É Natal. As luzes brilham, clareando as noites citadinas (apenas nas áreas centrais, pois as periferias continuam mal iluminadas). As redes de televisão intimam-nos para comparecimento aos templos do consumo. E as crianças sonham que o “papai Noel” virá lhes deixar o presente que tanto almejam.
O comércio está aí, aberto de domingo a domingo para que o “bom velhinho” possa buscar o brinquedo, a roupa, o eletrodoméstico, o calçado, o carro novo, enfim, algo que possa satisfazer o desejo estimulado pela mídia, não só dos pequeninos, mas também dos adultos, cuja mente é também povoada de fantasias infantis.
Preocupa também a preparação da ceia farta para comemorar um aniversário especial no dia 25 de dezembro, no Mundo inteiro, pelo menos na porção ocidental do planeta (e em vários pontos do Oriente, sem dúvida).
Somente um extraterrestre desavisado não saberia que nessa data, há 2012 anos (pois o novo tempo começou a ser contado com seu nascimento), vinha à luz na Palestina um ser especial, que ficou conhecido como Jesus de Nazaré, o Cristo.
Teria sido ele um rei cioso de luxo e suntuosidade, tal qual seu antecessor Salomão? Até parece. Mas quem lembra que Jesus, um homem “manso e humilde de coração”, filho de um pobre carpinteiro galileu, se exasperou quando, ao visitar o templo de Jerusalém, encontrou à sua porta um sem-número de comerciantes lucrando com a fé das pessoas. “A Casa do meu Pai é casa de oração e não covil de ladrões”, esbravejou Jesus, ao tempo em que descia o chicote no lombo dos exploradores e junto com os discípulos virava as bancas cheias de mercadorias. (Evangelho de João, 2. 13-16)
Tudo era Comum
As primeiras comunidades cristãs buscavam viver exatamente o que pregara e praticara o Mestre. “Tudo o que tinham era colocado em comum, e não havia necessitados entre eles” (Atos dos Apóstolos).
Naquele tempo, as pessoas não costumavam comemorar aniversários. Lembravam sempre Jesus e tinham como datas especiais A Páscoa/ressurreição. Como Ele pedira, a reverência era feita em ceias coletivas, ocasião em que os novos adeptos colocavam seus pertences à disposição da Comunidade e todos partilhavam o resultado de seu trabalho. Sem esquecer, naturalmente, de orar em ações de graças.
Pregando e praticando a igualdade, a partilha e a cooperação mútua, o cristianismo se firmou como religião dos escravos e dos pobres, se espalhando por todo o Mundo então conhecido, inclusive em Roma, sede do Império.
Foi duramente perseguida, com freqüentes assassinatos de líderes e do próprio povo cristão, na cruz ou lançados à fúria de leões famintos nos circos romanos.
Em vez de afastar, o martírio atraía novos adeptos. E enquanto o império decaía econômica, política e moralmente, os cristãos eram exemplo de retidão, honestidade e cumprimento dos deveres.
Os ricos começaram a aderir à nova religião, que ganhou a liberdade de culto no ano 313, no governo do convertido imperador Constantino e se tornou religião oficial do Império em 380, no governo de Teodósio I.
Acontece que os ricos não aceitavam colocar em comum todos os seus bens, oferecendo apenas uma pequena parte à Comunidade. As comunidades resistiram, mas foram convencidas por dirigentes do quilate de um Paulo de Tasso (São Paulo), para quem era bastante a Fé e a Caridade.
Não foi fácil a aceitação dessa mudança, como mostra a Epístola de Tiago: “…Vossas riquezas, ó ricos, entrarão em decomposição. Vossas roupas luxuosas ficarão podres e serão devoradas pelos vermes. Vosso ouro e vossa prata serão corroídos pela ferrugem porque todos os ricos acumulam poderes roubando os salários dos operários que lavram os campos”.
A esmola substitui a partilha. Para festejar a memória de Jesus, em vez de refeição compartilhada, a distribuição de uma sopa para os mais pobres e miseráveis já seria o suficiente. Ficaram cada vez mais raras, clamando no deserto, as vozes de sacerdotes em defesa da vida comunitária, a exemplo de São Gregório de Nissa (de Capadócia, atual Turquia), que admoestava: “…Talvez dês esmolas. Mas de onde as tiras senão de tuas rapinas cruéis, do sofrimento, das lágrimas, dos suspiros? Se o pobre soubesse de onde vem o teu óbulo, ele o recusaria porque teria a impressão de morder a carne de seu irmão e sugar o sangue de seu próximo. Ele te diria estas palavras corajosas: não sacies a minha sede com lágrimas de meus irmãos. Não dês ao pobre o pão endurecido com os soluços de seus companheiros de miséria. De que vale consolar um pobre, se tu o fazes outros cem?”
Não adiantou. “No século IV, os elementos comunistas do cristianismo refugiaram-se nos claustros ou foram perseguidos como hereges” (Max Beer, História das Lutas Sociais e do Socialismo). Eles ressurgiriam na Idade Média, mas foram eliminados nos porões da Inquisição. Renascem outra vez no século XX, com a Teologia da Libertação, dão avanços institucionais com o Concílio Vaticano II, mas retroagem completamente nos dois últimos papados.
