quinta-feira, 22 de agosto de 2013

A nova mulher e a moral sexual - Alexandra Mikhailovna Kollontai

Aporrea - [Fernando Saldivia Najul, Tradução do Diário Liberdade] Artigo sobre o papel da revolucionária e feminista Alexandra Kollontai na análise do conceito de amor na moral burguesa e na moral proletária.

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Quando Alexandra Kollontai visitou a conhecida fábrica de tecelagem Krengolm que empregava 12.000 operárias e operários, se indignou de tal maneira que escreveu em suas memórias que ela não podia ser feliz se as mulheres e homens eram escravizados dessa forma tão desumana.
Os pais de Alexandra pertenciam à antiga nobreza russa, mas ela não era indiferente ao mundo que a rodeava. Desde muito pequena criticava a injustiça dos adultos. Parecia-lhe uma contradição que a ela lhe dessem tudo e aos outros meninos lhes fossem negadas tantas coisas. Sua crítica foi-se agudizando com os anos e cresceu o sentimento de protesto contra as diferenças que via em seu meio. De maneira que muito cedo adquiriu clara consciência das injustiças sociais, e decidiu lutar de maneira incansável pela libertação da mulher.
Sua conceção marxista do mundo fazia-lhe ver com absoluta clareza que a libertação da mulher só podia ocorrer com a vitória de uma nova ordem social e um sistema econômico diferente. Alexandra Kollontai chegou a se converter em integrante do primeiro Gabinete bolchevique nos anos 1917 e 18, e chegou a ser a primeira mulher a ser nomeada embaixadora. E deixou-nos uma ampla obra literária que inclui uma valiosa análise histórica e materialista do amor.
A camarada Alexandra, uma mulher sexualmente emancipada, fala-nos em seus escritos do "Eros de asas despregadas" e do "amor-camaradagem". Fala-nos de uma nova moral sexual, libertadora e necessária para criar o solidário tecido social. Uma moral que permita às mulheres e aos homens a possibilidade de estabelecerem múltiplos relacionamentos amorosos e sexuais necessários para a construção da nova sociedade que está nascendo.
O ser humano é, ao mesmo tempo que criador, resultado da sociedade em que vive. Portanto, se somos criadores, para construir um mundo melhor é necessário o aparecimento e formação de uma mulher nova e um homem novo, inclusive com uma nova moral sexual. A moral sexual faz parte da superestrutura que se deriva do sistema econômico da sociedade, mas não podemos esperar que se experimente a total transformação da base econômica da sociedade para que tenha lugar a moral sexual da classe trabalhadora. "A experiência da história ensina - afirma Alexandra - que a elaboração da ideologia de um grupo social, e consequentemente da moral sexual também, se realiza durante o processo mesmo da luta deste grupo contra as forças sociais adversas".[1]
Do mesmo modo como a burguesia sabe utilizar suas normas morais para guiar ao amor pela via que melhor sirva os seus interesses de classe, nós devemos ter em conta a importância da emoção amorosa em tanto fator que pode ser utilizado, como qualquer outro fenômeno psíquico social, em benefício da coletividade. O amor supõe um princípio de união valioso para a coletividade. Em todas as etapas de seu desenvolvimento histórico, a humanidade estabeleceu normas que determinam quando e em que condições o amor era considerado "legítimo", isto é, que respondia aos interesses da coletividade do momento, e quando é "culpado", criminoso, isto é, que vai contra os objetivos da sociedade.
Há tempos que o ideal burguês do amor não satisfaz à coletividade, mas a burguesia resiste. Podemos ver como a indústria cultural reforça os afetos no amor de casal a favor de seus interesses econômicos e políticos. Sem dúvida, um amor que mostram romântico, mas que na realidade está subordinado às leis do mercado e aos valores da sociedade capitalista, tais como: consumismo, classismo, racismo, padrões de beleza, etc.
A burguesia reforça os afetos no amor de casal porque lhe serve como mecanismo de divisão e controle da classe trabalhadora, também como mecanismo machista de dominação da mulher, e claro, para afirmar o individualismo liberal. Nosso inimigo de classe sempre lutou para frear o amor coletivo e o fazer retroceder. A ideia limitada de amor que se nos impõe hoje nos meios de comunicação, amor de casal e amor de família, é um amor que dificulta a expansão dos afetos para outras pessoas e inclusive para a natureza.
O amor de casal e da família nos é apresentado como um conceito universal, a-histórico e próprio da natureza humana. Mas não é assim. Conta-nos Alexandra Kollontai, que desde as primeiras etapas de sua existência social, a humanidade começou a regulamentar não só os relacionamentos sexuais, como também os sentimentos amorosos.
No mundo antigo, por exemplo, só se apreciava o sentimento de amizade. Só na amizade se via um conjunto de emoções, de sentimentos suscetíveis de alicerçar as ligações espirituais entre os membros da tribo e de consolidar um organismo social que, então, ainda era débil. Ao contrário, nas etapas ulteriores do desenvolvimento da cultura, a amizade deixou de ser considerada como uma virtude moral. Na sociedade burguesa "que ainda sobrevive", fundada no individualismo, concorrência desenfreada e emulação, não há espaço para a amizade considerada como fator moral.
Nas famílias de artesãos da Idade Média não se tomava em consideração o amor quando se concertava um casal. No sistema artesanal, a família era a unidade produtora, e sua coesão descansava no trabalho, em interesses econômicos e não no amor. O ideal de amor no casal só começa a aparecer na classe burguesa quando a família se transforma pouco a pouco de unidade de produção em unidade de consumo e, ao mesmo tempo, se volta guardiã do capital acumulado. Tudo o que antes se produzia no seio da família, passou a se fabricar em grandes quantidades nas oficinas e nas fábricas. Portanto, a burguesia requeria do ideal do amor para manter a coesão da família e cuidar o capital acumulado.
