Publicado em 07/04/2017
A elaboração de uma BNCC – Base Nacional Comum Curricular – não é, como já dissemos, um problema em si. É a política educacional gerencialista usada na sua elaboração e para a qual se destina, o que se reveste, aqui, de um grave problema. Isso vem desde o início da elaboração da BNCC, ainda sob o governo Dilma. Lá foi entregue a reformadores empresariais que dominavam a Secretaria de Educação Básica do MEC. Estes, por sua vez, tinham um trânsito limitado, pois a política global não era definida por eles.
Com o golpe de 2016 e a entrega do MEC à coligação liberal-conservadora representada pelo DEM-PSDB, escancarou-se a utilização das teses da reforma empresarial da educação em sua forma mais radical. Aos poucos, a versão inicial da BNCC foi sendo moldada às teses dos novos ocupantes do MEC até chegar a esta terceira versão. Neste processo, a educação infantil foi escolarizada (com a definição de objetivos em três faixas de idade e agora com a redução da idade limite para alfabetização), introduziram-se habilidades sócio-emocionais, além de outras iniciativas mais internas à constituição dos conhecimentos. Claro, na revisão de português final, encontraram alguns termos redundantes como “gênero” e “orientação sexual” e os retiraram…
Ainda em tempos de Dilma, os reformadores se organizaram no chamado Movimento pela Base, com cobertura financeira da Fundação Lemann. A terceira versão da base, agora divulgada, não esconde sua relação com este grupo, pois no próprio documento se pode ler “Com apoio do Movimento pela Base”. Membros deste grupo defendiam que a BNCC deveria ser feita por um órgão independente do governo e sua organização na forma de um Movimento, visava influenciar as políticas de definição da BNCC, pois não estavam no governo.
Este mesmo grupo que hoje está no MEC quando aplicou esta “tecnologia” em São Paulo, com o tal do “São Paulo faz escola”, contratou a Fundação Vanzolini. Esta fundação foi a responsável, agora, pelo gerenciamento da versão III da BNCC. A preferência é sempre pela conexão com fundações, nunca com Universidades. Eles constroem “câmaras de eco” para si mesmos e montam “cenários” de milhões de “participantes do processo” – meros figurantes de um script pré-aprovado cuja contribuição nunca se sabe onde foi parar.
O texto apresentado como versão III, vai ao CNE – Conselho Nacional de Educação – mas com uma “espada” na cabeça daquele órgão: tramita na câmara um projeto para que a BNCC seja analisada pelo Congresso e não apenas pelo CNE. Caso a versão final do CNE não agrade – o que é pouco provável depois da “limpa” que fizeram no órgão -, ainda restaria à frente liberal-conservadora recorrer ao Congresso, levando a base para lá. Bastaria ligar para o deputado Rogerio Marinho (autor do projeto, do PSDB).
Como dizíamos, a existência de uma base, não incomoda. Deve haver uma BNCC que seja referência para o país, produto de sua visão de nação diversa, no qual se parte de uma discussão sobre o que entendemos por ser uma “boa educação”. Isso é muito diferente de fazer um “catálogo” de competências e habilidades, como se pode ver na versão III. Mais ainda, é muito diferente de inserir a BNCC em uma política gerencialista que está sendo construída pelo MEC para criar uma malha de controle sobre as escolas que, como se sabe pela experiência de outros países, leva à privatização.
A política educacional do governo Temer é que é o problema. A justificativa é a mesma de outros países: é para o bem das crianças mais pobres. Elas têm o direito de apender tanto quanto os ricos, etc. etc.. Sobre o “direito de aprender” o Ministro da Educação se manifestou no dia do lançamento da versão III pela Folha de São Paulo. Diz o Ministro:
“o que constar na base deverá ser obrigatoriamente ensinado em sala de aula”.
A BNCC tem por fundamento uma concepção gerencialista autoritária que é dissimulada nesta argumentação de garantir direitos aos mais pobres. A intencionalidade da atual base é padronizar para poder cobrar da escola. Quando dizem que a BNCC garante direitos dos mais pobres, querem de fato significar que agora a escola será penalizada se não ensinar os pobres (ou os ricos) de acordo com tudo que a BNCC diz que têm direito – independentemente de terem ou não condições concretas para poder desempenhar seu trabalho. Para isso se está fazendo o ENAMEB – Exame Nacional do Magistério do Ensino Básico e realinhando os exames nacionais à BNCC. Portanto, a BNCC não pode ser examinada isoladamente, mas como a base de toda uma política de pressão sobre a escola e seus profissionais, que conduzirá à privatização e destruição da escola pública.
