segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

O recuo conservador à esquerda – I

Enquanto Tropa de Elite 1 se parece com o raio-X do modelo ético do Brasil contemporâneo, sua continuação soa como um caricatura das posições mais “coxinhas”. Por Acauam Oliveira e César Takemoto
1. Porque de boa intenção o inferno está cheio: sobre a inutilidade da conversão didática do capitão Nascimento
Um texto recente do cronista Antonio Prata, Guinada à Direita, causou bastante polêmica nas mídias. Nele o autor afirma ter enfim aprendido que os problemas do país são causados pelo totalitarismo de esquerda em que vivemos e que, por isso, é preciso adotar uma postura conservadora e reacionária. “[…] no pé que as coisas estão é preciso não apenas ser reacionário, mas sê-lo de modo grosseiro, raivoso e estridente. Do contrário, seguiremos dominados pelo crioléu, pelas bichas, pelas feministas rançosas e por velhos intelectuais da USP”. O texto foi escrito com intenção irônica, disposto a denunciar a violência profunda desses discursos de ódio. Contudo, o tiro saiu pela culatra, e quem acabou passando uma lição para o cronista foi o público, que não apenas “deixou de captar” a ironia como aplaudiu de pé a nova postura. Diante dessa reação imprevista, Antonio Prata teve de renunciar à ironia – ou antes, explicar a piada – e escrever um segundo texto em que confessa suas intenções e marca seu posicionamento esclarecido à esquerda (Abaixo, a ironia). [1]
À primeira vista, esse movimento parece ser a duplicação de outra conversão à esquerda muito mais estranha e de maior alcance, protagonizada pelo capitão Nascimento na passagem do primeiro para o segundo Tropa de Elite. É claro que, no caso da crônica, os tons são muito menos avassaladores, uma espécie de reencenação farsesca em tom menor do fenômeno do filme de José Padilha – primeiro como tragédia, depois como farsa – uma vez que o tom conservador e autoritário do capitão Nascimento no primeiro filme o transformou em um dos maiores sucessos de massa de todos os tempos no Brasil, só comparável ao de alguns personagens novelescos. Para um órgão conservador como a revista Veja, pela primeira vez na história do cinema brasileiro tínhamos um “herói do lado certo”, ou seja, que faz pouco caso dos direitos humanos (“direitos humanos para humanos direitos”) e cumpre literalmente a regra de que “bandido bom é bandido morto”.
O primeiro Tropa de Elite (em 2012 escrevi uma série de três artigos sobre o filme, publicado no site Passa Palavra) procurava delimitar, de forma até então inédita nas telas – Tropa de Elite I é o filme que inaugura (e, até aqui, também encerra) o gênero filme de guerra no cinema brasileiro – certa economia libidinal da violência contemporânea brasileira, mapeando (ainda de maneira rudimentar, é certo, porém reveladora) o tipo novo de “subjetividade” que toma forma no país a partir da “guinada à direita” dos mecanismos hegemônicos de representação – um dos sintomas dessa mudança é o grande sucesso editorial de autores explicitamente vinculados ao pensamento conservador, como Olavo de Carvalho, Pondé, Diogo Mainardi, Leandro Narloch, assim como a mudança no paradigma do humor. Com isso consegue captar e formalizar, melhor do que diversos modelos de representação à esquerda (muitas vezes concentrados mais no que deveria ser do que naquilo que, efetivamente, é) uma transformação radical nos mecanismos simbólicos de constituição do país. Movimento descrito por Vladimir Safatle nos termos de uma perda de hegemonia cultural da esquerda, sobretudo a partir dos anos 80:
Durante décadas, a esquerda conseguiu sustentar uma certa hegemonia no campo cultural nacional. Mesmo na época da ditadura, tal hegemonia não se quebrou. Vivíamos em uma ditadura na qual era possível comprar Marx nas bancas e músicas de protesto ocupavam o topo das paradas de sucesso […] Com o fim da ditadura, a força cultural da esquerda permaneceu. Nossos jornais, por exemplo, seguiam o esquizofrênico princípio: conservador na política, liberal na economia e revolucionário na cultura […] (Hoje) sela-se uma situação nova no Brasil. Pela primeira vez em décadas a esquerda é minoritária no campo cultural.
