Rumo a uma ditadura sobre os pobres*? ( Nota aos leitores brasileiros)
A penalidade neoliberal apresenta o seguinte paradoxo: pretende remediar com um "mais Estado" policial e penitenciário o "menos Estado" econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países, tanto do Primeiro como do Segundo Mundo. Ela reafirma a onipotência do Leviatã no domínio restrito da manutenção da ordem pública - simbolizada pela luta contra a delinqüência de rua - no momento em que este se afirma e verifica-se incapaz de conter a decomposição do trabalho assalariado e de refrear a hipermobilidade do capital, as quais, capturando-a como tenazes, desestabilizam a sociedade inteira. E isso não é uma simples coincidência: é justamente porque as elites do Estado, tendo se convertido à ideologia do mercado total vinda dos Estados Unidos, diminuem suas prerrogativas na frente econômica e social que é preciso aumentar e reforçar suas missões em matéria de "segurança", subitamente relegada à mera dimensão criminal.
No entanto, e, sobretudo, a penalidade neoliberal ainda é mais sedutora e mais funesta quando aplicada em países ao mesmo tempo atingidos por fortes desigualdades de condições e de oportunidades de vida e desprovidos de tradição democrática e de instituições capazes de amortecer os choques causados pela mutação do trabalho e doindivíduo no limiar do novo século.
Isso é dizer que a alternativa entre o tratamento social da miséria e de seus correlatos -ancorado numa visão de longo prazo guiada pelos valores de justiça social e de solidariedade e seu tratamento penal- que visa às parcelas mais refratárias do subproletariado e se concentra no curto prazo dos ciclos eleitorais e dos pânicos orquestrados por uma máquina midiática fora de controle, diante da qual a Europa se vê atualmente na esteira dos Estados Unidos, coloca-se em termos particularmente cruciais nos países recentemente industrializados da América do Sul, tais como o Brasil e seus principais vizinhos, Argentina, Chile, Paraguai e Peru.
Em primeiro lugar, por um conjunto de razões ligadas à sua história e sua posição subordinada na estrutura das relações econômicas internacionais (estrutura de dominação que mascara a categoria falsamente ecumênica de "globalização"), e a despeito do enriquecimento coletivo das décadas de industrialização, a sociedade brasileira continua caracterizada pelas disparidades sociais vertiginosas e pela pobreza de massa que, ao se combinarem, alimentam o crescimento inexorável da violência criminal, transformada em principal flagelo das grandes cidades. Assim, a partir de 1989, a morte violenta é a principal causa de mortalidade no país, com o índice de homicídios no Rio de Janeiro, em São Paulo e Recife atingindo 40 para cada 100.000 habitantes, ao passo que o índice nacional supera 20 para cada 100.000 (ou seja, duas vezes o índice norte-americano do início dos anos 90 e 20 vezes o nível dos países da Europa ocidental). A difusão das armas de fogo e o desenvolvimento fulminante de uma economia estruturada da droga ligada ao tráfico internacional, que mistura o crime organizado e a polícia, acabaram por propagar o crime e o medo do crime por toda a parte no espaço público.
Na ausência de qualquer rede de proteção social, é certo que a juventude dos bairros populares esmagados pelo peso do desemprego e do subemprego crônicos continuará a buscar no "capitalismo de pilhagem" da rua (como diria MaxWeber) os meios de sobreviver e realizar os valores do código de honra masculino, já que não consegue escapar da miséria no cotidiano. O crescimento espetacular da repressão policial nesses últimos anos permaneceu sem efeito, pois a repressão não tem influência alguma sobre os motores dessa criminalidade que visa criar uma economia pela predação ali onde a economia oficial não existe ou não existe mais.
Depois, a insegurança criminal no Brasil tem a particularidade de não ser atenuada, mas nitidamente agravada pela intervenção das forças da ordem. O uso rotineiro da violência letal pela polícia militar e o recurso habitual à tortura por parte da polícia civil (através do uso da "pimentinha" e do "pau-de-arara" para fazer os suspeitos "confessarem"), as execuções sumárias e os "desaparecimentos" inexplicados geram um clima de terror entre as classes populares, que são seu alvo, e banalizam a brutalidade no seio do Estado. Uma estatística: em 1992, a polícia militar de São Paulo matou 1.470 civis - contra 24 mortos pela polícia de Nova York e 25 pela de Los Angeles -, o que representa um quarto das vítimas de morte violenta da metrópole naquele ano. É de longe o recorde absoluto das Américas.
