Mudanças propostas pela MP seguem diretrizes e práticas que já vêm sendo formuladas e testadas há tempo por grandes empresas. Por Passa Palavra
Parte I
No dia 23 de setembro, o presidente Michel Temer lançou a Medida Provisória 746/2016
com a chamada “reforma do ensino médio”. Ainda que passe a valer a
partir de sua publicação, a MP precisa ser aprovada pelo Congresso
Nacional em até 120 dias, e remete à definição de questões importantes,
como as discussões sobre as mudanças no currículo e a Base Nacional
Comum Curricular (BNCC), que devem se encerrar só em meados de 2017.
Embora as propostas da reforma estejam
sendo atribuídas ao governo de Michel Temer, é bom lembrar que no geral o
texto da MP pouco difere do Projeto de Lei 6.840/2013
que tramitava no Congresso desde 2013, sob o comando do deputado
petista Reginaldo Lopes (PT-MG). E que, desde sua campanha à reeleição, a
própria ex-presidente Dilma Roussef nunca escondeu que esse projeto
estava entre os objetivos do seu governo interrompido.
O foco nas disputas partidárias acaba
encobrindo os interesses que se movem à despeito do teatro político: os
interesses de grandes grupos empresariais. Os princípios que estruturam
tanto a MP de Temer quanto o PL petista estão em perfeita sintonia com a
costura política que o alto empresariado vem consensuando, nos
bastidores, para mudanças necessárias no âmbito educacional. Seus pontos
principais, assim como diversas iniciativas estaduais e municipais que
se difundem pelo país desde o início da década de 1990, na verdade, vêm
sendo arquitetados através de fóruns, seminários, comissões especiais em
câmaras legislativas e outros artifícios, junto a autoridades de
governo, tecnocratas do assunto, capitalistas do ramo educacional e
entidades do terceiro setor.
Reclamar que o maior problema da reforma
foi sua aplicação “antidemocrática” e “sem diálogo” – via MP – ainda
que possa ser um instrumento tático, foge à questão central, pois oculta
o interesse em acelerar as condições para o aumento da produtividade
dos trabalhadores no Brasil, com uma maior qualificação técnica. E
reinveste de ilusões instâncias participativas que de fato nunca
funcionaram, a não ser para endossar decisões tomadas a portas fechadas
ou construídas pela ação discreta de institutos e consultorias privadas – muitas vezes com a colaboração das burocracias dos movimentos sociais.
A atuação paralela das empresas
As mudanças propostas pela MP não
surgiram do nada. Na verdade, elas seguem diretrizes e práticas que já
vêm sendo formuladas e testadas há certo tempo pelas grandes empresas.
Vejamos alguns exemplos.
A
MP institui a “flexibilização” do ensino médio, estabelecendo que o
currículo passe a ser composto pela BNCC e por áreas diversificadas,
chamadas de “itinerários formativos específicos” (divididas em cinco
campos: linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas,
formação técnica profissional).
Ora, essa mesma proposta já vinha sendo
sugerida por grandes grupos empresariais, com base na tese de que o
currículo atual seria “pouco atrativo” aos estudantes, aumentando os
índices de evasão e prejudicando a qualidade do ensino – medida pelas
avaliações gerais e rankings elaborados a partir das notas alcançadas
nessas provas. Em 2015, “a Fundação Carlos Chagas, a pedido da Fundação Victor Civita, apoiada pelo Instituto Unibanco, Fundação Itaú Social, Itaú BBA e Instituto Península” analisou as “políticas curriculares de Ensino Médio
dos 27 estados brasileiros”, apontando como solução sua reformulação,
para “permitir que os jovens escolham, a partir de um leque de opções, o
percurso que mais se adeque às suas características pessoais, vocações e
projetos de vida”. Este ano, uma pesquisa semelhante foi feita pelo
Instituto Unibanco, Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e o Movimento pela Base (grupo de empresários que formula a BNCC) a respeito da “distribuição dos tempos por áreas e componentes curriculares”.
Propunha-se a criação de uma “hierarquia entre as disciplinas,
preservando ao máximo o tempo de Língua Portuguesa e Matemática,
exigindo uma maior integração entre as disciplinas”, tendo “um núcleo
comum, enquanto outras seriam eletivas, permitindo a flexibilização do
currículo e contemplando a possibilidade de escolha pelos estudantes” [1]. E foi o Consed, em constante diálogo com esse setor empresarial, quem propôs ao MEC a flexibilização do currículo.
Outro
ponto que a MP implementa são as escolas de tempo integral, que aumenta
a carga horária escolar para 7 horas por dia. Esse modelo já vem sendo
posto em prática em várias regiões do país há algum tempo, encabeçado
por empresas. É o caso, novamente, da Fundação Itaú Social e o Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária), que trabalham, entre outras áreas, com “assessoria e apoio técnico
para a implantação de políticas públicas de educação integral, com foco
na formação de profissionais”. Os dois grupos também assessoram a
articulação de “redes de educação integral” entre as secretarias e as
organizações da sociedade civil, para que atuem de forma conjunta na
implementação dessas escolas. O projeto já conta com a participação de 7
secretarias de educação; 155 escolas municipais e redes integradas em
São Luís do Maranhão e Várzea Grande, no Mato Grosso [2]. Essa frente também é explorada pela parceria entre o Instituto de Co-Responsabilidade pela Educação (ICE) e o Instituto Natura, que implementou o modelo em Sobral, no Ceará,
e Bezerros, em Pernambuco. Desde 2012, o Instituto Natura “é parceiro
no Programa de Ensino Integral de São Paulo, presente em 69 escolas de
ensino fundamental e médio”, além de apoiar o Centro de Referência em Educação Integral,
“que tem o objetivo de colaborar gratuitamente com gestores públicos,
escolas e agentes comunitários que pretendem ou já estão desenvolvendo
programas nessa área”. Já o presidente do ICE, o engenheiro Marcos
Magalhães, adaptou a Tecnologia Empresarial da Odebrecht (TEO) para a educação: a Tecnologia Empresarial Socioeducacional (TESE) [3]
e implementou seu projeto pioneiro na escola Ginásio Pernambuco, que
serviu de modelo para mais de 300 escolas nesse e em outros estados,
como o Maranhão.