O filme foi um estrondoso sucesso, mas em sentido oposto ao esperado pelo “bom senso humanista”: ao invés de sentir o filme como denúncia, verdadeiro tiro de 12 na cara, o público identificou-se imediatamente com a exploração obscena do poder, com aquele herói que tem a coragem de fazer, bem feito, o que deve ser feito, custe o que custar. Funk ostentação. E o que fez José Padilha diante desse encontro traumático com o Real, em que o filme realiza a fantasia perversa que estrutura certa fantasia fundamental da realidade brasileira contemporânea (o país como campo de extermínio)? O diretor recua, no segundo filme, para a zona de conforto de um discurso moralmente aceitável, tranquilizador, tentando enquadrar esse novo modelo de dinâmica simbólica no velho paradigma do “Sistema” invisível que articula toda espécie de sujeitos corruptos (políticos, mídia, polícia, mensaleiros, etc.) em benefício dos poderosos. Ou seja, enquanto Tropa de Elite 1 se parece com o raio-X do modelo ético do Brasil contemporâneo, sua continuação soa como um caricatura das posições mais “coxinhas” presentes nas manifestações brasileiras de junho de 2013, ancoradas em pautas politicamente vazias como “moralização da política” e “fim da corrupção”, cujo efeito imediato é uma fuga ao embate político propriamente dito, que passaria por um confronto efetivo com a “verdade” expressa pelo Capitão Nascimento original. Podemos falar, nesse caso, de uma espécie de “recuo conservador à esquerda” (desde que entendamos perfeitamente o significado de estar à esquerda nesse caso), similar ao realizado por Antonio Prata em sua crônica.
* * *
Uma hipótese possível para o “equívoco” de Padilha, responsável em parte pelo sucesso do filme, é que este não levou em consideração o fator “massa”. Aparentemente o diretor tinha em mente o público mais restrito e especializado (cult?) que acompanha o cinema de cunho “social” brasileiro – o mesmo que havia assistido e elogiado seu trabalho anterior, o documentário Ônibus 174 – e pretendia fazer uma espécie de filme denúncia da barbárie policial, a partir de uma ótica interna (algo similar ao que fez Kubrick emNascido para Matar). Contudo, o filme se tornou um fenômeno de massa e saiu do controle, pois Nascimento foi considerado um verdadeiro herói nacional. A imoralidade obscena do poder deixou de ser autoevidente, como antes parecia ser (terá sido realmente?). Diga-se de passagem, e contrariando o que afirma José Padilha, nada na forma do filme indica que o olhar do personagem é problemático – tirando uma ou outra crise de ansiedade circunstancial [2] – mas antes, sua estrutura serve para confirmar o caráter incorruptível e infalível do capitão Nascimento.
Aparentemente – segundo entrevistas do diretor lamentando que o público (ou melhor, a crítica “patrulheira”) não entendeu o caráter problemático da personagem [3] – Padilha contava com certo olhar à esquerda do público (E aqui cabe uma pergunta: Qual público o filme “imagina”, constrói para si? E qual a relação dessa fantasia com o público “real”?) que imediatamente reconheceria o caráter sádico e obsceno da personagem, condenando-o. Ao contrário do que se esperava, contudo, o que se viu foi a celebração de Nascimento como a grande figura paterna finalmente capaz de moralizar a sociedade brasileira, definindo precisamente o certo e o errado e se esforçando para recolocar o país nos trilhos.
Podemos dizer, assim, que o “grande Outro” do segundo filme é a presença obscena das massas reveladas pelo primeiro, aquele dejeto imprevisto que não se deseja encarar. Diante desse encontro perturbador, Padilha recua para a zona de conforto moralizante e civilizatória, do esclarecimento do abjeto. O intuito de Tropa de Elite II é claramente moralizador e pretende esclarecer o público, ensinando didaticamente que a posição do Nascimento no primeiro filme é inaceitável.
Ora, o mérito do primeiro filme não consiste no acerto da perspectiva de seu protagonista, como lamentou o pensamento conservador mais eriçado (“E o Capitão Nascimento, hein? Coitado! Foi cursar Ciências Sociais na USP ou na UnB, virou um crítico do “sistema”, já pode ser militante do PSOL e se transformar num burocrata da sociologia esquerdopata brasileira” – Reinaldo Azevedo), mas passa necessariamente por ela. Ou seja, o filme formalizou – brilhantemente – o novo modelo de organização simbólica da sociedade brasileira, dando a ver uma estrutura que não havia encontrado ainda sua representação cinematográfica, embora já houvesse se estruturado em outros gêneros artísticos, como a literatura periférica e o rap (em certo sentido, podemos dizer que Tropa de Elite I formaliza a mesma conjuntura expressa em Diário de um Detento, dos Racionais, a partir da perspectiva do Robocop do sistema, que se tornou moralmente aceitável). Diante desse achado, desse confronto assustador, Padilha recua e, ao invés de mergulhar mais fundo na barbárie do primeiro filme, encarando o Leviatã de frente, o diretor volta-se para a legitimação do modelo explicativo do Fraga, chapado e esquemático, um modelo que pretende “educar” o espectador não conscientemente previsto do primeiro filme, encaminhando-o para o lado certo da força. Desse modo, Tropa de Elite II faz um recuo didático para explicar por que o capitão Nascimento não é um herói (desde a primeira cena, que mostra um Bope ineficiente de uma forma que não apareceu em nenhuma cena do primeiro filme, até à divisão estrutural da voz narrativa entre Nascimento e Fraga – o grande dado estrutural do filme – e a gradual conversão daquele aos princípios democráticos-humanistas-ongueiros), passando de um modelo discursivo ultraconservador protofascista para um conservadorismo de contorno liberal. A mudança de ponto de vista é tão radical que altera inclusive o gênero do filme: seTropa de Elite I é um filme de guerra que explora as várias dimensões do sadismo do Bope, sua continuação é nada menos que um filme de investigação policial, no estilo daqueles do Harrison Ford dos anos 80, em que as intrigas vão sendo descobertas enquanto o sujeito vai sendo enredado cada vez mais profundamente numa trama política complexa, até ser resgatado pela prática democrática. Em outras palavras, diante do confronto obsceno com o Real brasileiro, Tropa de Elite II esconde a sujeira debaixo do tapete. Mas continua fedendo.
