Tentarei escrever esse texto da forma mais simples
possível, pois entendo que esse é um tema de difícil trato.
Quando críticas contundentes foram feitas ao casal que
aparece com uma babá cuidando de seus dois filhos, nos protestos de Copacabana,
algumas pessoas passaram a perguntar: qual é o problema? Se está pagando
adicional, está registrado, com FGTS, qual o problema? É um emprego digno,
dizem.
As perguntas registram uma crença na positividade da
ação do casal, como se fosse direito inalienável conseguido por meio do
pagamento. O recurso ao termo dignidade torna a coisa mais complexa, porque
passa a impressão de que não se pode discutir a pertinência ou não do trabalho.
O uso do termo dignidade dá a entender que, em algum
momento ou em alguns lugares, babá pode ser entendida como trabalho indigno. É
verdade. Mas por quê? Parece-me que a celeuma da babá está relacionada à sua
história, que é escravagista. As amas de leite e as escravas da Casa Grande
eram as pessoas que cuidavam dos filhos dos senhores e das sinhás. Muitas
cuidavam desde jovens, tornando-se escravas sexuais dos senhores e dos filhos,
assim que atingiam a puberdade.
Em Casa Grande e Senzala, Freyre demonstra que assim
que passavam a trabalhar na casa grande, as escravas mudavam de roupa,
diferenciando-se das escravas da lavoura, mas sem reproduzir as sinhás. As
roupas que usavam eram calças e camisas de algodão, muito parecidas com as
roupas de babás de hoje. Pode-se dizer que há uma forte relação entre a roupa
da ama de leite e escrava da casa grande com as das babás, refutando-se o
argumento de que a indumentária seria próxima das profissionais de saúde.
Falácia!
Esse tipo de prática não existe em nenhum país
civilizado. É coisa de país escravagista mesmo, com histórico de criação de
símbolos de distinção social. Em uma reportagem da BBC, de 18 de junho de 2015,
uma ex-babá e uma babá dão os seguintes
depoimentos em um inquérito do Ministério Público que investigava o Clube
Pinheiros por exigir o uniforme:
“Uniforme deixa claro que você é serviçal, dá status
para a patroa no shopping”.
"Sou
babá e quando vamos a esses clubes, na sua maioria, exigem uniformes. Há um
tratamento diferenciado por parte dos funcionários e dos sócios. É como se não
tivéssemos que estar ali. É puro preconceito. Já viajei para outros países e
fui muito bem tratada. Não precisei usar uniforme e sempre me posicionei como quem
está a trabalho naquele local."
Exatamente por isso que quando um estrangeiro vê a
cena, costuma ficar chocado. É coisa da elite brasileira, que tem arraigada a
cultura do escravagismo e do servilismo. Tem horror ao trabalho manual.
A título de exemplo, o Chile proibiu, por meio de lei,
o uso de uniformes para babás e empregados domésticos. A Organização Mundial do
Trabalho tem a mesma recomendação ao Brasil.
Voltando ao conceito de dignidade, no mundo do
trabalho a dignidade é construída e conseguida quando o trabalhador tem acesso
ao mundo dos direitos, inclusive o de não ser discriminado. Portanto, dignidade humana e dignidade no trabalho são construções históricas, e não um dado meramente moral. Há trabalhos que possibilita à consecução da dignidade, e outros não, como cortador de cana, por exemplo.
No caso das babás e das empregadas domésticas no
Brasil, o trabalho enquanto categoria está longe de construção da dignidade,
uma vez que a consecução da legislação trabalhista sofre boicotes, além de ser bastante
criticado por associações de patrões e patroas. Portanto, genericamente,
baseado em dados, que o trabalho de babás ainda não dá dignidade às
trabalhadoras.
Devo dizer que estou usando argumentos jurídicos, só.
Confesso que tenho discordâncias, mas para que o discordante possa entender o
contexto, julgo-os relevantes como mediação. A minha discordância está no fato
de entender que, talvez, esse trabalho nunca dê dignidade às trabalhadoras,
pois se assenta na perspectiva de que um grupo social não deve realizar
trabalhos manuais.
Esse trabalho não se assenta na dignidade humana
porque se sustenta na desigualdade social. Fulvia Rosemberg, em uma pesquisa
sobre a tímida expansão das vagas na educação infantil no Brasil comparado com
outros países, chega a seguinte conclusão: o que sempre emperrou a expansão de
vagas na educação infantil no Brasil foi a desigualdade social. Na Europa, como
o nível de desigualdade é muito mais baixo do que o brasileiro, com salário
mínimo muito próximo da média salarial, pagar uma babá significa receber menos
do que a babá. Isso obrigou o movimento de mulheres a sair às ruas tendo como
pauta prioritária a expansão de vagas de educação infantil (o que é verdade,
honestamente, comparando com as principais pautas do movimento de mulheres no
Brasil, ainda que pese exceções).
No Brasil, como a desigualdade social é imensa, quase
escravagista, sempre compensou “contratar” uma menina para cuidar dos filhos.
