domingo, 12 de dezembro de 2010

Classes, luta de classes e sociedade sem classes [1]

por Georges Gastaud

Introdução

.Servindo-se dos numerosos apoios à sua disposição, a ideologia dominante inculca nas pessoas a ideia de que não há senão o «indivíduo» que existe por si mesmo e é totalmente independente dos outros (self made man). Tudo se faz para negar a existência das classes sociais e o antagonismo entre elas, apresentando a bárbara sociedade capitalista como o paraíso da «cidadania». As péssimas condições de vida e a exclusão, geradas em maré crescente por este sistema, são disfarçadas em «pecados» ou em «dificuldades de adaptação», imputáveis unicamente à responsabilidade dos indivíduos. Consequência inesperada: a sociedade «liberal» deve, para se manter firme, multiplicar os polícias e os guardas prisionais, enquanto o carrasco não vem...


Esta concepção individualista do homem é tão pobre que, como compensação, a ideologia dominante convida cada um de nós a «completar» a sua própria identificação, integrando-se a si mesmo, de modo mais ou menos arbitrário e afectivo, numa «comunidade» religiosa, geracional, «étnica», sexual, etc.

À escala planetária, a «guerra de civilizações» entre o «cruzado» Bush e o integrista Ben Laden passaria a substituir o combate progressista dos povos contra o imperialismo.

Em certos bairros assolados pelo desespero social, é assim que se vê a oposição perigosa entre a FN, que substitui a ideia republicana de nação pela da raça, e o «comunitarismo» integrista, com o único resultado de quebrar toda a acção conjunta contra o capital.

Nas empresas, é o corporativismo que permite ao capital impedir a «unidade de todos»: virar assalariados do sector privado contra os do sector público, confinar as lutas a uma empresa ou ramo profissional, isolar os trabalhadores activos dos reformados e dos desempregados, opor o pessoal com estatuto aos «precários», etc.

Estes dispositivos de diversão levam os trabalhadores a lutar cada qual por seu lado, para grande felicidade do patronato. O objectivo é impedir que a classe dominada, os proletários , intervenha livremente e de maneira colectiva na cena política. Assim, os explorados ficam confinados ao seu papel de mão-de-obra passiva, de eleitores sem referência, ou pior, de carne para canhão.

É precisamente para emancipar os indivíduos, não em palavras mas na prática, é para os ajudar a tornarem-se finalmente sujeitos activos, ou melhor, cidadãos da História , que os comunistas, representantes consequentes da classe explorada, devem reapropriar-se da teoria marxista e do conceito de classe social.

1º Que é uma classe social?

A apropriação colectiva dos instrumentos de produção, objectivo central da luta de classes

Texto basilar do materialismo histórico, a Ideologia Alemã demonstra que o trabalho, a produção, são a base da história humana: « Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, religião, tudo o que se quiser. – escrevem Engels e Marx. - Eles começam a distinguir-se dos animais assim que começam a produzir os seus meios de existência, passo em frente que tem como resultado a sua organização como um conjunto diferenciado ». Contrariamente aos animais, que produzem directamente a sua vida a partir do corpo e do meio natural, os homens produzem indirectamente os seus meios de existência, fabricando utensílios, desenvolvendo técnicas que transmitem por herança, de geração em geração e não por hereditariedade biológica.

Esses utensílios, da pedra lascada ao computador, inscrevem os indivíduos em relações de produção que são a base objectiva da sua existência em sociedade. A questão decisiva é, então, a da divisão do trabalho . Em função do grau de complexidade atingido pelas forças produtivas (utensílios e técnicas) põe-se em prática a divisão técnica do trabalho (ofícios e ramos profissionais). Esta formará a seguir uma das bases da troca mercantil: cada qual põe «no mercado» o que produz além do seu próprio consumo; o mercado regula de maneira cega (concorrência, oferta e procura...) a troca e a repartição das riquezas...

