Uma analise geográfica da tragédia de Santa Maria.
GEOGRAFIAS DA TRAGÉDIA
Rogério Haesbaert
Mesmo ainda sob o efeito algo paralisante da tragédia do incêndio da
boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, e perplexo diante da
evolução dos acontecimentos nesses dias, resolvi escrever este texto –
como uma forma muito particular, talvez, de exorcizar o drama em que me
vi involuntariamente envolvido e que pareceu deixar-me “sem armas” para
qualquer ação e/ou entendimento.
Nos primeiros dias, depois de
várias tentativas sem sucesso de voltar a me concentrar no trabalho, a
ler os textos que precisava, a preparar aulas, pensei que o que poderia
fazer era enfrentar de fato a gravidade do episódio e tentar repensá-lo à
luz (se é que se pode falar em “luz” em meio a tudo isso) de uma
reflexão geográfica, que é aquela em que me sinto mais à vontade e em
que há alguma possibilidade de, no seu âmbito, encontrar algumas
respostas – ou, no mínimo, abrir novas questões.
Existe alguma
“geograficidade” em todo esse absurdo? Sim, como nas Torres Gêmeas, nos
atentados de Londres, nas escolas de Connecticut ou Realengo ou em
outras tragédias não premeditadas, a geografia recheia esses eventos de
tal forma que, às vezes, de tão banal, passamos ao largo e a ignoramos.
Fica realmente difícil falar agora, no pulsar mais forte dos
acontecimentos, envolvidos pela emoção, em “reflexão” ou “conceitos”.
Mas, ainda que como uma forma de superar o emocional que nos domina,
pensar e refletir com as “armas” conceituais de que dispomos pode ser
uma forma de reler os fatos e dar-lhes algum sopro de “razão”.
Primeiramente, gostaria de falar um pouco da cidade. Santa Maria faz
parte da multiterritorialidade que compõe a minha vida. Retorno a ela
pelo menos três vezes ao ano, e lá estão meu pai (minha mãe faleceu há 3
anos), uma irmã e três sobrinhos, além de vários primos e tios
espalhados pelas cidadezinhas vizinhas. Não há como me separar daquele
espaço. Ele participa de mim com imagens fortes que se densificam na
história, e cada vez que vejo a cidade e suas mudanças parece que é um
pedaço de mim que, junto, se transforma. É verdade, eu me transformo com
a região de Santa Maria na memória, como se carregasse aquele espaço em
retratos de semestre em semestre, ou de ano em ano. Como não se trata
de um percurso contínuo, cotidiano, algumas marcas parecem que nunca
cicatrizam, nem se somam, mas adulteram pedaços e fragmentam a minha
trajetória. Mas, seja como for, somando ou subtraindo, Santa Maria e
seus traços estão em mim e deles nunca me desfaço.
Quando, então,
ligo a televisão na BBC num domingo cedo, “para não perder meu inglês”,
como digo, e me deparo com um mapa do Brasil e apenas a cidade de Santa
Maria assinalada, estremeço. Não acredito. Nunca Santa Maria teria o
“direito”, de aparecer no mapa da BBC para o mundo inteiro. Subversão de
toda ordem. Santa Maria só tinha lugar central no meu mapa (do Rio
Grande do Sul). A BBC não tinha esse direito. Muito menos a CNN ou a
Al-Jazeera. Meu mapa acabara de virar de ponta cabeça: Santa Maria no
centro do mundo.
Santa Maria no mapa múndi era a manchete, a
notícia de abertura de todos os grandes jornais do mundo. Mas a notícia
era a mais estarrecedora: nada de algum ato político extraordinário (com
tantos políticos, de esquerda ou de direita, que se projetaram dali),
nada de uma ação social de destaque, nenhuma ação da Igreja (lideranças
religiosas também nasceram ali e a romaria da padroeira do Rio Grande do
Sul, Nossa Senhora Medianeira, é famosa), muito menos uma ação
deliberada do Exército ou da Aeronáutica brasileira (com as 19 unidades
do exército e a base aérea da cidade). Um incêndio – um simples
incêndio, poderia ter pensado. Uma tragédia, nunca imaginada. Falava-se
então em cerca de 80 mortos, cifra que iria gradativa e assustadoramente
se ampliando ao longo do dia até chegar ao inimaginável número de 231.
Santa Maria entrava no mapa do mundo pela porta dos fundos – ou pelo
mais fundo do abismo.
Como sugeriram a William Bonner, ao
transmitir o Jornal Nacional diretamente de Santa Maria, ninguém
esperava uma ocasião desse tipo para que ele e a Rede Globo “colocassem
Santa Maria no mapa”. Ninguém poderia imaginar “entrar no mapa” desse
jeito. Mil vezes preferível permanecer no seu canto, na sua condição
preconcebida de cidade média, de vida média, de classe média, de
tranquilidade média. Tudo em Santa Maria parecia médio. Quanto mais eu
aprendia a me identificar com o “purgatório da beleza e do caos” do Rio
de Janeiro, mais voltava a Santa Maria como se estivesse retornando à
província ou, ao chegar à casa de meu pai, no Vale do Menino Deus, como
se chegasse ao campo. Ou seja, Santa Maria, entre o centro da cidade e o
bairro Menino Deus, era um meio do caminho, uma “média” entre o campo e
a cidade, entre o pequeno e o grande centro, entre o desconhecido e o
cotidiano. Santa Maria nunca foi pretensiosa. Contentou-se com o setor
de serviços, nunca teve grandes indústrias. Mas sempre se vangloriou de
sua “primeira universidade do interior do país”. Do interior. Santa
Maria é interiorana, mas seu ambiente estudantil faz dela, também, uma
cidade “exteriorana”, voltada pra fora. As famílias e a vida cadenciada
de classes médias zelozas, porém, também continuam ali.
