia alemã, na qual escreve:
A
revolução, portanto, não é apenas necessária porque não há outro meio
de derrubar a classe dominante, mas porque a classe subversiva [stürzende] pode ter êxito apenas por meio de uma revolução para livrar-se de toda a velha merda [Dreck] e tornar-se assim capaz de efetuar uma nova fundação da sociedade.”3
Isso
significa que a autoemancipação revolucionária é a única forma possível
de libertação: é só por sua própria práxis, por sua experiência na ação,
que as classes oprimidas podem transformar sua consciência, ao mesmo
tempo que subvertem o poder do capital. É verdade que em textos
posteriores, como, por exemplo, no famoso prefácio de 1857 à Contribuição à crítica da economia política [em As armas da crítica,
Boitempo, 2012], encontramos uma versão muito mais determinista, que vê
a revolução como resultado inevitável da contradição entre forças e
relações de produção, mas o princípio da autoemancipação dos
trabalhadores continua a inspirar o pensamento político de Marx.
É Antonio Gramsci, nos Cadernos do cárcere [em As armas da crítica,
Boitempo, 2012], que vai utilizar pela primeira vez a expressão
“filosofia da práxis” para referir-se ao marxismo. Pretendem alguns que
isso seria apenas uma astúcia para enganar seus carcereiros fascistas,
que poderiam desconfiar de qualquer referência a Marx; mas esse
argumento não explica porque ele não usou outra fórmula, como “dialética
racional” ou “filosofia crítica”. Na verdade, com essa expressão, ele
define de modo preciso e coerente o que distingue o marxismo como visão
de mundo específica e distancia-se radicalmente das leituras
positivistas e evolucionistas do materialismo histórico.
A FILOSOFIA DA PRÁXIS NO PENSAMENTO DE ROSA LUXEMBURGO
Poucos
marxistas do século XX estiveram tão próximos do espírito dessa
filosofia marxista da práxis como Rosa Luxemburgo. Claro, ela não
escrevia textos filosóficos nem elaborava teorias sistemáticas – como
observa com razão Isabel Loureiro: “suas ideias, esparsas em artigos de
jornal, brochuras, discursos, cartas […] são muito mais respostas
imediatas à conjuntura do que uma teoria lógica e internamente coerente”4.
Ainda assim, a filosofia da práxis, que ela interpreta de maneira
original e criativa, é o fio condutor – no sentido elétrico da palavra –
de sua obra e de sua ação como revolucionária. Mas seu pensamento está
longe de ser estático: é uma reflexão em movimento, que se enriquece com
a experiência histórica. Tentaremos reconstituir a evolução de seu
pensamento por meio de alguns exemplos.
É verdade
que seus escritos são atravessados por uma tensão entre o determinismo
histórico – a inevitabilidade da derrocada do capitalismo – e o
voluntarismo da ação revolucionária. Isso se aplica em particular a seus
primeiros trabalhos, anteriores a 1914; Reforma ou revolução?,
de 1899, obra com que Rosa Luxemburgo se tornou conhecida no movimento
operário alemão e internacional, é um exemplo claro dessa ambivalência.
Contra Bernstein, insiste que a evolução do capitalismo se orienta no
sentido de um desmoronamento (Zusammenbruch) e que esse
desmoronamento é “a via histórica que conduz à realização da sociedade
socialista”. Trata-se, em última análise, de uma variante socialista da
ideologia do progresso linear e inevitável que dominou o pensamento
ocidental desde a Filosofia da Ilustração. O que salva seu argumento de
um economicismo fatalista é a pedagogia revolucionária da ação: “Somente
no curso […] de lutas demoradas e tenazes, poderá o proletariado chegar
ao grau de maturidade política que lhe permita obter a vitória
definitiva da revolução”5.
