sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Reflexões sobre a construção de uma educação realmente libertadora... por Paulo Freire...



[...] não é a conscientização que pode levar o povo à “fanatismos destrutivos”. Pelo contrário, a conscientização, que lhe possibilita inserir-se no processo histórico, como sujeito, evita os fanatismos e o inscreve na busca de sua afirmação.
“Se a tomada de consciência abre o caminho à expressão das insatisfações sociais, se deve a que estas são componentes reais de uma situação de opressão”.
O medo da liberdade, de que necessariamente não tem consciência o seu portador, o faz ver o que não existe. No fundo, o que teme a liberdade se refugia na segurança vital, como diria Hegel , preferindo- a à liberdade arriscada.
Raro, porém, o que manifesta explicitamente este receio da liberdade. Sua tendência é, antes, camufla-la, num jogo manhoso, ainda que, às vezes, inconsciente. Jogo artificioso de palavras em que aparece ou pretende aparecer como o que defende a liberdade e não como o que a teme.
As suas dúvidas e inquietações empresta um ar de profunda seriedade. Seriedade de quem fosse o zelador da liberdade. Liberdade que se confunde com a manutenção do status quo. Por isto, se a conscientização põe em discussão este status quo ameaça, então, a liberdade.
As afirmações que fazemos neste ensaio, não são, de um lado, fruto de devaneios intelectuais nem tampouco, de outro, resultam, apenas, de leituras, por mais importantes que nos tenham sido estas.
Estão sempre ancoradas, como sugerimos no inicio destas páginas, em situações concretas. Expressam reações de proletários, camponeses ou urbanos, e de homens de classe média, que vimos observando, direta ou indiretamente, em nosso trabalho educativo. Nossa intenção e continuar com estas observações para retificar ou ratificar, em estudos posteriores, pontos afirmados neste ensaio. Ensaio que, provavelmente, irá provocar em alguns de seus possíveis leitores, reações sectárias.
Entre estes, haverá, talvez, os que não ultrapassarão suas primeiras páginas. Uns, por considerarem a nossa posição, diante do problema da libertação dos homens, como uma posição idealista a mais, quando não um "blablablá” reacionário. “Blablablá” de quem se “perde” falando em vocação ontológica, em amor, em diálogo, em esperança, em humildade, em simpatia. Outros, por não quererem ou não poderem aceitar as criticas e a denuncia que fazemos da situação opressora, situação em que os opressores se “gratificam”, através de sua falsa generosidade.
Daí que seja este, com todas as deficiências de um ensaio puramente aproximativo, um trabalho para homens radicais. Cristãos ou marxistas, ainda que discordando de nossas posições, em grande parte, em parte ou em sua totalidade, estes, estamos certos, poderão chegar ao fim do texto.
Na medida, porém, em que, sectariamente, assumam posições fechadas, “irracionais”, rechaçarão o diálogo que pretendemos estabelecer através deste livro.[...]

