sábado, 25 de julho de 2015

Esquerda/direita: manual do usuário




Carlos Zacarias de Sena Júnior



Responda rapidamente: o atual governo do Brasil é de esquerda ou de direita? Se você se confundiu na resposta, não se aborreça. Muito provavelmente a maioria dos que tentaram responder a pergunta, caso tenham pensado um pouco (o que certamente aconteceu, apesar da sugestão de que deveriam responder rápido), escolheu uma das alternativas, mas acrescentou uma conjunção adversativa no caminho.

Definir um governo ou um partido por suas posições políticas é, sem dúvida nenhuma, uma tarefa difícil, mas isso não é novidade. Dado o grau de subjetividade que a díade esquerda/direita permite, não seria impossível que aqueles que se situam à esquerda do governo venham a acusá-lo de práticas direitistas, do mesmo modo, seria improvável que à sua direita o governo não tenha adversários que apontam as suas práticas como esquerdistas. Não obstante, segundo Marx: “Assim como não se julga um indivíduo pela idéia que ele faz de si próprio, não se poderá julgar uma tal época de transformação pela mesma consciência de si; é preciso, pelo contrário, explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção”.[i] Ou seja, a “consciência não pode ser mais do que o ser consciente”,[ii] e ainda que estejamos num período de sobredeterminação política, é descendo do céu à terra que podemos começar a entender a realidade daquilo que se tem chamado de “onda conservadora” e “ofensiva das direitas”, como forma de tiramos as conclusões necessárias sobre o atual momento para sermos propositivos quanto ao futuro.[iii]

Os termos “esquerda” e “direita” são bastante imprecisos e insuficientes para definir os grupos contendores do presente, mas como muitos já entenderam, ainda permanece necessário identificar os projetos pelo seu conteúdo antitético e relacional, pelos compromissos que assumem, pelos adversários e inimigos que elegem e pelo lugar de classe que ocupam. Bandeiras e movimentos políticos podem ser classificados como conservadores ou progressistas e nem precisa de muito treino e conhecimento para saber que o fascismo é um movimento de direita, enquanto o socialismo é de esquerda. Mas poucos sabem que Mussollini, antes de se tornar Il Duce italiano foi editor do periódico Avanti! e militante do Partido Socialista, o mesmo de Antonio Gramsci. De outro lado, muito dificilmente Stalin encontraria unanimidade ao ser classificado como de esquerda, pelo simples fato de que muitas das bandeiras progressistas incorporadas pela Revolução de 1917 retroagiram a partir de sua ascensão ao poder em fins dos anos 1920.

Grosso modo, pode-se dizer que posturas políticas de direita são conservadoras, quando não reacionárias ou fascistas. Regra geral, a direita defende a propriedade privada dos meios de produção, inclusive o latifúndio, o liberalismo econômico, o não intervencionismo do Estado e a meritocracia. Direitistas são contra as políticas afirmativas, são contra a imigração (desde que não sejam eles os imigrantes!) e acham que o casamento deve se restringir a união de um homem com uma mulher. No que se refere aos conflitos recentes no Brasil, os direitistas defendem o porte de armas, a redução da maioridade penal e a pena de morte, embora nem todos assuma abertamente esta defesa por conta dos compromissos religiosos. Direitistas se identificam com a bancada BBB (Bíblia, Bala e Boi) e acham que bandido bom é bandido morto. São contra o aborto e o que chamam de “ideologias de gênero”, e ainda por cima temem que estejamos em vias de termos implantado no Brasil uma “ditadura gayzista” articulada pelo “bolivarianismo lulista” e pelo Foro de São Paulo.

Em determinadas épocas, os grupos de direita podem preconizar um Estado forte como forma de evitar a ascensão dos movimentos revolucionários, chamados por eles de “totalitários”. Vez por outra sepultam a limitada democracia burguesa em nome do que seria a salvaguarda da própria democracia diante do “totalitarismo de esquerda”. Na maior parte do tempo são apenas liberais, alguns são reacionários e por vezes todos se juntam contra os trabalhadores quando há algum grande ascenso revolucionário, tornando-se contrarrevolucionários. Na história, por vezes, épocas inteiras podem ser caracterizadas por reacionárias ou contrarrevolucionárias, como foram os anos 1930/1940, quando as ditaduras nazi-fascistas e governantes protofascistas ascenderam ao poder no rastro da derrota de inúmeras revoluções. Da mesma forma, as ditaduras militares da América Latina foram tipicamente de direita, funcionando como espécies de contrarrevoluções ou contrarrevoluções preventivas.