Quando a sociedade atinge um estádio superior de complexidade, as tarefas de organização («trabalho intelectual») separam-se do trabalho de execução («manual»). A maioria dos indivíduos vai «fazer», enquanto uma minoria vai «mandar fazer». A etapa decisiva na divisão social do trabalho é o momento em que uma parte da sociedade se apropria dos meios de produção (terra, rebanhos, utensílios de interesse para a colectividade), o que vai permitir explorar a maioria dos indivíduos que o processo histórico despojou dos meios de produção. Assim se estrutura a sociedade de classes onde os proprietários dos meios de produção exploram os que não têm outro recurso senão trabalhar para os primeiros. Este é o proletário «livre» da sociedade burguesa, de quem Marx escreve que «está desligado de tudo, excepto da necessidade».

Vê-se, portanto, que, contrariamente ao que pretendem Marchand, Dimicoli, Boccara e outros «renovadores do marxismo» que minimizam a questão da propriedade, a questão central da revolução é esta: a quem pertencem os meios de troca e de produção? [2] São, directamente ou não, propriedade de alguns? Estamos, então, perante uma sociedade composta de exploradores e explorados [3] . Se os meios de produção, pelo contrário, são propriedade da sociedade (socialismo) ou um bem comum da humanidade (comunismo), temos uma sociedade sem classes , onde a noção de indivíduo livre deixa de ser uma ilusão: os homens já não pertencem a classes desde a sua nascença, já não mourejam para um outro (escravo, servo, assalariado) e tornam-se «produtores associados» que trabalham para si mesmos e para a colectividade, de acordo com o princípio não mercantilista do comunismo «de cada um segundo as suas possibilidades, a cada um segundo as suas necessidades» [4] .

É assim que Marx vai desenvolver a concepção materialista do comunismo como «movimento real que abolirá o estado de coisas existente». Com efeito, a exploração de classe gera necessariamente a luta de classes , já que mais não fosse porque o explorador (e isto é particularmente verdadeiro no capitalismo actual, regido pela busca do lucro máximo) trava permanentemente um combate egoísta para sacar cada vez mais dos assalariados: estes não têm outra saída senão a de lutar ou recuar constantemente. Ora, o único «fim» (nos dois sentidos da palavra: objectivo e ponto de chegada) da luta de classes só pode ser a sociedade sem classes, o comunismo, pois que, se o explorador ganha (contra-revolução, contra-reforma), a exploração é retomada de maneira ainda mais dura; em caso contrário, a classe explorada não terá ganho definitivamente a sua «luta final» senão quando tiver posto termo à própria existência das classes : a luta dos comunistas apenas findará com o comunismo propriamente dito quando o «desenvolvimento de cada um for a chave do desenvolvimento de todos» (Marx).

2º Modernidade desta análise

a) Luta de classes e consciência de classe


Admitamos as análises de Marx, objectar-se-á, mas as classes não desapareceram na nossa época? Quem fala ainda de «burguesia» ou de «classe operária»?

Esta objecção assenta numa confusão. Na verdade, foi a consciência de classe que recuou dramaticamente nos nossos países e isso não está desligado das renúncias dos partidos e dos sindicatos de classe no campo teórico e ideológico. Mas que um indivíduo não saiba que é proletário não impede que ele seja explorado. Pelo contrário! A ignorância em que se encontravam os homens, antes de Galileu, acerca do movimento da Terra nunca impediu o nosso planeta de girar . A repartição dos indivíduos em classes sociais é um dado objectivo que resulta do facto de os capitalistas comprarem a força de trabalho e os proletários venderem-na no mercado de trabalho . A consciência de classe é, antes de mais, um fenómeno político e ideológico que depende das relações de força na luta de classes. Quando a classe operária perde os seus instrumentos políticos e sindicais de classe (é o que se passa ou pode passar-se num período contra-revolucionário), a sua consciência política de classe declina e, então, subsiste apenas um «instinto de classe» (Lénine) que a social-democracia desvia para o reformismo (e os fascistas para o populismo reaccionário).