Essa pedagogia dialética da luta é também um dos principais eixos da polêmica com Lenin, em 1904:
É
somente no curso da luta que o exército do proletariado se recruta e
que ele toma consciência dos fins dessa luta. A organização, a
conscientização [Aufklärung] e o combate não são fases
distintas, mecanicamente separadas no tempo […] mas apenas aspectos
diversos de um único e mesmo processo.
É claro que a
classe pode se equivocar no curso desse combate, mas, em última
análise, “os erros cometidos por um movimento realmente revolucionário
são histórica e infinitamente mais fecundos e valiosos que a
infalibilidade do melhor ‘Comitê Central’”.
A
autoemancipação dos oprimidos implica a autotransformação da classe
revolucionária por sua experiência prática; esta, por sua vez, produz
não só a consciência – tema clássico do marxismo –, mas também a vontade:
O movimento histórico-universal [Weltgeschichtlich]
do proletariado até sua vitória é um processo cuja particularidade
reside no fato de que aqui, pela primeira vez na história, as próprias
massas populares impõem sua vontade contra as classes dominantes […].
Entretanto, as massas não podem conquistar essa vontade senão na luta
quotidiana com a ordem estabelecida, isto é, no quadro dessa ordem.6
Poderíamos comparar a visão de Lenin com a de Rosa Luxemburgo na seguinte imagem: para Vladimir Ilitch, redator do jornal Iskra,
a centelha revolucionária é trazida pela vanguarda política organizada,
de fora para dentro das lutas espontâneas do proletariado; para a
revolucionária judeu-polaca, a centelha da consciência e da vontade revolucionária se acende no combate, na ação de massas.
É verdade que sua visão de partido como expressão orgânica da classe
correspondia mais à situação na Alemanha do que na Rússia ou na Polônia,
onde já se colocava a questão da diversidade de partidos em relação ao
socialismo.
Os eventos
revolucionários de 1905 no Império Russo czarista vão amplamente
confirmar Rosa Luxemburgo em sua convicção de que o processo de tomada
de consciência das massas operárias resulta menos da atividade
“esclarecedora” do partido do que da experiência de ação direta e
autônoma dos trabalhadores:
É
o proletariado que vai derrubar o absolutismo na Rússia. Mas o
proletariado necessita para isso de um alto grau de educação política,
de consciência de classe e de organização. Todas essas condições não
podem surgir da leitura de panfletos e brochuras, mas somente na escola
da luta e na luta política viva, no curso da revolução em marcha. […] O
súbito levantamento geral [Generalerhebung] do proletariado em
janeiro, sob a forte impulsão dos acontecimentos de São Petersburgo,
foi, em sua ação dirigida para o exterior, um ato político de declaração
de guerra revolucionária ao absolutismo. Mas essa primeira ação geral
direta da classe teve um impacto ainda maior numa direção interna,
despertando pela primeira vez, como que por um choque elétrico [einen elektrischen Schlag], o sentimento e a consciência de classe em milhões e milhões de indivíduos.7
É verdade
que a fórmula polêmica sobre “panfletos e brochuras” parece subestimar a
importância da teoria revolucionária nesse processo; por outro lado, a
atividade política de Rosa Luxemburgo, que consistia em grande parte na
redação de artigos de jornais e de brochuras – sem falar de suas obras
teóricas no campo da economia política – demonstra, sem dar margem a
dúvidas, o significado decisivo que ela atribuía ao trabalho teórico e à
polêmica política no processo de preparação da revolução.
