Maria Lucia Fattorelli
Carmen Bressane
Gisela Collares
Rodrigo Ávila
A propaganda é extremamente sedutora: vender algo “podre” para alguém
que ainda se dispõe a pagar 40% ou até mais por isso. Excelente
negócio!
Essa poderosa propaganda é a que vem sendo usada para apresentar um
escandaloso esquema de transferência de recursos públicos para o setor
financeiro privado.
Trata-se do anúncio da “venda”, “cessão”, “securitização” ou
“novação” de créditos devidos à União, Estados ou Municípios, inscritos
ou não em Dívida Ativa.
Na realidade, tais créditos, dos quais a Dívida Ativa é o mais
representativo em volume, não saem do lugar. O que está sendo vendido é
um papel novo, emitido por “empresa estatal não dependente”, que é uma
pessoa jurídica de direito privado. As debêntures são vendidas a
investidores privilegiados com desconto de até 60% e juros de mais de
20% sobre o valor de face. A Dívida Ativa só serve de parâmetro para
indicar o tamanho da garantia dada pelo ente federado para essa empresa.
A PEC 241/2016, conhecida como a PEC do teto, garante recursos para
“empresas estatais não dependentes”, enquanto ficarão congelados por até
vinte anos o conjunto de gastos e investimentos primários em saúde,
educação, segurança, assistência…
Bom negócio para quem?
A Dívida Ativa (volume de tributos e outros créditos devidos à União,
Estados e Municípios) corresponde, em sua maioria, a créditos
incobráveis, pois são devidos por contribuintes que não têm como pagar
seus débitos, tais como empresas falidas, não encontradas, ou que nunca
existiram de fato. Devido a essas circunstancias, a maior parte da
Dívida Ativa é considerada podre, isto é, não possui a menor chance de
ser arrecadada.
Em todos os entes federados, a atribuição legal para cobrar a Dívida
Ativa pertence a órgãos públicos competentes. No âmbito da União, é a
Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) que cobra a Dívida Ativa.
Alguns estados e municípios possuem Procuradorias para realizar essa
tarefa; em outros a própria secretaria fazendária cuida da cobrança. Na
prática, os órgãos competentes têm conseguido arrecadar somente uma
pequena parte da Dívida Ativa, que não é podre, ou seja, a parte
correspondente a contribuintes que tiveram seus débitos inscritos em
Dívida Ativa apenas devido a uma perda de prazo ou à necessidade de
parcelamento, mas que buscam regularizar sua situação.
Dessa forma, todos os entes federados mantêm um estoque de Dívida
Ativa que sabidamente não será arrecadada, até porque faltam
investimentos para que a administração tributária consiga realizar sua
competência.
O negócio que está sendo anunciado por grandes meios de comunicação é
uma solução mágica: os entes federados conseguiriam vender essa Dívida
Ativa podre para alguém que pagaria até 40% de seu valor. De fato, isso
seria estupendo. Porém, isso é uma ilusão. A Dívida Ativa não é vendida
ou cedida e não sai do lugar. Os créditos não têm sua natureza ou
condições de pagamento modificadas e continuarão sendo cobrados pelos
respectivos órgãos competentes.
Na realidade, o que está sendo vendido para investidor privado
privilegiado é um papel novo (debênture) emitido por empresa estatal não
dependente, com desconto (deságio) que pode alcançar até 60% e pagando
juros estratosféricos de cerca de 20% ou mais ao ano sobre o valor de
face. O ganho proporcionado ao investidor privilegiado é imenso, pois
ele ainda poderá parcelar o pagamento em alguns anos.
A Dívida Ativa e demais créditos servem apenas de parâmetro para
indicar o tamanho da garantia dada pelo ente federado para essa empresa.
Tal garantia geralmente é formalizada por outro papel financeiro
(debênture subordinada), também emitido pela empresa estatal não
dependente e entregue ao ente federado, que assim se obriga a assumir os
riscos da operação. Dados da Secretaria de Fazenda de São Paulo atestam
que as debêntures subordinadas servem para documentar as garantias
concedidas pelo Estado.
Devido às condições financeiras abusivas desse esquema, essa garantia
irá crescer exponencialmente, como aconteceu na Europa, onde esquema
semelhante foi descoberto durante os trabalhos de auditoria da dívida na
Grécia.
E já temos uma indicação de onde virão os recursos para cobrir o
rombo provocado por esse esquema: a PEC 241/2016, que congela por até
vinte anos todos os gastos e investimentos primários, garante recursos
públicos para aumento de capital de “empresas estatais não dependentes”.
Não há dúvida de que estamos diante de um excelente negócio somente
para quem compra esses papéis com desconto brutal e escandalosa
remuneração.
Esse negócio é legal?
Esse negócio já foi implementado em alguns estados e municípios.
Entrou no país por meio de consultorias especializadas que contam com
técnicos que possuem pedigree do FMI, a exemplo da ABBA Consultoria e
Treinamento, cujo consultor responsável – Edson Ronaldo Nascimento – tem
ocupado posições relevantes, diretamente vinculadas à implantação de
sua consultoria, tais como: Presidente da PBH Ativos S/A;
Superintendente Executivo da Secretaria de Fazenda do Estado de Goiás;
Secretário de Fazenda do Estado de Tocantins. Por sua vez, o
ex-secretário de Fazenda dos Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo –
Renato Vilela – é um dos sócios da empresa CPSEC, a estatal não
dependente do Estado de São Paulo.
