Um dos campos
burgueses progressivos se justifica com a generalização abusiva de um fato
real: as diferenças entre os distintos setores burgueses (...) Isto não
significa que o marxismo ignore a existência de rivalidades entre os distintos
setores da burguesia.(...) Porém isso significa que se deve aproveitar estes
choques, jamais apoiar politicamente uma frente de colaboração de classe que
pode surgir dos mesmos (1). Nahuel Moreno
Uma análise
sólida não tem compromisso senão com a compreensão da realidade. O papel de uma
análise é buscar um quadro de explicação para a realidade que nos cerca.
Análises não podem ser instrumentais. Deve se entender por instrumental uma
análise construída para justificar uma política. Há uma dimensão independente
da análise que não deve ser contaminada pelos nossos desejos, preferências ou
medos.
Na análise da
realidade é preciso muito cuidado para não deixarmos nossas preferências
teóricas ou até o peso de experiências anteriores nos cegarem. A teoria deve
estar sempre em processo de verificação. O autoengano é uma armadilha poderosa.
Toda análise
ideologizada precisa, todavia, para ser eficaz, de um grão de verdade. O grão
de verdade em 2015 é que há uma fração da classe média que tem demonstrado
disposição de ir às ruas para tentar derrubar o governo de coalizão liderado
pelo PT. As manifestações de rua de agosto, ainda com dimensão nacional e muito
massivas, embora menores que em março e abril, mantiveram o mesmo tom
reacionário e o mesmo perfil social que as de março e abril: uma maioria de
eleitores da oposição de direita em 2014, de classe média alta, meia idade,
masculina, com instrução superior e, autodeclarada, branca.
A novidade é que
desta vez Aécio Neves discursou em Belo Horizonte, além de outros porta-vozes
da direita institucional como Ronaldo Caiado, fundador da UDR (União
democrática Ruralista) nos anos 80. A saída da classe média às ruas, que
continua sendo inflamada pelas denúncias de corrupção da Operação Lava Jato, só
ganharam uma audiência nacional porque o contexto econômico e social é de
crescente deterioração: os números do desemprego se aproximam vertiginosamente
dos 10%, segundo os dados do próprio IBGE; a inflação também acelera e está
quase em 10% ao ano; os cortes do orçamento afetam as verbas para saúde,
educação, habitação; as obras públicas estão paralisadas etc.
o perfil
dominante era de brancos (75%), classe média alta e ricos (64% com rendimentos
de 3.900 a 40 mil reais mensais); e não-jovens brancos (75%), classe média alta
e ricos (64% com rendimentos de 3.900 a 40 mil reais mensais); e não-jovenEm
outras palavras, a rejeição política ao governo é cada vez mais homogênea, se
consideradas variáveis como classe social e região do país, porém, a capacidade
de mobilização do mal estar social pelos grupos da nova direita, e pelo PSDB –
que em agosto se engajou, seriamente, na convocação pelos seus anúncios na TV –
não foi além da mesma base social que saiu às ruas no primeiro semestre de 2015
(2). Mas, por outro lado, foram atos ainda muito grandes. Prevaleceu uma raiva
impaciente, algumas parcelas até ensandecidas, o que sugere a possibilidade de
novas manifestações.
A saída às ruas
da classe média é o argumento dos que defendem que diante de uma onda
conservadora a única resposta possível é uma união da esquerda em torno da
defesa do governo, ou da legalidade ou da democracia. Ou seja, uma união, mais
ou menos crítica, com o governo Dilma Rousseff. A esquerda que decidir se unir
ao governo estará selando o seu destino: ruirá junto com o lulismo. O caminho
para uma esquerda que tenha futuro depende da constituição de um terceiro
campo, independente tanto do governo quanto da oposição de direita.
A teoria da onda
“conservadora” já tinha aparecido no mensalão e, com mais força, depois de
Junho de 2013, para defender o governo Dilma e fundamentou a proposta da
Constituinte exclusiva para a Reforma Política. No mensalão foi invocada a
célebre campanha da UDN contra Getúlio Vargas denunciando, furiosamente, o “mar
de lama”. O objetivo da analogia histórica era justificar que a luta contra a
corrupção seria uma bandeira de direita.
Evidentemente,
nunca foi tão simples. Bandeiras democráticas podem cumprir um papel
progressivo ou regressivo dependendo do contexto. A luta contra a corrupção,
uma bandeira democrática, foi uma parte importante do programa da esquerda na
luta contra a ditadura entre 1964/84, e do próprio PT até à vitória de Lula em
2002.
