Neste artigo, conforme prometido na estreia do blog, buscarei
contextualizar alguns traços estruturais do direito moderno – e dos
direitos humanos em particular – sob uma perspectiva crítica e marxista.
Essa abordagem, apesar da forte carga teórica, é importante para
delinearmos os limites e as possibilidades dos usos dos direitos humanos
como armas de combate em nossos tempos.
Uma compreensão materialista dos direitos humanos, necessariamente,
parte da problematização da distância entre a enunciação formal em alto
nível de abstração de garantias e a falta de efetividade prática na
realidade concreta dessas promessas. Mais: busca refletir como operam,
ao mesmo tempo, a possibilidade de conquistar novos direitos e a
justificação das desigualdades por trás da igualdade formal que se
apresenta.
O grande desafio, desse ponto de vista, é como lidar, como chamou a
atenção Hannah Arendt, com o homem abstrato que é titular dos direitos
inalienáveis e que não existe em parte alguma do mundo. O que há, em
contrapartida, são homens concretos caracterizados por marcadores de
gênero, raça, orientação sexual e que, por essas características, têm
seus direitos desrespeitados.
Muitas vezes, a ineficácia dos direitos fundamentais, ainda que
positivados em leis, ocorre porque seu destinatário está privado dos
meios de exercê-los e da própria possibilidade de sua realização
concreta. Não à toa, lembra Slavoj Zízek que “a questão mais saliente
dos direitos humanos [são]: os direitos daqueles que estão morrendo de
fome ou expostos à violência assassina”.
Essa importante crítica, sob outra forma, pode ser encontrada já nos
escritos de Marx, cujo esforço fundamental será justamente desvelar em
que condições particulares surge essa forma da universalidade da qual se
revestem os direitos humanos. Ainda nas palavras de Zizek, a leitura
marxista dos direitos humanos demonstra convincentemente o caráter
ideológico burguês destes: “direitos humanos universais são efetivamente
o direito do homem, proprietário, branco, a trocar livremente no
mercado, explorar seus trabalhadores e as mulheres, e exercer a
dominação política”.
Isso não significa dizer, contudo, que devem ser desprezados do ponto
de vista de político conforme um determinado marxismo vulgarizado
postulou. Para evitar confusões e desfazer esse mal-entendido, vale uma
breve análise da compreensão de Marx sobre as figuras do direito.
Marx e as determinações materiais do direito moderno
Embora a temática jurídica nunca tenha constituído o cerne das
preocupações teóricas de Marx, não se pode daí inferir que seu
pensamento seja refratário ao estudo do direito. Em sua trajetória
pessoal, vários momentos marcaram sua aproximação com essa disciplina,
particularmente o fato de ser filho de um atuante advogado e também por
ter-se graduado no curso de direito da Universidade de Berlim em sua
juventude, sendo evidente também que testemunhou a crescente relevância
da ideologia jurídica na sociedade capitalista. Tinha consciência de que
sua reflexão social não poderia faltar ao encontro com a afirmação do
direito moderno. Entretanto, essa narrativa sociológica da história não
seria compatível com uma compreensão que se reduzisse a mais uma teoria
formal da norma ou do ordenamento jurídicos.
Considerando a crescente funcionalização do direito em geral – e dos
direitos humanos em particular – por um modo específico de ser social,
Marx afirmará categoricamente que “não há história da política, do
direito, da ciência etc”. Mas antes de se extrair conclusões apressadas,
deve-se atentar que o direito e outras variáveis tidas como
“simbólicas” ou “culturais” não são reduzidas mecanicamente a fenômenos
econômicos. Deve-se entender, sendo fiel ao texto, que “o direito e a
religião carecem de história própria”, ou seja, não podem ser tomados
como manifestações autônomas, descoladas das condições materiais de
existência.
Um direito histórico, mas sem história própria
Todo direito é histórico sem, entretanto, possuir uma história
própria. Marx chama atenção, assim, para o fato de que “as relações
jurídicas mudam e civilizam sua expressão com o desenvolvimento da
sociedade civil”.
Esse esclarecimento ainda que aparentemente trivial é muito valoroso
para a compreensão da origem e do desenvolvimento posterior dos direitos
humanos. Pois tendo como pano de fundo a profanização do processo
histórico, paralela à secularização do Estado e à correspondente
institucionalização do direito, é possível identificar um progressivo
descolamento da esfera jurídica em relação às esferas religiosa e ética,
cuja última notória ligação eram as doutrinas jusnaturalistas. Será
exatamente nesta zona cinzenta de indiferenciação que se localizarão os
direitos humanos na modernidade.
Um direito abstrato e universal, mas não um “direito em geral”
Essa reconfiguração do direito não deixa de ser uma expressão
jurídico-política do padrão de capitalismo (e de suas demandas internas)
em consolidação especialmente a partir do final do séc. XVIII. A
crítica marxiana consiste na busca dos fundamentos do regime de
abstração e do fetichismo mercantil estruturantes da sociedade burguesa,
identificando o berço em que repousa essa essência da normatividade
jurídica.
Desvelando os meandros da produção de mercadorias, essa crítica
dialoga magistralmente com os movimentos de interação social e comércio,
divisão do trabalho e propriedade privada, forças produtivas e formas
de intercâmbio, atentando para essa complexa configuração da
sociabilidade característica de nossa era e que diz muito sobre os
direitos humanos e sua pretensão da validade universal.
