Milton Santos: O
militante de idéias
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Geógrafo
Milton Santos criticou a globalização
mas acreditava em transformação social
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por:
Raquel Aguiar
Ciência Hoje/RJ - dezembro/2001 |
"O
sonho obriga o homem a pensar"
Milton Santos |
Milton nasceu em Brotas de Macaúbas (BA) a 3/5/26 e faleceu em São Paulo a 24/6/01 (foto: Oswaldo J. dos Santos/Agência USP) |
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Milton
Santos (1926-2001) é considerado o maior geógrafo
brasileiro pelos colegas de profissão. O
professor de voz calma e olhar tranqüilo
sublinhou o aspecto humano da geografia e
criticou a globalização perversa. Via na
população pobre o ator social capaz de
promover uma outra globalização, que defendeu
em livros e conferências pelo mundo.
Milton
introduziu importantes discussões na geografia,
como a retomada de autores clássicos, e foi um
dos expoentes do movimento de renovação crítica
da disciplina. Preocupado com a questão metodológica,
construiu conceitos, aprofundou o debate
epistemológico e buscou na
transdisciplinaridade uma visão totalizadora da
sociedade.
Esquerdista
convicto, não se filiou a partidos: "não
sou militante de coisa alguma, apenas de idéias",
diz em uma de suas frases mais divulgadas. O
estilo independente revela a influência
sartreana desse brasileiro que se celebrizou na
França, onde obteve o doutorado e lecionou
durante a ditadura.
Apesar
da complexidade de seu pensamento, o alcance das
idéias de Milton pode ser medido pela repercussão
de uma entrevista concedida ao programa Roda
Viva em 1998: os telefones ficaram
congestionados com pessoas emocionadas,
agradecendo a emissora pela transmissão. Sua
produção acadêmica não permite modéstia: são
cerca de 40 livros e 300 artigos científicos.
Foi o único estudioso fora do mundo anglo-saxão
a receber o mais alto prêmio internacional em
geografia, o Prêmio Vautrin Lud (1994).
Considerada equivalente ao Nobel na Geografia, a
láurea marcou o reconhecimento de suas idéias
no Brasil.
(foto: Jorge Maruta/Agência USP) |
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Milton
foi consultor da Organização das Nações
Unidas, da Unesco, da Organização
Internacional do Trabalho e da Organização dos
Estados Americanos. Também foi consultor em várias
áreas junto aos governos da Argélia, Guiné-Bissau
e Venezuela. Possuía 13 títulos de doutor honoris
causa, recebidos no Brasil, França,
Argentina e Itália, entre outros. Foi membro do
comitê de redação de revistas especializadas
em geografia no Brasil e exterior. Fez pesquisas
e conferências em mais de 20 países, dentre
eles Japão, México, Índia, Tunísia, Benin,
Gana, Espanha e Cuba.
Recebeu
em 1997 o prêmio Jabuti pelo melhor livro em ciências
humanas: A natureza do espaço: técnica e
tempo, razão e emoção. Em 1999 recebeu o
Prêmio Chico Mendes por sua resistência. Foi
condecorado Comendador da Ordem Nacional do Mérito
Científico em 1995. Hoje, o geógrafo tantas
vezes laureado empresta seu nome ao Prêmio
Milton Santos de Saúde e Ambiente, criado pela
Fundação Oswaldo Cruz.
Milton
Santos nunca participou de movimentos negros --
acreditava que deveriam conquistar
reconhecimento em atitudes como, por exemplo,
ingressar na universidade. "Minha vida de
todos os dias é a de negro", declarou.
"Mantenho com a sociedade uma relação de
negro. No Brasil, ela não é das mais confortáveis."
