Em uma época de crescimento estagnado, o populismo reacionário torna-se tentador e perigos.
Mike Nelson/ AFP
As repetições do
clichê “a globalização é irreversível”, mantra dos anos 1990, podem ser
encontradas aos milhares com uma rápida pesquisa pelo Google. Mesmo seus
críticos reunidos no Fórum Social Mundial recusavam ser tachados de
“antiglobalização” e disseram buscar uma “mundialização alternativa”.
Hoje, porém, o termo “desglobalização” ganha cada vez mais espaço, não
como consequência temporária de um acidente de percurso como a crise de
2008, mas como uma força assertiva e talvez de longo prazo.
O Brexit de junho fez
soar o sinal de alarme, mas a tendência é geral, como mostra a rejeição
de ambos os principais candidatos presidenciais dos Estados Unidos ao
Tratado Transpacífico, a ascensão da xenofobia e dos populismos
reacionários na União Europeia e do nacionalismo na Rússia, Japão,
Turquia e Filipinas.
A própria China, cuja abertura estimulou o
crescimento mundial por muito tempo, entrou em novo ciclo, começa a
voltar-se de novo para dentro, prioriza o consumo e o investimento
interno e valoriza o legado do maoísmo.
O volume do comércio internacional foi
equivalente a 25% do produto mundial bruto nos anos 1960, 32% nos anos
1970, 38% nos anos 1980, 43% nos anos 1990, 55% nos anos 2000 e 60% na
primeira década de 2010. Mas em 2016, o comércio internacional deve
crescer menos que a economia mundial (1,7% ante 2,2%) sem nenhum evento
catastrófico que o justifique.
Nas últimas décadas, isso só havia
acontecido duas vezes, em 1982 como consequência do choque dos juros de
Paul Volcker, e em 2001 com o estouro da bolha especulativa das pontocom
e os atentados do 11 de Setembro.
Segundo a Organização Mundial do
Comércio, a desaceleração deve-se em 75% à queda do investimento
internacional (por exemplo, menos capital ocidental em indústrias chinesas)
e no restante ao crescimento do protecionismo. As tarifas sobre o
comércio internacional haviam caído continuamente de 1985 a 2008, mas
após a crise financeira se estabilizaram e nos últimos dois anos,
sobretaxas e outras barreiras comerciais voltaram a aumentar. O fenômeno
é anterior aos eventos políticos deste ano, que, provavelmente, o
reforçarão.
A questão de fundo é a percepção de que, apesar dos smartphones, robôs e veículos autônomos, do Uber e do Airbnb,
a produtividade das economias mais avançadas cresce muito pouco ou
nada, o desemprego aumenta, a população envelhece e uma estagnação
secular se consolida.
Se os países pobres ainda têm espaço para aumentar sua
produtividade pela absorção de tecnologias industriais existentes, são
percebidos como uma concorrência desleal. Se vivem a guerra ou o caos e
expelem migrantes, são vistos como uma ameaça ainda maior.
Para que tenha plausibilidade, a fé
inabalável dos economistas liberais na teoria das vantagens comparativas
e o amor dos gurus da administração e da autoajuda pela ideologia do
“jogo do ganha-ganha” dependem de uma percepção, se não de abundância
concreta, ao menos de expectativas de crescimento a longo prazo.
Se esta falta, a economia é percebida
como um jogo de soma zero e cada um tenta salvar o seu padrão de vida à
custa dos demais. Como até os analistas de mercado financeiro descobrem
depois de sobreviverem a um ou dois ciclos, com o mercado em alta, todo
mundo é gênio, mas quando cai, vale a lei da selva.
O próprio capitalismo depende de uma perspectiva de crescimento.
Na Idade Média, a estagnação secular era a norma e os juros eram mera
usura. Como explicava Tomás de Aquino, ao contrário de um rebanho ou de
uma terra arrendada, o dinheiro não dava frutos.
Isso mudou um tanto de figura quando o
capitalismo deixou de ser um fenômeno marginal mais ou menos tolerado
para moldar a economia, a política e o pensamento. Teoria crítica à
parte, do ponto de vista do capitalista o dinheiro parece frutificar e a
perspectiva de crescimento justifica todo o sistema, a começar pelas
taxas de juro.
Dos séculos XVII ao XIX, não se divisavam limites ao
crescimento, pois a nova sociedade se expandia pela conquista de um
mundo ainda na maior parte pré-capitalista. Só no fim do século XX,
quando eram completadas a partilha da África e a submissão da China, a
questão começou a ser posta. “Penso nas estrelas que vemos à noite,
esses vastos mundos que jamais poderemos atingir. Eu anexaria os
planetas se pudesse. Entristece-me vê-los tão claramente e ao mesmo
tempo tão distantes”, lamentava o colonialista Cecil Rhodes em 1895.
