sábado, 22 de junho de 2013

O povo nos acordou? A perplexidade da esquerda frente às revoltas

A situação nos coloca a urgência de reformular nossa postura na luta de rua e reafirma a centralidade do trabalho de base; assumem crucial importância os movimentos sociais que têm enraizamento na periferia.Por 
Por Caio Martins Ferreira
A força e as proporções assumidas pela luta contra o aumento das tarifas em São Paulo e outras capitais surpreenderam quase toda esquerda organizada. Um mês antes, dificilmente se previa que uma mobilização de rua fosse alterar de tal modo a conjuntura e impor uma derrota ao governo estadual e à Prefeitura, logo às vésperas da Copa das Confederações. Nossa dificuldade de compreender e responder a esse processo pode nos ajudar a explicar o preocupante avanço conservador no interior da mobilização.
10 anos de revoltas
O que aconteceu em São Paulo nas últimas semanas não começou agora, nem é novidade na maior parte do Brasil. Nos últimos 10 anos, várias capitais vêm sendo sacudidas por revoltas contra aumentos na tarifa, que assumem formas semelhantes: tomada e travamento de ruas, protagonismo de jovens (mas não exatamente estudantes universitários de esquerda), ausência – e aversão – da lógica da representatividade, e uma dose de espontaneidade e rebeldia. Descolados de estruturas, esses movimentos encontram no próprio espaço da cidade seu meio de ação e decisão.
Desde a Revolta do Buzú de 2003 em Salvador [1] e as Revoltas da Catraca de 2004 e 2005 em Florianópolis [2], essas lutas só cresceram e se fortaleceram (para citar outros casos vitoriosos: Vitória, Teresina, Porto Velho, Aracajú, Natal, Porto Alegre, Goiânia etc). O Movimento Passe Livre (MPL) surgiu em 2005 como uma tentativa de constituir uma expressão organizada dessas lutas, mas seu alcance é necessariamente limitado frente à forma como se desenvolvem as revoltas.
A mobilização por transporte público é certamente uma das principais lutas sociais urbanas da década.
Hoje é possível arriscar que na pauta do transporte estava uma rachadura. Uma rachadura no modelo político de consenso e apaziguamento da última década. Uma rachadura que, quando aberta em centros como São Paulo e Rio, virou um rombo. E o que fazemos frente a esse rombo?
A esquerda e as revoltas
A esquerda nunca deu a devida atenção à pauta do transporte e nunca tentou compreender seriamente as formas de luta desses movimentos, mesmo com eles acontecendo debaixo do seu nariz o tempo todo.
Essa falta de familiaridade explica a dificuldade das esquerdas em lidar com o processo atual. Da parte da esquerda institucional e moderada, isso ficou claro na postura desastrada do prefeito Haddad, do Partido dos Trabalhadores (PT), que demonstrou total inabilidade em lidar com os protestos.
Já entre as organizações da extrema-esquerda, parece haver muitas vezes um desencaixe entre sua forma e a forma que o movimento assume na rua. Não tanto – como se poderia supor – por causa da estrutura hierarquizada do partido, mas muito mais por uma diferença do ritmo e da linguagem que exige a política da rua. Isso fica visível, por exemplo, na dificuldade dos militantes em estabelecer relação com os demais manifestantes. Parece que passamos tanto tempo em reuniões, negociando e escrevendo notas, que desaprendemos a lutar na rua! Agora estamos reaprendendo na marra…
Nos atos, o MPL foi acusado diversas vezes de irresponsável, de inconsequente. Mas teria sido inconsequente ou ousado? São Paulo foi uma das poucas cidades onde o MPL conseguiu se estabelecer de forma permanente e sólida, aprofundando o debate sobre a pauta do transporte e desenvolvendo trabalho de base em escolas e bairros. Observando os erros cometidos aqui em outros anos e os acertos das cidades que baixaram a tarifa, o MPL-SP elaborou um planejamento estratégico para esta luta contra o aumento: deveria ser um tiro curto, intenso, radical e descentralizado. Esse planejamento não só foi aplicado como cumpriu seu objetivo: o aumento caiu.