Em Junho de 2013,
o pretexto petista para desqualificar os protestos contra o prefeito do PT em
São Paulo e, depois, contra todos os governos foi o antipartidarismo e
nacionalismo presente nas manifestações, sobretudo, a partir do dia 20 de junho
e durante a semana seguinte.
A presença
ostensiva de grupos de ultradireita, pela primeira vez depois do fim da
ditadura, ajudou a excitar a hipocondria política. Ainda assim, como é evidente
pelo significado da maioria das mobilizações contra os aumentos dos transportes,
em protestos contra os estádios e em defesa da educação e da saúde públicas,
Junho de 2013 foi muito maior que a manipulação feita pelas TVs.
A partir de março
de 2015 foi a presença massiva das camadas médias nas ruas, as mesmas que
tinham votado em Aécio Neves contra Dilma no segundo turno de outubro de 2014,
pedindo o impeachment de Dilma, que deu novo e dramático apelo à ideologia da
onda conservadora.
É difícil
sustentar, portanto, que o Brasil ficou mais “conservador” depois de 2014. Não
é o que refletem as pesquisas especializadas mais sérias (3).
O Brasil, como de
resto todas as sociedades que fizeram a transição do mundo rural para o urbano,
tardiamente, sempre foi mais conservador nos temas dos costumes que nos temas
econômico-sociais. Em outras palavras, em temas como a descriminalização do
consumo de drogas, legalização do aborto, pena de morte, igualdade civil de
matrimônios entre homossexuais e tantos outros, prevalece ainda uma resistência
cultural arcaica. Já nos temas que remetem à luta por direitos e igualdade
social, como salário igual para trabalho igual, seguro contra o desemprego,
universalização e gratuidade da educação, saúde e transporte, ou o papel do
Estado na economia, como as privatizações, a imensa maioria do povo se inclina
por propostas progressivas. Este quadro não mudou.
Não obstante, é
verdade que o governo Dilma ficou muitíssimo mais fraco e a oposição de direita
mais forte.
O lugar da
corrupção no deslocamento da classe média
A ideologia de
que o “meu partido é o Brasil” e, portanto, que os partidos seriam,
não somente desnecessários, mas um obstáculo é uma ideia de apelo simples,
porém, muito perigosa. O meu partido é o Brasil é uma forma de
nacionalismo apolítico. Mas não é a antessala do fascismo, embora fascistas
tenham se aproveitado, conjunturalmente, do atraso na consciência que este
grito de guerra traduz.
O domínio dos
monopólios sobre o regime democrático está na raiz da corrupção. E a corrupção
pessoal dos políticos profissionais está na raiz do ódio das camadas médias.
Esse processo de experiência, ainda que incompleto, porque identifica mais o
corrompido do que o corruptor, é progressivo. A luta contra a corrupção, uma
forma degenerada de controle político inerente ao capitalismo, é uma luta
progressiva.
Mas o
antipartidarismo tem, também, uma dimensão regressiva: a desconfiança de
qualquer instrumento de luta política pelo poder. A conclusão de que “os
partidos são todos iguais” é ligeira e ingênua. Para compreendermos o
apartidarismo, e o relativo apoliticismo, primeiro há que perceber que têm uma
dimensão internacional. São uma expressão da repulsa aos regimes eleitorais
corruptos.
Por trás desta
confusão, encontramos três ilusões. Primeiro, a ilusão de que uma liderança
individual incorruptível, no passado Joaquim Barbosa, nas eleições de 2014
Marina Silva e, mais recentemente, o juiz Sergio Moro, seria superior a
organizações coletivas como são os partidos. Não surpreende, mas é muito grave,
que a saída política mais popular entre uma parcela dos que foram às ruas em
São Paulo, no dia 15 de março, tenha sido a reivindicação da ditadura militar.
Ninguém, nem uma só pessoa, pode salvar o Brasil.
A busca de
lideranças individuais salvadoras é uma fantasia apolítica. O que nos remete ao
pensamento mágico e à ilusão da liderança individual incorruptível, indivíduos
com capacidades, supostamente, arrebatadoras, a la Jânio Quadros ou
Fernando Collor. A luta de partidos, ou seja, instrumentos coletivos de
representação de interesses de classe, é incontornável nas sociedades urbanas
contemporâneas.