Do lado oposto, entre os grupos que podem ser chamados de esquerda e que são também tratados como progressistas, vemos o combate à propriedade privada dos meios de produção, a luta pela reforma agrária, a defesa da regulação do Estado na economia e o argumento pelo tratamento diferenciado para os setores mais vulneráveis da sociedade. Partidários da esquerda (“esquerdista” é um termo pejorativo desde que Lenin redigiu o texto Esquerdismo, doença infantil do comunismo, em 1921) defendem posturas comportamentais que valorizam as escolhas individuais, como o direito ao corpo e ao livre exercício da sexualidade. São favoráveis aos processos migratórios e acusam as mazelas do imperialismo e do capitalismo como elementos que provocam guerras e expulsam as populações de suas terras.

No que se refere aos temas da pauta política do Brasil, a esquerda é contrária à redução da maioridade penal e denuncia a criminalização dos movimentos sociais e das camadas mais pobres da sociedade. Enquanto isso, a esquerda defende o direito ao aborto, condena a homofobia e o machismo, denuncia o racismo e batalha pela descriminalização das drogas, apontando o tráfico e o genocídio da população negra como políticas desenvolvidas no interior do Estado burguês. Partidários da esquerda também podem defender os programas de renda mínima, mas creem tratar-se de uma política de transição.[iv] Ao mesmo tempo, a esquerda advoga pela suspensão do pagamento da dívida pública, enquanto aponta os juros e a prática do superávit primário como um dos nossos maiores problemas. Na história, governos surgidos de revoluções operárias e populares podem ser chamados de esquerda, mas, como dissemos, o curso da história comprovou que não é tão simples assim, pois as vezes correntes contrarrevolucionárias podem surgir de dentro da própria revolução, como foi o caso do stalinismo.

A origem e a definição dos termos “direita” e “esquerda” remontam a Revolução Francesa, quando defensores do aprofundamento da revolução e partidários do Antigo Regime se sentavam à esquerda e a direita do parlamento, respectivamente. Desde então, a díade vem sendo usada para explicar comportamentos, movimentos e épocas históricas. Não se tratam de termos simples, e obviamente que muitos podem não se identificar completamente com as posturas acima apontadas como de esquerda ou de direita. Haverá quem alegue que o autor dessas linhas foi excessivamente parcial, mas haveria como não sê-lo?

Os termos esquerda e direita são tão importantes nas discussões políticas que, de acordo com Norberto Bobbio, mesmo quando alguns refutam a sua validade, o fazem percebendo o significado de cada um. Ou seja, caso você não se identifique como sendo de esquerda ou de direita, é porque você tem alguma ideia que compartilha com a maioria das pessoas sobre o que vem a ser uma coisa e outra: “Como fazemos para dizer que tal objeto não é nem branco nem preto, se não temos a mínima ideia a respeito da diferença entre as duas cores?”[v]

Apesar de imprecisos, a díade esquerda e direita permanece válida, não há dúvidas, mas deve-se usar entendendo os riscos e compreendendo suas limitações. Foram apropriados por diversas correntes, muito embora não tenham sido utilizados muito frequentemente pelos marxistas que preferem classificar as posições de acordo com os interesses e posições de classe. Marx e Engels não usam os termos “esquerda” e “direita” para caracterizar os movimentos políticos do seu próprio tempo. Apesar disso, como parece óbvio, distinguiam bem o que era progressivo e regressivo. Os bolcheviques, por seu turno, só se referiam a “direita” ou “esquerda” quando tratavam das disputas que atingiam o partido, entendendo que melhor do que usar expressões eivadas de subjetivismo, era classifica-las pela sua dimensão material. Muito raramente Lenin, Trotsky ou outro bolchevique classificam os movimentos por esta perspectiva relacional. Os inimigos dos bolcheviques, se eram das classes dominantes (aristocratas e burgueses), eram prioritariamente chamados pelos seus nomes, como aristocratas e burgueses. Em oposição às classes dominantes e suas frações, estavam os operários e camponeses (às vezes os pequenos burgueses das cidades). Militantes de organizações operárias adversárias dos bolcheviques eram tratados por “reformistas”, “conciliadores”, “economicistas”, “marxistas legais” e uma plêiade de nomenclaturas que buscavam precisar o adversário pelo termo exato do que eles objetidamente representavam. Apenas quando se referiam as disputas intestinas os bolcheviques citados usavam a denominação de “esquerda”, “direita” e “centro”, para caracterizar as querelas políticas abrigadas no partido.