Na famosa brochura de 1906 sobre a greve de massas [publicado em As armas da crítica,
Boitempo 2012], Rosa Luxemburgo ainda utiliza os argumentos
deterministas tradicionais: a revolução ocorrera “com a necessidade de
uma lei da natureza”. Mas sua visão concreta do processo revolucionário
coincide com a teoria da revolução de Marx, tal como ele a desenvolve na
Ideologia alemã,
obra que ela não conhecia, já que só foi publicada depois de sua morte:
a consciência revolucionária não pode se generalizar senão no curso de
um movimento “prático”, a transformação “maciça” dos oprimidos só pode
se generalizar no curso da própria revolução. A categoria da práxis – que, para ela e para Marx, é a unidade dialética entre o objetivo e o subjetivo, a mediação pela qual a classe em si torna-se para si
– permite superar o dilema paralisante e metafísico da
social-democracia alemã, entre o moralismo abstrato de Bernstein e o
economicismo mecânico de Kautsky: enquanto, para o primeiro, a mudança
“subjetiva”, moral e espiritual dos “homens” é a condição do advento da
justiça social, para o segundo é a evolução econômica objetiva que leva
“fatalmente” ao socialismo. Isso permite entender melhor por que Rosa
Luxemburgo se opunha não só aos revisionistas neokantianos, mas também, a
partir de 1905, à estratégia de “atentismo” passivo defendida pelo
assim chamado “centro ortodoxo” do partido.
Essa mesma
visão dialética da práxis é que lhe permite superar o tradicional
dualismo encarnado no Programa de Erfurt do Partido Social-Democrata
Alemão entre as reformas (ou o “programa mínimo”) e a revolução (ou o
“objetivo final”). Pela estratégia da greve de massas que ela propõe em
1906 – contra a burocracia sindical – e em 1910 – contra Kautsky –, Rosa
Luxemburgo encontra precisamente o caminho capaz de transformar as
lutas econômicas ou o combate pelo sufrágio universal num movimento
revolucionário geral.
Ao contrário
de Lenin, que distingue a “consciência sindical” (trade-unionista) da
“consciência social-democrata”, ela sugere uma distinção entre a
consciência teórica latente, característica do movimento operário no período de dominação do parlamentarismo burguês, e a consciência prática e ativa,
que surge no processo revolucionário, quando as próprias massas, e não
apenas os deputados e dirigentes do partido, aparecem na cena política,
cristalizando sua “educação ideológica” diretamente na práxis; é
graças a essa consciência prático-ativa que as camadas menos
organizadas e mais atrasadas podem se tornar, em período de luta
revolucionária, o elemento mais radical. Dessa premissa decorre sua
crítica àqueles que baseiam sua estratégia política numa superestimação
do papel da organização na luta de classes – que se acompanha em geral
da subestimação do proletariado não organizado –, esquecendo a ação
pedagógica da luta revolucionária: “Seis meses de revolução farão mais
para a educação das massas atualmente não organizadas do que dez anos de
reuniões públicas e distribuição de panfletos”8.
Então, Rosa Luxemburgo é espontaneísta? Não é bem assim. Nessa brochura sobre Greve de massas, partido e sindicatos (1906) [em As armas da crítica,
Boitempo, 2012], ela insiste que o papel da “vanguarda consciente” não é
esperar “com fatalismo” que o movimento popular espontâneo “caia do
céu”. Ao contrário, seu papel é precisamente “preceder [vorauseilen] a evolução das coisas e tentar acelerá-la”.
Ela reconhece que o partido socialista deve tomar “a direção política”
da greve de massas, o que consiste em “dar à batalha sua palavra de
ordem, sua tendência, assim como a tática da luta política”; chega a
afirmar que a organização socialista é “a vanguarda [Vorhut]
dirigente de todo o povo trabalhador” e que “a clareza política, a
força, a unidade do movimento resultam precisamente dessa organização”9.
É
interessante observar que a organização polonesa dirigida por Rosa
Luxemburgo e Leo Jogiches, o Partido Social-Democrata do Reino da
Polônia e Lituânia (SDKPiL), clandestina e revolucionária, tinha mais
semelhanças com o partido bolchevique do que com a social-democracia
alemã. Deve-se também levar em conta, na discussão das concepções
organizacionais de Rosa Luxemburgo, suas teses sobre a Internacional
como partido mundial centralizado e disciplinado, propostas num
documento redigido em 1914, após o colapso da Segunda Internacional.