“Em todos os países onde foi necessário realizar uma transformação educacional e ela foi feita com sucesso, essa tarefa foi consequência de uma junção entre os poderes público e privado. O empresário tem que perceber o que ele pode fazer para ajudar. É o que chamo de fazer para influir, (…) Nosso papel é chamar o governo para avançar com um mesmo programa.” (Marcos Magalhães, presidente do ICE)
Outra mudança prevista pela MP é a
contratação de profissionais com “notório saber” – isto é, sem o diploma
da licenciatura – para lecionarem na formação técnica profissional. Por
um lado, abre caminho para que profissionais de outras áreas –
bacharéis de diversas áreas, sem licenciatura, e profissionais com
experiência de trabalho em determinadas áreas – deem aulas para garantir
os “itinerários formativos”. Isso asseguraria tanto uma maior interação
com o mercado, quanto supriria a demanda de professores em áreas em que
há poucos profissionais. Por outro lado, pode tratar-se de regulamentar
o que já acontece nas escolas que utilizam professores que ainda não
concluíram a faculdade, ou que são licenciados em áreas diferentes das
que dão aulas. Não se trata aqui de defender uma reserva de mercado dos
atuais professores, mas de compreender as novas dinâmicas estabelecidas,
sendo possível vislumbrar a ampla gama de empresas (que já existem e
certamente surgirão) especializadas em formação rápida e prática para
atuar em sala de aula, como é o caso da recém criada rede “Ensina Brasil”, parceria entre a Fundação Lemann, Instituto Península, Itaú Social, Fundação Estudar e Bain & Company.
Essa perspectiva de uma formação mais prática é o que também move as
possíveis mudanças futuras nos cursos de licenciatura, que já haviam
sido anunciadas pelo ex-ministro da Educação Aloizio Mercadante.
Diante deste cercamento tático feito
pelas empresas, que antecipam proposições e experiências práticas, a
crítica centrada na forma de encaminhamento da reforma é limitada e, não
por acaso, vai ao encontro da posição tomada por parte de
personalidades e entidades representativas do próprio empresariado. O já
citado Movimento Todos Pela Educação – maior think tank de organizações privadas da área no Brasil, financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), e que conglomera grupos como a Samsung, Instituto Natura, Itaú BBA e Fundação Telefônica, entre muitos outros –, em nota,
foi categórico ao repudiar a maneira pela qual a reforma, que ele mesmo
concebeu, foi iniciada com a publicação da MP, para em seguida
reafirmar seu alinhamento com o conteúdo. No mesmo sentido foi a declaração de Neca Setúbal, presidente do conselho do Cenpec e herdeira do Banco Itaú.
É, então, para o horizonte estratégico
dos capitalistas com essa Reforma Empresarial, muito mais ampla que os
termos da MP, que devemos olhar.
Notas
[1] Ver aqui.
[2] O documento que fundamenta a proposta do Itaú
Social sobre as escolas integrais, formulado em parceria com o Movimento
Todos Pela Educação, pode ser visto aqui.
[3] Veja detalhes sobre a TEO nas escolas no zine sobre a privatização do ensino.
Parte II
Para além da eficácia econômica, um
dos horizontes estratégicos da Reforma do Ensino consiste na construção
de um mecanismo de estabilização política que seja inerente à própria
dinâmica dos mercados. Por Passa Palavra
Os três eixos da Reforma Empresarial do Ensino Médio
Um olhar sobre os documentos e as
discussões que cercam o tema da educação no Brasil indica que a Reforma
Empresarial, de forma esquemática, caminha estruturando-se em 3 eixos
essenciais:
1) Estreitar o controle das empresas sobre os espaços formativos da
força de trabalho, ajustando as aptidões desenvolvidas no período
escolar às demandas contemporâneas do mundo produtivo;
2) Desbravar e estabelecer as regras de
novos segmentos de mercado, fazendo adequações legais para formalizar a
atuação de empresas de pequeno, médio ou grande porte nos diferentes
tipos de negócios que se abrirão em torno de serviços e infraestruturas
para os sistemas públicos de educação;
3) Avançar técnicas organizacionais e
disciplinares para dentro dos processos educativos, tanto no que toca
aos alunos quanto os trabalhadores do setor, tomando a própria dinâmica
concorrencial dos mercados como instrumento e finalidade de uma nova
construção política.
1. O estreitamento da relação do ensino com o “mundo produtivo”
Dias antes de publicar a MP, o Ministro da Educação enviou à Temer um documento apresentando a necessidade de alterar a estrutura curricular do Ensino Médio, de forma a torná-la mais compatível com as necessidades do “setor produtivo” e com as “demandas do século XXI”.