De modo que toda a moral da burguesia estava baseada nessa vontade de garantir a concentração do capital. Esse ideal era ditado por considerações puramente econômicas: a vontade de impedir a dispersão do capital entre os filhos naturais, e transmitir por linha direta o patrimônio adquirido. Com o utilitarismo que a carateriza, a burguesia se dedicou a tirar proveito também do amor, transformando esse sentimento em fermento de casal, em meio para consolidar a família.
Certamente, o sentimento amoroso não pôde encontrar seu sítio dentro dos limites que lhe atribuiu a ideologia burguesa. Nasceram, reproduziram-se e multiplicaram-se os "conflitos amorosos". O amor saía constantemente dos limites que lhe impunham os relacionamentos conjugais legítimos, para se estender tanto sob a forma de uniões livres como sob a forma de adultério, condenado pela moral burguesa mas realizado na prática.
O ideal burguês do amor não responde às necessidades da classe mais numerosa da população, a classe trabalhadora. Também não corresponde ao modo de vida dos trabalhadores intelectuais. De modo que a humanidade precisa estabelecer relacionamentos entre os sexos para que esses relacionamentos, ao mesmo tempo que aumentem a felicidade, não entrem em contradição com os interesses da coletividade. A humanidade trabalhadora, armada com o método científico do marxismo e com a experiência do passado, tem que reservar um espaço ao ideal de amor que responda aos interesses da classe que luta para estender seu domínio por todo mundo.
Cada época tem seu ideal de amor, a cada classe, em seu próprio interesse, quer introduzir na noção moral do amor seu próprio conteúdo. O conteúdo da noção de amor mudou segundo os graus sucessivos do desenvolvimento da economia e da vida social. Algumas das matizes das emoções que constituem o sentimento do amor se reforçaram, enquanto outros se têm atrofiado.
Na sua forma atual, o amor é um estado psicológico extremamente complexo que desde muito tempo se despreendeu de sua fonte originária "o instinto de reprodução", e inclusive com frequência se acha em clara contradição com ela. O amor é um conglomerado complexo de paixão, amizade, ternura maternal, inclinação amorosa, comunidade de espíritos, piedade, admiração, costume, e outras muito numerosas nuances de sentimentos e emoções. Ante tal complexidade de matizes e do amor mesmo, a cada vez é mais difícil estabelecer um vínculo direto entre a voz da natureza, "Eros sem asas" (atração física dos sexos), e "Eros de asas despregadas (atração carnal misturada com emoções espirituais e morais).
Sob a dominação da ideologia burguesa e do modo e vida capitalista-burguês, o caráter multiforme do amor engendra uma série de dramas psicológicos dolorosos e insolúveis. A moralidade burguesa, com sua família individualista encerrada em si mesma, baseada completamente na propriedade privada, cultivou com esmero a ideia de que um parceiro deveria "possuir" completamente o outro. A ideologia burguesa gravou na cabeça da gente a ideia de que o amor, incluído o amor recíproco, dava o direito de possuir completa e exclusivamente o coração do ser amado.
Ante esta triste realidade, nas Cartas à juventude operária, Alexandra pergunta a ela própria: pode corresponder tal ideal aos interesses da classe operária? Não é, pelo contrário, importante e desejável, do ponto de vista da ideologia proletária, que os sentimentos da gente se voltem mais ricos, mais diversos?
E responde:
"Quanto mais numerosos são os fios tendidos entre as almas, entre os corações e as inteligências, mais solidamente se enraíza o espírito de solidariedade, e mais fácil resulta a realização do ideal da classe operária: a camaradagem e a unidade.
(...) O fato de que o amor seja multiforme não está em contradição com os interesses do proletariado. Ao invés, facilita o triunfo desse ideal de amor nos relacionamentos entre os sexos que já está tomando forma e cristalizando no seio da classe operária. Trata-se precisamente do amor-camaradagem.
A humanidade patriarcal imaginou o amor sob a sua forma de afeto consanguíneo (amor entre irmãos e irmãs, amor pelos pais). A antiga antepunha a tudo, o amor-amizade. O mundo feudal elevava à categoria de ideal ao amor "platónico" do cavalheiro, amor independente do casal e que não levava consigo a satisfação da carne. O ideal de amor da moral burguesa era o amor conjugal, o casal legítimo.
O ideal de amor da classe operária, que se deriva da cooperação no trabalho e da solidariedade de espírito e de vontade dos membros dessa classe, homens e mulheres, se distingue naturalmente, tanto pela forma como pelo conteúdo, das noções de amor próprias de outras épocas culturais.
(...) O amor-camaradagem é o ideal que precisa o proletariado no período cheio de responsabilidades e dificuldades em que luta por estabelecer e afirmar sua ditadura. Mas não há dúvida de que, quando a sociedade comunista seja já uma realidade, o amor, "Eros de asas despregadas", se apresentará baixo uma feição completamente renovada, completamente desconhecido para nós. Nesse momento, os "laços de simpatia" entre todos os membros da sociedade nova, se terão desenvolvido e afirmado, a "capacidade amorosa" será bem mais alta e o amor-solidariedade terá um papel de motor análogo ao da concorrência e do amor-próprio na sociedade burguesa?. [2]
Mais nada que dizer.
Notas
[1] Alexandra Kollontai, Os relacionamentos sexuais e a luta de classes. Marxist Internet Archive.
[2] Alexandra Kollontay, O marxismo e a nova moral sexual: Cartas à juventude operária: Sítio a Eros alado. Editorial Grijalbo, S.A., México, 1977, p. 212 - 215.

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