Alguns gestores públicos provocaram o Tribunal de Contas da União
para que se manifestasse sobre o tema, conforme processo TC
016.585/2009-0, do qual consta manifestação do Ministério Público de
Contas no sentido da ilegalidade dessa operação, conforme trechos
transcritos a seguir:
“Trata-se, portanto, de desenho que apresenta em sua essência a
mesma estrutura adotada pelos entes que optaram por criar uma empresa
pública emissora de debêntures lastreadas em créditos tributários, por
meio da qual o ente federado obtém do mercado uma antecipação de
receitas que serão auferidas somente no futuro e que, quando o forem,
serão destinadas ao pagamento dos credores, numa nítida e clara, ao ver
do Ministério Público de Contas, operação de crédito, conforme o
conceito amplo adotado no artigo 29, III, da LRF.”
– “Arrumaram um subterfúgio ilegal com aparência legal para
antecipação de receita e burlar a LRF – que pressupõe a ação planejada e
transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de
afetar o equilíbrio das contas públicas, e regras para antecipação de
receitas.”
– “Esse mecanismo compromete as gestões futuras e prejudica a
sustentabilidade fiscal do Município – as receitas parceladas em Dívida
Ativa ou espontaneamente entrariam também no futuro ( em outras
gestões).”
Não há dúvida de que esse negócio de emissão de debêntures por
“empresa estatal não dependente”, com garantia pública, mascarado de
“cessão” ou “novação” de créditos podres corresponde a uma operação
ilegal.
Na tentativa de “legalizar” esse esquema financeiro, foi apresentado,
no Senado, o PLS 204/2016. Conforme consta de sua justificação, tal
projeto de lei visa dar “segurança jurídica” às operações de cessão de
direitos creditórios que já estão sendo realizadas em alguns estados e
municípios. Projetos semelhantes tramitam na Câmara dos Deputados: PLP
181/2015 e PL 3337/2015.
Todos os referidos projetos PLS 204/2016, PLP 181/2015 e PL 3337/2015
mencionam expressamente que a “cessão” ou “novação” de créditos se dará
em favor de “pessoa jurídica de direito privado”, que vem a ser a
própria “empresa estatal não dependente”. Tal empresa é regida pelo
direito privado por possuir sócios privados, mas é uma empresa estatal
controlada pelo ente federado.
De fato, empresas estatais não dependentes já estão funcionando em
diversas localidades, como por exemplo: PBH Ativos S/A em Belo
Horizonte; CPSEC no Estado de São Paulo; SPSEC no município de São
Paulo; PRSEC no Paraná; Recda em Recife, entre outras. Além da emissão
de debêntures, tais empresas realizam outras operações com ativos
públicos e patrimônio a ela doados ou “cedidos”.
Cabe ressaltar a enorme contradição relacionada à criação de empresas
estatais não dependentes justamente quando se privatizam as empresas
estatais estratégicas e lucrativas ainda restantes. Ademais, a emissão
de debêntures nessas condições financeiras abusivas, sob a ilusão de
“ceder” direitos de créditos, não constitui papel do Estado. As demais
funções de administração de ativos públicos indicadas nas páginas web
das referidas empresas são funções que a própria administração direta já
executa, o que denota que o objetivo central dessas empresas estatais
tem sido a emissão de debêntures.
Evidentemente, essas operações com debêntures gerarão prejuízo
incalculável às empresas estatais não dependentes que vem sendo criadas
para essa finalidade. Devido ao enorme desconto na venda das debêntures,
aos juros abusivos e demais custos financeiros e administrativos, o
valor arrecadado com essa venda é consumido em poucos meses e enorme
dívida pública será gerada para o ente federado, sem contrapartida
alguma.
Conclusão
Essa engenharia financeira baseada na ilusão de venda de ativos
podres consumirá incalculáveis volumes de recursos públicos e gerará
elevado ônus financeiro, podendo ser considerada um crime de lesa
pátria.
Configura transferência brutal de recursos públicos para o setor
financeiro privado por meio da geração de dívida pública sem
contrapartida alguma.
É um desenho sofisticado para burlar a Lei de Responsabilidade Fiscal
(LRF) e endividar sem limite os entes federados, que posteriormente
ficarão obrigados a sacrificar ainda mais os investimentos sociais para
viabilizar o pagamento das dívidas geradas por esse esquema.
A sociedade, que ao final paga essa conta, exige transparência e
apuração das operações que estão por trás dessa ilusória propaganda de
“cessão” ou “novação” de créditos que na verdade não saem do lugar…
Como é possível supor que o Congresso legalize esse escandaloso
esquema por meio do PLS 204/2016, que tramita no Senado, e projetos
semelhantes – PLP 181/2015 e PL 3337/2015 – que tramitam na Câmara,
considerando os imensuráveis prejuízos que tal esquema causará aos entes
federados, e, ainda por cima, garanta recursos públicos para as
empresas estatais não dependentes que operam tal esquema na PEC
241/2016, com o sacrifício das áreas sociais?
Com a palavra os órgãos de controle e os parlamentares.
Publicado no dia 20/09/2016
Fonte: http://www.auditoriacidada.org.br
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