sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Banalizar e naturalizar a prostituição: violência social e histórica*


Por Tania Navarro Swain

resumo:

A prostituição vem sendo apresentada pelo história como algo já existente desde os primórdios da organização social humana. Diferentes facetas do discurso social retomam esta idéia e justificam a prostituição, esvaziando-a de sua violência constitutiva. A prostituição transformada em profissão de fato legaliza a violência da apropriação material e simbólica dos corpos das mulheres.

A prostituição, ou seja, a venda de corpos, forçada ou não, é talvez a maior violência social cometida contra as mulheres. Esta violência é agudizada por sua total banalização; mais ainda, a profissionalização da prostituição, que acolhe adeptos mesmo entre as feministas, define a apropriação e a “mercantilização” total das mulheres como um trabalho, que seria tão estatutário e dignificante quanto qualquer outro.

A simples classificação “trabalho” promove a compra de mulheres – momentânea ou permanente, como no caso das meninas raptadas, violentadas e prostituídas – a um nível de mercado, de justificação monetária, de inserção nos mecanismos de produção e reprodução do social. De fato, a prostituição é um agenciamento social onde a classe dos homens, como bem definiu Christine Delphy (1998), se apropria e usa a classe das mulheres.[1]

Os mecanismos de inteligibilidade social integram a prostituição, no imaginário e nas representações sociais, como um estado prazeroso, tal como o apresenta, por exemplo, a literatura, dentre os discursos sociais. Por exemplo, Jorge Amado, em muitos de seus romances: apresenta o prostíbulo como um lócus de troca amorosa, de repouso e prazer..Assim, não paira sequer a questão: para quem as mulheres são colocadas à disposição, corpos e ouvidos complacentes, perpétuos sorrisos enganchados no rosto, caricaturas de uma relação de encontro?

Aspirar à dignidade de um trabalho, enquanto prostituta, é totalmente compreensível, sobretudo quando não existem condições materiais para uma transição ou o abandono de tal atividade. Afinal, quem não deseja o respeito e a consideração social? Entretanto, mesmo se a legislação confere um status trabalhista à prostituição, a linguagem popular mostra seu lugar na escala social. Ser “filho da puta” não é ainda o insulto maior?

Diversas asserções tentam justificar a violência da transformação de pessoas em orifícios, como por exemplo, “a prostituição é a mais antiga profissão do mundo”. Esta frase é dita e escrita à exaustão, criando sentidos sobre o vazio de sua enunciação. De fato, em História, nada existiu “desde sempre e para sempre”, a não ser em uma história positivista, enredada em premissas essencialistas e datadas, para a qual é “natural” a presença de prostitutas no social. Ao contrário, a pesquisa histórica vem mostrando que a prostituição é uma criação do social, em momentos épocas específicas; esta denominação encobre, inclusive, no discurso histórico, a presença de mulheres no social que destoam da norma representacional sobre as mulheres.

Esta proposição – a mais antiga profissão do mundo - cria e reproduz a idéia da existência inexorável da prostituição, ligada à própria existência das mulheres, parte de seu destino biológico; nesta asserção é mantida, no senso comum, a noção da essência maléfica e viciosa das mulheres, que através dos tempos se concretiza na figura da prostituta, o lado sombrio e negativo da representação construída sobre a mulher-mãe na historicidade discursiva ocidental. Por outro lado, fica materializada e generalizada a idéia da condição inferior das mulheres ao longo da história, despossuídos de seus corpos e de sua condição de sujeito, no social e no político.

Delimitada pela noção de essência e permanência, a prostituição vai perdendo sua historicidade e a própria variação semântica da palavra desaparece sob generalizações no mínimo insustentáveis. Por exemplo, a “prostituição sagrada” na antiguidade dos povos orientais é uma interpretação anacrônica, pois insere em valores do presente – o sexo mercantilizado – a análise de um ritual simbólico de renovação da vida (Stone, 1979)

Explica esta autora que o hierogamos – união sagrada entre a grande sacerdotisa e o futuro rei, ou entre uma sacerdotisa e um visitante do templo – era uma celebração do ritual místico da vida, reproduzindo, na Suméria, a união de Inana / Damuzi ou de Ishtar/Tamuzi, na Babilônia - fundamentou a idéia de "prostituição sagrada", ou seja, uma interpretação etnocêntrica, que confere ao rito uma desqualificação incompatível com a importância e o sentido conferido à cerimônia.