Por uma ironia da história, Karl Liebknecht, numa carta à amiga Rosa
Luxemburgo, tacha essa concepção da nova Internacional como
“demasiadamente centralista e mecânica”, com “‘disciplina’ em excesso e
muito pouca espontaneidade”, considerando as massas “demasiados
instrumentos da ação, não portadoras de vontade; mais como instrumentos
da ação desejados e decididos pela Internacional, e menos desejados e
decididos por elas mesmas”10.
O otimismo determinista (econômico) da teoria do Zusammenbruch,
a derrocada do capitalismo como vítima de suas próprias contradições,
não desaparece de seus escritos, mas, ao contrário, encontra-se no
centro de sua grande obra econômica A acumulação do capital [trecho em As armas da crítica,
Boitempo, 2012], de 1911. O texto que vai superar essa visão
tradicional do movimento socialista do começo do século é a brochura A crise da social-democracia,
escrita na prisão em 1915, publicada na Suíça em janeiro de 1916 e
assinada com o pseudônimo “Junius”. Esse documento, graças à palavra de
ordem “socialismo ou barbárie”, é um marco na história do pensamento
marxista. Curiosamente, o argumento de Rosa Luxemburgo começa
referindo-se às “leis inalteráveis da história”; ela observa que a ação
do proletariado “contribui para determinar a história”, mas parece
acreditar que se trata apenas de “acelerar ou retardar” o processo
histórico. Até aqui, nada de novo!
Logo em
seguida, porém, ela compara a vitória do proletariado a “um salto da
humanidade do reino animal para o reino da liberdade”, acrescentando:
esse salto não será possível “se a faísca incendiária [zündende Funke]
da vontade consciente das massas não surgir das circunstâncias
materiais que são fruto do desenvolvimento anterior”. Aqui aparece então
a famosa Iskra, essa centelha da vontade revolucionária que é
capaz de fazer explodir a pólvora seca das condições materiais. Mas o
que produz essa zündende Funke? É graças a uma “grande cadeia
de poderosas lutas” que “o proletariado internacional fará seu
aprendizado sob a direção da social-democracia e tentará tomar em suas
mãos sua própria história [seine Geschichte]”11. Em outras palavras: é na experiência prática da luta que se acende a centelha da consciência revolucionária dos oprimidos e explorados.
Ao
introduzir a expressão “socialismo ou barbárie”, Junius refere-se à
autoridade de Engels num escrito de “quarenta anos atrás” (o Anti-Dühring): “Friedrich Engels disse certa vez: ‘A sociedade burguesa acha-se num dilema: avanço ao socialismo ou regressão à barbárie’”12. Na verdade, o que disse Engels é bastante diferente:
As
forças produtivas engendradas pelo modo de produção capitalista
moderno, assim como o sistema de repartição dos bens que ele criou,
entraram em contradição flagrante com o modo de produção mesmo, e isso a
tal grau que se torna necessária uma mudança do modo de produção e de
repartição, se não quisermos ver toda a sociedade moderna perecer.13
O argumento
de Engels – essencialmente econômico e não político, como o de Junius – é
bem mais retórico, uma espécie de demonstração por absurdo da
necessidade do socialismo, senão a sociedade moderna vai “perecer” –
fórmula vaga que não se sabe bem a que se refere. Na verdade, foi Rosa
Luxemburgo quem inventou, no sentido pleno da palavra, a
expressão “socialismo ou barbárie”, que teria tanto impacto no curso do
século XX. Se se refere a Engels, é talvez para tentar dar legitimidade
maior a uma tese bastante heterodoxa. Evidentemente, foi a guerra – e o
desmoronamento do movimento operário internacional, em agosto de 1914 –
que terminou abalando sua convicção na vitória inevitável do socialismo.
