sábado, 14 de janeiro de 2012

Como as corporações têm lucros por se associar a causas de caridade



Por Slavoj Zizek

Eu quero desenvolver uma linha de pensamento sobre um ponto: por que, na nossa economia, a caridade não é mais apenas uma idiossincrasia de algumas pessoas boas aqui e ali, mas o componente básico da nossa economia.

No capitalismo de hoje, há uma tendência crescente em juntar [ganhar dinheiro e caridade] em um único agrupamento, de modo que quando você compra algo, o direito anticonsumista de fazer algo pelos outros, para o ambiente e assim por diante, já está incluído dentro dele.
Se você acha que estou exagerando, eles estão em toda esquina. Entre em qualquer café Starbucks, e você vai ver como eles dizem explicitamente que - eu cito a sua campanha: "Não é só o que você está comprando, é o que você está comprando." E então eles descrevem para você. Ouça: "Quando você compra Starbucks, conscientemente ou não você está comprando algo maior do que uma xícara de café. Você está comprando uma ética de café. Através do nosso programa Starbucks "Planeta Compartilhado", nós compramos mais café do ‘comércio justo’ [Fair trade] do que qualquer outra empresa no mundo, garantindo que os agricultores que cultivam o grão recebam um preço justo pelo seu trabalho árduo. E nós investimos e melhoramos as práticas de cultivo do café e as comunidades ao redor do globo. É um bom karma do café." E um pouco do preço de uma xícara de café do Starbucks ajuda a mobiliar o local com cadeiras confortáveis, e assim por diante.
Isto é o que eu chamo de capitalismo cultural na sua essência. Você não compra apenas um café, você compra sua redenção por se um mero consumista. Você sabe que faz algo pelo meio ambiente, você faz algo para ajudar as crianças famintas da Guatemala, você faz algo para restaurar o senso de comunidade aqui.
Eu poderia continuar - como o exemplo quase absurdo que é chamado Tom Shoes, uma empresa norte-americana cuja fórmula é "um-para-um". Eles alegam que a cada par de sapatos que você comprar deles, eles doam um par de sapatos para alguma nação Africana. Um ato de consumismo, mas incluso esta o fato de que, você paga para fazer alguma coisa "[boa]".
Isso gera uma espécie de -como direi?- Um superinvestimento semântico ou encargos Você sabe que não é só comprar uma xícara de café. Ao mesmo tempo você cumprir uma série de deveres éticos. Esta lógica esta hoje quase universalizada.
Assim, meu ponto é que este é um curto-circuito muito interessante em que o próprio ato de consumo egoísta já inclui o preço de seu oposto.
Baseado contra tudo isto, penso que deveríamos voltar ao bom e velho Oscar Wilde, que ainda oferece a melhor formulação contra essa lógica da caridade. Permitam-me citar apenas um par de linhas, do início do seu A Alma do Homem sob o Socialismo, onde ele aponta que, a citar: "É muito mais fácil ter compaixão com o sofrimento que ter simpatia com as ideias."
[As pessoas] encontram-se cercadas por uma pobreza horrível, por uma feiura horrível, pela fome terrível. É inevitável que sejam fortemente movidos por tudo isso... Assim, com intenções admiráveis, porém mal orientadas, muito seriamente o e muito sentimentalmente se determinam a tarefa de remediar os males que veem. Mas os seus remédios não curam a doença: eles meramente se limitam a prorrogá-la. De fato, seus remédios são parte da doença. Eles tentam resolver o problema da pobreza, por exemplo, mantendo o pobre vivo, ou, no caso de uma escola muito avançada, divertindo os pobres.
Mas esta não é uma solução: é um agravamento da dificuldade. O objetivo adequado é tentar reconstruir a sociedade sobre uma base onde a pobreza seja impossível. E as virtudes altruístas realmente impedem a realização deste objetivo... Os piores donos de escravos foram aqueles que eram gentis com os seus escravos, e assim evitaram que os que estavam sofrendo os horrores desse sistema se apercebessem dele, e que fosse compreendido pelos que o utilizavam... A caridade degrada e desmoraliza... É imoral o uso da propriedade privada, a fim de aliviar os horríveis males resultantes da instituição da propriedade privada.
Eu acho que essas linhas são mais verdadeiras do que nunca. Por mais que pareça agradável, uma renda básica, este tipo de trocas comerciais com os ricos, não é uma solução.
Há, para mim, uma série de outros problemas. Esta é para mim a última tentativa desesperada em fazer o capitalismo: não vamos descartar o mal, vamos fazer o próprio mal trabalhar pelo bem. 30 ou 40 anos atrás, estávamos sonhando com o socialismo com um rosto humano. Hoje a visão mais radical no horizonte da nossa imaginação é o capitalismo global, com um rosto humano. Temos as regras básicas do jogo, vamos torná-lo um pouco mais humano, mais tolerante, com um pouco mais bem-estar.
Vamos dar ao diabo o que pertence ao diabo, e vamos reconhecer isso, nas últimas décadas, pelo menos, até recentemente, pelo menos na Europa Ocidental. Eu não acho que em nenhum momento na história humana uma porcentagem tão relativamente alta da população viveu em tal liberdade relativa, com bem-estar, segurança e assim por diante.
Eu vejo isso de forma gradual, mas, no entanto seriamente, ameaçado.
Estou apenas dizendo que a única maneira de salvar [o liberalismo que nutrimos] é fazendo algo mais. Eu não sou contra a caridade, em um sentido abstrato. É claro que é melhor que nada. Mas temos que estar cientes de que existe uma hipocrisia aí. Por exemplo, é claro que devemos ajudar as crianças. É horrível ver uma criança cuja vida é arruinada por causa de uma operação que custa vinte dólares. Mas, no longo prazo, você sabe, como Oscar Wilde teria dito, se você opera a criança, ela vai viver um pouco melhor, mas na mesma situação que a produziu.


Fonte: www.diariodaliberdade.org

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