Os conteúdos materiais mais profundos que informam os direitos
humanos e universal. direitos humanos e sua pretenssão condensados e
expressos por uma forma específica assumida pela conexão social entre os
homens durante o desenvolvimento histórico. Por isso que a análise do
direito demanda que levemos em conta o mais importante denominador comum
das relações econômico-sociais burguesas, qual seja, o seu caráter
eminentemente mercantil. E não só no âmbito das trocas como
tradicionalmente ocorreu, mas especialmente quando penetra na produção,
residindo aí a diferença fundamental entre as sociedades mercantis
precedentes e a capitalista. Tal cerne estrutural, portanto, se espraia
para todas as outras dimensões da vida social, configurando a
especificidade histórica de nossa época.
Aí reside a estrutura elementar em que se baseiam a abstração e o
universalismo dos direitos humanos e que se arrasta, de algum modo e com
deslocamentos, até nossos dias.
Um direito “burguês” não é o direito da burguesia
Portanto, a sociedade moderna de cunho privatista consumou uma
atomização dos homens e só conseguiu reconectá-los socialmente através
da “centralidade da mediação jurídica universal”, uma alternativa viável
historicamente e inédita (nessa magnitude e intensidade) que foi
encontrada para dar estabilidade à dinâmica social intensa e irrefreável
desse novo sistema.
Ainda se valeu, para isso, de um arsenal axiológico, afirmando
princípios no âmbito do discurso que eram sistematicamente contrariados
pela realidade. Eram enunciados aos quatro cantos justamente para não
serem cumpridos. O exemplo de maior destaque é a bandeira programática
hasteada pela Revolução Francesa, sobre o que Marx escreverá que “na
época em que dominou a aristocracia imperaram as ideias da honra, da
lealdade etc, enquanto que a dominação burguesa representou o império
das ideias da liberdade, da igualdade”.
Foi uma revelação, portanto, trazer à tona os fundamentos concretos
dessa crescente abstratificação e denunciar que a destreza dessa
operação ideológica favorecia a consolidação da dominação burguesa, pois
permitia que seus interesses de classe fossem apresentados como
universais. Tanto que Marx descreve esse processo afirmando que “imperam
ideais cada vez mais abstratas, quer dizer, que se revestem cada vez
mais da forma do geral (…), como as únicas racionais e dotadas de
vigência absoluta”.
Nesse sentido, ao contrapor direitos humanos aos direitos do cidadão,
Marx define os primeiros como “direitos do membro da sociedade
burguesa, isto é, do homem egoísta”, dizendo que “o homem não foi por
isso libertado da religião, ele obteve a liberdade religiosa. Não foi
libertado da propriedade, obteve a liberdade de propriedade. Não foi
libertado do egoísmo da indústria, obteve a liberdade industrial”.
Em suma, só a normatividade jurídica moderna, abstrata e
universalista, possuiu e possui a congruência histórica necessária para
consolidar o modo de vida capitalista e também para consolidar-se nesse
mesmo sistema social. Encaixa-se perfeitamente nos moldes da produção e
da circulação mercantis, potencializando ainda mais o vigor da
reprodução ampliada do capital. Trata-se de uma manifestação e,
simultaneamente, uma condição imprescindível para o pleno amadurecimento
das modernas relações sociais de produção.
A necessária disputa pela libertação dos direitos humanos
Esse descompasso constitutivo entre universalismo dos direitos
humanos e a privação completa da integração na comunidade política –
fruto da realidade sócio-econômica de dominação e exploração – foi um
dos maiores paradoxos do discurso liberal.
Constatar isso não significa, contudo, afirmar a descartabilidade ou
completa ineficiência dos direitos humanos. Porque como nos lembra
Claude Lefort, trata-se de uma autêntica construção ou invenção da
modernidade cujos efeitos estão longe de ser apenas negativos.
Após elencar todas essas críticas e evidenciar as debilidades dessa
concepção tradicional dos direitos humanos, vale ressaltar que menos do
que a recusa integral dos direitos humanos, trata-se em nossos dias,
além de efetivá-los, submetê-los a uma nova análise, consciente de suas
potencialidades e limitações, diante da ambivalência de sua força
simbólica.
A apropriação dos direitos humanos enquanto bandeira em nossos tempos
devem ressignificar essa noção e atualizá-la para os desafios do século
XXI. É preciso libertar esse discurso de suas determinações
originárias.
Somente assim, as esquerdas poderão compreender a importância e a
necessidade de um compromisso político com o discurso dos direitos
humanos e seus valores, combatendo tanto sua redução à “invenção
burguesa” quanto a uma “coisa pra bandido”. Duas concepções extremas e
bem diferentes entre si, mas que praticam recusas comuns aos direitos
humanos sem compreender suas potencialidades no mundo atual.
Afinal, não se pode dizer que os direitos humanos são apenas
exercício de retórica ou de ideologia farsesca. Como bem destaca Marcelo
Neves, “o caráter conotativo de declarações, discursos, atos e textos
simbólicos nem sempre serve à manutenção do status quo de
carência dos respectivos direitos. A dimensão simbólica do normativo
pode exatamente servir à superação de situações concretas de negação dos
direitos (…). A força simbólica de atos, textos, declarações e
discursos de caráter normativo serve tanto à manutenção da falta de
direitos quanto à mobilização pela construção e realização dos mesmos”.
A tarefa dos que refletem sobre e lutam pelos direitos humanos em
nossos dias passa pelo reexame dessa concepção tradicional, cuidando
para que a abstração e universalidade não sejam pretexto para o
descumprimento cínico das promessas da modernidade.
Fonte: http://revistacult.uol.com.br/home/2015/07/direitos-humanos-entre-invencao-burguesa-e-coisa-pra-bandido/
Nenhum comentário:
Postar um comentário