O
argumento é que os altos índices de evasão e os péssimos resultados
obtidos pelo ensino médio estão ligados ao descompasso entre aquilo que o
currículo atual (“extenso, superficial e fragmentado”) oferece e os
anseios da juventude. Verificando que o número de jovens que concluem a
fase escolar mas não ingressam no mundo do trabalho aumentou de 13,6%
para 20% entre 2011 e 2016, o documento propõe um novo modelo de ensino
médio, capaz de oferecer “opções de aprofundamento nas áreas do
conhecimento, cursos de qualificação, estágio e ensino técnico
profissional de acordo com as disponibilidade de cada sistema de ensino,
o que alinha as premissas da presente proposta às recomendações do
Banco Mundial e do Fundo das Nações Unidas para Infância (Unicef)”.
Que recomendações são essas? Em junho deste ano, o Banco Mundial (BM) lançou um relatório com diretrizes para a retomada do crescimento no Brasil,
no qual avalia que o déficit de capacitação da força de trabalho no
país seria um dos principais entraves econômicos a ser superado, apesar
de considerar progressos recentes no acesso à educação. Conforme explica
uma notícia sobre o documento:
“Essa deficiência está refletida no declínio gradual da capacidade
industrial, na pequena participação dos produtos de alta tecnologia em
suas exportações, na tendência de criação de empregos em serviços de
baixa produtividade, como bufês e trabalho doméstico”.
Segundo o estudo do BM, “com a queda no preço das commodities,
ficou claro que os fatores para a redução da pobreza e o
compartilhamento da prosperidade ligados ao mercado de trabalho não
podem ser sustentados sem aumento na produtividade e nos investimentos”.
Entretanto, as desigualdades nos resultados da educação entre estados
com condições socioeconômicas similares sugerem a existência de bastante
espaço para que “políticas públicas e boa gestão façam uma diferença e
para que os governos subnacionais aprendam com os demais”. Nesse
sentido, o órgão recomenda que uma boa saída seria:
“Desenvolver instituições e processos com foco na qualidade da prestação dos serviços públicos, bem como estimular a prestação de serviços pelo setor privado (por exemplo, por meio de PPPs [Parcerias Público-Privadas] e investimentos diretos locais e estrangeiros), acompanhados pela implementação mais sistemática de uma gestão baseada em resultados e uma formulação de políticas baseada em evidências. Por meio do aumento da eficiência e da redução da desigualdade no acesso à educação e à saúde, atraindo recursos privados no âmbito de um arcabouço robusto de garantia de qualidade.”
Tal como diagnosticado em artigo publicado neste site em 2011,
numa era de transnacionalização do capital, a economia brasileira seria
incapaz de absorver e se beneficiar dos avanços tecnológicos
razoavelmente vigorosos obtidos nos últimos anos se não encontrasse
soluções para a precariedade do ensino básico no país e para a
consequente falta de pessoal qualificado para lidar com as inovações,
“confinando o desenvolvimento da produtividade a um pequeno número de
estabelecimentos e deixando o resto da economia em estagnação”. A longo
prazo, avaliou o autor, as falhas de infraestruturas conjugadas ao
déficit escolar poderiam causar estrangulamentos na produtividade, o que
iria exigir grandes intervenções coordenadas, para além de ações
pontuais realizadas por iniciativas de cada empresa.
Ao estender a carga horária dos alunos, a
proposta de ensino integral busca responder a esta questão fazendo com
que o adolescente passe mais tempo nos estabelecimentos escolares do que
na rua ou com a família. O objetivo é diminuir a defasagem formativa e o
grau de incerteza nesta etapa de produção da força de trabalho, já que
uma boa parte do tempo deste processo irá passar a ocorrer no interior
de instituições especializadas e permeadas por rigorosos sistemas de
monitoramento e gerenciamento de resultados, como veremos adiante.
Nessa linha, as pesquisas em que se
apoiam os atores empresariais entusiastas da reforma apontam, de maneira
geral, que seu objetivo está voltado não apenas para a promoção de um
salto quantitativo, mas de uma completa adequação a qualidades
requeridas pelos “novos tempos”. As habilidades e competências
reclamadas pelos empregadores dizem respeito a raciocínios lógicos,
matemáticos e comunicativos dos mais elementares, como: interpretação e
redação de textos simples (e-mail, por exemplo); cálculo de trocos no
caixa, porcentagem de descontos e comissões; tratativas com clientes
etc. Mas o que se enfatiza bastante é a necessidade de o aluno formado
estar apto a esquematizar problemas e propor alternativas, isto é, não
apenas dominar tecnicamente diferentes habilidades, mas, estando diante
de situações-problema reais, saber conjugá-las e engajar-se na busca por
soluções.
Nas palavras de Neca Setúbal,
as “atitudes contemporâneas” esperadas de um jovem em formação podem
ser resumidas nos seguintes quesitos: “Ser criativo, buscar a solução de
problemas e aprender a aprender; Garantir a alfabetização digital para
que mais pessoas possam usar as novas ferramentas; Exercer cidadania e
ser socialmente responsável; Aprimorar a colaboração e a comunicação no
trabalho”. Isso implica que o professor esteja engajado em buscar
atualizações constantes, tenha domínio das novas tecnologias e
empenhe-se no desenvolvimento de técnicas pedagógicas para aplicá-las no
dia-a-dia.
