7 de setembro: falta independência, ainda, para muita
gente - Para o povo
excluído não basta a aparência formal de um Estado de Direito e de uma
democracia ainda notoriamente oligárquica
Dia 7 de
setembro vão desfilar de novo, festivamente, pelas principais ruas e avenidas
do país, esquadrões de soldados das forças armadas, tanques, carros de
combate, canhões e cavalos. Exibe-se um tipo de armamento vencido no tempo e
feito obsoleto para qualquer guerra, ficando a cargo das bandeiras coloridas a
missão de provocar, assim mesmo, um bem discutível orgulho cívico, fundado
apenas na força das armas.
Um outro tipo de marcha bem menos
vistosa e com muito menos gente também sai neste dia. Reúne um povo que
testemunha onde a independência ainda não chegou e para a qual todo aquele
aparato bélico do outro desfile não tem nenhuma serventia. É o chamado
“grito dos excluídos”, este ano exibindo como tema, de modo extremamente
oportuno para o momento “A vida em primeiro lugar.” Um cartaz com a foto do
Papa Francisco, publica uma das suas frases, repetidas em sucessivos encontros
com os movimentos populares: “Nenhuma família sem casa, nenhum camponês em
terra, nem trabalhador sem direitos.”
Para o povo excluído não basta a aparência
formal de um Estado de Direito e de uma democracia, ainda notoriamente
oligárquica, na qual o poder econômico ainda “fala do trono”, como Dom Pedro I
fez na abertura da assembleia constituinte de 1824, e mostra todos os dias
porque, onde, como, quando e quanto manda. Isso é uma farsa de independência.
Dois
exemplos recentes dão prova desse fato. O primeiro demonstrativo de que a
soberania do país sobre o seu território, em nossa faixa de fronteira, se dobra
diante do interesse econômico latifundiário. O projeto de lei ado é o
substitutivo do Senado Federal ao Projeto de Lei 2742/03, de autoria do
deputado Luis Carlos Heinze, do PP - o mesmo que em fevereiro deste ano disse
que quilombolas, índios e homossexuais são "tudo o que não presta" -
garante prorrogação de concessões de terra de fronteira, feitas ilegal e
inconstitucionalmente no passado, a quem as possui atualmente. Pois é essa mesma multidão que “não presta”,
a excluída, em defesa de quem caminha todos os anos, paralelamente ao desfile
militar, representada pelo “grito”, agora já em sua 21ª realização, denunciando
as causas e os efeitos de a nossa independência ainda se encontrar política,
econômica e socialmente ausente nas suas vidas, inclusive por projetos de lei
dessa espécie.
O deputado
expressou tudo quanto a Constituição Federal determina em sentido contrário,
pretendendo garantir, às duras penas, como condição de vida, dignidade humana e
cidadania para todas/os e não só para as elites, entre elas, a das/os
latifundiárias/os que ele defende com tanto empenho.
Se o seu
projeto prorroga a usurpação da nossa faixa de fronteira, (mesmo sabendo-se
quanta terra grilada ainda existe por ali) uma outra iniciativa da bancada do
boi, integrada pelo mesmo parlamentar, conseguiu restabelecer, de fato, a
submissão da sociedade e do Estado a quem explora trabalho escravo, coisa
legalmente proibida no país desde 1888...
Como nesse
espaço já se comentou anteriormente, o Incra baixara uma Instrução normativa
83/2015, para detectar onde está sendo explorado o trabalho escravo em
propriedades rurais. Além de crime, de acordo com o artigo 149 do Código Penal,
a comprovação dessa ignomínia serve também para atestar o descumprimento, por
parte do proprietário e do imóvel onde ela é flagrada, da função social
inerente a todo o direito de propriedade.
Isso está
expresso no artigo 186, inciso III da Constituição Federal. Lá está dito que “A
função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente,
segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes
requisitos: III: observância das disposições que regulam as relações de
trabalho”.
Embora seja
impensável que a escravidão possa ser incluída em “disposições que regulam as
relações de trabalho” e o INCRA, mais não tenha feito do que obedecer ao
disposto na Constituição Federal, baixando a tal Instrução 83, a
Advocacia Geral da União, a pedido do Ministro Mercadante - nisso atendendo
reivindicação da bancada do boi - acaba de cassar - outra não pode ser a
palavra - qualquer efeito à mesma.
Entre os
muitos golpes (palavra muito na moda no Brasil de hoje) sofridos pela reforma
agrária, esse é um dos mais perniciosos. De qual democracia e de qual Estado
democrático de direito foi procurar legitimação esse ato da Advocacia Geral da
União (escravidão para ser punida não precisaria nem de lei) não se sabe, mas
ele confere certidão mais do que lamentável à uma crítica do nosso Direito
Constitucional feita por Paulo Bonavides, demonstrativa da incapacidade
política do Poder Público, quando em causa direitos capazes de afetar
interesses das elites. Ela é manifestamente despida de qualquer eficácia quando
a letra da Constituição pretenda ser respeitada por quem continua fora das
garantias generosas por ela previstas em favor daquela fração de povo como a
representada no “grito dos excluídos”:
“O direito
procura fórmulas transformadoras com que alterar o status quo que fossiliza o
País no imobilismo das correntes conservadoras, no estatuto político das
oligarquias, no privilégio das camadas dominantes. Estas sempre refratárias ao
progresso e à mudança sempre fizeram da constituição o ornamento do poder, a
vaidade institucional, o texto luxuosamente encadernado e esquecido nas
estantes da oligarquia, a lei com a qual nunca os chefes presidenciais
efetivamente governaram o País nem a sociedade conscientemente conviveu.”
Desta vez, pelo
menos a ABRA e outras organizações favoráveis à reforma agrária, não querem se
deixar atropelar pelas inconstitucionalidades presentes, tanto no projeto de
lei 2742/2003, quanto na revogação dos efeitos da Instrução Normativa
Incra 83/2015.
A Acesso
Cidadania e Direitos Humanos, com sede no Rio Grande do Sul, vai requerer à
Procuradoria da República no Rio Grande do Sul, na semana que vem, algumas
providências legais que entende cabíveis serem tomadas pelo Ministério Público,
contrárias tanto ao tal projeto quanto à sustentação jurídica daquela
Instrução.
Vai argumentar
tanto em favor do reconhecimento das inconstitucionalidades lá presentes,
quanto ter ouvido o grito dos excluídos, juntando-se ao empoderamento
ético-político-jurídico de outras organizações populares de defesa dos direitos
humanos, advogadas/os populares, ONGs, sindicatos, pastorais, que estiverem
inconformadas/os com as violações de direito presentes naquelas duas
iniciativas da bancada do boi. Desde já, qualquer delas pode aderir a um tal
propósito, assim se manifestando no site pela Acesso mantido no Facebook.
Voltaire tinha razão. Vencido tanto tempo desde o
que ele disse, constrange dizer quanto continua atual a sua advertência: “Não é admissível que uns tenham nascido de
sela às costas e outros de esporas aos pés.”
Fonte:
http://www.cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FMovimentos-Sociais%2F7-de-setembro-falta-independencia-ainda-para-muita-gente%2F2%2F34415
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