Teóricos marxistas radicais, como Rosa
Luxemburgo e Vladimir Lenin, viram no fim das conquistas coloniais o
prenúncio da estagnação do crescimento e do fim do capitalismo, depois
do qual seria “socialismo ou barbárie”. Precipitaram-se, mas à sombra da
Primeira Guerra Mundial e das crises dos anos 1920 e 1930, tais teses
soavam plausíveis.
Foi preciso o choque da Segunda Guerra
Mundial e o desafio soviético para lançar um novo ciclo de crescimento,
baseado menos no crescimento físico do capital industrial e mais no
aumento intensivo de produtividade e consumo, graças à aplicação
sistemática da ciência à produção, ao crescimento demográfico e à
inclusão dos trabalhadores no consumo de lazer e bens duráveis,
transformando-os em “classe média” do ponto de vista do marketing. A
miragem do crescimento ilimitado tornou-se um dogma tão sólido quanto o
do Juízo Final na Idade Média e com as missões Apollo, até a aspiração
de anexar os planetas pareceu menos absurda.
O colapso da União Soviética, a conversão
parcial da China à economia de mercado e as privatizações dos anos 1990
reforçaram a ilusão e reabriram ao capital os poucos espaços que lhe
haviam sido negados e encorajou as elites a rasgar os pactos sociais dos
anos dourados.
As inovações da informática inspiraram a fé em um crescimento não só infinito, como cada vez mais rápido. Seus
apóstolos mais fervorosos profetizaram um crescimento de dez vezes no
valor das ações até 2020 (“Dow 100.000”), a quarta revolução industrial e
a “singularidade”, um salto inconcebível no desenvolvimento, a partir
dos anos 2030 ou 2040.
Em vez disso, a virada do milênio trouxe a austeridade e a asfixia do consumo e do investimento. Com expansão, o aumento do lucro e da concentração de renda que resulta da globalização não
implicaria empobrecimento absoluto dos trabalhadores, mas com
crescimento baixo, significa desemprego e salários mais baixos. O
“populismo”, o que em liberalês é sinônimo de qualquer tese alternativa
ao liberalismo, torna-se inescapável. E na falta de uma esquerda
radical consistente, só resta o populismo de direita.
Com a crise financeira, as nações ricas
atolaram-se no mesmo pântano de estagnação crônica no qual o Japão está
preso desde fins dos anos 1980. Ainda mais importante, a deterioração
ambiental, a mudança climática e a extinção em massa atingiram patamares
nos quais não podem mais ser ignorados.
Mesmo que os entraves sociais e
financeiros sejam superados, haverá o limite da biosfera. Sonhos como a
substituição total dos combustíveis fósseis por fontes renováveis de
energia e a reciclagem total de matérias-primas são necessários não para
o crescimento, mas para a construção de um caminho para a sobrevivência
para além de mais uma ou duas gerações. É preciso correr para ficar no
mesmo lugar.
O mundo econômico não é plano, mas é
finito e a beirada não está longe. Pode (ou deveria) haver espaço para
países pobres alcançar a qualidade de vida das nações mais afortunadas,
mas não para o crescimento ilimitado. Nessas condições, as expectativas
que sustentam a lógica do capitalismo liberal perdem a credibilidade.
Como justificar a própria existência dos
juros e os cálculos de valor presente sem expectativa de crescimento?
Hoje, o fato de a maioria dos países ricos ter juro básico real (e até
nominal) nulo ou negativo com inflação baixa é visto como uma anomalia
temporária, mas talvez seja apenas o novo normal. Anormal é esperar que,
nessas condições, a economia e a política continuem a funcionar como
antes.
Um mundo sem
crescimento é um mundo no qual se torna senso comum que só é possível
progredir (se não apenas sobreviver) à custa de outros. Podem-se esperar
pressões crescentes pela proteção de produtos, empregos e empresas
locais e para bloquear o movimento de imigrantes.
Sem a contribuição desses, torna-se ainda
mais difícil sustentar o que resta de Estado social, principalmente em
nações em vias de envelhecimento. Conflitos internacionais se tornarão
cada vez mais intensos e difíceis de moderar. A luta de classes torna-se
mais explícita e, eventualmente, servirá de pretexto a regimes mais
autoritários.
Os EUA, que nos anos 1940 tinham
interesse em liquidar o fascismo e desbloquear o crescimento mundial
para enfrentar o comunismo, agora são apenas uma potência a mais a tentar garantir o seu pirão primeiro. E mesmo que não fosse, também não tem resposta à questão ecológica.
Já vimos este filme antes, mas desta vez
a cavalaria está do outro lado e não adianta pedir socorro aos índios,
pois nem eles sabem como sobreviver em um mundo como este que estamos
criando. A tirada de Slavoj Zizek em 2011, “é mais fácil imaginar o fim
do mundo do que o fim do capitalismo”, deixa de se referir à ficção e
ganha conotações cada vez mais sinistras.
*Reportagem publicada originalmente na edição 924 de CartaCapital, com o título "A era da desglobalização"..
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