A MP considera a possibilidade da
formação técnica ou profissional ser feita a partir de “experiência
prática de trabalho” ou em “ambientes de simulação”, para os quais prevê
o estabelecimento de parcerias com a iniciativa privada. Porém, a
possibilidade de o aluno cursar outro itinerário formativo é bem evasiva
no documento, e fica condicionada à “disponibilidade de vagas na rede”.
Nesse esforço de aproximação com o mundo
produtivo, o documento considera até casos de concessão de certificados
intermediários de qualificação, já prevendo situações em que o
estudante não conclua o ciclo, mas ingresse no mercado de trabalho mesmo
que com alguma habilidade apenas parcial. Pesquisas como a da Fundação Lemman
(na qual se fundamenta, por exemplo, o Movimento Todos Pela Educação)
nos mostram que os esforços dos grupos empresariais apontam para a
elaboração de currículos mais adequados às situações práticas e
geralmente instáveis do mercado de trabalho, ao invés do modelo atual
dos currículos, tido como “enciclopédico” e generalista demais. É esta a
linha de ação de uma das principais consultorias especializadas atuantes no setor, a McKinsey:
“Muitos dos trabalhadores de hoje, depois de terem experimentado a dor da recessão econômica e de demissões em grande escala, já não sentem tanta lealdade e compromisso com as suas organizações, como fizeram até uma década atrás. A inconstância de emprego [job hopping] tem sido descrita como o ‘novo normal’, e é esperado que a geração do milênio realize de 15 a 20 posições ao longo de sua vida profissional. (…) Para combater estes problemas, é mais importante do que nunca, para as empresas em transição, investir tempo e esforço na mudança de mentalidades e comportamentos da força de trabalho.”
No caso, parece estarmos diante da
exigência de um jovem-trabalhador que, embora comporte capacidades
cognitivas mais estritamente antenadas com práticas concretas do
mercado, seja também socialmente receptivo à constante instabilidade do
trabalho flexível. E, assim, a grande margem de autonomia repassada às
redes e sistemas locais de ensino entra em sintonia com o objetivo de
tornar os processos educativos mais reativos a estes sinais. Então é de
se questionar se o novo modelo será mesmo capaz de atenuar as
disparidades regionais e sócio-econômicas, como alega, ou apenas
aprofundá-las, já que o socorro financeiro fica dependente do interesse
de entidades do entorno firmarem as tais parcerias e definirem os
“itinerários” a oferecer. Não nos parece fora da realidade, portanto, as
estimativas de que a Reforma reitere a estrutura estratificada de
ensino, que vai desde alguns centros de excelência mais integrados aos
pólos produtivos avançados até espaços preparados para a contenção da
mão-de-obra de menor qualificação cujo lugar reservado é o da
precariedade.
Em qualquer um dos casos, não podemos
perder de vista que “qualificação” aqui está sendo entendida de um ponto
de vista capitalista, isto é, como capacidade da força de trabalho
sujeitar-se física e subjetivamente às tarefas do capital.
2. A expansão de mercados da educação
De diversas maneiras, o pacote de
intervenções anunciado com a MP dá incentivos e a armadura legal para
que a atividade escolar seja segmentada em diversos nichos de mercado.
Nesse aspecto, formaliza práticas que já ocorrem em muitas experiências
localizadas.
A
MP institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino
Médio em Tempo Integral e, para tanto, prevê o repasse de recursos do
Ministério da Educação para os estados. Esse repasse de recursos, no
entanto, é provisório (prazo máximo de 4 anos) e se presta a dar apenas o
impulso inicial às escolas que optem por implementar o regime integral,
o que inclui: formação de pessoal; aquisição, manutenção e construção
de instalações e equipamentos; contratação de empresas terceirizadas
para serviços operacionais; aquisição de material didático e elaboração
de sistemas de avaliação por entidades externas. A transferência deve
ser feita com base no número de alunos por unidade escolar, mas o
documento não dá garantias nem especifica a quantia a ser destinada,
simplesmente condicionando-a à “disponibilidade orçamentária para
atendimento”.
De forma extra-oficial, Temer prometeu destinar às redes estaduais uma verba suplementar de 2 mil reais por aluno em tempo integral. De todo modo, segundo informações da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação, ainda que esse repasse estivesse garantido, ele seria menor do que hoje é praticado pelo Fundeb [4] no investimento per capita (por aluno), que no ano de 2016 foi pouco acima de 3,5 mil reais.
De acordo com Fred Amancio, secretário de Educação de Pernambuco, estado que desde 2001 adota o modelo das escolas charters,
tendo alcançado já 50% das unidades, “o custo do programa é fortemente
impactado por merenda e pelo gasto com gratificação, para garantir
dedicação exclusiva do professor na escola’, diz ele.” Por esse motivo, o
montante do orçamento estadual destinado à pasta de educação precisou
passar de 25% para 27%.
Mas não parece ser esse o caso no âmbito nacional. Tendo em mente a recente aprovação em 1º turno da PEC 241/2016,
que diminui progressivamente os gastos governamentais com saúde e
educação em relação ao PIB, é legítimo perguntar de onde virão os
investimentos à altura do aumento das metas e resultados requeridos da
educação. Afinal, como lembrou Dirce Zan, Diretora da Escola de Educação da Unicamp:
“A educação de tempo integral pressupõe professores que possam estar lá pra desenvolver atividades outras que a sala de aula, como oficinas, laboratórios, pesquisas. Precisa ter diversificação das atividades. Não dá para fazer tudo em sala de aula. Aí não é educação de tempo integral, é massacre”.
