[...] não é a
conscientização que pode levar o povo à “fanatismos destrutivos”. Pelo contrário,
a conscientização, que lhe possibilita inserir-se no processo histórico, como
sujeito, evita os fanatismos e o inscreve na busca de sua afirmação.
“Se a tomada de
consciência abre o caminho à expressão das insatisfações sociais, se deve a que
estas são componentes reais de uma situação de opressão”.
O medo da
liberdade, de que necessariamente não tem consciência o seu portador, o faz ver
o que não existe. No fundo, o que teme a liberdade se refugia na segurança
vital, como diria Hegel , preferindo- a à liberdade arriscada.
Raro, porém, o
que manifesta explicitamente este receio da liberdade. Sua tendência é, antes, camufla-la,
num jogo manhoso, ainda que, às vezes, inconsciente. Jogo artificioso de
palavras em que aparece ou pretende aparecer como o que defende a liberdade e
não como o que a teme.
As suas dúvidas
e inquietações empresta um ar de profunda seriedade. Seriedade de quem fosse o zelador
da liberdade. Liberdade que se confunde com a manutenção do status quo.
Por isto, se a conscientização põe em discussão este status quo ameaça,
então, a liberdade.
As afirmações
que fazemos neste ensaio, não são, de um lado, fruto de devaneios intelectuais
nem tampouco, de outro, resultam, apenas, de leituras, por mais importantes que
nos tenham sido estas.
Estão sempre
ancoradas, como sugerimos no inicio destas páginas, em situações concretas.
Expressam reações de proletários, camponeses ou urbanos, e de homens de classe
média, que vimos observando, direta ou indiretamente, em nosso trabalho
educativo. Nossa intenção e continuar com estas observações para retificar ou
ratificar, em estudos posteriores, pontos afirmados neste ensaio. Ensaio que, provavelmente,
irá provocar em alguns de seus possíveis leitores, reações sectárias.
Entre estes,
haverá, talvez, os que não ultrapassarão suas primeiras páginas. Uns, por
considerarem a nossa posição, diante do problema da libertação dos homens, como
uma posição idealista a mais, quando não um "blablablá” reacionário.
“Blablablá” de quem se “perde” falando em vocação ontológica, em amor, em
diálogo, em esperança, em humildade, em simpatia. Outros, por não quererem ou
não poderem aceitar as criticas e a denuncia que fazemos da situação opressora,
situação em que os opressores se “gratificam”, através de sua falsa
generosidade.
Daí que seja
este, com todas as deficiências de um ensaio puramente aproximativo, um trabalho
para homens radicais. Cristãos ou marxistas, ainda que discordando de nossas
posições, em grande parte, em parte ou em sua totalidade, estes, estamos
certos, poderão chegar ao fim do texto.
Na medida,
porém, em que, sectariamente, assumam posições fechadas, “irracionais”,
rechaçarão o diálogo que pretendemos estabelecer através deste livro.[...]
[ ...]É que a
sectarização é sempre castradora, pelo fanatismo de que se nutre. A
radicalização, pelo contrário, é sempre criadora, pela criticidade que a
alimenta. Enquanto a sectarização é mítica, por isto alienante, a radicalização
é critica, por isto libertadora. Libertadora porque, implicando no enraizamento
que os homens fazem na opção que fizeram, os engaja cada vez mais no esforço de
transformação da realidade concreta,
objetiva.
A sectarização,
porque mítica e irracional, transforma a realidade numa falsa realidade, que,
assim, não pode ser mudada.
Parta de quem
parta, a sectarização é um obstáculo à emancipação dos homens. Daí que seja
doloroso observar que nem sempre o sectarismo de direita provoque o seu
contrário, isto é, a radicalização do revolucionário.
Não são raros os
revolucionários que se tornam reacionários pela sectarização em que se deixam
cair, ao responder à sectarização direitista.
Não queremos,
porém, com isto dizer que o radical
se torne dócil objeto da dominação.
Precisamente
porque inscrito, como radical, num processo de libertação, não pode ficar
passivo diante da violência do dominador.
