Confundindo a cor da roupa com o material do tecido, a esquerda que glorifica a governação de Chávez equipara o anticapitalismo a uma intervenção estatista no capitalismo. Por João Valente Aguiar
Tenho plena consciência de que o leitor comum de esquerda (ou que se acha de esquerda) vai espumar perante este texto e vai acusar-me de uma de duas coisas. Ou não estaria a respeitar a morte de Chávez, como se alguma vez os processos políticos e sociais tivessem alguma coisa a ver com a tragédia da morte de um ser humano. Ou, então, que o facto de a governação de Chávez ter permitido avanços importantes em termos de “conquistas sociais” carimbaria qualquer organização política com um selo de imunidade à crítica… Sobre isto, alguma esquerda costuma utilizar o argumento de que a governação de Chávez conseguiu que a taxa de pobreza passasse de 50% para 30% da população venezuelana. Tal diminuição seria um atestado de robustez socialista da parte do governo de Chávez.
Confundindo a cor da roupa com o material do tecido, a esquerda que glorifica a governação de Chávez equipara o anticapitalismo a uma intervenção estatista no capitalismo. Ora, o caso da Venezuela bolivariana corresponde a uma intervenção estatista na economia que, afirmando-se como um legado socialista e pretensamente emancipador, na realidade:
a) Muito pouco, para não dizer quase nada, se conseguiu em termos de modernização económica do tecido produtivo. As melhorias de alguns indicadores sócio-económicos (taxa de pobreza e de desemprego) e referentes à educação pública não podem mascarar o facto de que quase um terço da população venezuelana continua a viver com imensas dificuldades e sem conseguir satisfazer necessidades básicas. A redução da pobreza registada é meritória e ninguém pode ignorar o impacto positivo para milhões de trabalhadores. Contudo, esse feito foi conseguido à custa de uma quase mono-exploração estatal do petróleo e sem conseguir controlar uma inflação que nunca baixou dos 12,5% (em 2001) e que estava actualmente nos 30%, tendo um valor médio nos últimos 15 anos na ordem dos 23%. Para um projecto que leva quase 15 anos de existência e que se afirma socialista, continuar a ter 30% da população abaixo da linha da pobreza não é política nem humanamente aceitável. E diz muito das prioridades que foram sendo tomadas ao longo da última década e meia das políticas do governo liderado até ontem por Hugo Chávez.
Por outro lado, as melhorias ocorridas aconteceram num período em que praticamente toda a América Latina se inseriu num processo de crescimento económico. Não obstante, esse crescimento económico não foi acompanhado, no caso venezuelano, por um processo de diversificação económica e por um processo de expansão dos mecanismos da mais-valia relativa (investimento tecnológico de ponta e aumento da produtividade do trabalho). Pelo contrário, a melhoria de indicadores sócio-económicos não foi acompanhada por uma necessária modernização económica. Enquanto, por exemplo, o Brasil conseguiu diminuir os níveis de pobreza numa ordem de grandeza ainda maior do que o caso venezuelano (de 38% para 20% no mesmo período – veja aqui), porque o fez em função da modernização económica capitalista no âmbito dos mecanismos da mais-valia relativa, pelo contrário, a Venezuela chavista apenas conseguiu diminuir a pobreza na base de uma conjuntura favorável à venda de petróleo nos mercados internacionais. Em suma, Chávez deixa um país capitalista com menos pobres, mas sem alavancas estruturais que a médio e longo prazo possam modernizar a estrutura económica.
b) Em nada rompeu com a constituição de uma classe capitalista entroncada na exportação petrolífera. Quem detém o poder político e económico na Venezuela não são os trabalhadores e, fora da propaganda, nunca foram dados passos que tivessem impedido a ampliação de uma classe de gestores capitalistas em torno do negócio do petróleo. Por outras palavras, nada foi concretizado no sentido de permitir o exercício da tomada de decisões de todo o conjunto da sociedade pelos trabalhadores. Pelo contrário, para um projecto que se autodenomina socialista, os processos de discussão, de gestão e de concretização das políticas nunca foram determinados pelo conjunto dos trabalhadores. Nesse sentido, e por muito que o apego ritual às boinas vermelhas dos chavistas cegue as vistinhas de muito boa gente à esquerda, a verdade é só uma: a Venezuela bolivariana é capitalista como qualquer outro país do mundo.