Portanto, é uma premissa do projeto que,
após o período de 4 anos de aporte financeiro do MEC, as parcerias
público-privadas apareçam como saída evidente para cobrir o aumento de
despesas, podendo assumir diferentes feições em cada rede de ensino
(charters, OS, ensino médio
integrado com o técnico, parcerias com grandes institutos etc.). Da
mesma forma, a articulação da escola com equipamentos e serviços do
entorno vai virar imprescindível para suprir o baixo investimento,
intensificando a integração entre escolas e empresas na formação dos
novos trabalhadores.
Assim, aliado à aproximação do ensino
médio com as demandas do mercado de trabalho, a MP opera adequações
legais e confere impulso financeiro inicial para que se expandam novos
segmentos de mercado em torno de diversos serviços ligados à atividade
escolar. Segundo o documento, os sistemas de ensino poderão reconhecer
como cumprimento de exigências curriculares experiências de trabalho
supervisionado, atividades de educação técnica realizadas em outras
instituições; cursos e estudos oferecidos por centros e institutos
parceiros, incluindo ensino à distância. Já aqui, temos um amparo legal
para que se multipliquem negócios em torno da comprovação de carga
horária, por exemplo, abrindo espaço para a proliferação de “fábricas de certificados”, algo muito parecido com o que já ocorre no ensino superior e a lógica de pontuação do Curriculum Lattes.
José
Renato Nalini, secretário da Educação de São Paulo, é bastante claro ao
afirmar que irá adotar o modelo do Programa de Ensino Integral, que
teve como laboratório a Escola Alves Cruz, da Zona Oeste da capital, em
parceria com a Fundação Itaú Social. Já sobre a infraestrutura para
subsidiar a expansão, o secretário diz que poderá usar espaços de escolas privadas, do Sistema S [5] ou, como ele mesmo diz: “vamos aproveitar tudo”.
Com a MP, também passam a ser
considerados aptos ao exercício docente nos cursos de formação técnica,
não apenas professores em algum nível habilitados ou portadores de
diplomas, mas profissionais com “notório saber”, para dar aulas com
conteúdos afins à sua formação original. A noção vaga sobre o que vem a
ser “notório saber” desperta uma larga discussão por parte da esquerda,
mas, infelizmente, as críticas têm sido feitas de um ponto de vista
romântico ou meramente corporativo. De um lado, argumenta-se que a não
obrigatoriedade do diploma deverá comprometer a “qualidade” do ensino
porque será realizado por profissionais sem licenciatura; de outro, que
ela viola a exclusividade de contratação dos profissionais devidamente
representados pelas entidades corporativas. É no mínimo curioso ver boa
parte da esquerda que exalta os “saberes alternativos” e questiona o
cientificismo sair agora em defesa do diploma acadêmico, além de se
esquecer que esta crítica talvez não tenha apelo para a enorme massa de
estagiários, auxiliares e professores eventuais ou substitutos sem licenciatura
que já atuam efetivamente como profissionais nas redes de ensino e
outros que certamente verão nessa abertura a possibilidade de
complementar a sua renda com serviços eventualmente prestados às
escolas.
Mas é certo que as medidas em curso não
se destinam a superar estas questões, senão fragilizar a autonomia e
quebrar os marcos de proteção da carreira docente, adensando o ambiente
de rivalidade e ameaças recíprocas em que já se encontra. A lei de
estabilidade do funcionalismo público, segundo Marconi Perillo, governador de Goiás,
um dos estados mais avançados no processo de terceirização da educação,
é a “coisa mais imbecil e mais burra que existe, (…) na minha opinião
não pode haver estabilidade no emprego e as OSs impedem isso”.
A oficialização para que parcerias deste
tipo contratem professores segundo critérios próprios tende a aumentar
consideravelmente o volume da oferta de profissionais em relação à
demanda e, assim, empurrar para baixo a base salarial da categoria. Além
de firmar o terreno para alavancar as “coopergatos”
de professores e o “mercado das certificações”, que já contam com
iniciativas empresariais ávidas e à espreita, já que também fica a cargo
das redes estaduais e municipais definirem e regulamentarem o que é que
vai ser reconhecido como “notório saber”. Essas cooperativas tendem a
ser reforçadas pela proposta dos itinerários formativos. Uma vez que se
oferecerão cursos mais especializados, é provável que as escolas não
tenham profissionais aptos a ministrar essas aulas diferenciadas, com
isso as cooperativas podem se especializar em um ou outro itinerário, e
oferecer esse serviço para diversas escolas. Esta atividade estará
amparada pela MP e também pelo PL/4330, que permitirá a terceirização da
atividade-fim, ou seja, as escolas poderão terceirizar as aulas. Estes
trabalhadores não serão considerados professores e por isso não estarão
inclusos nos acordos coletivos, o que significa que o cooperativado não
terá trabalho durante dois meses por ano, relativos às férias escolares,
e consequentemente não terá salário.