Essa violência policial inscreve-se em uma tradição nacional multissecular de controle dos miseráveis pela força, tradição oriunda da escravidão e dos conflitos agrários, que se viu fortalecida por duas décadas de ditadura militar, quando a luta contra a "subversão interna" se disfarçou em repressão aos delinqüentes. Ela apóia-se numa concepção hierárquica e paternalista da cidadania, fundada na oposição cultural entre feras e doutores, os "selvagens" e os "cultos", que tende a assimilar marginais, trabalhadores e criminosos, de modo que a manutenção da ordem de classe e a manutenção da ordem pública se confundem.
Um terceiro fator complica gravemente o problema: o recorte da hierarquia de classes e da estratificação etnorracial e a discriminação baseada na cor, endêmica nas burocracias policial e judiciária. Sabe-se, por exemplo, que em São Paulo, como nas outras grandes cidades, os indiciados de cor "se beneficiam" de uma vigilância particular por parte da polícia, têm mais dificuldade de acesso a ajuda jurídica e, por um crime igual, são punidos com penas mais pesadas que seus comparsas brancos. E, uma vez atrás das grades, são ainda submetidos às condições de detenção mais duras e sofrem as violências mais graves. Penalizar a miséria significa aqui "tornar invisível" o problema negro e assentar a dominação racial dando-lhe um aval de Estado.
A propósito, o desinteresse flagrante e a incapacidade patente dos tribunais em fazer respeitar a lei encorajam todos aqueles que podem buscar soluções privadas para o problema da insegurança - barricadas em "bairros fortificados", guardas armados, "vigilância" tolerada, e até encorajada, por parte dos justiceiros e das vítimas de crimes -, o que tem por principal efeito propagar e intensificar a violência. Pois, a despeito do retorno à democracia constitucional, o Brasil nem sempre construiu um Estado de direito digno do nome.
As duas décadas de ditadura militar continuam a pesar bastante tanto sobre o funcionamento do Estado como sobre as mentalidades coletivas, o que faz com que o conjunto das classes sociais tendam a identificar a defesa dos direitos do homem com a tolerância à bandidagem. De maneira que, além da marginalidade urbana, a violência no Brasil encontra uma segunda raiz em uma cultura política que permanece profundamente marcada pelo selo do autoritarismo.
Em tais condições, desenvolver o Estado penal para responder às desordens suscitadas pela desregulamentação da economia, pela dessocialização do trabalho assalariado e pela pauperização relativa e absoluta de amplos contingentes do proletariado urbano, aumentando os meios, a amplitude e a intensidade da intervenção do aparelho policial e judiciário, equivale a (r)estabelecer uma verdadeira ditadura sobre os pobres. Mas quem pode dizer, uma vez reafirmada a legitimidade dessa gestão autoritarista da ordem social pelo uso sistemático da força na base da estrutura de classes, onde se deterá o perímetro de sua utilização?
E como não ver que, na ausência de garantias jurídicas mínimas, as únicas que uma burocracia racional (conforme o esquema weberiano) encarregada de administrar a justiça pode oferecer, o recurso às técnicas e políticas punitivas de segurança made in USA é essencialmente antitético ao estabelecimento de uma sociedade pacificada e democrática, cuja base deve ser a igualdade de todos diante da lei e de seus representantes?
Uma última razão, de simples bom senso, milita contra um recurso acrescido ao sistema carcerário para conter a escalada da miséria e dos distúrbios urbanos no Brasil. É o estado apavorante das prisões do país, que se parecem mais com campos de concentração para pobres, ou com empresas públicas de depósito industrial dos dejetos sociais, do que com instituições judiciárias servindo para alguma função penalógica - dissuasão, neutralização ou reinserção.