Em todo caso, não se pode prescindir de termos que podem dar conta de uma parte da realidade, ainda que a explicação do todo prescinda de categorias de análise mais precisas e elaboradas, como as utilizadas por Marx e pelos marxistas mencionados acima. Por conta da importância dos termos relacionais para a política, podemos tomar a rápida definição de Jacob Gorender para explicar a esquerda e o seu oposto, a direita, já que, como sugere Bobbio, por se tratar de termos antitéticos, “são reciprocamente excludentes, e conjuntamente exaustivos”.[vi] Para Gorender, que adverte sobre a imprecisão do termo, mas apela para o seu significado cotidiano, presente na linguagem do jornalismo e na oratória, a definição de esquerda pode ser tomada aplicando-se “o conceito referencial de movimentos de ideias endereçadas ao projeto de transformação social em benefício das classes oprimidas e exploradas”.[vii] Por exclusão, direta deve ser entendida como seu exato-contrário.

Dito isso não estamos em melhor posição para concluirmos se o atual governo brasileiro é de esquerda ou de direita, pois ainda que se possa recordar das suas origens na esquerda, já que não se pode negar que o PT surgiu de um projeto de transformação gestado a partir das lutas empreendidas por diversos setores do proletariado dos anos 1970, não seria improvável que todos concordassem que o partido de Lula sofreu uma profunda transfiguração nas últimas décadas. Todavia, caso optássemos por chamar essa transfiguração de “transformismo” no sentido gramsciano do termo, muito dificilmente teríamos alguma unanimidade, isto porque esta intepretação redundaria em assumir que o PT sofreu em algum nível uma mudança objetiva do seu lugar de classe, com ainda maior repercussão no âmbito da política.[viii] O fato, entretanto, é que talvez fique mais fácil concluir que os trabalhadores, quando fazem greves e lutam por pautas que foram abandonadas pelos petistas (ao menos pelos petistas do governo), estão encampando um movimento de esquerda, mesmo que este governo tenha se originado pela esquerda. Em sentido contrário, quando milhares de pessoas saem às ruas gritando contra o governo, contra a corrupção e acusando o PT de tentar implantar uma “ditadura comunista bolivariana no Brasil”, ainda que arrastem consigo uma minoria de trabalhadores, devem ser caracterizados como de direita em função das suas pautas políticas.

Em pelo menos duas circunstâncias em 2015, milhares de pessoas foram às ruas em várias cidades brasileiras, empunhando bandeiras distintas. Pautas conservadoras e progressistas foram observadas em diversos atos. Categorias de trabalhadores que fizeram greves foram provocadas por muitas das direções e algumas centrais sindicais, a defender o governo petista. Na maioria das vezes se recusaram a cumprir este papel, deixando seus dirigentes sozinhos. Apesar das direções governistas que atuam nos sindicatos e movimentos sociais, a classe trabalhadora, quando se põe em movimento, tende a recobrar o sentido histórico das suas lutas e passa a acreditar nas suas próprias forças. Por conta disso muitas das lutas do Brasil recente se dão pela esquerda do governo e das direções sindicais.

Por seu turno, as várias frações da burguesia, que financiam partidos tipicamente de direita, como o DEM e o PSDB, e com origens na esquerda, como o PT e o PCdoB, procuram reestabelecer a direção política do presente, que lhe ameaça fugir ao controle, às vezes ensaiando algum tipo de golpismo. Isso não quer dizer que sejam sempre golpistas. Como foi dito, é, por vezes, com a “melhor das intenções democráticas” que fascistas e golpistas são forjados na história, mas a possibilidade de um golpe ser posto em movimento deve ser cuidadosamente analisado, embora nunca subestimado, porque há épocas em que as classes dominantes preferem a “reação democrática” através das eleições, evitando ao máximo o caminho do confronto, de resultado imprevisível.

Há sinais de que vivemos uma crise de hegemonia, porque a burguesia não tem sido capaz de imprimir uma estabilidade efetiva há alguns anos, de maneira que a alternativa frentepopulista do PT não representa muito mais do que uma espécie de hegemonia fraca, sempre sujeita às intempéries da realidade da luta de classes e da correlação de forças, que permanentemente se altera e é frequentemente ameaçada. Todavia, como sugerem Ruy Braga e Álvaro Bianchi, a crise de direção “atinge de maneira combinada, mas desigual, tanto a burguesia como o proletariado”, já que as classes subalternas ainda não construíram uma direção efetivamente capaz de se colocar diante das enormes tarefas do presente.[ix] Obviamente que a construção de um terceiro campo é o maior desafio para os partidos que estão na chamada “oposição de esquerda” ao governo do PT.