Nos parágrafos seguintes, Junius desenvolve seu ponto de vista
inovador:
Nós
nos encontramos hoje, tal como profetizou Engels há uma geração, diante
da terrível opção: ou triunfa o imperialismo, provocando a destruição
de toda a cultura e, como na Roma Antiga, o despovoamento, a desolação, a
degeneração, um imenso cemitério, ou triunfa o socialismo, ou seja, a
luta consciente do proletariado internacional contra o imperialismo,
seus métodos, suas guerras. Tal é o dilema da história universal, sua
alternativa de ferro, sua balança oscilando no ponto de equilíbrio,
aguardando a decisão do proletariado.
Pode-se
discutir o significado do conceito de “barbárie”: trata-se, sem dúvida,
de uma barbárie moderna, “civilizada”, portanto a comparação com a Roma
Antiga é pouco útil e, nesse caso, a afirmação da brochura Junius
revela-se profética: o fascismo alemão, manifestação suprema da barbárie
moderna, resultou da derrota do socialismo. Contudo, o mais importante
na fórmula “socialismo ou barbárie” é a palavra “ou”: trata-se do
princípio de uma história aberta, de uma alternativa ainda não decidida
(pelas “leis da história” ou da economia), que depende, em última
análise, de fatores “subjetivos”: a consciência, a decisão, a vontade, a
iniciativa, a ação, a práxis revolucionária. Não insisto mais porque
escrevi já há muitos anos um artigo sobre essa questão14.
Como aponta Isabel Loureiro em seu belo livro, é verdade que mesmo na
brochura Junius, assim como em textos posteriores de Rosa Luxemburgo,
ainda encontramos referências ao colapso inevitável do capitalismo, à
“dialética da história” e à “necessidade histórica do socialismo”15.
Mas de alguma maneira, com a fórmula “socialismo ou barbárie”,
colocavam-se as bases de uma outra concepção da “dialética da história”,
distinta do determinismo econômico e da ideologia iluminista do
progresso inevitável.
Voltamos a
encontrar a filosofia da práxis no centro da polêmica de 1918 sobre a
Revolução Russa – outro texto capital redigido atrás das grades da
prisão. O teor desse documento é conhecido: de um lado, o apoio aos
bolcheviques, que, com Lenin e Trotsky à frente, salvaram a honra do
socialismo internacional, ousando a Revolução de Outubro; de outro, um
conjunto de críticas, algumas bastante discutíveis, como as questões
agrária e nacional, e outras, como o capítulo da democracia, que
aparecem como proféticas. O que preocupa a revolucionária
judeu-polaco-alemã é, acima de tudo, a supressão das liberdades
democráticas pelos bolcheviques: liberdade de imprensa, de associação e
de reunião, que são precisamente a garantia da “atividade política das
massas operárias”; sem elas, “é inconcebível a dominação das grandes
massas populares”. As tarefas gigantescas da transição ao socialismo –
“às quais os bolcheviques se apegaram com coragem e resolução” – não
podem ser realizadas sem “uma intensa educação política das massas e uma
acumulação de experiências”, impossíveis sem liberdades democráticas. A
construção de uma nova sociedade é uma “terra virgem”, que levanta
“problemas para milênios”; ora, “só a experiência é capaz de trazer as
correções necessárias e abrir novos caminhos”. O socialismo é um produto
histórico “nascido da própria escola da experiência”: o conjunto das
massas populares (Volksmassen) deve participar dessa
experiência, de outro modo “o socialismo é decretado, outorgado, por uma
dezena de intelectuais reunidos em torno de um pano verde”. Para os
inevitáveis erros do processo, “o único sol curativo e purificador é a
própria revolução e seu princípio renovador, a vida espiritual, a
atividade e a autorresponsabilidade [Selbstverantwortung] das massas que surgem com ela e formam-se na mais ampla liberdade política”16.
Esse
argumento é muito mais importante do que o debate sobre a Assembleia
Constituinte, no qual se concentraram as objeções “leninistas” ao texto
de 1918. Sem liberdades democráticas é impossível a práxis
revolucionária das massas, a autoeducação popular pela experiência
prática, a autoemancipação revolucionária dos oprimidos e o próprio
exercício do poder pela classe trabalhadora.