Por outro lado,
jamais será o radical um subjetivista. É que, para ele, o aspecto subjetivo
toma corpo numa unidade dialética com a dimensão objetiva da própria idéia,
isto é, com os conteúdos concretos da realidade sobre a qual exerce o ato
cognoscente. Subjetividade e objetividade, desta forma, se encontram naquela
unidade dialética de que resulta um conhecer solidário com o atuar e este com
aquele. É exatamente esta unidade dialética a que gera um atuar e um pensar
certos na e sobre a realidade para
transformá - la.
O sectário, por sua vez, qualquer que seja a opção de onde parta na sua
“irracionalidade” que o cega, não percebe ou não pode perceber a dinâmica da
realidade ou a percebe equivocadamente.
Até quando se
pensa dialético, a sua é uma “dialética domesticada”.
Esta é a razão,
por exemplo, por que o sectário de direita que, no nosso ensaio anterior, chamamos
de “sectário de nascença” pretende frear o processo, “domesticar” o tempo e,
assim, os homens. Esta é a razão também porque o homem de esquerda, ao
sectarizar- se, se equivoca totalmente na sua interpretação “dialética” da
realidade, da história, deixando- se cair em posições fundamentalmente fatalistas.
Distinguem- se,
na medida em que o primeiro pretende “domesticar” o presente para que o futuro,
na melhor das hipóteses, repita o presente “domesticado”, enquanto o segundo
transforma o futuro em algo pré-estabelecido, uma espécie de fado, de sina ou de destino irremediáveis. Enquanto, para o
primeiro, o hoje ligado ao passado, é algo dado e imutável; para o segundo, o
amanhã é algo pré-dado, prefixado inexoravelmente. Ambos se fazem reacionários
porque, a partir de sua falsa visão da história, desenvolvem um e outro formas
de ação negadoras da liberdade. É que, o fato de um conceber o presente “bem
comportado” e o outra, o futuro como predeterminado, não significa que se
tornem espectadores, que cruzem os braços, o primeiro, esperando a manutenção
do presente, uma espécie de volta ao passado; o segundo, à, espera de que o
futuro já “conhecido” se instale.
Pelo contrário,
fechando- se em um “circulo de segurança”, do qual não podem sair, estabelecem
ambos a sua verdade. E esta não é a dos homens na luta para construir o futuro,
correndo o risco desta própria construção. Não é a dos homens lutando e
aprendendo, uns com os outros, a edificar este futuro, que ainda não está dado,
como se fosse destino, como se devesse ser recebido pelos homens e não criado
por eles.
A sectarização,
em ambos os casos, é reacionária porque, um e outro, apropriando- se do tempo
de cujo saber se sentem igualmente proprietários, terminam sem o povo, uma
forma de estar contra ele.
Enquanto o
sectário de direita, fechando- se em "sua” verdade, não faz mais do que o
que lhe é próprio, o homem de esquerda, que se sectariza e também se encerra, é
a negação de si mesmo. Um, na posição que lhe é própria; o outro, na que o
nega, ambos girando em torno de “sua” verdade, sentem- se abalados na sua
segurança, se alguém a discute. Dai que lhes se já necessário considerar como
mentira tudo o que não seja a sua verdade. "Sofrem ambos da falta de
dúvida”. O radical, comprometido com a libertação dos homens, não se deixa
prender em “círculos de segurança”, nos quais aprisione também a realidade. Tão
mais radical, quanto mais se inscreve nesta realidade para,
conhecendo- a
melhor, melhor poder transformá- la.
Não teme
enfrentar, não teme ouvir, não teme o desvelamento do mundo. Não teme o
encontro com o povo. Não teme o diálogo com ele, de que resulta o crescente
saber de ambos5 . Não se sente dono do tempo, nem dono dos homens, nem
libertador dos oprimidos. Com eles se compromete, dentro do tempo, para com
eles lutar.
Se a
sectarização, como afirmamos, é o próprio do reacionário, a radicalização é o
próprio do revolucionário. Dai que a pedagogia do oprimido, que implica numa
tarefa radical, cujas linhas introdutórias pretendemos apresentar neste ensaio
e a própria leitura deste texto não possam ser realizadas por sectários.
Fonte: PRIMEIRAS PALAVRAS - Pedagogia do Oprimido - Paulo Freire
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