Não deve existir
mais lugar para caudilhos. Vargas é o passado do Brasil capitalista ainda em
transição para a industrialização. À sua maneira, o lulismo, o caudilhismo
carismático, foi uma das causas/consequências da degeneração do PT. Trocar um
caudilho por outro seria dramático, portanto, caminhar para trás.
Segundo: a ilusão
de que existe uma solução técnica ideal para administrar a sociedade, ou seja,
a fantasia positivista da “ordem e progresso”. Como se não existissem soluções
técnicas as mais variadas, que respondem a diferentes interesses de classe.
Terceiro, e pior ainda, invertendo as relações entre causas e efeitos, a
perigosa ilusão de que o problema seria a corrupção dos partidos sobre o
Estado, e não a corrupção do capitalismo sobre os partidos.
O perigo do apoio
ao governo como um campo “progressivo”
E mais uma vez
estamos diante de uma campanha poderosa para legitimar o apoio crítico ao
governo de coalizão liderado pelo PT. Ele seria o “melhor que é possível”.
Seria o campo progressivo que merece ser defendido contra o campo reacionário.
O argumento da
relação de forças desfavorável volta a ser esgrimido como álibi para o apoio,
ainda que crítico, ao governo Dilma/Levy diante da onda “conservadora”. É um
álibi porque não há relação de causalidade em admitir um deslocamento
desfavorável da relação social de forças, e a construção de uma Frente para
apoiar o governo.
Esta ideologia
vem associada, em sua ala mais radical, à tática do governo em disputa. O ato
de apoio a Dilma, dentro do Palácio do Planalto, ouviu discursos que pediam, ao
mesmo tempo, a deposição de Cunha e a demissão de Levy, como se a política
econômica não fosse decidida por Dima, e não tivesse o apoio de Lula e de sua
maioria no PT (4). O governo Dilma, treze anos depois da eleição de Lula em
2002, não oferece razão alguma para qualquer dúvida.
Entre 2003 e
2005, conhecemos a primeira fase da influência da teoria do governo em
“disputa”. Depois do intervalo do mensalão, ela voltou com uma força
surpreendente enquanto o crescimento econômico inflava as velas da popularidade
do final do segundo mandato de Lula.
Tivemos uma
terceira fase quando as políticas anticíclicas de Guido Mantega surfavam nos
empréstimos do BNDES que se beneficiavam da alta do preço do petróleo e das
expectativas diante das possibilidades de exploração do pré-sal, favorecendo a
credibilidade da argumentação neodesenvolvimentista.
Muita gente
honesta do povo de esquerda está se perguntando se não há perigo de golpe, e se
a escalada do tom da oposição de direita não é muito parecida com o pré-1954 e
o pré-1964. A turbulência nas alturas aumentou muito, mas o impressionismo é
mal conselheiro. Não vale a pena se assustar antes da hora. Uma esquerda que se
reivindica marxista não tem direito a ignorar uma análise de classe dos dois
campos burgueses em confronto.
Primeiro: embora
dividida diante da crise política, o que é um fato novo desta conjuntura
pós-2014, a maioria da classe dominante não está inclinada a apoiar o
impeachment de Dilma Rousseff. O projeto de golpe “à paraguaia”, como a
destituição de Fernando Lugo em 2012 existe, mas é minoritário. Claro que esta
realidade pode mudar. Mas não se pode fazer análise do futuro, somente
prognósticos. Por enquanto, agosto de 2015, essa hipótese não é a mais
provável, porque esta linha não prevaleceu nos círculos burgueses mais
poderosos.
Crises políticas
são comuns, mesmo em situações de estabilidade social. Mais ainda quando a
situação econômica se deteriora. São crises de governo que podem e são
resolvidas pelas instituições do regime político, são processos de rotina, para
arbitrar os pequenos conflitos de gestão. E recuperar o equilíbrio que é
necessário para manter a ordem e o fluxos dos negócios.
Pode haver
“barulho nas alturas”, os partidos rivais podem usar uma retórica muito áspera,
os escândalos podem ter repercussão pública grande, mas a maioria da sociedade
ignora a “tempestade” nos Palácios e Parlamentos. Como dizem os
norte-americanos, “business as usual”.
