domingo, 29 de abril de 2012

Ocupar cidades é uma forma de luta muito poderosa, diz o geógrafo David Harvey


Ana Yumi Kajiki/Boitempo Editorial
 Para geógrafo, organização das cidades pode ser também forma de controle social
 
Britânico convida esquerda a usar centros urbanos para confrontar o capitalismo
As cidades são uma força econômica muito poderosa. Fechar as cidades, também. Para o geógrafo marxista David Harvey, a esquerda deve aprender a usar isso como forma de luta. O pensamento é também um apelo do britânico, e acompanha sua linha de análise sobre o papel da urbanização como intervenção no sistema econômico.
“Tudo parou de se mexer por três dias em Nova York depois do 11 de setembro. E de repente os poderes perceberam que se não houvesse movimento, não haveria acumulação de capital. O prefeito foi então à televisão fazer um apelo para que as pessoas fossem às ruas consumir, viver normalmente.” O ativista anti-capitalismo cita ainda as mobilizações que aconteceram na Praça Tahrir, no Egito, e o movimento Occupy, espalhado pelo mundo, como exemplos de engajamento urbano. Em visita ao Brasil, insistiu, para um público de mais de mil pessoas, que os centros urbanos são o lugar em que alguma forma de luta contra o capitalismo pode realmente funcionar.
Na madrugada do mesmo dia, 28 de fevereiro, a polícia removeu as barracas do braço londrino do Occupy. “Agora é um ótimo momento para o Occupy começar a repensar e a se reagrupar”, disse Harvey ao Opera Mundi, menos de 24 horas depois de oficiais de justiça ajudarem policiais a mandar embora os cerca de 100 manifestantes que estavam acampando em frente à Catedral de São Paulo, na capital britânica.
Para o pensador, é consistente o entendimento de que as reações governamentais contra os acampamentos dos occupies ao redor do mundo são sinal de que a sociedade não está pronta para modificar o sistema atual. Ainda assim, comemora o fato de a ofensiva policial em Londres não ter sido violenta como as dos Estados Unidos. Os manifestantes devem voltar às ruas? Sim, responde.
“Mas eles devem pensar qual será a estratégia para enfrentar a resistência e também pensar como mobilizar a população em massa. Talvez assumindo compromissos com movimentos sociais populares, movimentos de bairro”, afirmou.
Professor de antropologia da Universidade da Cidade de Nova York, Harvey esteve no Brasil para o lançamento de seu livro mais recente, O enigma do capital: e as crises do capitalismo, lançado pela Boitempo Editorial.  Na publicação, ele analisa os ciclos do capitalismo, crises econômicas passadas e processos de urbanização, partindo da crise do subprime norte-americano. Segundo o geógrafo, as crises do capitalismo não se resolvem, mas se movem – mudando o tipo de problema e também o lugar afetado.
Ana Yumi Kajiki/Boitempo Editorial

Harvey participou de eventos para lançar o livro O enigma do capital: e as crises do capitalismo no país.
“Nos últimos anos vemos um deslocamento dos problemas, de um campo da economia para outro.” A crise foi do setor da habitação, para o financeiro, passando depois para as dívidas soberanas de Estados-nação, diz. “E há uma maneira de transferir essa crise de volta para o setor bancário, se as dívidas não puderem ser resolvidas. As políticas de austeridade, então, empurram essas dívidas para o povo de volta.”
Mas a crise também se move num sentido geográfico. A quebra do mercado da habitação foi localizada em parte dos Estados Unidos – mais especificamente no sul da Califórnia, Nevada e Flórida – e, ao se modificar, chegou a lugares como a Europa e a Ásia.
Caminho até 2008
Harvey trouxe, na conferência, um panorama histórico da economia norte-americana, para explicar os ciclos de crise do capitalismo. E como eles se repetem, sem que os governos se dêem conta.  “Nos anos 20, houve excesso de capital num boom de construção localizado em poucas áreas - Flórida, Nova York, Chicago. Havia uma estratégia clara de financiamento e o boom nos preços de propriedade terminou um ano antes da grande crise. O que os economistas estão reconhecendo é que houve uma relação entre a crise do mercado de propriedade de 1928 e o colapso da bolsa de 29”, diz.
“A Segunda Guerra Mundial resolveu o problema dos anos 30, mas, em 1945, surgiram outras questões: onde colocar todo o excesso de capital que existia nos EUA? Todos os soldados que foram lutar e voltaram iriam encontrar emprego onde?” Como solução para um novo problema econômico, explica, os americanos passaram a construir casas e enchê-las com coisas. Novamente um boom na construção. A saída estimulava o consumo e aumentava os empregos.
“Uma das grandes maneiras por meio da qual os EUA saíram da crise dos anos 30 foi ‘suburbanizando’ as cidades nos anos 50 e 60. E, mesmo se você morasse no subúrbio, você tinha um cortador de grama, porque todos tinham. Era um estilo de vida.” De acordo com Harvey, antes da 2ª Guerra Mundial, não chegava a 500 mil o número de unidades habitacionais construídas anualmente. Depois de 45, o índice dobrou.
Mas a segunda onda de problemas estava para chegar. Muitos norte-americanos começaram a usar a habitação como um banco privado. “Você comprava uma casa por 200 mil dólares, hipotecava por esse preço, depois de dois anos o imóvel valia 300 mil, e você ganhava 100 mil hipotecando de novo”.  O sistema financeiro, diz Harvey, controla a oferta e demanda de casas, pois empresta dinheiro para os construtores e também para os compradores.
“O tempo todo, as instituições financeiras devem estar preparadas para colocar dinheiro nos dois lados. Todo mundo já sabia, em 2003, que o mercado da habitação era instável, mas por uma razão política foi decidido continuar com a bolha e com os juros muito baixos.”
Segundo o geógrafo, caso as pessoas não ganhem dinheiro através do salário, podem ganhar por meio da propriedade. Se isso não funciona mais, o consumo despenca. Foi o que se viu em 2008: o consumo entrou em colapso.
O capitalismo e as cidades
A relação da crise macroeconômica com as cidades nasce nos projetos de urbanização como saída para os colapsos financeiros, mas não acaba aí. A definição capitalista de urbanização, segundo o autor, não tem a ver com a criação de vida social, mas com a construção de coisas materiais para manter o processo de acumulação.
O exemplo da cidade de Nova York pós 11 de setembro não é o único citado por David Harvey. Em protesto contra a aprovação de um projeto que criminalizava nos EUA, em 2006, os imigrantes ilegais, este grupo decidiu não trabalhar por um dia, conta Harvey. “O que aconteceu? Los Angeles, Chicago e São Francisco pararam. Há relação direta entre acumulação de capital e questões relativas à urbanização”, diz.
Para o geógrafo, é preciso pensar a urbanização como um campo de luta de classes. “Quase todo mundo nos subúrbios vota nos republicanos. Eles não estão interessados nas questões sociais. Nos anos 30, havia um relatório que dizia que os proprietários de casa não entravam em greve, porque tinham que pagar a hipoteca de suas casas”, afirma Harvey, explicando o motivo da organização das cidades ser também medida de controle social significativa.
“A urbanização é muito importante para o sistema capitalista, em termos de acúmulo de riqueza, e deve ser importante para a esquerda como forma de luta anticapitalista na cidade”, conclui.
Ana Yumi Kajiki/Boitempo Editorial

Com o auditório da lotado, boa parte do público assistiu a conferência por um telão improvisado, na Universidade de São Paulo. 
Fonte: http://operamundi.uol.com.br

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