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Geógrafo
precoce
Embora
formado em direito, Milton Santos começou
a lecionar geografia aos 15 anos
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(foto: Oswaldo José dos Santos/Agência USP) |
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Milton
de Almeida Santos nasceu em Brotas de Macaúbas
no sertão baiano dia 3 de maio de 1926. Seus avós
maternos eram professores primários mesmo antes
da abolição. "Do lado paterno, devem ter
sido escravos", declarou certa vez. "Não
sei muito bem porque em minha casa me ensinaram
a olhar mais para frente do que para trás."
Seus pais também eram professores primários,
uma família "humilde mas não pobre, e que
tentou me dar uma educação para mandar, para
ser um homem que pudesse, dentro da sociedade
existente na Bahia, conversar com todo
mundo".
Concluiu
o curso primário em casa aos oito anos de
idade. Como faltavam dois anos para ingressar no
ginásio, seus pais lhe ensinaram álgebra,
francês e boas maneiras. Aos dez anos tornou-se
aluno do tradicional Instituto Baiano de Ensino
em Salvador. Pagava o internato onde moraria por
uma década com o dinheiro que recebia
lecionando geografia na própria escola. Milton
atuou no jornalismo estudantil e foi um dos
criadores da Associação de Estudantes
Secundaristas Brasileiros. Seus colegas se
opuseram à candidatura de um negro para
presidente -- alegaram a dificuldade para
discutir com autoridades. "E eu, menino,
tolo e inexperiente, acabei perdendo a eleição."
Milton
era ótimo aluno em matemática e queria seguir
engenharia, mas acreditava-se que a Escola Politécnica
não aceitaria negros com facilidade. Como um
tio seu era advogado, foi aconselhado a estudar
direito. Formou-se na Universidade da Bahia em
1948 mas nunca exerceu a profissão. Dedicou-se
à geografia, que ensinava desde os quinze anos.
"A noção de movimento de idéias veio
depois, mas a das mercadorias, das coisas, das
pessoas talvez tenha me levado para a
geografia", declarou. Também foi
fundamental o contato com o livro Geografia
Humana, de Josué de Castro. "Era uma
espécie de história contada através do uso do
planeta pelo homem. Aquilo me
impressionou."
Em
1948 Milton Santos publicou seu primeiro livro: O
povoamento da Bahia. Prestou concurso público
para professor secundário e foi lecionar em Ilhéus.
Nesse período conheceu livros e revistas de
geografia, alguns da Associação Brasileira de
Geógrafos (AGB), então concentrada no eixo
Rio-São Paulo. Milton resolveu participar de
uma reunião da AGB, que acontecia em Uberlândia
(MG), para perplexidade dos não mais de 30
profissionais reunidos. Nessa ocasião conheceu
Aziz Ab'Sáber, de quem se tornaria amigo. Ab'Sáber
recorda-se que Milton insistia em discussões teóricas
entre determinismo e possibilismo enquanto
problemas analíticos estavam em pauta.
"Demos risada, mas ele era simpático e
inteligente, eu e alguns professores nos
aproximamos dele."
Milton
passou a convidar professores de geografia
paulistanos para dar conferências e cursos de férias
aos alunos da Universidade Católica de
Salvador, onde atuou entre 1956 e 1964. Também
era correspondente na região do cacau para o
jornal A Tarde, o mais lido na Bahia à
época.
Cidadão
do mundo
Exílio
voluntário afastou Milton de questões
empíricas e ampliou debate teórico
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Numa
poltrona do Hotel Nacional de Salvador
Milton Santos recebeu um conselho que
talvez tenha selado seu futuro. O amigo
Aziz Ab'Sáber (foto) acreditava que,
como ele próprio fizera, Milton se
dedicava demais a questões teóricas.
Aconselhou-o a se ater à análise --
estudo de casos e regiões. À questão
de Milton sobre que tema abordar, Ab'Sáber
deu uma resposta fundamental para a
projeção do colega: por que não
estudar o centro urbano de Salvador?