Georg
Lukács, em seu importante ensaio “Rosa Luxemburgo marxista”, de janeiro
de 1921, mostra com grande agudeza como, graças à unidade da teoria e da
práxis (formulada “por Marx em suas Teses sobre Feuerbach”),
Rosa Luxemburgo conseguiu superar o dilema da impotência dos movimentos
social-democratas, “o dilema do fatalismo das leis puras e da ética das
puras intenções”. O que significa essa unidade dialética?
Da mesma
forma que o proletariado como classe não pode conquistar e guardar sua
consciência de classe, elevar-se ao nível de sua tarefa histórica
(objetivamente dada) senão no combate e na ação, o partido e o militante
individual não podem apropriar-se realmente de sua teoria senão ao
passar essa unidade em sua práxis.17
Portanto, é
surpreendente que, apenas um ano mais tarde, em janeiro de 1922, Lukács
redija o ensaio “Comentários críticos sobre a crítica da Revolução Russa
em Rosa Luxemburgo”, que também vai figurar em Historia e consciência de classe
e em que ele rejeita em bloco o conjunto dos comentários dissidentes da
fundadora da Liga Espártaco, afirmando, ainda por cima, que ela “se
representa a revolução proletária nas formas estruturais das revoluções
burguesas”18 – uma acusação pouco crível, como mostra Isabel Loureiro19.
Como explicar a diferença, no tom e no conteúdo, entre o ensaio de
janeiro de 1921 e o de janeiro de 1922? Uma conversão rápida ao
leninismo ortodoxo? Possivelmente, mas também entra em jogo a posição de
Lukács em relação aos debates do comunismo alemão. Paul Levi, principal
dirigente do Partido Comunista Alemão, havia se oposto à “Ação de Março
de 1921”, uma tentativa fracassada de levante comunista na Alemanha,
que teve o apoio entusiasmado de Lukács, mas foi criticada por Lenin.
Excluído do partido, Paul Levi decide publicar em 1922 o manuscrito
sobre a Revolução Russa, que Rosa Luxemburgo havia lhe confiado em 1918.
A polêmica de Lukács com respeito a esse documento é também,
indiretamente, um acerto de contas com Paul Levi.
Na verdade, o
capítulo sobre democracia desse folheto de Rosa Luxemburgo é um dos
textos mais importantes do marxismo, do comunismo, da teoria crítica e
do pensamento revolucionário no século XX. E difícil imaginar uma
refundação do socialismo no século XXI que não leve em conta os
argumentos desenvolvidos nessas páginas febris. Os representantes mais
inteligentes do leninismo e do trotskismo, como Ernest Mandel,
reconheciam que essa crítica de 1918 ao bolchevismo, no que concerne à
questão das liberdades democráticas, era, em última análise,
justificada. É óbvio que a democracia à que se refere Rosa Luxemburgo é a
exercida pelos trabalhadores num processo revolucionário, e não a
“democracia de baixa intensidade” do parlamentarismo burguês, na qual as
decisões importantes são tomadas por banqueiros, empresários, militares
e tecnocratas.
A zündende Funke,
a centelha incendiária de Rosa Luxemburgo, brilhou uma última vez em
dezembro de 1918, na conferência diante do congresso de fundação do
Partido Comunista Alemão (Liga Espártaco). Ainda encontramos nesse texto
referências à “lei do desenvolvimento objetivo e necessário da
revolução socialista”, mas trata-se, na realidade, da “amarga
experiência” que várias forças do movimento operário têm de fazer antes
de encontrar o caminho revolucionário. As últimas palavras dessa
memorável conferência são diretamente inspiradas pela perspectiva da
práxis autoemancipadora dos oprimidos:
É
só exercendo o poder que a massa aprende a exercer o poder. Não há
outra maneira de ensinar-lhe. Nós já superamos, felizmente, o tempo em
que se pretendia ensinar o socialismo ao proletariado. Aparentemente
esse tempo ainda não passou para os marxistas da escola de Kautsky.