Enquanto nossas debilidades não são superadas, seguimos o caminho de recolha do que perdemos ao longo da estrada. Alguns dirão ser possível salvar o PT dele mesmo, empurrando o partido de Lula para a esquerda, de forma a resgatar o petismo das origens, o que significaria o abandono do lulismo e tudo o que ele significou, com suas crises de corrupção e esgotamento do projeto de conciliação de classes levado às suas últimas consequências na última década. Para estes, bastaria expulsar Levy do governo, restabelecendo as políticas anticíclicas dos últimos anos, e tudo voltaria a ser como antes. Outros insistirão na alternativa de ruptura pela esquerda, apontando os riscos do comprometimento com o projeto falido de conciliação levado à cabo pelo PT.

Para uns e outros, 2013 deu o sinal. Por seu lado, o instinto de sobrevivência das classes dominantes já acendeu o alerta. O ciclo está esgotado, e enquanto as direitas voltam a ocupar as ruas, coisa que não faziam desde as “Marchas de Família com Deus pela Liberdade”, de 1964, a esquerda precisa reagir, preparando o caminho para novas jornadas, como aquelas ocorrias em junho de 2013. Mas um novo Junho precisa necessariamente ser mais orgânico e a esquerda partidária deve envidar os maiores esforços para reestabelecer a frente única, com vistas a derrotar tanto as direitas tradicionais, quanto o governo. Porque só a alternativa da reorganização será capaz de permitir o protagonismo dos trabalhadores, ameaçado pelas classes dominantes e pelas novas e velhas direitas.

[i] MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Tradução Maria Helena Barreiro Alves. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983, p. 24.

[ii] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, p. 20.


[iv] O sentido da política de transição aqui descrito é aquele tomado do Programa de Transição de Leon Trotsky.

[v] BOBBIO, Norbert. Direita e esquerda. Razões e significados de uma distinção política. 3 ed. São Paulo: Edunesp, 2011, p. 31.

[vi] Id. Ibid., p. 49.

[vii] GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. 4 ed. São Paulo: Ática, 1990, p. 7.

[viii] Sobre o conceito gramsciano de transformismo e sua efetividade prática no PT, veja-se COELHO, Eurelino. Uma esquerda para o capital. O transformismo dos grupos dirigentes do PT. São Paulo: Xamã, Feira de Santana, UEFS Editora, 2012.

3 comentários:

  1. AUTOR CLARAMENTE DE ESQUERDA. Consciente ou não, está tentando manter a ilusão (academicista e predominante) da falsa oposição esquerda x esquerda, como se os de centro fossem direita. O autor é "claramente" de esquerda ao negar o cisma que, de fato é radical, ou melhor, relativizou. Relativizar já é uma postura de esquerda, no máximo liberal (que não concordam com conservadores, exceto em economia). Mas principalmente, sua autodenuncia como esquerdista se dá pelos autores que acolheu na bibliografia (mesmo o Bobbio que comumente é enquadrado ao centro, mas ao modo bolchevique mencionado no texto, ou seja, lutas intestinas). NÃO SE ENCONTRA UM CONSERVADOR ou liberal na bibliografia. Sugiro a leitura do liberal Von Mises, do filósofo argentino Mario Bunge, os conservadores ingleses Paul Jonhson & Roger Scruton & Chesterton, Pascal Bernardin, Ain Rand e os brasileiros José Guilherme Merquior & Roberto Campos. SEM MAIS.

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    1. Boa Noite! O texto não teve a intenção de "mostrar os dois lado", pois aqui não é a rede globo... isso é balela... Esse blog tem lado, o dos trabalhadores, portanto ele é "de esquerda". Aqui a intenção é mostrar a falsa esquerda que é "vendida" como esquerda combativa(PT e outros traidores dos trabalhadores). A intenção é separar "o joio do trigo" e mostrar para os trabalhadores que os verdadeiros lutadores comunistas brasileiros não tomaram o poder ainda. O PT, por exemplo, mantêm alianças e políticas com as velhas raposas da velha direita . Não será feito aqui apologia aos assassinos ou asseclas do capital, muito menos os idiotas papagaios das aves de rapina do (neo) liberalismo internacional como deseja o missivista

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