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Junto
a um grupo de universitários e um
professor paulistano, Milton empreendeu
a pesquisa sobre Salvador, que redigiu e
apresentou com sucesso como tese de
doutorado na Universidade de Estrasburgo
(França) em 1958. De volta ao Brasil,
permaneceu na Universidade Federal da
Bahia (UFBA) onde fundou o Laboratório
de Geomorfologia e Estudos Regionais.
Acompanhou
o presidente Jânio Quadros em viagem a Cuba
como jornalista e foi nomeado representante da
Casa Civil na Bahia, com poder paralelo ao do
governador. Despedido da UFBA à época do golpe
de estado, Milton esteve preso por 3 meses em um
quartel de Salvador, onde agressões físicas
quase lhe custaram um olho. Só foi libertado após
um princípio de infarto.
Partiu
para o exterior a convite de amigos franceses.
Por 13 anos lecionou na França, Canadá, Reino
Unido, Peru, Venezuela, Tanzânia e EUA. Segundo
o próprio Santos, o "exílio voluntário"
afastou-o do Brasil -- até então objeto
principal de seus estudos, que eram sobretudo
empíricos. O interesse por questões teóricas
cresceu até o retorno ao Brasil em 1977.
Milton diante do prédio de geografia e história da USP, onde ingressou por concurso em 1983 (foto: Jorge Maruta/Agência USP) |
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Um
de seus maiores desejos era tornar-se professor
na Universidade de São Paulo (USP), onde
ministrava aulas como visitante. Ab'Sáber
lecionava na USP e garante ter feito o que pôde
para satisfazer a vontade do baiano. Milton só
ocuparia uma vaga após a aposentadoria de Ab'Sáber.
Ao se aposentar compulsoriamente aos 70 anos --
fato que o contrariou --, tornou-se o primeiro
negro a obter o título de professor-emérito da
USP. No seu aniversário, geógrafos de vários
países participaram de um simpósio organizado
pela professora Maria Adélia de Souza, que
reuniu os depoimentos na obra Cidadão do
Mundo.
Milton
Santos faleceu aos 75 anos a 24 de junho de 2001
após uma semana de internação em decorrência
de um câncer de próstata diagnosticado em
1994. Desde então, o professor intensificara
seu trabalho. No ano em que faleceu publicou O
Brasil, obra que considerava síntese de
suas idéias. Preparava um livro sobre Salvador,
que reuniria pesquisas feitas na juventude e
reflexões recentes. Estruturava também O
mundo pós-globalização - o período popular
da história.
Milton
deixou esposa -- Marie, uma aluna francesa dos
tempos da Sorbonne -- e filho -- Rafael, que
nasceu pouco após o falecimento do primogênito
Miltinho. Na 53a reunião da SBPC, em
julho de 2001, estava programada uma homenagem
ao professor, mas a idéia foi abandonada com a
notícia de seu falecimento. Inconformado, Ab'Sáber
convocou alunos e amigos para realizar uma
homenagem improvisada mas emocionante.
Contra
o globalitarismo
Pobres
seriam o agente político da nova
globalização proposta por Milton
Santos
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"Essa
globalização não vai durar. Primeiro,
ela não é a única
possível. Segundo, não vai durar como está porque como está é monstruosa, perversa. Não vai durar porque não tem finalidade." Milton Santos |
(foto: Oswaldo José dos Santos/Agência USP) |
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Santos
era crítico contundente da noção de aldeia
global: preferia dizer que o mercado
nacional é o nome de fantasia do mercado
global. O geógrafo também rejeita a noção de
desterritorialização. Para ele, a
globalização tornou o território ainda mais
importante porque a concentração da tecnologia
de informação e comunicação diferencia os
espaços em função de sua capacidade
produtiva.
As
maiores empresas atingem somente os pontos
competitivos do território e trazem desordem
para o resto, formando o que Milton chamava zonas
opacas e zonas luminosas. As empresas
exigem do Estado o aparelhamento das áreas
privilegiadas para que se adeqüem aos
imperativos técnicos, mas uma adaptação das
leis também se faz necessária. Assim, as
empresas acabam por ditar a política nacional.