Merlin Stone historiadora e arqueóloga, explica que as sacerdotisas dos templos da Deusa, seja na Suméria, Babilônia, Cartago, Chipre, Anatólia, Grécia, Sicília, eram consideradas sagradas e puras; seu nome acadiano de gadishtu significa literalmente "mulheres santificadas" ou "santas mulheres" (Stone, 1979: 237).

Julgamento de valor, valores criadores de sentidos, sentidos instauradores do real na senda do imaginário social: assim se constrói a prostituição como atemporal, Se “o que a História não diz, não existiu”, como costumo afirmar, o que a história diz é certamente justificação para determinadas relações sociais. Nesta perspectiva, à asserção “prostituição, a mais velha profissão do mundo”, corresponde “as mulheres sempre foram dominadas pelos homens”, proposições construídas pelas representações sociais binárias e hierarquizadas dos historiadores, destituídas de fundamento. Mas isto assegura, no discurso e às condições de imaginação social, a representação das mulheres enquanto prostitutas e como seres dominados / inferiores, desde a aurora dos tempos conhecidos.

Sentidos múltiplos

Assim, a questão que se coloca é igualmente: o que é uma prostituta? Cada época tem sua definição e seus limites que vão desde a mulher que não é casada, daquela que tem um amante até a profissão que ela exerce, como até pouco tempo, no Brasil, as aeromoças, as cantoras, as mulheres que trabalhavam fora de casa. Se o termo contém uma suposta relação mercantil, a representação da prostituta atinge todas aquelas que não se enquadram às normas de seu tempo / espaço.

Simone de Beauvoir, que marcou a visibilidade dos feminismos no século XX com a publicação do “Segundo Sexo” (1949), assim analisa a condição da prostituta:“[...]a prostituta é um bode expiatório; o homem descarrega nela sua torpeza e a renega ”(Idem,376)e continua […] a prostituta não tem direitos de uma pessoa, nela se resumem , ao mesmo tempo, todas as figuras da escravidão feminina”.(idem) A pertinência desta análise nos aponta para a inversão que institui e classifica a prostituição no mais baixo nível social, que pune e persegue a prostituta e não o cliente. A violência simbólica desta inversão não pune ou rejeitado socialmente os agentes da violência, os criadores de mercado: os clientes. A quem serve afinal, a legalização da prostituição?.

Simone de Beauvoir considera que é na prostituição, onde:

“[...]a mulher oprimida sexualmente e economicamente, submetida ao arbítrio da polícia, à uma humilhante vigilância médica, aos caprichos dos clientes, destinada aos micróbios e à doença, é realmente submetida ao nível de uma coisa”(idem,389)

. Estas frases contém um sem-número de questões: a prostituição como o resultado de relações sociais hierárquicas de poder; como resultado igualmente de uma situação moral; como objetificação total do feminino nas instâncias sexual e econômica, submetido à ordem masculina ; como instituição partícipe do funcionamento do sistema patriarcal; como uma forma de violência e apropriação social das mulheres/ meninas/ crianças pela classe dos homens.

Meninas abandonadas pelos pais, pelos amantes ou maridos, falta de oportunidade de trabalho, falta de capacitação, sedução e exploração, escravidão sexual, medo, são causas arroladas por De Beauvoir (idem:279/380) para a prostituição. Podemos acrescentar o abuso sexual doméstico, na escola, no trabalho, nas instâncias de lazer. No caminho da prostituição, o abuso e o estupro estão quase sempre presentes. Sob o signo do social se coloca a existência da prostituição, num contexto de violência implícita ou explícita, desmascarando “a mais antiga profissão do mundo”. Como bem analisa Colette Guillaumin(1978), as mulheres padecem de não TER um sexo, mas de SER um sexo, no imaginário patriarcal.

De Beauvoir comenta ainda a respeito da prostituição:

“[...] gostaríamos de saber a influência psicológica que esta brutal experiência teve sobre seu futuro; mas não se psicanalisa “as putas”, elas não sabem se descrever e se escondem sob os clichês”(idem, 380).

Esta questão é bem ilustrativa da banalização e naturalização da prostituição: as mulheres violentadas são usualmente encaminhadas para um acompanhamento psicológico; mas e as prostitutas? Ou elas realizam a improvável operação da separação de seus corpos e mentes quando exercem esta atividade, ou são apenas robôs, destituídas de psique, de sentimentos, de emoções.