Em contrapartida, a classe burguesa mostra uma arrogância (Seillères!) digna dos senhores feudais e dos senhores de escravos da Roma antiga. O recuo da consciência política da classe proletária não prova, pois, de modo nenhum, a inexistência de classes. É, pelo contrário, um argumento de sobra para a reconstituição de um partido de vanguarda que permita à classe explorada tomar consciência dos seus direitos a dirigir o desenvolvimento social em proveito de todos. Para isso, é preciso combater o obreirismo que encerra o explorado no instinto de classe, impedindo-o de compreender a necessidade da revolução: « não há movimento revolucionário sem teoria revolucionária », escrevia Lénine, com toda a razão.

b) A luta de classes continua mas mudando de forma

Na nossa época, é importante tomar consciência da «exacerbação das contradições de classes» (Manifesto do renascimento comunista). A burguesia desapareceu? Evidentemente que não. Mudou de forma. As indústrias familiares de outros tempos deram lugar aos monopólios transnacionais, que praticam a moral ensinada nas grandes escolas comerciais: « não atender nem aos produtos, nem aos países, nem aos homens ». É falso que a especulação financeira tenha substituído a especulação capitalista de empresa, como crêem alguns «altermundialistas». Sem que seja possível desenvolver aqui este aspecto das coisas, a dominação do capital financeiro e especulativo acompanha e acentua (cf. os despedimentos ditos «bolsísticos») o recrudescimento da exploração na empresa: atrás do CAC 40, que France Info apresenta hora a hora, há a precaridade, os baixos salários, as deslocalizações, os despedimentos, o assédio moral no trabalho, o trabalho nocturno das mulheres e outras «gracinhas» da classe capitalista, que se aproveita plenamente da remundialização do seu sistema.

Quanto aos proletários, é absurdo dizer-se que desapareceram. Em primeiro lugar, as deslocalizações do Ocidente para países «emergentes» desloca a classe operária sem a suprimir. Isto significa para nós que é preciso simultaneamente desenvolver um internacionalismo proletário de segunda geração e defender as condições de existência da classe operária AQUI , tomando em mãos a bandeira da independência nacional no campo industrial: a não ser assim, o que nos espera é a exploração sem limites nos países da periferia capitalista e a desqualificação massiça da classe operária nos países dominantes!

Além disso, toda a gente sabe que o capitalismo actual faz por «mercantilizar» e «proletarizar» actividades de serviços em que vê fontes directas ou indirectas de mais-valia: saúde, educação, investigação, etc. Não é por acaso que as lutas se multiplicam em sectores onde outrora havia consenso. Isto não significa que a classe operária esteja a desaparecer, mas, sim, que o proletariado se diversifica e se alarga, mesmo quando, terrível contradição que complica o nosso combate, o seu núcleo operário mais consciente é duramente atacado nas metrópoles imperialistas. Uma razão mais para estudarmos como se aplica hoje o conceito marxista de trabalho produtivo [5] . Uma razão mais para construir a solidariedade de classe entre operários do sector privado, vítimas das deslocalizações, e funcionários do sector público, alvo das privatizações. Romper com os tratados supranacionais, nacionalizar as empresas lucrativas que façam despedimentos, bloquear as privatizações e renacionalizar os serviços privatizados , eis algumas reivindicações susceptíveis de reconstituir a consciência de classe, desestruturada pelo reformismo.

Afinal de contas, « nada se perde, nada se cria, tudo se transforma », como disse o grande materialista Lavoisier. A luta de classes muda de forma, mas o seu conteúdo essencial, a exploração capitalista e a resistência à exploração capitalista, continua . É evidente, pois, o contra-senso sinistro dos nossos “mutantes” [nr] que tomam uma mudança de forma por uma mudança de natureza do capitalismo. A questão cada vez mais central é, na realidade, a da propriedade capitalista, ou não, dos grandes meios de produção (e não «uma outra utilização do dinheiro», dos «bons critérios de gestão», etc, como dizem os nossos ideólogos mutantes, que nos mergulharam teoricamente duzentos anos atrás, para justificar as privatizações da «esquerda»!). Portanto, os militantes do Renascimento Comunista devem defender simultaneamente os princípios fundamentais do comunismo , que, podemos dizê-lo com segurança, continuarão na ordem do dia tanto tempo quanto a exploração capitalista subsista, e analisar as novas formas que assume a luta de classes em função da evolução das forças produtivas e das relações de força entre classes.