[ ...]É que a sectarização é sempre castradora, pelo fanatismo de que se nutre. A radicalização, pelo contrário, é sempre criadora, pela criticidade que a alimenta. Enquanto a sectarização é mítica, por isto alienante, a radicalização é critica, por isto libertadora. Libertadora porque, implicando no enraizamento que os homens fazem na opção que fizeram, os engaja cada vez mais no esforço de transformação da realidade concreta, objetiva.
A sectarização, porque mítica e irracional, transforma a realidade numa falsa realidade, que, assim, não pode ser mudada.
Parta de quem parta, a sectarização é um obstáculo à emancipação dos homens. Daí que seja doloroso observar que nem sempre o sectarismo de direita provoque o seu contrário, isto é, a radicalização do revolucionário.
Não são raros os revolucionários que se tornam reacionários pela sectarização em que se deixam cair, ao responder à sectarização direitista.
Não queremos, porém, com isto dizer que o radical se torne dócil objeto da dominação.
Precisamente porque inscrito, como radical, num processo de libertação, não pode ficar passivo diante da violência do dominador.
Por outro lado, jamais será o radical um subjetivista. É que, para ele, o aspecto subjetivo toma corpo numa unidade dialética com a dimensão objetiva da própria idéia, isto é, com os conteúdos concretos da realidade sobre a qual exerce o ato cognoscente. Subjetividade e objetividade, desta forma, se encontram naquela unidade dialética de que resulta um conhecer solidário com o atuar e este com aquele. É exatamente esta unidade dialética a que gera um atuar e um pensar certos na e sobre a realidade para
transformá - la. O sectário, por sua vez, qualquer que seja a opção de onde parta na sua “irracionalidade” que o cega, não percebe ou não pode perceber a dinâmica da realidade ou a percebe equivocadamente.
Até quando se pensa dialético, a sua é uma “dialética domesticada”.
Esta é a razão, por exemplo, por que o sectário de direita que, no nosso ensaio anterior, chamamos de “sectário de nascença” pretende frear o processo, “domesticar” o tempo e, assim, os homens. Esta é a razão também porque o homem de esquerda, ao sectarizar- se, se equivoca totalmente na sua interpretação “dialética” da realidade, da história, deixando- se cair em posições fundamentalmente fatalistas.
Distinguem- se, na medida em que o primeiro pretende “domesticar” o presente para que o futuro, na melhor das hipóteses, repita o presente “domesticado”, enquanto o segundo transforma o futuro em algo pré-estabelecido, uma espécie de fado, de sina ou  de destino irremediáveis. Enquanto, para o primeiro, o hoje ligado ao passado, é algo dado e imutável; para o segundo, o amanhã é algo pré-dado, prefixado inexoravelmente. Ambos se fazem reacionários porque, a partir de sua falsa visão da história, desenvolvem um e outro formas de ação negadoras da liberdade. É que, o fato de um conceber o presente “bem comportado” e o outra, o futuro como predeterminado, não significa que se tornem espectadores, que cruzem os braços, o primeiro, esperando a manutenção do presente, uma espécie de volta ao passado; o segundo, à, espera de que o futuro já “conhecido” se instale.
Pelo contrário, fechando- se em um “circulo de segurança”, do qual não podem sair, estabelecem ambos a sua verdade. E esta não é a dos homens na luta para construir o futuro, correndo o risco desta própria construção. Não é a dos homens lutando e aprendendo, uns com os outros, a edificar este futuro, que ainda não está dado, como se fosse destino, como se devesse ser recebido pelos homens e não criado por eles.
A sectarização, em ambos os casos, é reacionária porque, um e outro, apropriando- se do tempo de cujo saber se sentem igualmente proprietários, terminam sem o povo, uma forma de estar contra ele.
Enquanto o sectário de direita, fechando- se em "sua” verdade, não faz mais do que o que lhe é próprio, o homem de esquerda, que se sectariza e também se encerra, é a negação de si mesmo. Um, na posição que lhe é própria; o outro, na que o nega, ambos girando em torno de “sua” verdade, sentem- se abalados na sua segurança, se alguém a discute. Dai que lhes se já necessário considerar como mentira tudo o que não seja a sua verdade. "Sofrem ambos da falta de dúvida”. O radical, comprometido com a libertação dos homens, não se deixa prender em “círculos de segurança”, nos quais aprisione também a realidade. Tão mais radical, quanto mais se inscreve nesta realidade para,
conhecendo- a melhor, melhor poder transformá- la.
Não teme enfrentar, não teme ouvir, não teme o desvelamento do mundo. Não teme o encontro com o povo. Não teme o diálogo com ele, de que resulta o crescente saber de ambos5 . Não se sente dono do tempo, nem dono dos homens, nem libertador dos oprimidos. Com eles se compromete, dentro do tempo, para com eles lutar.
Se a sectarização, como afirmamos, é o próprio do reacionário, a radicalização é o próprio do revolucionário. Dai que a pedagogia do oprimido, que implica numa tarefa radical, cujas linhas introdutórias pretendemos apresentar neste ensaio e a própria leitura deste texto não possam ser realizadas por sectários.

Fonte: PRIMEIRAS PALAVRAS - Pedagogia do Oprimido - Paulo Freire

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