Não sem razão o documento da versão III da BNCC diz;
“A primeira tarefa de responsabilidade direta da União será a revisão da formação inicial e continuada dos professores para alinhá-las à BNCC. A ação nacional será crucial nessa iniciativa, já que se trata da esfera que responde pela regulação do ensino superior, nível no qual se prepara grande parte desses profissionais. Diante das evidências sobre o peso do professor na determinação do desempenho do aluno e da escola de educação básica, essa é uma condição indispensável para a implementação da BNCC.” (p.15, grifos meus.)
Como já demonstrei aqui, não é verdade que o professor seja o fator de maior peso na determinação do desempenho. Qualquer pesquisador sério sabe que ele é bem menor (em média 15%) do que o peso dos fatores socio-econômicos que dificultam a aprendizagem ( que chega até 60%).
Mas isso é ignorado. A reforma empresarial da educação parte do pressuposto que se o aluno não aprende é porque a escola não ensina (ou não sabe o que ensinar). Torce dados de pesquisa para fazer valer esta tese. Nem uma palavra é dita sobre a péssima infraestrutura das escolas, sobre os professores horistas que “voam” como borboletas de escola em escola, sobre a superlotação das salas de aulas e tantos outros problemas crônicos. Não convém.
A ideia por trás é que a culpa da criança não aprender é da escola – leia-se do professor. E a parti daí, cria-se todo um cerco sobre a escola: exames nacionais, produção de material didático e sistemas de ensino, avaliações de professores, normas para formação de professores, etc. A ideia é “alinhar” aos objetivos da BNCC os professores, os materiais didáticos, as avaliações e finalmente o financiamento – passando é claro, pelo alinhamento das agências formadoras de professores. A qualidade é uma questão gerencial.
O INEP fará o alinhamento com as avaliações nacionais. O alinhamento da formação de professores ficará com Guiomar Namo de Mello, pessoa de confiança da equipe do MEC e que defende as teses dos reformadores também. A Fundação Lemann já anda distribuindo (e recebendo) dinheiro para os materiais e sistemas educativos on line. Segundo o texto da BNCC:
“A adoção desse enfoque vem reafirmar o compromisso da BNCC com a garantia de que os direitos de aprendizagem sejam assegurados a todos os alunos. Com efeito, a explicitação de competências – a indicação clara do que os alunos devem saber, e, sobretudo, do que devem saber fazer como resultado de sua aprendizagem – oferece referências para o fortalecimento de ações que assegurem esses direitos. (p.16)
Quais direitos: os 60% definidos na BNCC. Se você tem um “padrão”, basta gerenciar a obtenção do padrão. Como na indústria.
Aqui está em jogo nada a menos do que o diverso. A padronização emerge como forma de calar o diverso. 60% da BNCC é obrigatório no país, 40% seriam as diversidades. Mas, o que avaliam os exames nacionais: os 60% obrigatórios, o que torna todo o restante (os outros 40%) optativo. Com quem se alinhará a grande indústria educacional de produção de materiais e programas de ensino: com os 60%.
A BNCC não vai mudar a escola, sua estrutura, sua lógica. Vai reforça-la amarrando tudo a exames nacionais e locais. É uma estratégia de se conseguir resultados a qualquer custo. O único “sucesso” que se pode esperar desta proposta é a privatização da escola pública, a ampliação da segregação social e a formação de quadros para alimentar as empresas – claro, além de criar uma trilha especial para a elite continuar elite e os filhos dos trabalhadores continuarem filhos de trabalhadores.
A desconversa do Ministro é notória:
“A base não é currículo: não estabelece método de ensino, projeto pedagógico nem forma de avaliação. Determina, sim, o ponto aonde se quer chegar, enquanto os currículos traçam os caminhos. Tampouco é camisa de força. Ao contrário, até estimula a diversificação curricular. A autonomia dos sistemas de ensino será mantida, e o Brasil terá uma base e muitos currículos.”
Sim, mas todos eles serão avaliados pela mesma prova construída pelo INEP a partir dos 60% cobertos pela BNCC e a cujos resultados estarão ligados financiamentos e outras consequências, locais ou nacionais. Veja, por exemplo, como foi proposta a reforma do ensino médio.
Sem dúvida, a BNCC não é em si currículo, mas a padronização vem da força das avaliações nacionais (e internacionais) e demais instrumentos que são decorrentes da política educacional que cerca a BNCC. Ela é somente a base para a instalação do gerencialismo, favorecendo, igualmente ao populismo. Se a discussão ficar apenas na base pela base, perde-se a real intencionalidade da política educacional do governo Temer.
Para mover esta máquina de controle da escola, a iniciativa privada será chamada e, de fato, já está se alinhando.
Fonte: https://avaliacaoeducacional.com/2017/04/07/bncc-uma-base-para-o-gerencialismo-populista/
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