3º Classe social, nação, Europa e mundialização

A favor ou contra a nação? A favor ou contra a Europa? A favor ou contra a mundialização? Estas questões têm de ser reformuladas à luz do conceito da luta de classes.

Por um lado, «a» nação, «a» Europa e «o» mundo são abstracções ocas, se não se puser a questão leninista do conteúdo de classe . Que «nação»? Que «Europa»? Que «mundo»? Escolher a nação contra a Europa, ou a Europa contra a mundialização «americana», ou o «mundo» contra «a» nação, etc, é fatalmente fazer o jogo das forças burguesas que querem impedir que os proletários actuais equacionem as questões sociais em termos de classe. Hoje, por exemplo, o grande capital é, ao mesmo tempo, pela mundialização financeira (OMC, FMI e seus braços armados, NATO, etc), pela «Françalemanha», pela Europa de Maastricht e pela «França ganhadora», mantendo no seu jogo o nacionalismo neofascista de um Le Pen («repor a França a trabalhar» — diz Raffarin, fazendo lembrar Pétain). E estes sinistros indivíduos condenam não só os movimentos antimundialistas que, com algumas insuficiências, criticam a globalização financeira, mas também a Europa das lutas (que a CES tudo faz para fragmentar) e a França dos trabalhadores, que eles rejeitam com um desprezo de classe a raiar o racismo (« o francês entrega-se ao seu desporto favorito: o medo » — declara Francis Mer).

Pelo contrário, os militantes abertamente comunistas e os progressistas consequentes associam a bandeira vermelha do internacionalismo proletário à bandeira da nação, defendem simultaneamente a mundialização da resistência popular, a Europa das lutas operárias e a nação republicana, tudo numa perspectiva de transformação socialista da França e de caminhada de toda a humanidade para a sociedade sem classes.

A prática demonstra que o conceito de luta de classes continua plenamente operativo nas nossas lutas actuais. Sem ele, os progressistas estão condenados a «disparar contra si», desunindo as forjas da alternativa anticapitalista (lutas reivindicativas, combate anti-racista, lutas «republicanas», acção «antimundialista»), sem conseguirem fazê-las convergir contra a dominação de classe nos seus diferentes níveis.

Conclusão

Para unir o patriotismo republicano ao internacionalismo proletário, para vencer ao mesmo tempo o nacionalismo fascista e o eurocapitalismo, temos de assumir, sem complexos, o ponto de vista da luta de classes que está no cerne da doutrina marxista-leninista.

Nada de mais moderno, nada de mais federador e nada de mais vital !
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NOTAS
1- Conferência de Georges Gastaud, em Liévin, em 15/Fev/04, a pedido do PRCF 62. Ver o sío de teoria da Iniciativa Comunista , mensário do Pólo do Renascimento Comunista em França. Esta conferência existe em vídeo e está disponível no Cercle Lénine de Culture Populaire, 199 rue Zola, 62800 Liévin.
2- Durante as ocupações de fábricas da Frente Popular ou de Maio de 68, os trabalhadores, dirigidos pelo PCF e pela CGT, cuidavam ciosamente dos seus instrumentos de trabalho: «um dia isto será nosso» — pensavam. Imagine-se o desespero em que se encontram hoje alguns operários despedidos que, da Cellatex à Métaleurop, ameaçam fazer ir pelos ares a sua fábrica ou lançam num canal as máquinas de produção!
3-A noção de «coesão social» numa sociedade de classes não é mais do que uma ilusão. Que uma tal noção seja empregada pela CES ou pela CFDT não tem nada de surpreendente. O que é inquietante é vê-la agora aceite, sem discussão, na imprensa dos sindicatos de luta!
4- Princípio que A. Croizat, ministro comunista da Libertação, tomou como base da Segurança Social.
5- Cf. o número especial da revista Etincelles sobre a actualidade do marxismo na economia.
[nr] Por 'mutantes' o autor designa a actual direcção do PCF.


Tradução de MJS.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info .

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