Não seria muito mais radical e revelador se José Padilha (e Antonio Prata) tivesse tido a coragem de levar seu projeto até as últimas consequências, fazendo, por exemplo, com que a utopia reacionário de Nascimento não apenas se realizasse, mas tornasse de fato o Brasil um país “melhor” em seus termos (sem corrupção, sem violência não estatal, sem promiscuidade entre classes, sem devaneios esquerdistas, etc.)? É claro que essa se revelaria por fim como a mais terrível das distopias que poderia nos ocorrer, por ser nosso presente sem possibilidade de redenção. Algo como O homem do Castelo Alto, de Phillip K. Dick, em que os nazistas vencem a segunda guerra mundial em um universo alternativo, e o resultado é uma imagem precisa do mundo contemporâneo, sob domínio liberal. O recuo à esquerda dos autores preserva sua integridade moral frente os holofotes, por assim dizer, mas fracassa diante da necessidade de se confrontar com o demoníaco, como condição para libertarmo-nos de seu domínio.
Desse modo Tropa de Elite II realiza uma espécie de concessão ao discurso social do cinema brasileiro, que olha para o sistema de produção da desigualdade e estabelece com ele um compromisso moral de “denúncia” e solidariedade – o grande paradigma “contemporâneo” é Central do Brasil, de Walter Salles. Ou seja, ocorre um recuo diante da matéria nova no cinema, a dimensão “protofascista” do país que encontra eco entre todas as camadas sociais, de modo a evitar a radicalização da reflexão, que não está pronta e demanda trabalho. Foge-se da matéria informe da violência, iluminando o povo pelo caminho correto, ao invés de inverter o processo e apreender aquilo que a violência (popular) está gritando. É como se diante da barbárie ritualizada de programas como Big Brother ou Pânico na Band, os autores recuassem para as posturas mais “humanas” do programa do Gugu, que explora a miséria, mas pelo menos dá uma casa ou reforma o guarda-roupa. Varrer a sujeira revelada pelo Nascimento com discursos generalizantes liberais acaba por deixar as coisas exatamente como estão. Melhor seria procurar formas de fazer com que essa matéria se tornasse, ela própria, a matriz de sua superação, como procura fazer o rap ao usar a matriz discursiva do “Crime” de modo a propor um novo modelo de subjetividade que não se confunde com a ilegalidade, mas que só a partir daí pode ser capaz de propor algum horizonte emancipatório.
Notas
[1] As reações geradas pelo texto de Antonio Prata, sejam elas contra ou a favor, quase sempre de aderência ao texto, indicam não apenas que os leitores têm perdido sistematicamente a capacidade de compreensão básica da ironia (o que por sua vez é um sintoma de uma mudança radical na concepção mesma de “interpretação textual”) mas que em tempos da linguagem crua da imagem e do funk — que acessam “imediatamente” a “verdadeira” realidade em si — o uso da ironia pode estar deixando de ser “funcional”, por conta de um fluxo de consciência geral. Não é que as pessoas não entenderam a ironia: é a própria “função” da ironia na linguagem que está mudando radicalmente de sentido, uma vez que os sujeitos — visíveis — estão cada vez mais implicados em seus enunciados. A linguagem é tornada coisa e, como tal, interpela diretamente o leitor — “efeito colateral” da ruptura (cínica) da autonomia da linguagem. Pois como distanciar-se da palavra, ironicamente, quando não existe autonomia da palavra? Se a palavra-pedra do João Cabral é hoje literal e faz um puta rombo na cabeça? Num plano mais geral, a explicação da piada pode ser lida por sua vez como uma falência da verdade dialética. Para Hegel, a verdade não tem a sua medida num padrão exterior, mas aparece como contradição pragmática, ou seja, como a própria inconsistência constitutiva do processo discursivo: a dialética fenomenológica hegeliana nasce da própria contradição entre o enunciado e a posição de enunciação. Assim, no caso da polêmica do Prata, o público colou-se no enunciado, enquanto Prata, não menos reducionista, colou-se na própria posição de enunciação. Fica claro, então, que o que é evitado por ambos os lados é o real da contradição.
[2] Apesar de a personagem ter sua vida privada em virtude de suas escolhas, seu caráter heroico — de quem age corretamente — permanece intocado. O sacrifício de sua vida pessoal em nome de um bem maior faz dele ainda mais heroico e engrandece suas escolhas.

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