Dizer que a prostituição é um trabalho e ainda, voluntário, é, no mínimo, um insulto às mulheres, é um insulto ao trabalho, é o menosprezo total das condições que levaram tais mulheres a se submeter e mesmo defender a “profissão” que exercem. O que poderia levar uma criança, uma adolescente, uma mulher à este aviltamento senão a força, o poder, o estupro, a violência social que aceita a figura do “cliente” como seqüência de corpos profanados, usados e abusado, assujeitados, escravizados? Basta lembrar que o tráfico de mulheres só é superado em lucratividade pelo comércio das armas. Estariam todas estas mulheres e meninas nos bordéis e nas ruas, por sua livre vontade, presas de sua “natureza” perversa?

A naturalização e a profissionalização da prostituição não é também uma forma de convencimento para as meninas / adolescentes? Porque não ser prostituta, “trabalho” “fácil”, para se ganhar muito dinheiro? Não se explica a elas o que vão constatar: a perda de sua condição de sujeito, de ser humano, entre surras e pancadas, na total insegurança, sem falar nesta intimidade, nesta troca de fluidos corporais, de odores, texturas, hálitos, suores, a invasão e a despossessão de seus corpos por qualquer indivíduo do sexo masculino? Como se ousa dizer que alguém quer ou gosta de ser prostituta?

De fato, a prostituição é a banalização do estupro.

Um argumento bem atual é que a sedução exercida pela prostituta seria uma forma de poder sobre os homens: a mulher teria algo tão desejável que faria o homem se submeter a pagar por isto, diz a revista Nova em 1999. Mutatis mutandis, o patrão que paga um salário torna-se assim instrumento e posse de seu operário? Que estranha inversão é esta que torna o comprador tributário do vendedor? Que tipo de raciocínio é este que seria destruído em segundos por qualquer estudante de economia e se sustenta na análise da prostituição? De toda maneira, o dinheiro ganho pelas prostitutas raramente fica em suas mãos.

No estupro e na violência material e psicológica encontram-se raízes da prostituição; no aliciamento para o mundo artístico, inumeráveis jovens desaparecem no tráfico internacional de mulheres onde são vendidas e confinadas em bordéis; no apelo ao consumo e na falta de oportunidades de trabalho, na ausência de capacitação profissional e mesmo de alfabetização, outras passam a vender seus corpos, já que, afinal, não é este um destino “natural” para as mulheres?. Mas não só a ausência de condições materiais estimulam a venda de corpos: são as representações sociais sobre as mulheres, são as condições de imaginação social que asseguram a existência da prostituição, como algo banal e natural.

Estas são situações de fato, levadas em conta pelos feminismos quando se debruçam sobre a experiência singular das mulheres, colocando-se em sua defesa e proteção. Sob a égide da legalização da prostituição encontra-se, entretanto, um imenso mercado que mal disfarça seus interesses. A mercadoria é o corpo ou o sexo das mulheres e meninas. Por vários motivos, a prostituição não pode ser assimilada a um trabalho, a uma profissão: numa relação profissional ou mercantil, o que se vende é o trabalho ou o produto do trabalho. Na prostituição, o corpo das mulheres seria seu produto? Como ser força de trabalho e ao mesmo tempo seu produto? Isto é a re-naturalização do sexo feminino, a sua transformação de ser humano em carne , cujo destino é a satisfação do desejo de outrem.

Confundir prostituição e trabalho é dotá-la de uma dignidade que não possui no imaginário e na materialidade social – o linguajar popular exprime o desprezo social em relação à prostituta e nenhuma legislação irá modificar esta imagem: é a forma falaciosa de justificar o completo assujeitamento das mulheres a seu corpo sexuado, mergulhando-as na total imanência.

É a melhor maneira de perpetuar a prostituição, igualmente, na medida em que as próprias mulheres defenderiam sua profissionalização, para escapar ao opróbrio, às perseguições legais e à própria auto-representação, fincada num imaginário de degradação. Assim, descriminalizar é uma coisa e profissionalizar é algo muito diferente: descriminalizar é proteger as mulheres prostituídas do arbítrio legal e da exploração dos cafetões; profissionalizar é integrá-la ao funcionamento do mercado de trabalho, banalizando e normalizando a apropriação das mulheres pelos homens, na expressão paroxística da matriz heterossexual, na reafirmação do patriarcado enquanto sistema.

