Por: Daniella Memória
"Os principais espaços de poder político e social mantém-se, então, inacessíveis aos grupos marginalizados, ensejando a reprodução e perpetuação de uma mesma elite dirigente”. O fragmento mencionado não tem origem nas páginas de Marx ou Paulo Freire. A citação – de fazer qualquer ordeiro insultar o seu autor de “co-mu-nis-ta!” – faz parte do voto proferido em julgamen
to unânime sobre a constitucionalidade das cotas no STF, voto este do Ministro Ricardo Lewandowski, tido pela opinião pública como um dos membros mais conservadores da Suprema Corte. E por que esse dado é tão relevante? Porque a contextualização da posição de Lewandowski fala por si: até os reacionários reconhecem (pelo menos os com um mínimo de bagagem intelectual) a gritante diferença de contexto econômico-social existente entre uma pessoa pobre-negra-da-periferia e um jovem-branco-de-classe-média-a lta na configuração educacional de nosso país.
Esquentando ainda mais o debate, foi sancionado neste mês projeto de lei que prevê reserva de vagas nas universidades federais para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. A lei combina três critérios (renda, instituição escolar, cor/raça) no preenchimento de no mínimo 25% das vagas, e nos 25% restantes permanecem os dois últimos critérios (totalizando os 50% da reserva). De acordo com o critério financeiro, serão beneficiados estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a um salário-mínimo e meio por pessoa. O critério raça, por sua vez, levará em conta os autodeclarados pretos, pardos e indígenas, sempre proporcionalmente à população do estado onde está a instituição, segundo o último censo do IBGE.
O mundo não acabou, o apartheid brasileiro não se iniciou e o céu não se transformou em vermelho fogo. De negativo, as cotas só trouxeram um fator: a revolta da classe média prejudicada por tal ação. Dona “por direito” do ensino público superior a décadas, o grupo lança duas principais alegações contra as cotas, nenhuma delas baseada em dados ou pesquisas oficiais. A primeira é de que o rendimento das universidades públicas irá diminuir.
Pura falácia. Inúmeros são os estudos, dos mais diversos cantos do Brasil, que demonstram que o desempenho dos cotistas é igual ou até mesmo superior ao dos não cotistas. De acordo com “O Estadão” (jornal de grande circulação da cidade de São Paulo), estudos da UERJ indicaram que 49% dos cotistas foram aprovados em todas as disciplinas no primeiro semestre do ano, contra 47% dos estudantes que ingressaram pelo sistema regular. Segundo a mesma notícia, na Unicamp, a média dos cotistas foi melhor que a dos demais colegas em 31 dos 56 cursos, entre os quais o de Medicina, um dos mais concorridos. Para os que desprezam informações nacionais, pesquisas “importadas” vão no mesmo caminho: um estudo norte-americano, “O curso do rio”, realizado nada mais nada menos do que por dois ex-reitores das Universidades de Princeton e Harvard (William Bowen e Derek Bok), aponta o total êxito das cotas para os negros nos Estados Unidos, seja em notas, profissões, serviços comunitários ou indústrias. É ler para crer (ou para não falar besteira).
A segunda alegação é a ideia de que a discussão a ser pautada não deve ser a das cotas, mas sim a da melhoria da educação. Até onde eu saiba, uma discussão não impede a outra, pelo contrário. As cotas são instrumentos de concretude de acesso à educação a ser tomada juntamente com diversas outras medidas (a luta de 10% do PIB para a educação é só um exemplo), ações estas extensamente tratadas no Plano Nacional de Educação (mais uma leitura fundamental). O jargão “precisamos melhorar o ensino” funciona mais como uma desculpa cômoda, uma vez que nunca vem acompanhada por propostas concretas e geralmente é proferida pelas mesmas pessoas que, em sua maioria, não atuam ou defendem outras lutas pela educação – as que criticam a greve dos professores federais porque seu curso vai atrasar ou as que nunca foram para uma passeata do passe-livre para secundaristas porque simplesmente não usam o transporte público. São as mesmas que consideram “justo” sacrificar mais uma geração de negros e pobres até que a educação seja efetivamente de qualidade, mas se dilaceram com um vestibular mais difícil para seus filhos (o bom e velho “pimenta nos olhos dos outros é refresco”).
Na ausência de argumentos lógicos, os meritocráticos também apelam: “quem realmente quer passar no vestibular, senta na cadeira e simplesmente estuda”, dizem. Citam sempre “o filho de um pedreiro que passou em medicina lá em Goiás”, ou “o irmão mais novo de 13 filhos que estudou a luz de lamparina e conseguiu entrar em engenharia” – além de outras histórias que compadecem o coração de qualquer um.
O que essas pessoas esquecem de mencionar é que tais casos constituem exceção e nenhuma política pública – ainda mais num país com as dimensões do Brasil – deve ser formulada tendo por fundamento excepcionalidades ao invés de regras gerais. A universidade PÚBLICA (pasmem!) deve ser gerida conforme interesses PÚBLICOS, leia-se, interesses de negros, pobres, índios, pardos, classe média, brancos e ricos, todos estes contemplados pela lei ora em comento.
Por fim, para o sentimento de “injustiça” da classe média, deixo um consolo: essa dor passa. Passou para os senhores de engenho torturados com a Lei Áurea, passou para os empresários oprimidos com os direitos trabalhistas... há de passar até para os espancadores com a Lei Maria da Penha, por que com vocês seria diferente? “É natural, portanto, que as ações afirmativas (...) sofram o influxo dessas forças contrapostas e atraiam considerável resistência, sobretudo, é claro, da parte daqueles que historicamente se beneficiam ou se beneficiaram da discriminação”, belas e fortes palavras do Ministro Joaquim Barbosa que tão bem resumem o meu pensar.
Que a universidade se pinte de povo. Esse é um desejo de quem ora escreve, única aluna do curso de Direito da UFPB, período 2008, egressa de uma escola pública. Hoje sou exceção. Quem sabe um dia minhas características façam parte da regra geral.
to unânime sobre a constitucionalidade das cotas no STF, voto este do Ministro Ricardo Lewandowski, tido pela opinião pública como um dos membros mais conservadores da Suprema Corte. E por que esse dado é tão relevante? Porque a contextualização da posição de Lewandowski fala por si: até os reacionários reconhecem (pelo menos os com um mínimo de bagagem intelectual) a gritante diferença de contexto econômico-social existente entre uma pessoa pobre-negra-da-periferia e um jovem-branco-de-classe-média-a lta na configuração educacional de nosso país.
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