As instituições de ensino, portanto, se
tornam verdadeiras unidades econômicas articuladoras de mercados de bens
ou serviços diretamente ligados ou conexos à atividade escolar: uma
teia que pode mobilizar interesses não apenas de gigantes capitalistas
do setor (grandes sistemas de ensino, de formação de professores, de
oferecimento de materiais didáticos, equipamentos tecnológicos etc.) mas
mesmo pequenos e médios comerciantes da comunidade em que estiverem
localizadas. Sobre isso, é instrutivo o relato de Danilo de Melo Souza,
que em 2010 ocupava o cargo de secretário de Educação da rede municipal
de Palmas, capital do Tocantins, sobre a ampliação das escolas de tempo
integral naquele município:
“A merenda escolar é um exemplo disso (…) Quando você descentraliza esse tipo de gasto nas escolas, todos os açougues perto da escola, por exemplo, que estiverem em plenas condições sanitárias de fornecer produtos, vão querer vendê-los, e o preço tende a baixar significativamente. Temos percebido isso com relação a vários tipos de produtos e serviços”.
Como se pode prever, a articulação de
mercados no entorno de uma unidade escolar caminha para dificultar as
possibilidades de uma mobilização ou paralisação contestatória nesse
espaço, pois passa a envolver uma miríade, mais densa e complicada, de
interesses contrários a qualquer subversão da ordem estabelecida. Para
além da eficácia econômica, é possível vislumbrar, portanto, que um dos
horizontes estratégicos da Reforma do Ensino consiste na construção de
um mecanismo de estabilização política que seja inerente à própria
dinâmica dos mercados.
3. O adensamento dos mercados como reforço do controle capitalista
O
crescimento dos mercados na educação não significa a diminuição do
Estado, mas o reforço de um outro. Afinal, ao lado do tradicional poder
estatal, as empresas capitalistas são também aparelhos de dominação
capazes de impactar todo o tecido social, tendo em vista que demarcam as
condições de vida dos trabalhadores dentro e fora do espaço laboral.
Tratam-se, assim, de aparelhos de poder complementares, que subordinam,
desorganizam e fragmentam os trabalhadores.
O objetivo das modificações previstas
pela Reforma não é apenas ajustar as instituições escolares às demandas
econômicas do mercado de trabalho ou remontar as práticas de ensino sob a
forma de mercados variados. A nosso ver, ela atende também a uma
necessidade de caráter político, inseparável de seus objetivos mais
acentuadamente econômicos.
A propagação de um sem-número de
técnicas de acompanhamento contínuo, avaliação e gestão padronizadas dos
resultados, efetivados pela atuação de experts e consultorias
especializadas como a McKinsey, se converteu no principal instrumento
por meio do qual os organismos empresariais puderam incutir nos
processos de trabalho as regras formais de concorrência, de modo a
agravar o problema da fragmentação. Pois o sistema organizacional que se
pretende instalar atinge seus objetivos quando consegue individualizar
as responsabilidades nos ambientes laborais, solicitando de cada
trabalhador muito mais do que a mera disponibilidade temporária do uso
de suas energias, mas o engajamento integral, que abarca todas as
dimensões de sua vida.
Consequentemente, a ação continuada dos
métodos usados pelos novos programas empresariais de gestão não se
limita à imposição de ordens e procedimentos vindos de cima para baixo,
mas incita processos de internalização da lógica concorrencial por parte
dos próprios trabalhadores. No caso escolar, gratificações
individualizadas e rigorosa cobrança por resultados moldam um “perfil
diferenciado de professores”, garantindo que eles participem ativamente
dos projetos pedagógicos.
O princípio básico desse engajamento
fica patente na fala do político ligado ao PCdoB, Ney Campello: corrosão
da estabilidade e de formas de ação coletiva no espaço de trabalho. No
mesmo evento em que o governador de Goiás discursava para líderes
empresariais em novembro do ano passado, o ex-superintendente de educação do governo Dilma afirmou:
“Não consigo ver a educação avançando com sindicatos agressivos e essa coisa de professor pedir licença para tudo a qualquer hora. Vou conseguir chegar a uma melhoria na medida em que o mau professor ou professor relapso, ou professor que não cumpre suas metas, possam ser desligados. Só no fato de a gente quebrar a espinha da contratação, de definir metas claras, será uma outra coisa. Mas não pode haver aumento de gastos em relação ao modelo antigo, senão não vale a pena.”
Com a dissolução das bases de
solidariedade, a colaboração com os novos métodos organizacionais se
prolonga para a própria conduta do professor, confrontado com a
necessidade de apresentar resultados individuais. Relatos de
experimentos em escolas de período integral, administradas por parcerias
público-privadas e com critérios próprios de contratação, dão conta de
que os professores admitidos “comprometem-se a fazer ‘o que for
necessário’ para que o aluno aprenda”. Qualquer modalidade de proteção
social passa a ser condenada como empecilho a que os trabalhadores
empenhem-se mais e assumam suas responsabilidades, assim como formas de
ação coletiva são repelidas por oporem obstáculos a maior eficiência do
sistema. Nas palavras de uma professora da experiência pernambucana
que passou pelas etapas de seleção e “conseguiu se adaptar ao ritmo de
trabalho”: “Aqui não fazemos greve. O professor só falta se realmente
for caso de extrema necessidade”.
A
abertura para a contratação de professores com “notório saber” caminha
neste exato sentido, pois aposta na ideia de que o profissional com
bagagens práticas no mercado de trabalho carrega melhores competências e
disposição ao intenso ritmo de trabalho que se pretende implementar.
Acredita-se que assim se consiga “atrair quadros docentes” com o perfil
mais ajustado e selecionado pela implacável provação do mercado. Mas
como uma boa carta na manga, talvez nem precise ser implementada para
funcionar como instrumento de coação. A simples ameaça de efetivá-la
conduz o atual quadro de docentes a se envolver ativamente no novo
regime de trabalho, sob o receio de que sua área de atuação seja
inundada por novos profissionais dispostos a tudo.