Educar as massas queria dizer: fazer-lhes discursos, difundir panfletos e
brochuras. Não, a escola socialista dos proletários não necessita de
nada disso. Sua educação se faz quando eles passam à ação [zur Tat greifen].
Aqui Rosa Luxemburgo vai se referir a uma famosa frase de Goethe: Am Anfang war die Tat!
No começo de tudo não se encontra o Verbo, mas a Ação! Nas palavras da
revolucionária marxista: “No começo era a Ação, tal é aqui nossa divisa;
e a ação é quando os conselhos de operários e de soldados se sentem
chamados a tornar-se a única força pública do país e aprendem a sê-lo”20. Poucos dias depois, ela seria assassinada pelos paramilitares (Freikorps) mobilizados pelo governo social-democrata contra o levante dos operários espartaquistas de Berlim.
Rosa
Luxemburgo não era infalível, cometeu erros como qualquer ser humano e
qualquer militante, e suas ideias não constituem um sistema teórico
fechado, uma doutrina dogmática para ser aplicada em qualquer lugar e em
qualquer época. Mas, sem dúvida, seu pensamento é uma caixa de
ferramentas preciosa para tentar desmontar a máquina capitalista que nos
tritura. Não é por acaso que ela se tornou nos últimos anos, em
particular na América Latina, uma das referências mais importantes do
debate acerca de um socialismo do século XXI, capaz de superar os
impasses das experiências reivindicando o socialismo do século passado,
seja a social-democracia, seja o stalinismo. Sua oposição
irreconciliável ao capitalismo e ao imperialismo, sua concepção de um
socialismo revolucionário e ao mesmo tempo democrático, baseado na
práxis autoemancipadora dos trabalhadores, na autoeducação pela
experiência e pela ação das grandes massas populares, é de uma
impressionante atualidade, sobretudo aqui, no Brasil e na América
Latina.
Dizem os
jornais que recentemente, noventa anos após sua morte, seu corpo teria
sido encontrado. Haverá um novo enterro de Rosa Luxemburgo? Por mais que
a enterrem uma e outra vez, não conseguirão libertar-se de seu
espectro. A centelha incendiária de suas ideias ninguém conseguirá
apagar.
* Artigo originalmente publicado no número 15 da revista semestral Margem Esquerda – Ensaios Marxistas
da Boitempo, com o título, “A centelha se acende na ação: a filosofia
da práxis no pensamento de Rosa Luxemburgo”, e recuperado aqui, no Blog da Boitempo,
no contexto do especial “Dia da mulher, dia da luta feminista”, no
aniversário de 144 anos de nascimento da revolucionária e teórica
marxista.
NOTAS
1 Rosa Luxemburgo, Briefe (Berlim, Verlag der Jugend-Internationale, 1927).
2 Essa tese está disponível no Brasil com o título A teoria da revolução do jovem Marx (Boitempo, 2013).
3 Karl Marx e Friedrich Engels, L’idéologie allemande (Paris, Éditions Sociales, 1968), VI, p. 243. [Ed. bras.: A ideologia alemã, São Paulo, Boitempo, 2007.]
4 Isabel Loureiro, Rosa Luxemburgo: os dilemas da ação revolucionária (São Paulo, Unesp, 1995), p. 23.
5 Rosa Luxemburgo, Reforma ou revolução?
(São Paulo, Expressão Popular, 1999), p. 24, 41 e 105. Cito a tradução
brasileira, de Lívio Xavier, bela figura de militante e intelectual que
ainda cheguei a conhecer.