Santa
Maria, cidade média, é múltipla, de múltiplos territórios. Santa Maria
foi ferroviária, religiosa (ainda é), é militar, estudantil,
conservadora e progressista. Progresso de que, para quem? Não importa.
Santa Maria agora entrou para a história do mundo, ou melhor, para a
terrível história das grandes tragédias do mundo – e, pior, das grandes
tragédias da irresponsabilidade humana. Da corrupção e da ganância do
mundo. Santa Maria não abriu suas portas nessa madrugada de domingo.
Cidade de forasteiros, aberta para tantos, Santa Maria se fechou
bruscamente num cubículo nessa manhã de domingo. Santa Maria
encaramujou-se, apertou-se, e vitimou uma parcela de sua maior riqueza:
os jovens que forma nas suas várias instituições de ensino superior,
UFSM à frente, e que, orgulhosamente, espalha pelos quatro cantos do
país e países vizinhos. Discretamente. Agora não. Como num grande
escândalo, a cidade explicitou o poder da negligência, do descaso, da
incompetência (de alguns, mas que agora representam e exportam a sua
única grande e global imagem).
Mas e o espaço, a geografia, onde
ficam? Ninguém diria que a geografia tem lugar nesta história. Mas tem, e
como. Se olharmos bem, é de espaço que se fala desde o início. É de um
prédio impermeabilizado que se fala. É de uma cidade transtornada, é de
prédios hospitalares superlotados, é de helicópteros que levam feridos a
Porto Alegre, é de um ginásio improvisado como IML e depois como capela
mortuária que se trata. Espaços aqui e ali, espaços-barreiras,
espaços-conexões, espaços de passagem, espaços de fixação ou repouso
(alguns para sempre). No fundo, nada nesse mundo é sem espaço. O mundo é
espaço. Nossas vidas são espaços, exigem espaço, preenchem espaço,
fazem espaço e se fazem como espaços. Não há saída – sem espaço. E o
espaço da boate não tinha saída, ou tinha uma saída minúscula,
parcialmente vedada, vetada (por seguranças que precisavam fazer valer a
ganância do patrão, ou por grades de ferro que “organizavam filas” na
rua). Quando falamos que o espaço da boate não tinha saída (suficiente),
saídas de emergência, ou que a saída principal estava parcialmente
bloqueada, estamos falando de um espaço que constitui o prédio, a
materialidade que intervém na ação, na mobilidade humana, de forma
decisiva. Foi por falta de espaço – como liberação, saída, e por excesso
de espaço – como barreira, que a tragédia alcançou a dimensão que teve.
Esses “espaços”, portanto, não são nada abstratos. Não são uma
planta desenhada no papel. Mas já o foram um dia. Quem traçou no papel o
esboço daquele espaço, quem projetou e quem demandou e aprovou aqueles
traços, incluindo as repartições, as portas, as saídas, também estará
envolvido para sempre nesse drama muito concreto do espaço efetivamente
construído/usufruído e, hoje, sofrido, terrivelmente sofrido. O espaço é
sofrido? Não, obviamente o espaço em si mesmo não é “sofrido”, mas ele é
sofrido por nós, sujeitos dotados de carne e osso e que, ao tocá-lo, ao
incorporá-lo, o pensamos e sentimos. Ou, falando de um modo metafórico,
o próprio espaço sofre com nossos equívocos, com nossas ações
unilateralmente “humanas” – quando pensamos que os espaços são todos
feitos para o nosso amplo e quase exclusivo benefício. O espaço também é
feito pelo próprio mundo, ele já estava aí quando chegamos. Não temos o
direito de abusar de seu uso, de despender tanta energia e não
recompô-la. Desperdiçamos energia, desperdiçamos espaço, despediçamos
vidas pelo mau uso – ou superuso – de nossos espaços. A boate Kiss
em Santa Maria se torna agora um modelo da má concepção e do mau uso do
espaço. Nem mesmo a estrita funcionalidade, que é a prerrogativa mais
elementar do espaço, foi cumprida. Equação simples: pessoas demais,
saídas de menos. Para completar, um labirinto interno, a ponto de se
confundir banheiros com saídas, ou de imaginar como saídas janelas que
não foram feitas para abrir. Olhando agora para aquela fachada rígida,
padronizada e sem janelas ficamos a imaginar quantos outros ambientes
assim não se reproduzem por este Brasil e este mundo afora. E ninguém
parece perceber o perigo que está do nosso lado. Será que Santa Maria,
mais que um ponto mais visível no mapa, poderia se transformar também
num (de mau para bom) exemplo, num paradigma contra todo esse descaso e
esses abusos do indivíduo(alismo), do Estado (que não faz minimamente
seu papel) e, sobretudo, do dinheiro (que deseja nada mais do que o
máximo de lucro ao menor custo possível)?
Fonte:http://paulojorgevieira.wordpress.com
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