O país se torna "ingovernável"
porque nem o Estado nem as empresas assumem o
controle total. O território acaba esquizofrênico,
porque nele existem vetores da globalização,
que impõem uma nova ordem, e vetores da
contra-ordem, baseada na exclusão social.
A
globalização paradoxalmente incita à violência,
por exigir competitividade sem ética, e também
incentiva a solidariedade mundial a partir da
facilidade de comunicação. Cabe aos
intelectuais propagar a realidade contraditória
do território e oferecê-la à reflexão da
sociedade.
Na
luta por uma outra globalização, Milton Santos
correu o mundo participando de debates. Esteve
presente no Fórum Social Mundial de Porto
Alegre em 2001 -- encontro que se contrapôs ao
fórum econômico de Davos, na Suíça.
Uma
teoria do Brasil
Última
obra de Milton Santos sintetiza a
realidade nacional diante da globalização
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O
Brasil: território e sociedade no início
do século XXI foi a última obra de
Milton Santos, escrita com a professora
María Laura Silveira. "Esse livro
reúne todo o estudo de geografia que
venho fazendo e tenta aplicá-lo ao
Brasil", o geógrafo declarou por
ocasião do lançamento. "É o
resultado de pelo menos 25 anos de
elaborações teóricas."
O
Brasil oferece visão totalizadora
do país; apesar das mais de 500 páginas,
não pretende ser um compêndio
exaustivo da geografia nacional. Segundo
o professor, o livro não se dirige
apenas a cientistas humanos, mas
pretende atingir o grande público. O
livro realiza ''uma teoria do Brasil a
partir do território'' e busca
redefinir, diante da globalização, as
relações entre terra e gente.
Em
geografia, o conceito de território
considera seu uso: é o conjunto
indissociável de sistemas naturais --
substrato físico -- e instrumentos
materiais impostos pelo homem.
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No
livro de Santos, o país é analisado de forma
teórica e empírica sob viés multidisciplinar.
Dados sobre o Brasil e o brasileiro -- concentração
de bancos, shopping centers, meios técnicos,
como se trabalha, gasta, planta -- foram
levantados por uma equipe de 20 pesquisadores e
apresentados em mapas. Milton Santos se
orgulhava do fato de a pesquisa não ter sido
arquivada em computadores: está armazenada na
Universidade de São Paulo, em dezenas de caixas
de papelão etiquetadas.
No
livro, os autores mostram a transformação do
território brasileiro a partir do meio natural,
quando a natureza comandava as ações do homem,
e analisam os sucessivos meios técnicos que
promoveram a mecanização tradicional de ilhas
dentro do território. O meio técnico-científico-informacional
surge na década de 1970 e se concentra nas áreas
privilegiadas no período anterior, o que
acentua as desigualdades territoriais. Assim,
surgem áreas de globalização absoluta e
relativa, o que gera espaços que mandam
e espaços que obedecem.
Divisão do Brasil em regiões segundo a difusão da informação |
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Atualmente
a informação fundamenta o trabalho e orienta
sua divisão global e local. Os autores sugerem
uma divisão do Brasil em quatro regiões,
baseada na difusão da informação. No
nordeste, a rede fundiária concentrada impõe
resistência às novas técnicas informacionais.
O centro-oeste e região amazônica, como não
possuíam o meio técnico tradicional do período
anterior, estão abertos para as novas técnicas.
Na região concentrada houve simplesmente a
agregação das inovações técnicas, em
paralelo a uma crise da indústria.
A
globalização é o momento da ocupação do
território brasileiro que mais acentuou as
desigualdades sociais e as diferenças regionais
brasileiras. A concentração do meio técnico-científico-informacional
dificulta o acesso a bens e serviços e gera
vazios de consumo representados pela pobreza,
sobretudo urbana, que reúne todo o conteúdo
explosivo do território hoje.
Fonte: http://www.geomundo.com.br/
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