Os cismas da Idade Média que originaram novas igrejas cristãs (Luteranismo, Calvinismo…) não pregavam o retorno às Comunidades. Ao contrário, se propuseram a adequar a doutrina e a estrutura ao capitalismo que avançava, enquanto a Igreja Católica era muita presa ao sistema feudal. Hoje, as neopentecostais adotaram a chamada Teologia da Prosperidade, a qual define que enriquecer é divino. O bispo Edir Macedo, da Igreja Universal, diz com todas as letras que sua relação com Deus é uma parceria de negócios: toma lá-dá cá, por sinal exitosa, pois está montando um verdadeiro império, que abrange países de todos os continentes.
E a Verdade vos Libertará, dissera Cristo
A comemoração do nascimento do Cristo (e a data escolhida-25 de dezembro) – foi decretada pelo imperador romano Justiniano (527-565), para absorver a festa pagã milenar Saturnália, em homenagem ao deus da Agricultura (Saturno). Era um mês de bacanais, comida farta, desregramento total (lembra um pouco o nosso carnaval).
As Escrituras não registram o dia do nascimento de Jesus. Mas a data não tem tanta importância, e sim, o conteúdo das celebrações.
O capitalismo, que transforma tudo em mercadoria e objeto de lucro, não poderia perder a oportunidade. A vida de um homem simples “vim para os pobres e pecadores”, que nasceu numa manjedoura e morreu numa cruz, foi transformada em data suprema do consumo. Arrasta multidões aos shoppings, lojas, supermercados, etc., Ou seja, em vez de festejado, o Filho do Homem é novamente crucificado a cada final de ano (para não dizer o ano todo).
E para envolver as crianças, criaram a lenda do Papai Noel, o bom velhinho de barbas brancas que vem deixar presentes nas casas, na calada da noite. A inspiração foi em São Nicolau Taumaturgo, conterrâneo e contemporâneo de São Gregório, mas que pensava diferente dele. Costumava encher um saco de moedas de ouro e, às escondidas, sair deixando nas casas das pessoas necessitadas.
Nem se preocupam que estão deseducando as crianças, pois induzindo-as a acreditar numa mentira e formando um espírito consumista. E as que não recebem os presentes sonhados? Muitas ainda são chantageadas pelas mães (e pais): “Ah! Papai Noel não veio porque você não se comportou direito este ano. Seja sempre obediente, estudioso, etc., e no próximo ano ele traz seu presente”.
Com o tempo, elas descobrirão como Assis Valente (compositor brasileiro) que nem todo mundo é filho de papai Noel. Constatarão que “…já faz tempo que pedi mas o meu papai Noel não vem. Com certeza já morreu ou então felicidade é brinquedo que não tem”.
O desencanto com o sistema capitalista pode ser canalizado para o engajamento na luta pela transformação da sociedade. Aí está um desafio essencial para os movimentos sociais e organizações políticas que visam a essa transformação. Caso contrário, a revolta individual leva, como tem levado, facilmente ao banditismo (tráfico de drogas, assalto, etc.) como forma de acesso aos bens de consumo tão propagados pela mídia, status, poder, enfim, aos valores inerentes ao capitalismo.
Um Mundo sem Senhor nem Escravos!
O mês de dezembro é ainda caracterizado pelas caminhadas pela Paz em nosso país. Mas não basta manifestar o desejo de paz. Ela só acontecerá se forem superadas as causas da violência que se encontram na dominação e exploração de classe.
Lembremos a Oração pela Paz, pronunciada por dom Helder Câmara, na Missa dos Quilombos celebrada na Praça do Carmo, Recife, em 22 de novembro de 1981, no mesmo lugar onde foi exibida a cabeça do líder negro Zumbi dos Palmares. Depois de dizer que em vez de armas, o mundo precisa fabricar é paz, dom Helder descreve os requisitos para que reine a paz: “…Basta de injustiças, de uns sem saber o que fazer com tanta terra e milhões sem um palmo de terra onde morar. Basta de uns tendo de vomitar pra poder comer mais e 50 milhões morrendo de fome num ano só. Basta de uns com empresas se derramando pelo Mundo todo e milhões sem um canto onde ganhar o pão de cada dia. Mariama, Nossa Senhora, Mãe querida, Nem precisa ir tão longe como no teu hino. Nem precisa que os ricos saiam de mãos fazias e os pobres de mãos cheias. Nem pobre nem rico. Nada de escravo de hoje ser senhor de escravos amanhã. Basta de escravos. Um mundo sem senhor e sem escravos. Um mundo de irmãos. De irmãos não só de nome e de mentira. De irmãos de verdade” .
Pois, celebrar o nascimento de Cristo, para os verdadeiros cristãos é trilhar o caminho em vista desse mundo novo de que fala dom Helder. Repetindo, a pergunta de Lennon, o que temos feito para romper com este sistema decadente que, enquanto mais agoniza mais massacra povos e nações, e caminhar para um mundo sem explorados nem exploradores, sem pobres nem ricos, um mundo de irmãos, de partilha, onde cada um contribua conforme às suas capacidades e receba segundo as suas necessidades? Dependendo da resposta, você estará crucificando Jesus Cristo mais uma vez ou então deixando-o muito feliz com a comemoração do seu aniversário. Ele nem vai se importar se a data não está correta…“
Então, Bom Natal, Ano Novo também, e que seja feliz quem souber o que é o Bem!” (John Lennon).
José Levino, historiador
Fonte: http://averdade.org.br
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