quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

O futebol engajado e anticapitalista

Conheça a história do St. Pauli, clube germânico que se posiciona contra o racismo, o fascismo, a homofobia e o machismo em seu estatuto. E, com isso, conta com uma legião de fãs que ultrapassa dos limites da Alemanha
Por Rafael Nardini
O St. Pauli é um time de futebol diferente. A equipe alemã da cidade portuária de Hamburgo se declara anticapitalista, antifascista e já teve até um diretor de teatro assumidamente gay como presidente. Encampando bandeiras de movimentos sociais e das liberdades individuais, a equipe da região Norte da Alemanha expandiu sua fama a partir dos anos 1980. Foi nessa mesma década que o clube colocou toda sua visão libertária no papel. Desde então se declara contra o racismo, o fascismo, a homofobia e o machismo em seu estatuto.
Na década de 1980, auge das brigas entre torcedores (principalmente na Inglaterra e na Alemanha), dos hooligans e dos problemas políticos ocasionados especialmente por neonazistas e demais perseguidores das minorias, os torcedores do time fundado no distrito operário de St. Pauli se uniram num movimento antifascista, chegando a combatê-lo com o uso de violência. Parte da torcida da equipe considerada foco do fascismo acabou por ser escanteada na marra das dependências do estádio Millerntor. A mitologia foi ganhando mais musculatura com a chegada de movimentos sociais e grupos políticos ligados aos comunistas, anarquistas e de artistas locais que passaram a torcer pelo St. Pauli desde então.
“Um monte de gente passou a sair das docas e levar bandeiras com uma caveira e ossos cruzados com as cores do clube. Era uma piada, mas isso se espalhou”, explica Sven Brux, torcedor de longo tempo e membro da equipe de segurança do time. “É um símbolo: nós, os pobres, contra os ricos. Clubes ricos como [Bayern] Munich. Agora os piratas lutando pelos pobres contra os ricos é um símbolo oficial do clube”, afirma em um documentário do time.
E a fama dos piratas também se estendeu mundo afora. Ao todo, são mais de 500 fã-clubes do St. Pauli espalhados pelo mundo. É não é porque o Brasil não abriga nenhum deles que não há torcedores da equipe no país.  “Quando eu conheci o St. Pauli vivia procurando materiais sobre o time. Em português, não encontrava muita coisa e o que encontrava eram informações superficiais, daí lia material em inglês, que também era pouco. A única maneira de ter algo completo era em alemão. Quando comecei o blogue em janeiro de 2009, o time estava na 2.Bundesliga [segunda divisão] e a variedade de informações sobre o time era bem pobre a não ser na língua natal”, conta a designer de moda Luciana Leal, 33 anos, que mantém um blogue, o St. Pauli Brasil (http://fcstpaulibrasil.blogspot.com/), totalmente escrito em português.
Para os torcedores do time germânico, há valores mais importantes que o futebol e os resultados alcançados em campo. O clube, que estima ter 11 milhões de sócios na Alemanha, chegou a manter uma média de 15 mil torcedores por jogo enquanto estava na terceira divisão, campeonato com média geral de 200 espectadores. Uma prova de fidelidade e tanto.
“Na temporada passada, quando o time esteve na liga principal, fez uma campanha bem fraca e voltou pra 2.Bundesliga e nem por isso os torcedores deixaram de apoiar. Se fosse aqui, o ex-técnico [Holger Stanislawski] teria sido demitido há muito tempo. Mas não, o treinador ficou com a equipe até o fim [ele saiu para assumir o TSG 1899 Hoffenheim] e mesmo já tendo sido rebaixado fizeram uma festa linda de despedida em agradecimento por toda a sua contribuição”, conta Luciana. “O time exerce uma paixão instantânea em quem o conhece”, completa a brasileira, que descobriu o time por meio de um namorado alemão “maluco pelo time”, segundo ela.
Mas a paixão pelo time não impede os torcedores de atitudes muito bem pensadas. Em 2002, por exemplo, uma publicidade de uma revista masculina foi considerada sexista pelos torcedores, numa possível depreciação das mulheres, e sua veiculação no estádio rendeu diversas críticas. A direção do clube entendeu a mensagem e mandou retirar a peça publicitária. Por ações desse calibre, a equipe pirata tem outra marca para se orgulhar: a de maior torcida feminina na Alemanha.
O distrito de St. Pauli recebe desde sempre muitos imigrantes que trabalham nas docas do porto local, criando uma aura multicultural na região. Além disso, Reeperbahn, a avenida mais liberal da cidade, fica nas redondezas. É lá onde estão instalados diversos sex shops, cinemas pornô e casas com shows de sexo ao vivo. É por ali também que as prostitutas se instalaram e tentam atrair os clientes de dentro das janelas emolduradas com o neon, um red light district semelhante ao de Amsterdã, na Holanda. Um dos clubes de striptease da cidade abrigou os primeiros shows dos Beatles fora da Inglaterra, em 1961. O clube funciona ainda hoje, mas agora apenas para apresentações musicais.
Não ao setor VIP
Mais recentemente, o time voltou a ser destaque na imprensa internacional por duas inovações. A primeira delas foi relacionar o seu assessor de imprensa como jogador do time, no banco de reservas para uma partida válida pela primeira divisão da Bundesliga (temporada 2010/11), em fevereiro deste ano. Com vários atletas sem capacidade física de entrar em campo, o assessor Hauke Brückner, 30 anos, que foi jogador semi-profissional, foi chamado às pressas. Em 2011, foi a vez de inovar na apresentação e divulgação do uniforme da equipe para a temporada 2011/12. Nas imagens, apenas os próprios torcedores do time esquerdista: punks, mulheres, jovens tatuados, crianças, homens bastante acima do peso e até cachorros.