O acirramento das relações competitivas
entre professores, e mesmo entre gestores das unidades, é consagrado
pelas formas personalizadas de gratificação, que distribuem
seletivamente os recursos em função do desempenho de cada um. Somadas,
estas bonificações chegam a compôr uma proporção muito elevada em
relação ao salário-base da categoria – isso, é claro, entre as escolas e
os docentes que conseguem bater as metas estipuladas. A corrida cega
pela pontuação não visa outra coisa senão fazer os interesses
individuais esmagarem os antigos laços de solidariedade e minarem toda
possibilidade de atuação coletiva. Para isso, as novas tecnologias
gerenciais envolvem gestores das unidades, a comunidade e os próprios
alunos na execução do monitoramento e na prestação de contas do
professor, ao ponto de implicar a todos no acompanhamento e na delação
do que é ou não ministrado em sala de aula.
Conforme relata a professora do caso
modelo de Pernambuco: “Nós temos definido os conteúdos e o tempo em que
devem ser ensinados. Temos um contrato didático com estudantes, que
cobram mesmo, na medida em que também são muito cobrados”. Essas são
ferramentas já bastante aplicadas em quase todas as redes de ensino e
têm produzido efeitos devastadores na capacidade de mobilização da
categoria – que em São Paulo, em março deste ano, numa enquete interna
que a Secretaria Estadual de Educação realizou por sistema eletrônico, optou por imensa maioria (92%) pelo pagamento do bônus por mérito para alguns, ao invés do reajuste salarial que beneficiaria o conjunto do professorado.
A gestão a partir de resultados tende a
fazer com que todo professor, com algum instinto de autopreservação,
foque boa parte de sua atenção no aumento de suas taxas de rendimento
nas avaliações padronizadas. E, assim, o controle sobre sua atividade
dispensa a utilização de artifícios diretos de coerção ideológica, já
que, perante a sensação de isolamento e a internalização da
responsabilidade, o comportamento dele esperado pode ser mobilizado por
sua própria iniciativa.
Notas
[4] O Fundeb é o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação.
[5] “Sistema S”
é o nome dado ao conjunto de órgãos das entidades patronais voltados à
formação profissional e assistência social, como SESI, SENAI, SESC etc.
Parte III
Como encetar movimentos contrários a
uma proposta que se apresenta enquanto reforma de um cenário onde nada
parece possível de ficar pior do que já é? Por Passa Palavra
É também movido por esse discurso sobre a
possibilidade de fazer escolhas que o ideário empresarial chega aos
estudantes. Ao contrário do tom uniformizante e indiferente às
particularidades concretas do aluno, típico das escolas tradicionais, o
palavreado da reforma empresarial se fundamenta na liberdade do jovem
para traçar seus “projetos de vida”. O slogan, abundantemente repetido,
“tornar a escola mais atrativa e significativa para o aluno” põe a
tônica na diferenciação e não na homogenização, concebendo o jovem como
alguém portador de personalidade e interesses próprios, dono de seus
próprios estilos, vontades e juízos morais. Isso permite aos
reformadores empresariais aproveitarem-se da própria energia de
contestação dos estudantes como impulso para alavancar suas propostas.
Quando questionado sobre a possibilidade de haver resistência dos estudantes na implementação do novo modelo, o secretário da Educação de São Paulo afirmou:
“Acredito que é alguma coisa em benefício do jovem, que é aquele que
queria ser ouvido. Não há motivo (para ocupação) porque essa medida é
justamente uma resposta ao que eles queriam”.
A apologia do jovem com poder de escolha
e no centro do processo constitui uma ideia-motriz da nova gestão. É no
estímulo a gestos de vontade, participação e afirmação de preferências
culturais, que se inicia cada vez mais precocemente o adolescente como
agente econômico. Ao transferir para o jovem a responsabilidade de
traçar metas que deverão marcá-lo por toda a vida, tem-se em vista
antecipar a sua inserção como parte da população economicamente ativa,
dotando-o de ímpeto criativo e competidor, ao expô-lo a situações
sociais que envolvem riscos e escolhas em função de suas próprias
aspirações.
Esse tipo de estímulo, junto com a
flexibilização dos conteúdos, é a forma utilizada pelos capitalistas
para tentar recuperar as lutas das ocupações de escolas que ocorreram e
estão ocorrendo em diversos estados do país, nas quais os alunos
demonstraram capacidade de gestão escolar e de reformulação das grades e
conteúdos disciplinares. É esse engajamento que os gestores esperam
desenvolver com os alunos, claro que sem a radicalidade praticada nas
ocupações. Esvazia-se o caráter coletivo e ativo da luta, mantendo-se
apenas as capacidades de tomadas de decisão individual sobre seus
itinerários formativos, apropriando-se de uma característica que se
mostrou transformadora para torná-la mais adequada aos interesses de
formação de uma força de trabalho mais produtiva.
