segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Canção das coisas que dormem lá fora e acordam aqui dentro

Tem um galo cantando lá longe. Ele canta baixinho, tranquilo, seu canto de quem agradece a Deus pelo céu azul imenso de nuvens brancas varridas que vem aí, sob o sol alaranjado da alegria, esquentando o vento que varre das casas as angústias de ontem, que seca as roupas e renova a vida.

Tem um galo cantando. Ele canta lindo, profundo, comovido, para a mulher que em algum lugar dança sozinha de olhos fechados, pés descalços, mãos abertas e coração transbordando música e lembranças. Canta para as crianças que pulam da cama e enchem a casa de vida. Para quem faz bem o seu trabalho honesto, seja ele qual for. Canta para as pessoas esforçadas, as moças que tomam sorvete enquanto caminham com pressa na volta à lida depois do almoço.
Lá longe, um galo canta para o perfume da chuva esfriando o solo que arde de tristezas concretas e sentimentos ralos como a poeira de terra seca e pele morta. E ele canta para aquela espécie rara de gente que devolve o troco quando vem a mais.
Enquanto ele canta, um cachorro deita aos pés de seu dono triste e um gato errante, arruaceiro e andarilho retorna de seu longo e costumeiro passeio noturno para a companhia de seu amigo gente que o espera amoroso e solitário.
Tem um galo cantando lá longe seu canto perfeito e brutal. Ele canta para aqueles que, mesmo no fim do amor, continuam se amando tanto e tão sinceramente a ponto de rezar pela felicidade do outro em qualquer tempo, em quaisquer braços. O galo canta forte como a lembrança do cheiro simples de uma mangueira jorrando água e saudade no corredor de cimento do quintal pequeno, numa quarta-feira à tarde, quando até o sol cochila de amor na sesta e esquece de ir embora.
Canta para o campo enorme de futebol que o menino imagina em seu coração gigante no terreno de terra e pedra, as traves de chinelo, a bola puída passando entre as pernas de adversários invisíveis, sob os gritos da torcida que não existe. O galo canta para os homens e as mulheres de meia idade que voltam à escola depois de anos caminhando longe dos livros, os olhos cheios de medo e curiosidade, a alma aberta, repleta, ansiosa. E ele canta para a potência grandiosa da vida que nasce irrefreável em todos os cantos, a toda hora.
Tem um galo cantando lá fora. Ele canta para as mães e suas mães que também tiveram mães, nascidas de outras mães, com quem aprenderam a arrumar a casa como quem dá jeito no mundo, corrigindo todo erro com um amor irrefreável que se perpetua e continua e nos salva e nos censura e nos redime de nossas faltas. Canta para os pais que caminham ao lado de suas crianças, as mãos dadas com o cuidado de quem acompanha a última chance de salvar um mundo padecido e ameaçado pela falta de graça, a burrice, a maldade e o mal gosto.
Para quem acredita no poder das surpresas afetuosas o galo também canta. Ele canta alto para as pessoas que olham as outras com ternura, que adotam crianças, cachorros e novas posturas. Canta para os amigos que emprestam seus livros por gosto. E para aqueles que devolvem os livros emprestados, seja por cuidado, respeito ou pela mais simples vergonha na cara.
Incansável e destemido, o galo canta para os amigos que se reencontram muitos anos depois e ainda se reconhecem meninos, apesar do tempo e das rugas, no olhar de quem já tanto caminhou e ainda há de caminhar. Canta para a saudade doída que brota nas músicas de ontem, nos filmes revistos, em fotografias resgatadas. Canta para acordar a cidade deitada sob o céu que agora amanhece da noite salpicada de estrelas, como asteriscos apontando no quadro negro lembranças, recados, significados ocultos e escancaradas palavras de amor para Deus sabe quem.
E acima de tudo, ele canta para uma alma solitária no silêncio de sua alcova sonhando com a compreensão. Ela que tantos esperam receber e tão poucos se dispõem a dar. Ela que alguém diz ainda existir por aí, bela e inverossímil como a moça nativa de uma ilha distante que faz doces para melhorar a vida. Tão boa e tão linda. Tão linda.
Tem um galo cantando bem perto. Ouviu? Tem um galo cantando. Ele está cantando para mim e para você. Está cantando para nós e para os nossos. Ele está cantando aqui dentro. Ele está cantando para sempre.
Fonte: Revista Bula

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