Essa menina, reproduzindo a lógica da Casa Grande, sempre viveu no seio
familiar, criando a famosa frase “ela é quase da família”. Mas essa menina
nunca teve direitos, muitas vezes salário. As famílias, muitas vezes, sem
alternativa, “doavam” as meninas para as famílias “criarem”, sob troca de
trabalho 24 horas por dia.
Não caia no erro de achar que isso foi muito tempo
atrás. Eu tenho 33 anos e conheço
mulheres da minha idade que receberam esse “convite”, o que significa
que a desigualdade pós-escravidão imperava a 20 anos atrás. Caso contrário, não
teria “havido” convite.
A verdade é que ainda impera. Pode ser com menos
força, mas ainda impera. E o caso do casal da foto demonstra. A situação é
simples: Um casal resolve ter filhos.
Supostamente se contrata babás para cuidar das crianças quando os pais
trabalham. Mas é domingo, supostamente folga semanal do casal. É folga semanal,
pois resolvem ir a uma manifestação contra a corrupção.
Sabe o que isso me faz pensar? Por
que não carregam os filhos? Se não tem nem vontade de carregar os dois
carrinhos de seus filhos, e precisam de uma mulher (que provavelmente tem
filhos e os deixa sós), por que tiveram filhos? A resposta é simples: porque
para essa parte da população ter filho não significa cuidar, mas pagar pelos
cuidados, pois cuidar é um trabalho manual.
É um comportamento típico de Casa
Grande e Senzala. Essa cena simboliza como a nossa sociedade é desigual,
racista e cruel. A pergunta é: onde estão os filhos da babá? Estão com quem?
Como ela consegue educar seus filhos? Por que ela precisa trabalhar domingo? Por
que a nossa sociedade permite que exista uma desigualdade tão grande? Por que
os patrões não conseguem ver nenhum problema na cena? E a principal: A que
horas ela volta?
O importante é entender que só
existe essa quantidade absurda de empregadas domésticas e babás na nossa
sociedade porque há uma desigualdade social tão grande que permite que se
contrate a baixo custo. O problema é a desigualdade social, não a babá em si.
Mas o que me incomodou tanto quanto
foi o argumento de defesa do pai das crianças, publicado em seu facebook. Vamos
contextualizar. Cláudio Pracownik é banqueiro. Trabalha e trabalhou para bancos grandes,
alguns com forte esquema de corrupção, como o caso da Brasif, acusada de ter
esquema para pagamento “atípico” da ex-amante de FHC. Mas isso interessa pouco,
apesar de ser importante, pois ele foi a um ato contra a corrupção.
Há um ponto no texto que exacerba o
que pensa de si:
“Sinto-me feliz em gerar empregos em
um país que, graças a incapacidade de seus governantes, sua classe política e
de toda uma cultura baseada na corrupção vive uma de suas piores crises
econômicas do século”.
Ele cria a figura do empresário
criador de empregos, que possui a qualidade de gerador de empregos e dá ao
governo o ônus da demissão. Mas uma pesquisa rápida na internet dá outra versão
ao empresário, que como todo empresário, faz o que tem que fazer para ter
lucro. Em um site especializado em mercado de trabalho (https://www.lovemondays.com.br/), especialistas escrevem os prós e os contras de se
trabalhar em uma empresa. Veja o que falam da Brasil Plural, banco que hoje é
diretor-executivo:
“Alto turnover de funcionários, entra
um, sai um. Todo ano contratam uma leva de gente, chega no final do ano,
demitem uma leva, sem justa causa, e sem pagar bônus proporcionais. Há vários
casos de funcionários antigos demitidos a poucas semanas ou até dias do bônus,
que saíram de mãos abanando. Outros duraram apenas um ano ou menos na empresa.
Pagam muito abaixo de mercado, poucos benefícios, e o usual truque de demitir
pessoas de áreas geradoras de receita sem pagamento de bônus. Não há feedback
nem explicação, apenas "pegue suas coisas e saia".
Ou seja, Cláudio Pracownik não
respeita os direitos trabalhistas e demite sem explicação para não pagar bônus.
Esse é o ponto. Cláudio Pracownik, o pai das crianças, quer mudar o pais, mas não quer mudar as relações de poder.
Critica a corrupção e está envolvido, pelo menos indiretamente como ex-vice-presidente
de uma empresa que ajudou FHC a depositar dinheiro para uma ex-amante e um
filho que jura que não é seu. Recusa-se a empurrar o carrinho, terceiriza a
criação de seus filhos como se fosse Casa Grande e Senzala. Em seu texto, diz
que cria empregos, mas a Brasil Plural tem alta rotatividade de empregados, com
alto índice de demissão e recontratação sem pagamento de bônus.
É o típico hipócrita, membro de uma
elite que procura preservar o status
quo. O objetivo é que a Casa Grande continue Casa Grande e a Senzala continue
Senzala.
Leonardo Sacramento é professor e Secretário-Geral da APROFERP
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