Por isso o ideário da escolha vem
acompanhado dos conceitos de capital humano e de empreendedorismo, e já
são quase uma banalidade casos em que projetos turbinados pelo
empresariado difundem explicitamente essas mistificações no espaço
escolar (atente-se principalmente para as iniciativas da Fundação Telefônica Vivo e da Impact Hub,
presentes em pelo menos 5 ETECs paulistas e mais 8 estados
brasileiros). O aluno aparece, o quanto antes, como portador de seu
próprio capital, e seu desenvolvimento se torna objeto de análises e
medições de todo tipo de observatórios,
na mesma medida em que toda sua experiência de vida se converte em
recurso econômico investido na constituição de seu próprio capital. As
fronteiras entre a etapa formativa e a vida produtiva tendem a se
confundir, o que é oficializado pelos pontos da MP que estimulam a
“experiência de trabalho” ou os “ambientes de simulação” como
ingredientes do currículo.
Assim como é feito com os professores, programas de estímulo individual para alunos que se destacam são pilares nas experiências avançadas,
e inclui desde ofertas a maiores possibilidade de estágios, nomeação
para cargos de monitoria, até premiações com passeios e viagens. O que
aparece como “valorização” no palavreado empresarial é, antes de tudo,
uma técnica política que acena com esquemas de premiação para incitar a
rivalidade e o rankeamento entre os estudantes. A própria forma
organizacional instituída pelo processo educativo acaba por ensinar que
a concorrência com seus pares é a única forma de relacionamento
possível com o resto da sociedade, o que é posto em prática não somente
através dos conteúdos, mas principalmente pela exposição precoce aos
ambientes competitivos, considerados cada vez mais como espaços
geradores de valor.
Que sentido dar a construção dessa luta?
Quando alertamos que os princípios da
concorrência se instalam em cada minúcia do cotidiano escolar, não o
fazemos por lamentar o suposto declínio do poder estatal perante a
arbitrariedade dos mercados, mas para denunciar o fortalecimento de uma
outra estrutura de governo, um inimigo que cresce às sombras e que agora
reivindica a seu poder de interferência sobre toda extensão dos
processos formativos da força de trabalho. Trata-se de contribuir com as
iniciativas de luta chamando a atenção para este dado estratégico
trazido pela Reforma: o centro de decisão sobre os assuntos educacionais
está sendo definitivamente transferido do aparelho de Estado
tradicional para o comando direto dos grandes grupos econômicos.
Mas como encetar movimentos contrários a
uma proposta que se apresenta enquanto reforma de um cenário onde nada
parece possível de ficar pior do que já é?
Na
luta do ano passado contra o projeto de reorganização do ensino em São
Paulo, estávamos diante de uma etapa que afetava visivelmente o
cotidiano de grande parte de alunos e professores que teriam suas
escolas fechadas ou seriam obrigados a mudar o seu local de estudo e
trabalho por conta da nova divisão de ciclos que o governo insistia em
promover. Diante de uma mudança concreta, a mobilização foi grande e
conseguiu impor o recuo temporário ao governador. Obviamente que a
flexibilização do ensino médio e os vários outros pontos que a MP
institui também afetarão e modificarão completamente a dinâmica escolar.
O ponto é que essa é uma medida com avanços de metas bem graduais, que
para incidir concretamente na realidade das pessoas poderão passar ainda
por um período arrastado de implementação. Se a MP for sancionada,
ainda será preciso esperar a discussão da Base Nacional Comum Curricular
(BNCC), por exemplo, que deve se encerrar no meio do ano que vem e só
depois disso, talvez para o início de 2018, é que a transformação do
novo currículo será sentida diretamente por alunos, pais e professores.
Se fôssemos perguntar para os estudantes
do ensino médio se eles preferem escolher quais disciplinas cursar e
enfatizar suas áreas de interesse, é possível que a grande maioria
respondesse positivamente à essa flexibilização do currículo. Ou seja, a
reforma põe já de saída uma cisão, colocando em campos opostos os que
optam pela mudança e os que… preferem continuar tal como está? Será?
Então, qual sentido daremos a construção dessa luta? Como ampliar nossa
mobilização?
Tentando contribuir com essas questões,
sugerimos pensar a reforma empresarial da educação como a realização de
dois movimentos combinados. Ela busca elevar o nível geral de
produtividade tanto dos professores quanto da jovem força de trabalho
que procurará se inserir no mercado nos próximos anos, mas o faz num
contexto de reestruturação dos gastos públicos com as chamadas áreas
sociais. Diante disso, é possível conceber que serão as parcerias
público-privadas a oferecer os aportes necessários para as adequações
estruturais e organizacionais que permitam realizar esse salto
qualitativo prometido, já que o Programa de Implementação anunciado pelo
governo é visível e propositalmente aquém do que pede a realidade.
Mas as experiências-piloto, bem como os
processos similares da nova gestão que hoje já se difundiram por quase
todo o mundo do trabalho, dão fortes sinais de que a busca pelo aumento
dos índices educacionais não deverá acontecer baseando-se em métodos
“civilizatórios” de reorganização dos trabalhos, mas principalmente
através da introdução de rigorosos mecanismos disciplinares, que abarcam
estudantes e professores. É por meio do adensamento do ambiente
competitivo entre todos os agentes envolvidos no processo que se
pretende atingir maiores índices e resultados, o que implica o desmanche
dos velhos marcos de proteção trabalhista, a introdução de ferramentas
de avaliação/responsabilização individual e o agravamento das condições
de instabilidade. Assim, os esforços adicionais (econômicos e sociais)
requeridos pela nova estratégia empresarial são, em sua maior parte,
repassados aos músculos, cérebros e nervos de trabalhadores e alunos.
Como o próprio Ministro da Educação não fez questão de esconder: “vai doer”!
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