Na última semana, porém, entraram em cena elementos que ninguém havia previsto. Primeiro, o impressionante grau de massificação, a nível nacional, com centenas de milhares de pessoas indo aos atos, o que, além de nos impor dificuldades práticas para a organização de uma manifestação tão grande, abriu margem à descaracterização da luta. Segundo, a entrada em cena da direita organizada, disputando o sentido das manifestações tanto internamente (distribuindo bandeiras do Brasil e hostilizando partidos de esquerda) quanto externamente (pela cobertura midiática, que impõe a tônica pacifista e dá suas pautas, diluindo as originais).
Para as organizações de esquerda ficou claro que resistir à direita significava garantir a centralidade da pauta única: a revogação imediata do aumento [3]. Mas, com o aumento revogado, se abriu um vácuo de pauta e nossa unidade se desmanchou.
Para onde vamos?
As mobilizações, no entanto, não pararam. A rachadura aberta parece mesmo virar um rombo. Agora que começou, o povo não quer parar de sair às ruas. Em seu jogo de manipulação, a mídia incentiva os protestos e orienta ao senso comum que a próxima pauta é o problema geral do Brasil: a corrupção.
Desorientada pelo vazio de pauta e pelas rápidas transformações na conjuntura, a esquerda se encontra isolada – e agora hostilizada pela direita – no interior de uma mobilização cuja dinâmica ela mesma não entende. Se a lógica das revoltas populares contra os aumentos já era estranha para boa parte de nós, a abrupta massificação tornou o processo ainda mais incompreensível para todos.
Neste momento, se faz urgente que a esquerda apresente uma pauta capaz de preencher o vazio, retomando politicamente o sentido das mobilizações. Mas é preciso que seja uma demanda concreta e objetiva, que de fato possa se reverter em uma conquista real, como foram os 20 centavos. Reivindicações genéricas e difusas tendem a só fortalecer a manipulação operada pela direita.
Ao mesmo tempo em que a mediocridade da classe média tomou conta do espetáculo cujo palco é a Avenida Paulista, começaram a proliferar manifestações nos bairros da periferia. De forma mais ou menos espontânea na terça-feira à noite (18 de junho), e encabeçadas por movimentos sociais organizados a partir da quarta-feira (19 de junho), a quebrada entrou na luta. Estaria nessas ações um potencial de retomada da radicalidade e combatividade do processo?
Ora, mais do que saber se o potencial existe, o importante é que tenhamos capacidade de desenvolvê-lo. Aí deparamos com outra fragilidade nossa: a escassez no trabalho de base. Assumem agora crucial importância os movimentos sociais que têm inserção e enraizamento na periferia. É sua atuação que pode dar corpo às pautas concretas a partir das quais avançaremos daqui em diante, dando espaço para que os trabalhadores assumam as rédeas do processo.
A situação nos coloca a urgência de reformular nossa postura na luta de rua e reafirma a centralidade do trabalho de base permanente (como bem explicou outro artigo neste site, pouco adianta combater o conservadorismo erguendo cartazes na Avenida Paulista: é preciso solapar sua base material [4]).
Sem medo de nós mesmos
É preciso tomar muito cuidado para não se deixar levar pelo clima de alarmismo que vem tomando boa parte da militância. Não podemos nos deixar assustar por termos chegado onde chegamos. Seria temer a nós mesmos. Fomos surpreendidos pela capacidade da nossa própria luta e, ao constatar que o processo nos levou a um cenário completamente novo e massivo, que nos escapa ao controle, tentamos nos censurar e assumir uma postura de imobilismo.
Concentremo-nos em nosso potencial e não em nossas fraquezas. Acabamos de viver uma vitória histórica para os movimentos sociais no Brasil, cujo impacto para nossas lutas ainda não pode ser claramente avaliado [5]. Não podemos assumir um clima de derrota só porque tá cheio de coxinha na Paulista. Recuar agora é fortalecer a investida conservadora. Quem derrubou os 20 centavos fomos nós – com nossas bandeiras e barricadas – e não ela. E agora temos diante de nós a chance de avançar ainda mais nas conquistas.
Notas
[1] Teses sobre a Revolta do Buzú http://passapalavra.info/2011/09/46384
[2] VINICIUS, Leo. Guerra da Tarifa. Faísca, 2004
[3] Por um vintém http://passapalavra.info/2013/06/79281
[4] Protestos virtuais e impotência política (2) http://passapalavra.info/2013/03/74500
[5] Barramos! 15 anos em 15 dias http://passapalavra.info/2013/06/79596

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