Mas nem todos torcedores se mostram satisfeitos com os rumos da gestão do time que atua na segunda divisão do Campeonato Alemão. Desde o final do ano passado, o grupo de torcedores auto-intitulado “Românticos Sociais” (tradução do alemão: Sozialromantiker) critica a recente instalação de outros 200 lugares na área VIP do estádio. “O St. Pauli é uma ilha no mundo do futebol profissional que está preocupado apenas com a exploração financeira”, clama o manifesto intitulado “Já chega!”, que foi distribuído por eles.
Os “torcedores românticos” vão aos jogos com bandeiras vermelhas grafadas com os dizerem “Tragam de volta o St. Pauli”. Outra insatisfação recente do grupo eram os shows de striptease que ocorriam dentro do estádio. Durante as comemorações dos gols da equipe mandante, as strippers tiravam peças e mais peças de roupa.  A diretoria acabou cedendo e desde fevereiro não há mais espetáculos eróticos no Milletorn. Quer dizer, ao menos não dentro das dependências do estádio.
Várzea anarquista em São Paulo
Diz a máxima do futebol que pênalti é tão importante que deveria ser batido pelo presidente do clube. No Autônomos FC, equipe da várzea paulistana fundada por anarquistas há cinco anos, a coisa pode ser traduzida de outra forma: pênalti é tão importante que é batido por quem leva o escudo da equipe tatuada no corpo. É o geógrafo Kadj Oman, o popular Danilo Mandioca, volante e dono da tatuagem do esquadrão, quem bate a penalidade e dá números finais à vitória de 2×1 sobre o União Marechal, no chamado Festival da Boa Vizinhança. O gol marcado no minuto final de partida no Centro Desportivo Comunitário Bento Bicudo, o glorioso Bicudão, rende ao time o troféu que leva o nome do eterno ídolo corintiano Sócrates Brasileiro.
A experiência de misturar autogestão e futebol nasceu em maio de 2006 como resposta de um grupo de punks, ex-punks e anarquistas da capital paulista aos questionamentos ideológicos aos quais eram submetidos por conta da paixão do grupo pelo esporte bretão. Na outra ponta estava o que, aos olhos dos fundadores do Autônomos, era a submissão cada vez maior do futebol aos negócios. A solução foi juntar o útil ao agradável e ir para o jogo.
Inicialmente, o grupo reduzido de jogadores atuava no futebol society (grama sintética). Passados cinco anos, a equipe agora deixou de lado os campos “engomadinhos” e começa a estender seu projeto para além dos campos de terra batida. Há poucos meses, o Autônomos acomoda também uma equipe de futebol de salão, sem falar na Autônomas FC, a equipe feminina que também atua nas quadras.
Com o futebol caminhando praticamente sozinho, era hora de a equipe pensar em uma sede para viver a política. A solução veio com a Casa Mafalda, espaço cultural que abriga quase que simultaneamente grupos de discussões, sessões de vídeo, shows e festas. Localizada na rua Clélia, na Lapa, zona oeste de São Paulo, a casa abriu suas portas pela primeira vez no dia 6 de agosto.
No entanto, para colocar o sonho em funcionamento, os anarquistas se endividaram. “Reunimos boa parte do dinheiro para dar entrada na casa com os próprios jogadores e o restante pegamos em empréstimos no banco (cerca de R$ 12 mil)”, conta Gabriel Brito, camisa 10 do Autônomos e “líder intelectual” fora dele, de acordo com o volante Paulo Silva Junior. O ponto custou ao Autônomos cerca de R$ 40 mil. Para pagar as contas do local, a Casa Mafalda terá de arrecadar ao menos R$ 7 mil ao mês.
“O último locatário (do ponto) permaneceu por cinco anos. Nossa ideia é ficar aqui um bom tempo”, afirma Gabriel. Para isso, ele vê a necessidade de algum projeto que utilize o espaço não apenas nas sextas e sábados, como, por exemplo, uma biblioteca. “Queremos ficar aqui, criar raízes”, completa.
Quem visita o espaço que leva o nome da personagem do cartunista argentino Quino não precisa perder tempo com explicações sobre “bons modos”. Na porta de entrada do local estão escritos os princípios da equipe: anticapitalista, antifascista, antiracista e antisexista. A ideia é fugir também dos padrões. No dia 11 de setembro, por exemplo, nada sobre o ataque terrorista ao World Trade Center, nos Estados Unidos. Os oito presentes no local tinham disponível um documentário sobre outro aniversário daquela data: o do golpe de estado no Chile, em 1973.
Nesses dois meses iniciais do espaço autogestionado, o frequentador paga R$ 3 pelas latas de cerveja e de refrigerante. A água sai pela metade do preço. Os destilados têm valores mais altos: caipirinha, cachaça ou vodka saem a R$ 4. Já o uísque custa R$ 10. Para comer, por enquanto apenas alguns tipos de salgadinhos e amendoim. “Umas ‘lariquinhas’ para o momento certo”, classifica Gabriel.
Em 2008, a equipe rubronegra recebeu a visita dos amadores ingleses do Easton Cowboys & Cowgirls, de Bristol. Dois anos depois, era a vez de 26 integrantes do Auto arrumarem as malas e embarcarem para a disputa da Copa do Mundo Alternativa de futebol amador, disputada em York, na Inglaterra. Com teto fixo, planos e excursão europeia, agora o Auto começa a se preparar para disputar a primeira edição da Copa América Alternativa, em janeiro de 2012, na província de Córdoba, na Argentina.

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