POR MARÍLIA MOSCHKOVICH
Duas perguntas, sobre o novo fenômeno. Por que o papel das meninas parece tão secundário? E por que a masculinidade negra é tão reprimida?
Por Marília Moschkovich, na coluna Mulher Alternativa
No meio de todo o auê sobre os tais rolezinhos, me peguei encafifada: ninguém falou uma palavra sobre a maneira como o gênero incide ali. Mas isso se dá em tantos aspectos que já peço desculpas, de antemão, caso não consiga me expressar bem neste breve texto.
“Gênero” é parte de nossas vidas o tempo todo, em praticamente tudo que fazemos, e não só quando debatemos mercado de trabalho, militância feminista, transgeneridade e uso de banheiros públicos. É um sistema de pensamento que se retroalimenta com nossas ações. Isso quer dizer que faço um monte de coisas como “mulher” por causa desse sistema; mas ao mesmo tempo, quando as faço, reforço o sistema. É uma via de mão dupla, melhor explicada em textos como estes (123). O ponto da coisa é que nossa maneira de pensar, ver o mundo e existir nele está pautada por um esquema que associa uma série de características a “ser homem” e “ser mulher”, além de contar com um leque limitado de categorias que não necessariamente expressa a diversidade e pluralidade existencial da humanidade.
Acontece que, como as feministas negras vêm dizendo — ou melhor berrando (pois foi preciso muito pulmão pra se fazer ouvir) — nas últimas décadas, não existe gênero “puro”. Quer dizer, as opressões produzidas por esse sistema (que é cissexista,machista e heteronormativo) entrelaçam-se com outros sistemas, como de relações raciais, sabidamente racista. Inseridos num contexto capitalista, então, esses dois conjuntos de forças se tornam ainda mais complexos, associando-se às relações entre classes sociais.
Muito já foi muito — e bem — sobre as questões raciais e de classe envolvendo os rolezinhos e, sobretudo, a reação da classe média/alta branca e dos empresários ao fenômeno. Mas, e o gênero? Pois as relações de gênero me saltam aos olhos em dois pontos específicos dos rolês.
Em primeiro lugar, na ausência de meninas. Já repararam como as fotos, entrevistas, depoimentos e afins são em geral de meninos? As meninas aparecem quase exclusivamente nos discursos desses meninos, como “gatas” que beijam ou “fãs” que encontram durante os eventos. O único depoimento mais detalhado de uma menina, que eu me lembre de ter lido, foi justamente de uma fã contando como gastava seu salário em presentes para os ídolos da internet. Dá pra destrinchar essa ausência de meninas em diferentes novas perguntas:
Será que os rolezinhos são sempre organizados por meninos? Ou será que os jornalistas entrevistam mais os meninos? Quem sabe há meninas organizando rolezinhos, mas que se omitem na hora de vir a público? Em qualquer um dos casos, há reforço de uma hierarquia de gênero historicamente construída, que relega às mulheres o espaço privado e aos homens o espaço público, a figura de porta-vozes, ou os papeis de liderança – seja do que for.
Me pergunto ainda se há meninas-ídolo, também (o que não apareceu em absolutamente nenhuma reportagem até agora – por quê?). Mais ainda, se os fãs dessas meninas gastam todo seu salário com as “ídolas” – o que acho improvável. Na maneira corrente de pensar, em nossa sociedade, mulher não vale tanto assim. Muito menos se fica se expondo publicamente. Não à toa, me parece que as poucas “ídolas” que encontrei pelo Facebook têm significativamente menos seguidores e fãs do que os ídolos homens. Arrisco dizer que o raciocínio é relativamente simples: mulher que “tem valor” não fica aí, sendo adorada por muitos e, se “não tem valor”, não vou dar minha “preciosa” curtida/seguida. A mentalidade machista que busca controlar a vida sexual e, sobretudo, o corpo das mulheres, aparece escancarada nessas variações, assimetrias e desigualdades entre os papéis de meninas e meninos na história toda dos rolezinhos.
Ao mesmo tempo, em segundo lugar, é impossível olhar para a reação abusiva da polícia com essas crianças (é isso, sim que são: crianças) e não reconhecer a criminalização da masculinidade negra. Se, por um lado, esses meninos encontram-se em posição de privilégio em relação ás “fãs”, “gatas” e meninas que frequentam os rolezinhos, por outro são massacrados quando seu gênero se associa à classificação racial fenotípica de “negro” (que nada, mas nadinha de nada mesmo tem a ver com condições biológicas – ou alguém viu policial com teste de DNA instantâneo por aí? Ou alguém ainda acredita que “raça” possa ser definida geneticamente?).
Uma das razões pelas quais as imagens que vemos dos rolezinhos têm poucas ou nenhuma mulher, é porque são imagens ligadas aos momentos de repressão dos participantes. Se a mulher negra sofre, por um lado, todo o peso do entrelaçamento de dois sistemas cruéis de pensamento (gênero e raça), em nosso contexto atual também existe uma criminalização forte dos homens negros. Há, em curso, um genocídio dessa fatia da nossa população à qual grande parte dos organizadores e frequentadores dos rolezinhos pertencem. Isso se dá pela condição racial de negro, mas especialmente pela condição generificada de homem.
Não é à toa que os homens negros são a maior parte da nossa população carcerária, nem que os jovens homens negros estão na mira das armas de fogo da polícia. Existe todo um sistema intercruzado de gênero e raça que os coloca vulneráveis nessa batalha contra a população pobre e negra, de uma maneira muito singular. Alguns bons textos sobre isso podem ser lidos aqui, aqui e especialmente aqui.
É impossível, portanto, acompanhar as notícias, comentários, entrevistas e análises sobre os rolezinhos, ignorando a questão de gênero. Ou melhor, é possível: contanto que se assuma que há uma fatia imensa da coisa sendo jogada para baixo do tapete.
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