O sistema penitenciário brasileiro acumula com efeito as taras das piores jaulas do Terceiro Mundo, mas levadas a uma escala digna do Primeiro Mundo, por sua dimensão e pela indiferença estudada dos políticos e do público: entupimento estarrecedor dos estabelecimentos, o que se traduz por condições de vida e de higiene abomináveis, caracterizadas pela falta de espaço, ar, luz e alimentação (nos distritos policiais, os detentos, freqüentemente inocentes, são empilhados, meses e até anos a fio em completa ilegalidade, até oito em celas concebidas para uma única pessoa, como na Casa de Detenção de São Paulo, onde são reconhecidos pelo aspecto raquítico e tez amarelada, o que lhes vale o apelido de "amarelos"); negação de acesso à assistência jurídica e aos cuidados elementares de saúde, cujo resultado é a aceleração dramática da difusão da tuberculose e do vírus HIV entre as classes populares; violência pandêmica entre detentos, sob forma de maus-tratos, extorsões, sovas, estupros e assassinatos, em razão da superlotação superacentuada, da ausência de separação entre as diversas categorias de criminosos, da inatividade forçada (embora a lei estipule que todos os prisioneiros devam participar de programas de educação ou de formação) e das carências da supervisão.
Mas o pior, além disso tudo, é a violência rotineira das autoridades, indo desde as brutalidades cotidianas à tortura institucionalizada e às matanças em massa por ocasião das
rebeliões que explodem periodicamente como reação às condições de detenção desumanas
(cujo ponto máximo permanece o massacre do ( Carandiru, em 1992, quando a polícia militar matou 111 detentos em uma orgia selvagem estatal de uma outra era), e que se desdobra numa impunidade praticamente total. Nessas condições, o aparelho carcerário brasileiro só serve para agravar a instabilidade e a pobreza das famílias cujos membros ele seqüestra e para alimentar a criminalidade pelo desprezo escandaloso da lei, pela cultura da desconfiança dos outros e da recusa das autoridades que ele promove.
Nem a expansão programada do sistema - em 1998 previa-se a duplicação do parque penitenciário com a construção de 52 novos estabelecimentos, dos quais 21 só para o estado de São Paulo - nem sua indispensável modernização, pela formação de pessoal e a introdução da informática, poderão remediar a incapacidade congênita da prisão de exercer um efeito qualquer sobre a criminalidade.
Mesmo nos Estados Unidos, onde polícia e justiça são dotadas de meios colossais sem nenhum padrão comum com seus homólogos brasileiros, o sistema de justiça penal trata apenas de uma parte ínfima dos atentados mais graves, sendo apenas 3% dos crimes de sangue punidos com pena de prisão. De resto, a comparação internacional mostra que não existe nenhuma correlação entre nível de crime e nível de encarceramento.
Em suma, a adoção das medidas norte-americanas de limpeza policial das ruas e de aprisionamento maciço dos pobres, dos inúteis e dos insubmissos à ditadura do mercado desregulamentado só irá agravar os males de que já sofre a sociedade brasileira em seu difícil caminho rumo ao estabelecimento de uma democracia que não seja de fachada, quais sejam, "a deslegitimação das instituições legais e judiciárias, a escalada da criminalidade violenta e dos abusos policiais, a criminalização dos pobres, o crescimento significativo da defesa das práticas ilegais de repressão, a obstrução generalizada ao princípio da legalidade e a distribuição desigual e não eqüitativa dos direitos do cidadão".
A despeito dos zeladores do Novo Éden neoliberal, a urgência, no Brasil como na maioria dos países do planeta, é lutar em todas as direções não contra os criminosos, mas contra a pobreza e a desigualdade, isto é, contra a insegurança social que, em todo lugar, impele ao crime e normatiza a economia informal de predação que alimenta a violência.
Berkeley e Paris, fevereiro de 2001
* Por toda a Europa espalha-se a tentação, inspirada no modelo americano, de buscar apoio nas instituições policial e penitenciária para conter as desordens geradas pelo desemprego em massa, pela imposição do trabalho assalariado precário e pela retração da proteção salarial. E, por toda a América Latina, os políticos importam as técnicas agressivas de segurança "made in USA", entre elas a da "tolerância zero", como solução mágica para o problema crucial da violência criminal. Mas esta opção, que vai na direção contrária da consolidação de uma sociedade democrática, significaria (r)estabelecer uma verdadeira ditadura sobre os pobres. Ao conectar questão criminal e questão social, este livro vigoroso e rigoroso, publicado em 13 línguas, revoluciona os termos do debate sobre violência, justiça, política e prisões no Brasil e no mundo. Inclui prefácio do autor à edição brasileira.
Leia o livro (formato digital) em:
http://mijsgd.ds.iscte.pt/textos/Prisoes_da_Miseria_WACQUANT_Loic.pdf
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