6 Idem, “Organisationsfragen der russischen Sozialdemokratie” (1904), em Die Russische Revolution (Frankfurt, Europäische Verlagsanstalt, 1963), p. 27-8, 42 e 44. [Ed. bras.: A Revolução Russa, Petrópolis, Vozes, 1991.]
7 Idem, “Massenstreik, Partei und Gewerkschaften”, em Gewerkschaftskampf und Massenstreik (Berlim, Vereinigung Internationaler Verlagsanstalten, 1928, p. 426-7) [ed. bras.: Greve de massas, partido e sindicatos, São
Paulo, Kayros, 1979]. Trata-se de uma coletânea de ensaios de Rosa
Luxemburgo sobre a greve de massas, organizada por seu excelente
discípulo e biógrafo Paul Frölich, excluído nos anos 20 do Partido
Comunista. Consegui esse livro num sebo em Tel-Aviv; o exemplar tinha o
carimbo do Kibutz Ein Harod, “Seminário de Ideias, Biblioteca Central”. O
proprietário do livro era, sem dúvida, um esquerdista judeu-alemão que
emigrou para a Palestina em 1933 e entregou sua biblioteca ao kibutz
onde se instalou. Com a morte dos velhos militantes do kibutz, e como a
nova geração não lê alemão, a biblioteca vendeu ao sebo seu estoque de
livros na língua de Marx.
8 Ibidem, p. 455-7.
9 Ibidem, p. 445 e 457.
10 Ver Karl
Liebknecht, “À Rosa Luxemburg: remarques à propos de son projet de
thèses pour le groupe ‘Internationale’”, Partisans, n. 45, jan. 1969, p.
113.
11 Rosa Luxemburgo, Brochura Junius, em Rosa, a vermelha (2. ed., São Paulo, Busca Vida, 1988), p. 114-5, corrigido pelo original alemão Die Krise der Sozialdemokratie von Junius
(Bern, Unionsdruckerei, 1916), p. 11. Essa cópia da edição original
pertenceu a meu professor e orientador Lucien Goldmann; recebi-a
recentemente de sua viúva, Annie Goldmann.
12 Ibidem, p. 115.
13 Friedrich Engels, Anti-Dühring (Boitempo, 2015).
14 Michael Löwy, “O significado metodológico da fórmula ‘socialismo ou barbárie’”, em Método dialético e teoria política (3. ed., São Paulo, Paz e Terra, 1985).
15 Isabel Loureiro, Rosa Luxemburg, cit., p. 123.
16 Rosa Luxemburgo, “A Revolução Russa”, em Rosa, a vermelha, cit., p. 217-22, corrigido pelo original alemão, Die Russische Revolution, cit., p. 73-6.
17 Georg Lukács, “Rosa Luxemburg, marxiste”, em Histoire et conscience de classe (Paris, Minuit, 1960), p. 65. [Ed. bras.: História e consciência de classe, São Paulo, Martins Fontes, 2003.]
18 Ibidem, p. 321.
19 Isabel Loureiro, Rosa Luxemburg, cit., p. 85-8.
20 Rosa Luxemburgo, “Rede zum Programm der KPD (Spartakusbund)”, em Ausgewählten Reden und Schriften (Berlim,
Dietz Verlag, 1953), Band II, p. 687. A edição que estou utilizando
aqui tem uma história curiosa: trata-se de uma coletânea de ensaios de
Rosa Luxemburgo editada pelo “Marx-Engels-Lenin-Stalin Institut beim ZK
der SED”, com prefácio de Wilhelm Pieck, dirigente stalinista da
República Democrática Alemã, e introduções de Lenin e Stalin, com
críticas aos “erros” da autora. Comprei esse exemplar num sebo e
descobri que trazia uma dedicatória em inglês, datada de 1957, assinada
por “Tamara e Isaac” – sem dúvida, Tamara e Isaac Deutscher –, em que
pediam desculpas por não terem encontrado uma edição sem todas essas
supérfluas “introduções”!
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Fonte: http://blogdaboitempo.com.br/
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