A prostituição é, portanto, uma instituição social que materializa a apropriação geral da “classe” dos homens em relação à “classe das mulheres”, (Guillaumin, 1978) historicamente constituída nas relações sociais e que tende a ser naturalizada. A prostituição enquanto “escolha” de uma “profissão” obscurece a profunda esquizofrenia do olhar lançado sobre as prostitutas, destituídas de toda perspectiva psicológica, capazes de cindir, no exercício da sexualidade, da “profissão”, seu corpo e sua mente, seu corpo e suas emoções.

Evidentemente, os consultórios de psicólogos e psicanalistas estão repletos de mulheres e homens com problemas sexuais; as prostitutas, entretanto, não são afetadas por estas disfunções, já que se trata de um “trabalho”, de uma “escolha”. As imagens que são produzidas pela televisão, pelo cinema, pela literatura, mostram os bordéis como casas de alegre convivência, de felizes encontros, de doces recordações – para os homens – escondendo a sombria realidade de seres despojados de seu corpo e de sua humanidade.

Pequena questão final

A materialidade das relações sociais apela para um posicionamento político e a análise crítica é um dos vetores que pode rasgar as tramas dos discursos e suas práticas. A História, enquanto discurso social também dotado de historicidade é uma das grandes veiculadoras de representações de mulheres naturalizadas: entre maternidade e prostituição, a escolha de um destino biológico. Os feminismos, atentos à sua própria produção do conhecimento, não podem senão negar a banalização da violência que prostitui as mulheres e afirma que elas assim o querem porque assim são feitas e constituídas.

Referências bibliográficas

DE BEAUVOIR, Simone. Le Deuxième Sexe. L’expérience vécue, Paris: Gallimard, 1966. (1a edição em 1949)

DELPHY, Christine. L´ennemi pprincipal. vol 1. Paris : Ed. Syllepse, 1998

GROULT, Benoite. Cette mâle assurance. Paris : Albin Michel, 1993

GUILLAUMIN, Colette. 1978.Pratique du pouvoir et idée de Nature, 2.Le discours de la Nature, Questions féministes, n.3, mai, p.5-28,

STONE, Merlin. Quand Dieu était femme. Quebec: Etincelle, 1979.

RICH, Adrienne. La contrainte à l'hétérosexualité et l'existence lesbienne, Nouvelles Questions Féministes, Paris, mars , n.1, p.15-43, 1981.

JODELET, Denise. Les représentations sociales, un domaine en expansion. In :___ (dir) Représentations sociales. Paris : PUF, 1989.


[1] Na linguagem marxista de relações de classes, Delphy (1998) identifica na associação dos homens uma classe, que como tal se apropria das mulheres, também enquanto classe

nota biográfica

tania navarro swain é professora do Departamento de História da Universidade de Brasília, doutora pela Université de Paris III,Sorbonne. Fez seu pós-doutorado na Universidade de Montréal, onde lecionou durante um semestre na Université du Québec à Montréal, (UQAM), onde foi professora associada ao IREF, Institut de Rechereches et d´Études Féministes. Ministra um curso de Estudos Feministas na graduação e trabalha na área de concentração com a mesma denominação na pós-graduação. Publicou recentemente um livro pela Brasiliense, “O que é lesbianismo”, 2000 e organizou um número especial “Feminismos: teorias e perspectivas” da revista Textos de História, lançado em 2002. Organizou igualmente um livro “História no Plural”, além de vários artigos em revistas nacionais e internacionais.Organizou igualmente o livro "mulheres em ação:práticas discursivas, práticas políticas", publicado em 2005. É editora da revista digital Labrys, estudos feministas"

* texto publicado na revistaUnimontes Científica, revista da Universidade Estadual de Montes Claros, vol6,n2, julho/dez 2004.

Fonte: http://vsites.unb.br/ih/his/gefem/labrys8/perspectivas/anahita.htm

Um comentário:

  1. Um artigo interessante e vivo, que detalha e aprofunda esse tipo de degradação cometida contar a mulher histórica. Pesquisar essa violência simbólica é por o dedo na ferida. Mas a ideologia dominante não quer esse tipo de estudo e reflexão.

    ResponderExcluir