Continuar a chamar socialista, ou o que quer que seja no espectro de discursos políticos anticapitalistas, a processos de remodelação das hierarquias políticas e económicas vigentes só continuará a alimentar ilusões e erros colossais que a esquerda sempre foi tendo nos últimos dois séculos acerca da equiparação mecânica entre propriedade jurídica dos meios de produção e relações sociais de trabalho. Às primeiras basta nacionalizar/estatizar uma empresa para que seja considerada socialista. Às segundas, só uma transformação profunda dos processos de decisão, de administração e de apropriação da riqueza produzida permite uma superação real e efectiva da precariedade laboral e da vulnerabilidade estrutural que todos nós trabalhadores vivemos no dia-a-dia. Que a propriedade jurídica seja privada ou estatal, nada disso obsta relativamente à existência de uma classe apropriadora da riqueza produzida.
2.
Independentemente do que cada um ache politicamente de Hugo Chávez, é terrível que, duzentos anos passados de movimentos operários e populares de todo o tipo, ainda ande tudo preocupado à esquerda com o futuro desses movimentos quando um líder desaparece… É ver o estado de desespero de muita gente de esquerda perante o falecimento de um “dirigente máximo”. Assim se compreende como a orfandade política por dirigentes-guias-salvadores demonstra o quanto a maioria da esquerda não quer saber para nada dos trabalhadores nem das possibilidades de a classe trabalhadora gerir democraticamente o conjunto da vida social sob novos princípios de organização da sociedade… Hugo Chávez figurará no panteão da esquerda como Karol Wojtyla para a Igreja Católica? Pelo menos a curto prazo, o ícone sobrepor-se-á ao real.
No geral, os movimentos sociais, populares e operários ainda não conseguiram libertar-se do peso dos guias-dirigentes. Repito, independentemente do que cada um ache politicamente do indivíduo A ou B, o que me importa é constatar que a generalidade dos processos políticos à esquerda e das lutas sociais das últimas três décadas continuam a apresentar-se orfãos de dirigentes relativamente inamovíveis e que decidem por nós e pelo futuro do movimento. Dirigentes que são vistos e, por que não dizê-lo, sentidos por grande parte da esquerda como encarnações de uma vontade nacional e como redentores de um ressentimento moralista contra os ricos, mas muito raramente numa perspectiva de crítica ao Estado e à economia capitalistas.
Nesse sentido, Chávez foi mais um entre muitos líderes partidários ou de Estado com que a esquerda nacionalista continua a suspirar para funcionarem como vanguarda mais ou menos pessoalizada de processos que mais não são do que uma roupagem avermelhada de capitalismos arcaicos e populistas. Verdade seja dita, a cristalização de lideranças carismáticas e que decidem pela população resulta sempre da desmobilização e da desorganização das dinâmicas democráticas de base. O que não isenta ninguém, mas recorda a origem dos processos de recuo das lutas sociais de base que se apegam a líderes, dirigentes e/ou estruturas centralizadas e burocráticas como um último reduto de ilusões.
Para o conjunto dos trabalhadores de todo o mundo isto é o pior de tudo: ainda não conseguirem contar com as suas próprias (as nossas!) forças colectivas e democráticas para continuarem um qualquer processo social e político, independentes do destino que os indivíduos tomam no decurso da vida. E independentes da conversão das lutas sociais de base em processos de aclamação de dirigentes omnidecisores.
“A emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”?
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