Essa é a aposta
da direção do PT e de Lula. Mudar a composição do núcleo duro do governo Dilma,
incluindo uma parcela mais colaborativa do PMDB. A questão é saber qual a
natureza da crise política. Não parece que ela se resuma ao mal estar nas
alturas e, portanto, à recuperação de uma maioria no Congresso para a
governabilidade. Sendo assim, convocar o Temer, ou o Eliseu Padilha e o Kassab
para ajudar Aloísio Mercadante na Casa Civil, mesmo com um programa de
emergência como a Agenda Brasil, pode não ser o bastante.
Por trás do
crescente mal estar estão as demissões em massa na indústria e na construção
civil e a redução da capacidade de consumo das famílias. Mas, também, as
notícias diárias sobre a relação de partidos como PP, PMDB e PT, entre outros,
com a roubalheira escandalosa na Petrobrás e outras estatais.
O limite de
tolerância da classe média e, também, da classe trabalhadora e da juventude
veio diminuindo, com variações, desde junho de 2013. Porque remete a, pelo
menos, elementos de crise do próprio regime. É muito difícil tentar prever até
quando é possível um governo atacar as condições de vida da maioria da
população, conquistadas na década passada, sem provocar a ira, ou até a fúria
de milhões. Milhões de pessoas estão mesmo, crescentemente, zangadas,
enraivecidas e dispostas a agir.
O humor social
das classes depende da percepção subjetiva da situação. Esta compreensão
depende de muitos fatores, entre eles o papel das organizações políticas. Até
agora a classe média foi para as ruas, contando com a simpatia popular, mas sem
capacidade, felizmente, de arrastar a maioria proletária.
Um processo de
acumulação de mal estar, em algum momento, pode dar o salto de qualidade, e o
ódio ao governo se alastra e contagia uma maioria da sociedade. Os nervos e
músculos da sociedade não aguentam. Misturam-se na mais alta intensidade,
esperança e incerteza, rancor e insegurança. O medo da aproximação da hora de
um confronto decisivo, a hora de medir forças, gera uma inquietação frenética.
A vontade de derrubar o governo ganha a força de uma paixão política. Paixões
são um estado de espírito intenso, é um momento de máxima exaltação. Não pode
se manter por muito tempo. A hora parece ter passado.
Notas:
1) MORENO,
Nahuel. A Traição da OCI. 1981. Disponível em: www.pstu.org.br/sites/default/files/.../moreno_traicao.r.Consulta
em 07/08/2015.
2) Dados do
Datafolha revelam o perfil do ato do dia 16 de agosto em São Paulo, estimado em
135.000 pessoas: o perfil dominante era de brancos (75%), classe média alta e
ricos (64% com rendimentos de 3.900 a 40 mil reais mensais); e não-jovens50,09%
tinham renda entre 3.940 e 15.760 reais mensais; 14% tinham renda entre 15.760
e 39.400 reais; 13% tinham renda entre 2.364 e 3.940 reais. A maior parte dos
manifestantes que foi à avenida Paulista neste domingo (16) é homem (61%), tem
51 anos ou mais (40%), cursou o ensino superior (76%), se declara branca (75%),
não é ligada a nenhum partido (52%) e tem renda familiar mensal entre R$ 7.881
e R$ 15.760 (25,17%).
Jovens de 21 a 25
anos representam 6% dos manifestantes. Na faixa entre 26 e 35 anos estão 19%,
enquanto 30% têm entre 36 e 50 anos. Em relação à escolaridade, 4% têm ensino
fundamental e 20%, ensino médio. Manifestantes que se declararam pardos somam
17%; pretos são 3%. Consulta em 17/08/2015.http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/229820-maioria-nas-ruas-e-homem-e-tem-curso-superior.shtml
3) São Paulo,
muito mais que cidade reacionária in Outras Palavras. 1 de agosto.
http://outraspalavras.net/outrasmidias/capa-outras-midias/sao-paulo-muito-mais-que-cidade-reacionaria/ Consulta em
03/08/2015.
4) A novidade foi
a presença do MTST através de Guilherme Boulos. Consulta em 17/07/2015. http://www.ebc.com.br/noticias/politica/2015/08/dilma-reune-mais-de-milrepresentantes-de-movimentos-sociais
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A fórmula mágica
da paz social se esgotou – Paulo Arantes, especial para o
Correio
‘A depender de
governo e oposição, caos social vai se aprofundar’ – entrevista com
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Agenda Brasil: o
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